Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1301/19.0PBAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
CRIMES SEMÍ-PÚBLICOS
Nº do Documento: RP202204061301/19.0PBAVR.P1
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de ameaça, desde a redacção originária do Código Penal de 1982, sempre revestiu natureza semi-pública e foi apenas após a alteração do Código Penal efectuada em 2007 (por via da Lei nº 59/2007, de 04/09), que germinou a ideia da dicotomia entre ameaça simples e ameaça agravada, semi-pública a primeira, pública a segunda.
II - Mas essa revisão (assim como as posteriores), a nenhuma alteração substancial do tipo do crime de ameaça procedeu, apenas aglutinando e ampliando as circunstâncias agravantes da ameaça e da coacção, por razões de utilitarismo sistemático.
III - Nem a evolução histórica da Lei, nem a reconstituição do pensamento legislativo, permitem concluir pela existência de qualquer intenção do legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça – na sua forma simples ou agravada - e ignorar por completo a vontade da pessoa ofendida, nomeadamente quanto à sua faculdade de desistir do procedimento criminal contra o ameaçante.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 1301/19.0PBAVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - JL Criminal - Juiz 2

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - JL Criminal - Juiz 2, processo supra referido, foi julgado AA, tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, com os fundamentos de facto e de Direito exarados, o Tribunal decide julgar a acusação procedente por provada e, em consequência:
1. Condenar AA pela prática, em 22-09-2019, como autor material, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, n.º1, 155º, n.º1, alínea a), na pena de cento e vinte dias de multa, à razão diária de €8,00, o que perfaz o quantitativo global de €960,00;
2. Fixar em 80 (oitenta) dias a prisão subsidiária que o arguido terá de cumprir no caso de não pagar, voluntária ou coercivamente, a pena de multa em que foi condenado;
3. Condenar o arguido no pagamento das custas e demais encargos com o processo fixando-se em 3,5UC o valor da taxa de justiça.”
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Desta Sentença recorreu o Arguido/Condenado AA, formulando as seguintes conclusões:
“1. No presente processo o Arguido foi condenado como autor material, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), na pena de cento e vinte dias de multa, à razão diária de € 8,00. Para tanto,
2. o Tribunal a quo considerou provados os factos descritos em 1. a 11. da Fundamentação da Sentença em crise. No entanto,
3. aquela factualidade descrita nos itens 4., 5. e 6. assentou, não só, na avaliação errada da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento,
4. como na violação dos mais elementares direitos do Arguido.
5. Desde logo aos depoimentos prestados não foi dado o mesmo tratamento de imparcialidade que se impunha, desde logo a mesma realidade dita por pessoas diferentes não mereceu do Tribunal a quo a devida ponderação,
6. da prova produzida resultam factos que deveriam ter sido considerados como provados e não o foram, nomeadamente, no que respeita ao número de jovens que abordaram o Arguido;
7. da prova produzida não foi possível apurar com um grau de certeza sério se o Arguido proferiu as expressões de que vinha acusado,
8. e mesmo que as tivesse proferido, não foi possível apurar com exatidão e um grau de certeza elevado, quais as expressões utilizadas. Mais,
9. a terem sido proferidas tais expressões: “espeto-te uma faca no pescoço”, “mato-te como a um escaravelho” e “vou buscar um martelo para o fazer”,
10. as mesmas poderiam, quando muito configurar apenas a ameaça de um crime de ofensa à integridade física punível com pena até 3 anos e não um crime de ameaças agravadas conforme resultou da decisão recorrida. Assim,
11. na data dos factos o Arguido tinha 50 anos de idade,
12. é gerente, há mais de 30 anos, da empresa que explora as duas discotecas e um restaurante, na cidade de Aveiro, e,
13. pese embora os “anos de noite”, não tem averbado ao seu registo criminal qualquer antecedente. Acresce que,
14. pese embora as funções que exerce, o Arguido, pelo menos, desde 17.02.2017 que, na sequência de um enfarte, que não frequenta e/ou permanece na discoteca.
15. Actualmente o Arguido apenas está presente no Restaurante “F...”, apenas se deslocando à discoteca em situações muito pontuais que exigem a sua presença institucional. Assim,
16. na noite dos factos, 22.09.2019, a situação que despoletou a presente demanda, foi o facto de ao Ofendido lhe ter sido “barrada” a entrada na discoteca, pelo porteiro, porquanto se apresentava visivelmente embriagado. Ora,
17. atenta a experiência comum não é novidade afirmar-se que “a noite” é propicia a desavenças, razão pela qual,
18. ao longo dos anos o critério adoptado pelo Arguido e pelos seus funcionários, sempre se orientou pela inflexibilidade em impedir a entrada a quem já se apresentasse notoriamente embriagado.
Acontece que,
19. o Ofendido não satisfeito com aquela decisão tentou insistir na sua entrada, bem como, tentou, a todo o custo, obter explicações para aquela decisão. Pelo que,
20. depois de ter sido afastado da fila da entrada da discoteca, para a frente da porta do restaurante, por um segurança, deparou-se com o Arguido que ia a sair do seu trabalho e abordou-o, juntamente com o seu primo e mais 3 ou 4 amigos, tendo-se iniciado a discussão. Ou seja,
21. de um lado temos o Arguido, empresário respeitado da noite Aveirense, com mais de 30 anos de profissão e sem antecedentes criminais e, do outro, o Ofendido, acompanhado por, pelo menos, mais 4 ou 5 amigos, visivelmente embriagado, a quem foi barrada a entrada e tenta obter explicações.
22. Perante tamanha situação facilmente se compreende se alcança que não era o Arguido quem estaria nervoso e mais propenso a conflitos e sim o Ofendido que procurava, a todo o custo, entrar na discoteca. Aliás,
23. tanto assim é, que como manifestação do reconhecimento do seu comportamento, o Ofendido veio desistir de procedimento criminal e do pedido cível na parte que lhe era lícito. Contudo,
24. tal não foi assim valorado na Sentença recorrida, alicerçada na tese da existência de duas facções de depoimentos,
25. uma que aderiu à tese do Arguido, e que no entender do Tribunal a quo, ocultando factos relevantes para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa; e outra que se terá apresentado com isenção e seriedade na descrição da factualidade.
No entanto,
26. dos depoimentos prestados parece-nos não ter existido essa mesma seriedade na descrição da factualidade. A verdade é que,
27. o Arguido no momento em que saia do seu local de trabalho para ir para casa, se deparou com um grupo de 4 ou 5 jovens, alguns deles embriagados que lhe pretendiam explicações pelo facto de lhes ter sido barrada a entrada.
28. Diga-se, em abono da verdade, pretendiam explicações de um facto que o Arguido desconhecia por completo e no qual não teve qualquer intervenção. Ora,
29. o Arguido perante aquele aparato e recorrendo à sua experiência de mais de 30 anos do exercício da sua profissão ligada à “vida noturna”, tolhido pelo receio do que pudesse suceder, viu-se na necessidade de rapidamente terminar com aquela abordagem. E foi o que tentou fazer.
30. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, não era lícito exigir ao Arguido qualquer tipo de tolerância. Até porque,
31. apesar da Sentença em crise considerar que só o Ofendido e o primo abordaram o Arguido, não é isso que resulta das declarações do Arguido e do depoimento das testemunhas BB (testemunha que mereceu total crédito do Tribunal a quo), CC e DD (estas últimas consideradas parciais em defesa da suposta tese do Arguido). Ou seja,
32. se por um lado, o Tribunal a quo tenha considerou que as declarações do Arguido “... não se revelaram minimamente credíveis quanto à suposta falta de percepção dos factos que ocorreram...”,
33. por outro lado, já não usa do mesmo critério quanto à testemunha BB ao considerar que “Essa falta de exactidão não impediu o Tribunal de valorizar e interpretar este depoimento como credível, porquanto atendendo à distancia temporal tal é perfeitamente natural e compreensível.”,
34. não usa do mesmo critério quanto à testemunha EE (primo do Ofendido) quando assegura que “... tal não foi de molde a que o Tribunal desvalorizasse o depoimento pois que numa situação de tensão, com o tempo entretanto decorrido é perfeitamente natural que a testemunha já́ não se recorde com exactidão do que ouviu.”.
Ora,
35. ao tribunal a quo é lícito, em homenagem aos princípios da Oralidade, da Imediação e da Livre Apreciação da Prova, considerar um depoimento mais credível que outro, contudo,
36. já não lhe é lícito ignorar um excerto fundamental de um depoimento credível, corroborado por outras testemunhas. Acresce que,
37. até pelo número de amigos do Ofendido, que testemunharam e declararam ter presenciado e ouvido a discussão, facilmente se compreende que numa noite, à porta de uma discoteca, com o barulho que se faz sentir, teriam de estar muito próximos!
38. A verdade é que o Arguido desde inícios de 2017 que não frequenta a discoteca,
39. quando foi abordado pelo grupo de 4 ou 5 jovens, no qual se encontrava o Ofendido FF, visivelmente alcoolizado, desconhecia por completo e não conseguiu perceber o que se passava,
40. foi agredido com uma pancada,
41. teve medo, receou pela sua integridade física e só queria por fim aquela situação.
42. É do conhecimento geral que num contexto de grupo (4 ou 5 jovens, pelo menos um alcoolizado), a confrontarem o Arguido, sozinho e fora do campo visual da entrada da discoteca, este não poderia adotar uma postura de prazenteio, isto é,
43. caso o Arguido naquela altura mostrasse receio, e não reagisse com firmeza, havia a forte probabilidade de os jovens, em grupo, se sentirem legitimados a ter comportamentos mais agressivos.
44. Da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, nenhuma das testemunhas, sequer o Ofendido, conseguiram precisar quais as expressões que terão sido proferidas pelo Arguido. Ora,
45. Não seria natural que, pelo menos o Ofendido, perante um acontecimento marcante na sua vida, se recordasse com exactidão das ameaças que, supostamente, lhe haviam sido dirigidas?
46. A verdade é que não se recordava e só após indução por parte do Tribunal e da Sra. Procuradora é que conseguiu reiterar o que constava das suas anteriores declarações. Aliás,
47. não deixa de constituir estranheza que o Ofendido tenha começado o seu depoimento imediatamente com receio de se contradizer se viesse apenas relatar o que na realidade sucedeu.
48. Dos depoimentos prestados em Audiência de Discussão e Julgamento, diversas foram as expressões trazidas à colação: “... ou vão-se embora ou vão ver... ou vais arranjar problemas...”, “se não fores embora daqui, mato-te como um escaravelho”, “esmago-te como a um escaravelho”, “vou buscar uma faca lá dentro”. Isto é,
49. as, possíveis, expressões que o Arguido, naquelas circunstâncias, possa ter usado, terão sido de tal forma insignificantes que nem o Ofendido, nem as testemunhas, as conseguiram reproduzir.
50. Uma vez mais, sublinhe-se que o Ofendido inicia o seu depoimento imediatamente com receio de contradizer as expressões constantes da queixa apresentada. Ora,
51. Se as mesmas reflectissem um episódio marcante na visa do Ofendido, não é verosímil que este já não se recordasse delas.
52. Sem embargo reconhecer-se ao Tribunal a quo o poder de decidir no uso do Princípio da Livre Apreciação da Prova, este não pode afastar, entre outros, o Princípio da Presunção da Inocência do Arguido e o Princípio in dúbio pro reo. Por outro lado,
53. não deixa de ser curioso que a testemunha BB, considerada como credível pelo Tribunal a quo, tenha conseguido em Julgamento (mais de 2 anos após os factos) reproduzir expressões que em fase de inquérito (cerca de 10 dias após os factos) não reproduziu.
54. Em face do que supra se disse, não se conseguiu em Audiência de Discussão e Julgamento fazer prova se o Arguido proferiu alguma expressão, e mesmo que tivesse proferido, não se fez prova de qualquer expressão em concreto. E mais,
55. na nossa modesta opinião, andou mal o Tribunal a quo ao desconsiderar todo o circunstancialismo em que as, eventuais, expressões foram proferidas.
56. A terem sido proferidas as expressões que constam da acusação, atendendo às circunstâncias de tempo e lugar, tamanhas expressões visavam apenas por termo à contenda. Tanto mais que,
57. de nenhuma daquelas expressões, atendendo ao circunstancialismo e à experiência da vida comum, se poderá assacar qualquer ameaça de um mal futuro.
58. Para se concluir pela prática de um crime de ameaça, mais do que o tempo verbal (presente, futuro, ou outro…) usado nas expressões proferidas, importa analisar o contexto em que são ditas, para se aferir se são adequadas a prolongar no tempo a sensação de insegurança, medo ou intranquilidade, ou se, pelo contrário, se esgotam na iminência da adoção de conduta ilícita.
59. Não é por acaso que várias testemunhas referem ter ouvido o Arguido verbalizar “se não vais embora, vais arranjar problemas”, expressão esclarecedora da real intenção do Arguido em por fim ao desacato.
60. Ainda que as expressões tivessem sido efetivamente proferidas, não é crível que o Arguido alguma vez tivesse ponderado leva-las a cabo. Isto é,
61. Se o Ofendido e os seus amigos fossem embora como o Arguido pretendia, certamente que, nem nesse dia, nem em dias posteriores o Arguido andasse à procura do Ofendido para concretizar as putativas ameaças. Com efeito,
62. para se praticar um crime de ameaça, é requisito essencial que exista, ainda que muito remotamente, a possibilidade de concretização dessa mesma ameaça, o que no caso dos autos é manifesto que não aconteceu, nem aconteceria.
63. Porquanto estamos a falar de uma pessoa que, na altura tinha 50 anos de idade, trabalhou desde sempre “ na noite”, não tem antecedentes criminais, não foi ele que deu origem ao desacato, nem se dirigiu a ninguém, e tal como nas milhares de noites anteriores, só queria ir para casa descansar.
64. A entender-se que o Arguido, efectivamente, proferiu as expressões que lhe são imputadas, o que só por mero dever de patrocínio se admite, tendo em conta a sua substância e literalidade, poderiam quando muito, no nosso modesto entendimento, configurar a ameaça de um crime de ofensa à integridade física, punível com pena de 3 anos e não um crime de ameaças agravadas conforme resultou da decisão recorrida, e por isso,
65. sendo licita a desistência feita pelo Ofendido.
66. A nossa melhor jurisprudência, nomeadamente, o Acórdão proferido por esse Venerando Tribunal da Relação, em 27.01.2016, tendo como relator o Venerando Juiz Desembargador Renato Barroso, no processo 532/14.3GBILH.P1, considera que apesar das expressões que são proferidas, não existe crime de ameaça, devendo atender-se ao circunstancialismo em que as mesmas são proferidas e do qual resulta que não existe qualquer intenção de as concretizar.
67. Da conjugação dos factos supra elencados e à luz das regras de experiência comum não poderia o Tribunal a quo ter condenado o arguido como o fez, impondo-se a revogação da Sentença recorrida.
68. O Tribunal a quo não fez uma apreciação crítica da prova, como era seu dever, sendo certo que, a tê-lo feito impunha-se uma decisão diversa, entenda-se, as dúvidas teriam de persistir e assim, a decisão tinha forçosamente que passar pela absolvição do Arguido, assim se fazendo Justiça.
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Em 1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso, escrevendo:
“que no caso em apreciação não existe carência de tutela penal, que justifique a intervenção do direito penal. No que respeita ao crime de ameaça agravada p. e p. no art.153º, nº 1 e 155, nº 1, al. a) do C. Penal, há que atender aos termos da acusação, que diz:
“Ao mesmo tempo que se desenrolaram estas ofensas corporais, o arguido AA dizia: “Eu espeto-te uma faca no pescoço” e “Eu mato-te como a um escaravelho” e que ia buscar um martelo para o fazer, momento em que o arguido FF abandonou o local, receoso que o arguido AA, concretizasse tais condutas.” (v. fls. 160)
Nada mais existe no processo quanto à suposta ameaça, nem nenhum comportamento do arguido que possa ser considerado consequente com as expressões proferidas. Ao invés, ambos os intervenientes no processo vieram a desistir do procedimento criminal, não tendo tal desistência sido aceite em relação ao crime de ameaça agravada, por ser um crime que não admite desistência de queixa. (v. fls. 230 e v).
O crime de ameaça, como é do conhecimento generalizado, reporta-se à pratica de um mal futuro. Pela descrição constante da acusação, as expressões proferidas pelo arguido foram simultâneas com os atos de execução do crime de ofensa à integridade física, não havendo qualquer hiato entre as agressões perpetradas pelo arguido e as expressões que as acompanharam. Ou seja, e sem prejuízo de melhor opinião, o desvalor da conduta do arguido esgota-se fundamentalmente na agressão. Ou até de forma diferente, as expressões ditas ameaçadoras, no contexto em que foram proferidas são atípicas, não consubstanciando a prática do crime de ameaça.
Como escreveu F. Dias in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pg. 57 “o conceito material de crime é essencialmente constituído pela noção de bem jurídico dotado de dignidade penal; mas que a esta noção tem de acrescer ainda um qualquer critério que torne a criminalização legítima. Este critério adicional é – como de resto, uma vez mais diretamente se conclui do já tantas vezes referido art. 18º, nº 2 da C. da República Portuguesa – o da necessidade (carência) de tutela penal. A violação de um bem jurídico-penal não basta para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade.”
É de assinalar, também, que o C. R. Criminal do arguido/recorrente não averba nenhuma condenação (v. fls. 233) e que a sentença recorrida menciona que o arguido não negou perentoriamente os factos……………que não recordava se disse ou não as frases plasmadas nos factos, acrescentando que se as disse foi só com o intuito de se ver livre da situação e não com a intenção de as concretizar. (v. fls. 243 e v).”
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O recorrente respondeu ao parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto, acompanhando-o na procedência do recurso.
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida:
Factos Provados
1. No dia 22-09-2019, em hora não concretamente determinada, situada durante a madrugada, FF tentava aceder ao interior da discoteca “...”, sita no ..., em Aveiro, quando lhe foi barrada a entrada pelo porteiro, tendo este ficado a pedir para aceder ao espaço e a solicitar explicações sobre a razão que determinava que lhe tivesse sido barrada a entrada.
2. Posteriormente, um segurança encaminhou FF para junto da frente (entrada) do restaurante “F...”, sito no mesmo local.
3. Aí chegados, surge AA, a quem FF se dirigiu, pedindo explicações sobre a razão de lhe ter sido barrada a entrada, iniciando-se uma discussão entre ambos e confronto físico.
4. Ao mesmo tempo que se desenrolava o confronto físico, AA, dirigindo-se a FF, disse: “espeto-te uma faca no pescoço” e “esmago-te como a um escaravelho” e que ia buscar um martelo para o fazer, momento em que FF abandonou o local, receoso de que aquele concretizasse tais condutas.
5. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente e quis, com tais expressões, significar que atentaria contra a vida de FF, o que fez com foros de seriedade, deixando-o com receio e medo da concretização de tais intentos, limitando a sua liberdade de determinação pessoal.
6. Adoptou o arguido a referida conduta apesar de bem saber que a mesma era proibida e punida por lei penal.
7. O arguido é casado, sendo que a esposa se encontra integrada profissionalmente como técnica superior na biblioteca da Universidade ... e aufere mensalmente cerca de €1.000,00.
8. O arguido tem dois filhos que se encontram a estudar.
9. O agregado familiar reside em casa própria que se encontra onerada com crédito para a respectiva aquisição no montante mensal de €240,00, valor que, por força da situação pandémica, se encontra suspenso de pagamento (por beneficio de moratória) até data não concretamente determinada.
10. O arguido é gerente de sociedade do ramo da restauração e similares, a qual detém dois estabelecimentos de discoteca e um estabelecimento de restaurante, e aufere mensalmente €800,00, para além de beneficiar de refeições e do uso de veículo da sociedade.
11. Como habilitações literárias o arguido tem licenciatura em gestão de empresas e dos autos não constam antecedentes criminais registados.
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Motivação da convicção do Tribunal:
O Tribunal formou a sua convicção sobre o objecto dos presentes autos com base no teor da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, com recurso a regras e juízos de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).
De uma forma genérica, poderá afirmar-se que a prova se dividiu em duas facções, a saber: aquela que aderiu à tese do arguido, ocultando factos relevantes para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa; e aquela que se apresentou com isenção e seriedade na descrição da factualidade.
Muito embora não se possa deixar sem reparo porquanto o prejuízo para a administração da Justiça existe com este tipo de condutas, a verdade é que se compreende a tentativa de algumas das testemunhas passarem incólumes de possíveis represálias no local de trabalho, bem como de tentarem eximir de responsabilidade penal a pessoa que representa a respectiva entidade empregadora. Desta forma, apesar de terem auxiliado o Tribunal a situar temporal e espacialmente os factos, a verdade é que os depoimentos prestados por CC e DD, ao ocultarem factos do seu conhecimento pessoal, mantiveram comportamento processualmente inadmissível.
Assim, no que respeita às declarações prestadas pelo arguido, temos que este não negou peremptoriamente os factos, escudou-se na afirmação de que não se recordava se disse ou não as frases plasmadas nos factos, acrescentando que se as disse foi só com o intuito de se ver livre da situação e não com a intenção de concretizar. Ora, estas declarações não se revelaram minimamente credíveis quanto à suposta falta de percepção dos factos que ocorreram por ter ficado transtornado por lhe terem atingido um ouvido com uma pancada. A verdade é que a forma como descreveu os factos fez parecer que sem qualquer troca de palavras foi rodeado por um grupo de jovens e imediatamente agredido, quando na realidade o que quis foi ocultar o sucedido – que o ofendido o abordou querendo explicações sobre a razão de não lhe ser admitida a entrada no estabelecimento de diversão nocturno.
O arguido não se pode esquecer que é pessoa reconhecida na cidade de Aveiro por ser “proprietário” de dois estabelecimentos de discoteca sitos na cidade e que essa notoriedade fez com que um jovem, eventualmente já tolhido pelo consumo de bebidas alcoólicas, tenha ensaiado tentativa de entrar na discoteca com a autorização expressa do arguido depois de o porteiro não o ter deixado entrar. Era preciso que o arguido se consciencializasse – na data da prática dos factos – que, sendo maior de idade e socialmente reconhecido, teria que ter tido um grau de paciência e savoir faire maior do que aquele que teve e que teria que ter omitido a verbalização daquelas expressões relativamente a um jovem.
No que tange às declarações prestada pelo arguido quanto às respectivas condições pessoais, sociais e económicas, levantaram algumas reservas ao Tribunal no que respeita aos rendimentos mensais advenientes da gerência da sociedade, porém, inexistindo qualquer meio de prova que as infirmasse o Tribunal acabou por se sustentar nas mesmas para fixação dessa matéria.
Analisando o depoimento prestado por FF, temos que, inicialmente, e cremos que por razões relacionadas com a sua vontade de desistir de queixa, pretendeu escamotear a verdade material dos factos. De todo o modo, alertado para a necessidade de responder com verdade, fez esforço de memória acabando por revelar as expressões que lhe foram dirigidas bem como o sentimento de temor que sentiu face à seriedade da verbalização do arguido e da situação que vivenciava.
Foi um depoimento perfeitamente esclarecedor quanto ao número de pessoas que estavam próximas de si próprio e do arguido – o próprio e o seu primo.
Não foram encontradas no seu depoimento quaisquer razões para que se afastasse a respectiva credibilidade.
No que respeita ao depoimento prestado por GG, apesar de calmo e sério, a verdade é que verbalizou não ter assistido à prática dos factos e apenas ter tido conhecimento do mesmo por colegas. Trata-se de um depoimento sem relevo probatório.
Já no que respeita ao depoimento prestado por CC, o Tribunal tem sérias e fundadas reservas quanto à sua credibilidade já que se agarrou a uma versão de protecção do arguido, negando que tivesse presenciado qualquer agressão ou que tivesse ouvido as palavras que eram dirigidas de parte a parte. Poderá parecer estranho quando se referiu acima que esta testemunha sustentou a tese do arguido, porém, se considerarmos que o arguido referiu ter sido rodeado por um grupo de jovens (dando a entender que se tratava de mais do que duas pessoas) e que a testemunha também o verbalizou, fica-se com o esclarecimento de que a testemunha pretendia que o Tribunal cresse numa “escaramuça” causada por “quatro ou cinco miúdos” (sic) e na inactividade do arguido.
Ipsis verbis quanto ao depoimento prestado por DD, muito embora este até tenha referido um numero de pessoas mais elevado.
Quanto ao depoimento prestado por EE (primo do ofendido), revelou-se sério e isento, não levantando quaisquer reservas ao Tribunal relativamente à credibilidade. Foi um depoimento que permitiu ao Tribunal perceber a seriedade/gravidade da situação, sem que a testemunha tenha empolado a descrição que fez dos factos. Não se descura que não verbalizou a segunda das expressões que se deu como provada, nem a falta de concretização da parte do corpo em que o arguido disse que iria espetar a faca, mas tal não foi de molde a que o Tribunal desvalorizasse o depoimento pois que numa situação de tensão, com o tempo entretanto decorrido é perfeitamente natural que a testemunha já não se recorde com exactidão do que ouviu.
Relativamente ao depoimento prestado por HH, trata-se de depoimento extremamente sucinto e com relato indirecto daquilo que lhe foi transmitido pelo seu filho BB e, como tal, nos termos do estatuído pelo artigo 129º do Código de passível de valoração. Sucede é que o depoimento foi de tal forma sucinto que acabou por não ter grande relevo probatório.
Por seu turno, o depoimento prestado por BB revelou-se rico em pormenores, com particularização das expressões que ouviu serem ditas pelo arguido ao ofendido, muito embora já não tenha conseguido ser textualmente exacto. Essa falta de exactidão não impediu o Tribunal de valorizar e interpretar este depoimento como credível, porquanto atendendo à distância temporal tal é perfeitamente natural e compreensível. É relevante retirar deste depoimento a afirmação de que, atendendo à forma de falar do ofendido, era privável que o ofendido tivesse consumido bebidas alcoólicas e que por isso mesmo estivesse mais argumentativo/insistente.
No que tange ao depoimento prestado por II, eivado de emotividade e de algum ressentimento relativamente à pessoa do arguido não trouxe contributo relevante ao Tribunal, porquanto se tratou de depoimento indirecto (por ouvir dizer do ofendido, seu filho) e, com franqueza, sem rigor.
No que concerne ao depoimento prestado por JJ, não se afasta a objectividade e seriedade do mesmo, porém, por não se ter conseguido a real percepção da distância a que o mesmo se encontrava dos intervenientes nos factos, ficou o Tribunal com dúvidas sobre se efectivamente ouviu ou não as expressões que se deram como provadas – isto apesar de a testemunha não as ter referido.
Finalmente, o depoimento prestado por KK que surgiu como sério e isento foi relevante para a compreensão da dinâmica dos factos, bem como para a fixação da segunda expressão que foi dirigida pelo arguido ao ofendido.
Para além da prova supra analisada, o Tribunal gizou-se ainda no teor do Certificado de Registo Criminal constante de fls. 233.
Finalmente, fundamentou-se o Tribunal em juízos de experiência comum, os quais permitem inferir com base nos factos objectivos dados como provados a intenção subjectiva do arguido ao praticar tais factos, pois que se trata de presunção natural que quem profere aquele tipo de expressões, conhece o seu significado, sabe que as mesmas são aptas a ofender susceptibilidades e a criar medo e inquietação nas outras pessoas e que estas ficam afectadas na sua liberdade de acção (é presunção natural do seu proferimento) e, mesmo sabendo que se trata de conduta contrária à lei, tem vontade de praticar tal facto.
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Qualificação Jurídica:
Assim sendo, no caso sub judice, não há qualquer dúvida de que se mostra integralmente preenchido o tipo objectivo de ilícito, na medida em que se apurou que o arguido, dirigindo-se a FF, proferiu as expressões constantes dos factos dados como provados, as quais são susceptíveis de criar medo e inquietação, com a intenção e o conhecimento de que as mesmas eram transmitidas directamente ao titular do bem jurídico.
Por outro lado, as expressões proferidas pelo arguido reconduziram-se a factos relacionados com a vida do visado. Vejamos: a acção de espetar uma faca no pescoço e a acção de esmagar um escaravelho apenas poderão traduzir-se na consequência da morte, pelo que não há qualquer dúvida de que não existiu qualquer acto de execução do ilícito anunciado pelas expressões verbalizadas pelo arguido.
O mal que foi anunciado projectou-se para um momento futuro, incerto e dependente da vontade do arguido – já que o anúncio de que se iria munir de um martelo no interior do estabelecimento em nada o contraria, bem como não o contraria a circunstância de o arguido ter agredido fisicamente o ofendido.
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, exige-se o dolo em qualquer das suas modalidades (artigos 13º e 14º do Código Penal), bastando a consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado, sendo irrelevante que o agente tenha ou não a intenção de cumprir a ameaça, embora seja exigido que a ameaça chegue ao conhecimento do lesado.
Em face dos factos provados conclui-se que todos os elementos, objectivo e subjectivo, se verificam:
- a conduta do arguido constituiu uma ameaça com a prática de um crime de homicídio, e foi um comportamento adequado a provocar medo e inquietação naquele, dadas as circunstâncias concretas em que as expressões foram proferidas; e
- o arguido agiu de forma livre e consciente querendo criar medo na pessoa do queixoso, visando, com grande grau de probabilidade, que o ofendido abandonasse o local e deixasse de ser insistente na obtenção de esclarecimentos quanto à não permissão de entrada na discoteca, fazendo-o com dolo directo.
Não existem quaisquer causas de exclusão da ilicitude e da culpa.
Conclui-se deste modo que AA praticou um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153º, n.º1 155º, n.º1, alínea a), do Código Penal, de que vem acusado.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o arguido/ condenado AA pretende suscitar as seguintes questões (conferindo-lhe a ordem lógica de precedência):
- desistência da queixa pelo ofendido;
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- prática de um crime de ameaça simples.
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Desistência da queixa pelo ofendido
Dos autos resulta o seguinte:
Pelo M.ºP.º foi proferida Acusação, imputando ao aqui recorrente AA a prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art.º 143.º n.º 1 e um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo art.º 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a) do CP, e imputando ao FF a prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art.º 143.º n.º 1, do CP.
Após, os ofendidos/arguidos apresentaram desistência reciproca de queixas, tendo sido declarado extinto o procedimento criminal, excepto quanto ao crime de ameaça agravada, em relação ao qual foi considerado assumir “natureza de público, não estando o seu procedimento criminal dependente de queixa”.
Tendo por causa disto prosseguido o processo, já em Audiência, o FF apresentou desistência do pedido de indemnização civil, demonstrando, inequivocamente, que não desejava, nem tinha qualquer interesse nesse prosseguimento dos autos.
Aqui chegados, tem toda a lógica e legitimidade questionar-se quais os interesses de ordem pública e colectiva que impuseram a continuação do procedimento criminal, contra a vontade - expressa na desistência da queixa e do pedido de indemnização civil - do ofendido.
Veja-se o contra-senso: o procedimento criminal é extinto quanto ao crime contra a integridade física de que resultaram «dor na hemiface esquerda, nariz e cervical posterior, dor com abertura da boca, hemiface esquerda com eritema periorbitário doloroso à palpação, sem outras alterações, sem evidência de fractura de ossos próprios do nariz ao Rx.”, determinantes “de 6 dias para a sua cura, com afectação da capacidade de trabalho geral”, e prossegue quanto às expressões proferidas, durante o confronto físico, ”espeto-te uma faca no pescoço” e “esmago-te como a um escaravelho”.
Basta o senso comum para se concluir qual o crime de maior gravidade.
Toda a, acima sintetizada, sequência procedimental que culmina na condenação do aqui recorrente, se baseia na premissa de que o crime de ameaça simples tem natureza semi-pública, o praticado na forma agravada, não.
Assim foi entendido, sem qualquer fundamentação, no despacho supra referenciado, e assim implicitamente se entendeu na decisão recorrida, onde nenhuma fundamentação também surge a esse respeito; apenas surge o juízo de que “a acção de espetar uma faca no pescoço e a acção de esmagar um escaravelho apenas poderão traduzir-se na consequência da morte” (da pessoa ameaçada, que não do escaravelho, presume-se).
Não se trata, porém, ao contrário do que parece decorrer desta ausência de fundamentação, de uma interpretação que seja linear, pacífica, incontestada.
Bem pelo contrário: o crime de ameaça, desde a redacção originária do Código Penal de 1982, sempre revestiu natureza semi-pública (dependendo da queixa do ofendido, mesmo se verificada circunstância agravante), e foi apenas após uma alteração do Código Penal efectuada em 2007 (por via da Lei nº 59/2007, de 04/09), que começou a germinar a ideia desta dicotomia entre ameaça simples e ameaça agravada, semi-pública a primeira, pública a segunda.
Na realidade, nessa revisão do Código Penal, a nenhuma alteração substancial do tipo do crime de ameaça se procedeu, apenas se deslocando o anterior nº2 do art. 153º (agravação da ameaça consubstanciada na prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos), para um, então criado, art. 155º, nº1, onde se aglutinaram (e ampliaram) as circunstâncias agravantes da ameaça e da coacção, por razões de utilitarismo sistemático.
A intenção do legislador ao efectuá-la é, aliás, expressamente declarada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei dessa alteração do Código Penal, circunscrevendo-se à finalidade do crime de ameaça passar “a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”.
É, pois, inequívoca a inexistência de qualquer intenção do legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça, decorrente do respectivo tipo base.
Então, perguntar-se-á, como surgiu a interpretação subjacente à decisão recorrida, de atribuir à ameaça, sob a forma agravada, natureza pública?
- E a resposta é: porque na redacção do, então criado, art. 155º não ficou mencionado expressamente que a ameaça, ainda que na forma agravada, continuava a revestir natureza semi-pública, e o crime é público quando não existe norma expressa a dispor o contrário.
Mas será isto suficiente para justificar uma interpretação e aplicação da Lei, com resultados tão contrários ao senso comum, como os no presente caso retratados, em que se extingue o procedimento pelo crime mais grave, e se impõe contra a vontade do ofendido, uma condenação pelo crime menos grave?
Nenhuma interpretação da Lei pode levar a uma aplicação absurda da mesma, esta é uma regra que já nos vem do Direito Romano: “interpretatio facienda est, ut ne sequantur absurdum”.
No art. 9º, do Código Civil, onde se indicam as regras da interpretação da Lei, válidas para todos os ramos do Direito, adverte-se que “a interpretação não deve cingir-se à letra da Lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a Lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
Talvez na lembrança do brocardo acima transcrito, acrescente-se que “na fixação do sentido e alcance da Lei, o intérprete presumirá que o Legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Na tentativa de reconstituir o pensamento legislativo e traçar a sua evolução histórica, escreveu-se no Acórdão deste Tribunal de 13/11/2013 (acessível in www.dgsi.pt):
«Começando pela letra da Lei, ponto de partida de toda a interpretação, e pela sua evolução histórica:
- Versão originária, do Código Penal de 1982
“Artigo 155.º
(Ameaças)
1 – Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até 1 ano ou multa até 100 dias.
2 – No caso de se tratar de ameaça com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.
3 – O procedimento criminal depende de queixa.”
- Versão após a revisão do Código Penal efectuada por via do DL nº 48/95, de 15/03
“Artigo 153.º
(Ameaça)
1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 – Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3 – O procedimento criminal depende de queixa.”
- Versão actualmente em vigor, na sequência da revisão do Código Penal efectuada por vida da Lei nº 59/2007, de 04/09
“Artigo 153.º
(Ameaça)
1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 – O procedimento criminal depende de queixa.”
“Artigo 155.º
(Agravação)
1 – Quando os factos previstos nos artigos 153.º (…) forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, (…).
2 – As mesmas penas são aplicadas se, por força de ameaça (…), a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.”
Perante a actual previsão e a evolução que a ela conduziu, não é defensável que o art. 155º constitua um tipo autónomo relativamente à previsão típica do crime de ameaça do art. 153º – premissa de que parte o recorrente para atribuir natureza pública ao crime de ameaça agravada.
Com efeito, a previsão que contém a descrição da conduta ilícita, dolosa, tipificada como crime, encontra-se, inequivocamente, no art. 153º, acrescentando o art. 155º circunstâncias que representam uma agravação do limite máximo da pena.
[No Acórdão deste Tribunal, proferido em 07/12/2011 – publicado no sítio www.dgsi.pt – entendemos que essa previsão típica se centra “na adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou a prejudicar a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, chegue a provocar esses efeitos”; daí que para aferição da sua potencialidade intimidatória se tenha de ter em conta, conjugadamente, “a conduta na sua globalidade, o contexto em que a mesma acontece, e a idiossincrasia e modos de ser e estar do ameaçante(s) e do ameaçado(s)”.]
É isso o que considera P. P. de Albuquerque, no Comentário do Código Penal (Univ. Católica Ed., Lisboa, 2008, p. 419): “a disposição prevê, no n.º 1, crimes qualificados ao nível do tipo de ilícito, pois as circunstâncias agravantes revelam um maior desvalor da acção, são de funcionamento automático e constituem um elenco taxativo. No n.º 2, a lei prevê um crime agravado pelo resultado. A reforma de 2007 alargou o âmbito da agravação, determinando a aplicação ao crime de ameaças de todas as circunstâncias agravantes previstas para o crime de coacção, uma vez que anteriormente só a circunstância prevista na al.ª a) se aplicava ao crime de ameaças.
A circunstância agravante da al.ª a) consiste na especial gravidade da ameaça”.
É essa a interpretação que nos surge, também, no Código Penal Anotado de Maia Gonçalves (Almedina, 18ª Ed., 2007, p. 602): “as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007 consistiram essencialmente em o crime de ameaça passar a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção”.
Conjugando as duas disposições aplicáveis, no caso dos autos, deparamos com a seguinte previsão, agravação e estatuição: “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, quando esses factos “forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos”, “o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Permanecendo na evolução histórica da Lei, e juntando-lhe a intenção dos revisores de 2007, verificamos que o crime de ameaça, desde a redacção originária do Código Penal de 1982, sempre revestiu natureza semi-pública (mesmo – e este reparo reveste especial significado – se verificada a circunstância agravante, que é, no caso, imputada ao arguido).
Nesta última revisão foram “aglutinadas” no art. 155º as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção, cujas previsões típicas se encontram, respectivamente, nos arts. 153º e 154º, colhendo-se da Exposição de Motivos da Proposta de Lei de alteração do Código Penal ter-se pretendido que o crime de ameaça passasse “a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”.
Foram, pois, razões de utilitarismo sistemático – evitando-se a repetição de normas contendo circunstâncias agravantes idênticas – que ditaram essas alterações.
Daí não se pode extrair qualquer intenção do Legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça (incluindo a sua – apenas ampliada – forma agravada), ou pública do crime de coacção (com as excepções previstas no nº 4 do art. 154º), decorrente do respectivo tipo-base.
Por último, e recorrendo ao elemento racional ou teleológico e à unidade do sistema jurídico-penal, a razão de ser da distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger.
Assim o referem Simas Santos e Leal Henriques, em Noções Elementares de Direito Penal (Rei dos Livros, 3ª ed., 2009, p. 332-333): “a exigência de queixa e de acusação particular vão buscar o seu fundamento:
- à diminuta gravidade da infracção – certas infracções (v.g., ofensas à integridade física simples, dano, injúrias, etc.), atenta a sua pequena gravidade, não violam de modo directo e imediato bens jurídicos fundamentais da comunidade, que façam desencadear, por parte desta, uma reacção automática. Essa reacção só surge mediante expressa manifestação de vontade das pessoas directamente ofendidas”.
Destacando essa perspectiva da pessoa ofendida (ou lesada), o Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime (Coimbra Editora, 2005, p. 667) adverte que “a existência de crimes semi-públicos e estritamente particulares serve a função de evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem”.
No tipo em causa, os bens jurídicos protegidos são a liberdade de decisão e de acção; a estes, secundária e reflexamente, entendemos ser de acrescentar a integridade psíquica da pessoa, nas suas componentes do direito à tranquilidade e segurança.
Tratam-se, em todo o caso, de bens integrantes da esfera estritamente individual da pessoa ameaçada (ofendida), inexistindo – mesmo quando estes se mostrem violados sob a forma agravada – razões de ordem pública e colectiva que imponham ao ofendido o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não queira.
Como bem se assinala no estudo citado na decisão sob reexame, publicado na revista Julgar – Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, de Jan.-Abr. de 2010, p. 40 a 44, apelando à unidade e congruência do sistema penal, a sanção aplicável à violação dos interesses jurídicos protegidos (prisão até 2 anos ou multa até 240 dias) é congruente – em termos comparativos com outras estatuições do Código Penal, exemplificando com o crime de ofensas corporais simples, que em regra carece de queixa – com a atribuição de relevância à vontade do ofendido.
Não se vislumbram, com efeito, razões de política criminal para a desconsiderar, por completo.»
Acrescente-se não ser aceitável o argumento de que o crime de coacção também incluído – pela forma supra caracterizada – na previsão do art. 155º CP, reveste natureza pública.
Sempre assim foi, nada tendo sido alterado a esse respeito com a criação do art. 155º, sendo a atribuição dessa natureza pública compreensível visto que a violação dos bens jurídicos directamente protegidos - liberdade de determinação, de decisão e de acção, tem maior gravidade se perpetrada através de um crime de coacção do que através de um crime de ameaça.
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A versão em vigor do art. 153º do CP, permanece inalterada.
Apenas, com a criação dos novos tipos do art. 154.º-A (Perseguição) e art. 154.º-B (Casamento forçado), se procedeu à adaptação do art. 155º, por forma a incluir esses tipos (“quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados…”).
E às circunstâncias agravantes, acrescentaram-se as da al. e) (“ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima”).
Estas alterações em nada prejudicam a interpretação de que o art. 155º não constitui um tipo autónomo em relação à previsão típica do crime de ameaça do art. 153º.
De igual modo não contendem com as conclusões formuladas com base na evolução histórica da Lei e na reconstituição do pensamento legislativo, no sentido da inexistência de qualquer intenção do legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça – na sua forma simples ou agravada - e ignorar por completo a vontade da pessoa ofendida, nomeadamente quanto à sua faculdade de desistir do procedimento criminal contra o ameaçante.
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No recurso a questão da extinção do procedimento criminal por desistência do ofendido, surge suscitada, embora na perspectiva conjugada da qualificação dos factos como de ameaça simples, o que não impede que suscitada a questão, este Tribunal lhe dê a solução jurídica que, pelas razões expostas, considera mais acertada (na aplicação do Direito, o Tribunal de recurso não está vinculado à argumentação das partes).
Assim, não tendo perdido o crime de ameaça, mesmo sob a forma agravada, a sua natureza semi-pública, a desistência do procedimento criminal por parte do ofendido, não pode levar a outra consequência que não a sua extinção.
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Em conclusão, o recurso merece provimento, embora com fundamentos diversos dos alegados.
Perante o decidido, mostram-se prejudicadas as restantes questões suscitadas (não obstante, observe-se, a esse respeito, que neste Tribunal também o Sr. Procurador Geral-Adjunto se pronunciou pela procedência do recurso, focando-se, não na relevância da desistência da queixa que no entanto assinala, mas na questão subsequente da qualificação jurídica, considerando que “o desvalor da conduta do arguido esgota-se fundamentalmente na agressão”, não sendo punível nem como ameaça agravada, nem como ameaça simples).
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Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso do arguido/condenado AA, revogando-se a Sentença recorrida, e declarando-se a extinção do procedimento criminal, por desistência do ofendido.
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Sem custas.
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Porto, 06/04/2022
José Piedade
Horácio Correia Pinto