Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
420/17.1PAVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO PIRES SALPICO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PERIGO ABSTRACTO
Nº do Documento: RP20200115420/17.1PAVLG.P1
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime previsto no art. 152.º do CP, tutela o perigo abstrato na reiteração de futuras agressões, que poderão vir a seguir a uma única agressão.
II - A única agressão que tem a virtualidade de fechar a tipicidade deste crime de perigo é aquela que em potência se renovará em futuras agressões, acompanhada do dolo de domínio e subjugação, associada à intenção de lesar a dignidade.
III - Subsumir as agressões com potencialidade de iniciar ciclos de violência conjugal nos tipos dos artºs 143.º, 153.º e 181.º do CP, contraria o regime especial do art. 152.º do CP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 420/17.1PAVLG.P1
X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1 – Nos autos de processo de inquérito foi o arguido B… acusado como autor material de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art.152º nº1 alínea b) do CP. O arguido veio requerer a abertura de instrução, a qual sendo admitida veio a culminar com a decisão de não pronúncia do arguido.
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Não se conformando com a decisão de não pronúncia do arguido B… o Digno Magistrado do MºPº veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES.
1º O presente recurso vem interposto da decisão instrutória de não pronúncia do arguido B…, constante a fls. 327/336, a qual padece do vício da falta de fundamentação, já que não elenca os factos que considerou suficientemente indiciados e os que considerou não suficientemente indiciados, o que torna tal decisão nula.
2º De facto, a imposição de fundamentação das decisões dos tribunais resulta do disposto no artigo 205º, n.º 1 da CRP e a fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, quer na vertente de facto como na vertente de direito, resulta do disposto nos artigos, 97º, n.º 5, 283º, n.º 3, al. b), aqui aplicável por força do art.º 308º, n.º 2, todos do CPP.
3º E, como vêm entendendo os nossos tribunais superiores, a decisão instrutória de não pronuncia que não enumere, de modo facilmente cognoscível, todos os factos que considerou, quer na vertente de suficientemente indiciados, quer na vertente oposta, é nula, por violação dos supra referidos preceitos legais – vejam-se, neste sentido e entre outros, Ac. da RP de 17/2/2010, processo n.º 58/07.1TAVNH.P1, Ac. da RE de 10/12/2009, processo n.º 71/06.6TAADV.E1, Ac. da RE de 20/12/2012, processo n.º 908/09.8PBCSC.E1, Ac. da RE de 26/2/2013, processo n.º 410/10.5GDPTM.E1, Ac. da RL de 775/2013, processo n.º 17/12.2GDFTR.E1, Ac. da RG de 3/6/2013, processo n.º 1182/11.1GBGMR.G1, Ac. da RG de 4/5/2015, processo n.º 154/14.9GBGMR.G1 e Ac. da RC de 13/11/2013, processo n.º 780/10.5PCCBR.C1, todos publicados no sítio, www.dgsi.pt.
4º Aliás, outro entendimento nos parece contrário a uma interpretação lógica dos citados preceitos legais - artigos, 205º, n.º 1 da CRP, 97º, n.º 5, 283º, n.º 3, al. b), e 308º, n.º 2, estes do CPP) -, interpretação que deverá ser, sempre, subordinada aos princípios que enformam as normas legais e constitucionais aplicáveis, tais como os princípios, da transparência das decisões judiciais, da garantia do direito do acesso aos tribunais, da confiança da comunidade nas decisões judiciais, do processo equitativo, na sua vertente de garantia da imparcialidade e independência, com possibilidade de um correto funcionamento das regras do contraditório, tudo se conjugando para que a decisão instrutória de não pronuncia deva conter, sob pena de nulidade, a enumeração dos factos indiciados e não indiciados, com a suficiência exigida nesta fase processual.
5º Ora, lida a decisão em recurso, facilmente se verifica que o M.º JIC não elencou nenhum facto, nem os que considera suficientemente indiciados nem aqueles que entende não estarem suficientemente indiciados.
6º De onde se tem de concluir que tal decisão é nula, por falta de fundamentação, porque omite os factos que se entendem suficientemente indiciados e os factos não suficientemente indiciados, assim violando o disposto nos artigos, 205º, n.º 1 da CRP, 97º, n.º 5, 283º, n.º 3, al. b), e 308º, n.º 2, estes do CPP, nulidade que aqui se invoca.
A) RAZÕES DA DISCORDÂNCIA DA DECISÃO EM RECURSO
SEM PRESCINDIR, E PARA O CASO DE SE ENTENDER QUE A DECISÃO EM RECURSO NÃO PADECE DO VÍCIO DE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

7º O Ministério Público não concorda com o M. JIC quando refere, timidamente diga-se, na decisão em recurso, e se bem entendemos o fundamento para a não pronúncia, que a prova recolhida no inquérito se baseia, no essencial, no depoimento da testemunha C… – porém só valoriza o depoimento do arguido.
8º Ora, não é verdade que a prova que fundamenta a acusação se estribe, apenas, naquele depoimento, pois que a prova recolhida no inquérito é abundante e vem indicada a fls. 261, ali estando incluída, não só prova testemunhal, baseada na inquirição das testemunhas, mas também prova documental que comprova muitos dos factos descritos na acusação e á qual o M. º JIC nem sequer aludiu, muito menos analisou.
9º E impunha-se que fosse devidamente analisada e ponderada toda a prova, documental, após o que, conjugada entre si, levaria à conclusão de que nos autos existem indícios suficientes de o arguido ter praticado os factos e crime que lhe é imputado na acusação – um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs. 1, al.a), 2, 4, 5 e 6 do CP.
10º Dessa prova, nos levam a concluir existirem nos autos indícios suficientes da prova que sustenta a acusação que, devidamente conjugada e por apelo às regras da experiência comum, de o arguido ter praticado os factos que lhe foram imputados na acusação e que são suscetíveis de integrar a prática do crime de violência doméstica.
11º Por outro lado, não podemos esquecer que, quer a prova direta quer a indireta ou indiciária, são modos legítimos de se chegar ao conhecimento da realidade dos factos a provar, uma vez que de acordo com o princípio estabelecido no art.º 127º do CPP, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, e a prova indireta ou indiciária não é proibida.
12º Porém, o M. mº JIC, para além de não fazer referência a toda a prova produzida no inquérito, na apreciação da mesma olvidou completamente a prova indireta ou indiciária, considerando ser tal insuficiente para submeter o arguido a julgamento, por ser mais provável a sua absolvição do que a sua condenação.
13º Ora a prova indiciária recolhida no inquérito, mesmo alguma ainda que indireta, também tinha de ser valorada, e não o foi pelo M. mº JIC, no sentido de que, segundo as regras da experiência comum.
14º Acresce que, para que surja uma decisão de pronúncia, a lei não exige a prova no sentido da certeza (convicção da existência do crime). Basta-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase de inquérito ou de instrução não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
15º Pelo que, o Mmº JIC, ao não pronunciar o arguido pela prática dos factos constantes da acusação do MP, violou, não só o disposto no referido art.º 127º, como também o disposto no art.º 308º, n.º s 1 e 2, com referência ao art.º 283º, n.º 2, todos do CPP.
16º Pois que, se o M.º JIC tivesse valorado toda a prova produzida no inquérito, nomeadamente aquela prova indiciária, em conjugação com a demais prova, indicada na acusação, contraposta às declarações do arguido que, embora tenha negado os factos, não viu as suas declarações corroboradas com outra prova, a conclusão teria de ser a de pronúncia do arguido.
17º Assim, e concluindo, deve a decisão em recurso ser revogada e substituída por outra que, atendendo ao exposto, pronuncie o arguido pelos factos descritos na acusação de fls. 259 e ss, suscetíveis de integrar a prática, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nºs, 1, ala), 2, 4, 5 e 6, do Código Penal.
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O arguido apresentou contra-motivação, sumariando da seguinte forma:
1 - A decisão instrutória em apreço, sendo um raro exemplo de clareza e saber, interpretou correctamente o Direito não tendo incorrido nos vícios que o Apelante lhe aponta de “nulidade da decisão por falta de fundamentação" e "erro notório na apreciação da prova", impondo uma decisão diversa da proferida e, consequentemente, uma errada aplicação do direito;
2 - No que ao primeiro ponto diz respeito – nulidade da decisão por falta de fundamentação – não se tentará aqui repetir os argumentos contidos na douta decisão instrutória, pois tal seria fastidioso mas não se resiste a transcrever alguns trechos dessa decisão que o Apelante refere não existir, designadamente:
"Assim, analisando globalmente os indícios recolhidos em inquérito, importa sublinhar que não se indica de modo claro e inequívoco a verificação do supra referido resultado ou consequência da conduta do agente do crime de violência doméstica: a colocação da vítima em um estado de sujeição ou subordinação tais relativamente ao agressor, que fique condicionada de modo relevante, significativo e duradouro a sua autonomia da vontade
Não resulta com efeito do inquérito que tenha ocorrido a também referida degradação da saúde da ofendida, mercê das agressões verbais por parte do arguido, em termos tais que se possa afirmar para lá de dúvida razoável que ela tenha ficado incapaz de reagir, ou de o fazer em termos relevantes, pelo que não se pode sustentar que a sua dignidade, enquanto pessoa humana, tenha ficado seriamente afectada como resultado da conduta do arguido
Assim, os factos que ocorreram no contexto familiar da ofendida e do arguido não preenchem o tipo objectivo de ilícito de violência doméstica que o ofendido pretende ter existido.
Mesmo que a ofendida tivesse sido menoscabada e apoucada pelas palavras que alegadamente lhe foram dirigidas pelo arguido, não é evidente, porém, que dessas condutas dele tenha resultado o efeito que se pretende punir com a incriminação prevista no artº. 152º. do C. Penal.".
"…Assim sendo, face à prova indiciária existente, é lícito concluir que os indícios recolhidos em inquérito não têm força persuasiva suficiente para se prognosticar que – efectuado o julgamento – será mais provável a condenação do arguido pela comissão do crime de violência doméstica que a sua absolvição.".
3 - Teve a douta decisão instrutória ora em apreço o condão de cuidar de levar em conta os presentes autos como um todo. De facto,
4 - Bem cedo o M.mo Julgador a quo se apercebeu que a Ofendida estava empenhada em utilizar os autos como uma extensão da arena em que ela e o Apelado, desde há dois anos, se digladiavam -- e ainda digladiam -- tendo passado do Tribunal de Família e Menores para o Tribunal Criminal.
5 - Na sua fundamentação da decisão instrutória, e de modo a dar conta da fragilidade da prova que sustentava a acusação, refere o M.mo Juiz a quo que o Ilustre Magistrado do Ministério Público, pelo douto despacho de fls. 148 proferido em 26 de Janeiro de 2018 dizia: "Face ao exposto, apenas podemos concluir que os indícios recolhidos são manifestamente insuficientes para imputar ao denunciado a prática dos factos participados, pelo que o procedimento criminal em causa não tem qualquer viabilidade.". Continuando,
6 - Só ulteriormente, face aos aditamentos de fls. 159 (já cheiras a defunto…) e de fls. 160 (o arguido fechou a água da habitação) foi reaberto o inquérito e, efectuadas algumas diligências probatórias, se decidiu pela acusação. E,
7 - "…relativamente a esses aditamentos, o arguido explicou no requerimento de abertura de instrução (pontos 36 a 40 e 46 a 50) o contexto em que tal aconteceu, de modo verosímil e credível, pelo que as razões que determinaram o inicial arquivamento do inquérito – a insuficiência de prova suficiente – continuam válidas.". Acresce ainda ao que fica que,
8 - O facto de a então Ofendida ter mudado por três vezes de mandatário judicial e ter realizado meia dúzia de aditamentos à sua participação inicial… Ou mesmo,
9 - Nunca antes do dia 11 de Setembro de 2017 -- data da tentativa de conciliação nos autos de divórcio litigioso propostos pela sua então esposa -- a (alegadamente) Ofendida se lembrara de participar fosse o que fosse relativamente aos comportamentos do Apelado;
10 - Quando a lei se refere a motivos que fundamentam a decisão, refere-se aos «elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência», fundamentando a decisão intra e extraprocessualmente (Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, C.E.J., pág. 230. Isto posto,
11 - Relativamente ao segundo vício apontado pelo Apelante à douta decisão instrutória, "o erro notório na apreciação da prova", sempre se dirá que existirá “erro notório” “quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/02/96, Revista de Ciência Criminal, ano 6 pp. 55 e seguintes.
12 - A lei refere as provas que “impõem” e não as que “permitam” decisão diversa.
13 - Assim, quando a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
14 - Os vícios do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal têm forçosamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Ora,
15 - A decisão instrutória, acaba por ser, como todas, uma súmula de factos, descrições e pormenores que por defeito, concretizando o que é discutido nos autos que a precedem, atinge aquele momento em que mister se tornará tirar ilações por parte de quem julga. Aí,
16 - O Tribunal deve apreciar livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – Cfr. artigo 607º, nº 1 do Código de Processo Civil; por outro “O Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto” – vide nota 3 ao artigo 511º do (anterior) C.P.C. Anotado de Abílio Neto, 1999, Pág. 694. Ora,
17 - No caso dos autos, é fora de questão que, face aos depoimentos indirectos resultantes do inquérito, às afirmações da Ofendida, todas veementemente contrariadas pelo Apelado, à prova inequívoca, porque documental, por este último carreada para os autos ficou demonstrado, e bem, na decisão instrutória ora em crise, ter havido uma correcta interpretação das normas legais por parte do M.mo Juiz de Instrução;
18 - Este na sua sentença aplicou o Direito – e bem, repete-se. Na verdade, como refere o Ac. do S.T.J. de 16-12-87: BMJ, 372º, 380, "É lícito aos Tribunais de instância tirarem conclusões da matéria de facto dada como provada, desde que, sem a alterarem, se limitem a desenvolvê-la...".
19 - Por isso ninguém melhor do que o Julgador destes autos pôde analisar toda a prova produzida, quer a testemunhal (quiçá, aqui de menor relevância), quer a documental carreada para os mesmos autos e, assim, determinar a relevância da sucessão de factos que motivaram a não pronúncia do Apelado;
20 - Fê-lo o M.mo Juiz a quo de forma equitativa e sumamente justa, daí que a sua decisão instrutória não mereça qualquer reparo;
21 - "...O sistema da livre apreciação da prova não deve definir-se negativamente pela ausência de regras e critérios legais...há-de traduzir-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência... que permitam ao julgador, objectivamente apreciar os factos..." (Cfr. Acórdão do T.C., de 19 /11/1996 in D.R. nº 31, IIª Série de 06/02/1997).
22 - No caso em apreço como supra já se afirmou, o M.mo Juiz a quo só poderia concluir – como concluiu – que: "…Assim sendo, face à prova indiciária existente, é lícito concluir que os indícios recolhidos em inquérito não têm força persuasiva suficiente para se prognosticar que – efectuado o julgamento – será mais provável a condenação do arguido pela comissão do crime de violência doméstica que a sua absolvição.";
23 - A decisão instrutória não foi uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas. Por isso,
24 - Não tem razão o Apelante quando aponta à douta decisão instrutória o vício de erro de julgamento ou erro notório na apreciação da prova pelo que, ele não existindo -- como realmente sucede --, deverá manter-se a não pronúncia do Apelado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nºs 2, 4, 5 e 6 do Código Penal.

Termos em que, e sobretudo com o muito que será suprido, deve ser negado provimento ao Recurso, proferindo-se douto Acórdão a manter a também não menos douta decisão instrutória recorrida com o que será feita, como sempre, a melhor e a mais sã
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando, no essencial, pela procedência do recurso, sustentando quanto ao Objeto do recurso que o presente recurso vem interposto, pelo Ministério Público, do despacho constante de fls. 327/336, datado de 20 de setembro de 2019, que decidiu não pronunciar o arguido B… pelos factos descritos na acusação pública constante de fls. 259/262, ali qualificados como crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. a) e nºs 2, 4, 5 e 6, do C. Penal.
Pretende o Ministério Público que o despacho impugnado seja declarado nulo por insuficiência da fundamentação ou, caso assim se não entenda, seja revogada a decisão de não pronúncia e substituída por outra que pronuncie o arguido nos termos da acusação pública contra ele deduzida.
Sobre o mérito do recurso como resulta do nº 2 do artigo 308º do C. P. Penal – que expressamente manda aplicar a tal despacho os requisitos do despacho de acusação previstos nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 283º do mesmo Código – o despacho de não pronúncia, para além das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer (artigo 308º, nº 3 CPP), deve conter a discussão e a fundamentação dos indícios e a narração dos factos insuficientemente indiciados.
Verifica-se, assim, que o juízo que o juiz de instrução terá de formular, no termo da instrução, sobre a existência ou a inexistência de indícios de que se verificou ou não uma determinada factualidade integradora de um certo crime e de quem foi o seu autor, há de resultar de uma apreciação crítica, objetivamente fundamentada, das provas recolhidas, quer no inquérito quer na instrução.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que, no caso concreto, essas exigências se mostram satisfatoriamente cumpridas.
Na verdade, analisado o despacho, parece-nos seguro afirmar que a decisão de não pronúncia não põe em causa a existência de prova indiciária suficiente dos factos imputados ao arguido nos pontos 2 a 9 da acusação, assentando exclusivamente na consideração de que essa indiciada conduta do arguido não evidencia, “de modo claro e inequívoco”, a existência de “um tratamento degradante ou humilhante” da ofendida, “de modo a eliminar ou limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à condição de coisa”, sendo, por isso mesmo, insuscetível de preencher os elementos do tipo de violência doméstica.
Percebem-se, portanto, claramente os motivos que conduziram o Mmo Juiz a quo à decisão de não pronúncia, pelo que, em nosso entender, será de considerar a decisão suficientemente fundamentada.
2.2 – Ultrapassada a questão da fundamentação, sobre a pergunta central de saber se os factos indiciados justificam ou não a submissão do arguido a julgamento, achamos que a resposta deverá ser positiva e que o recurso merecerá provimento.
Parece-nos, com efeito, que o arguido, com a conduta consubstanciada nos factos descritos nos pontos 2 a 9 da acusação público – indiciariamente sustentados, não apenas nas declarações da ofendida, mas nas demais declarações recolhidas no inquérito, mormente nas declarações do filho de ambos (cfr. fls. 182/183) – não se limitou a atingir a ofendida na sua integridade física, a ameaçá-la ou a coagi-la. Fez bem mais do que isso: condicionou deliberada e intencionalmente o comportamento da ofendida, desconsiderou-a e humilhou-a, tudo isso na intimidade de uma relação amorosa, em que se espera que prevaleçam as relações de confiança, de afeto e de respeito que os membros de um casal se devem mutuamente.
Propendemos, pois, para considerar que a matéria de facto provada se enquadra na previsão típica do artigo 152º, nºs 1, al. b), do C. Penal, e como tal deve o arguido ser pronunciado.
Na verdade, ao contrário do que parece supor a fundamentação despacho recorrido, a consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante, nem o preenchimento do tipo de crime exige a reiteração da conduta violenta.
Conforme entende a doutrina e vem decidindo maioritariamente a jurisprudência, a previsão do crime de violência doméstica funda-se no princípio da igual dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º da Constituição da República (cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I (1999), pg. 332).
Como diz Lamas Leite, in “A violência relacional íntima”, Revista Julgar nº 12, Set-Dez. 2010, pgs. 23/66, identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que «é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (actual ou anterior) de afectos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-activa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante.».
Essa especial relação de afeto e de confiança fundamenta a ilicitude e justifica a punição, não sendo necessário, para a pôr em causa, «que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante» (cfr. Ac. TRL, de 31/5/2016, Proc. 249/14.9PAPTS.L1-5, disponível em www.dgsi.pt).
Mais claramente a esta luz se vê que é suficientemente seguro que, com a sua conduta, o arguido preencheu os elementos, objetivo e subjetivo, do crime de violência doméstica por que vem acusado.
2.3 – Não questionamos, obviamente, que, nos termos do disposto no artigo 283º, nº 2 do C. P. Penal, para o qual remete o nº 2 do artigo 308º do mesmo diploma, o despacho de pronúncia depende da formulação de um juízo sobre a suficiência dos indícios: é necessário que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Isto é, o Juiz só deve pronunciar quando, pelos elementos de prova recolhidos, formar a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
Sucede que é esse juízo de probabilidade de condenação que, no caso presente, vislumbramos com base na prova indiciária que se mostra recolhida.
De resto, se é certo que a condenação só pode basear-se num juízo de certeza, a verdade, também, é que a acusação e a pronúncia pressupõem tão somente um juízo de probabilidade qualificada: podem ainda persistir motivos para não crer, desde que tenham um valor inferior aos motivos para crer.
E, no caso concreto, afigura-se-nos que a investigação levada a cabo no inquérito e na instrução conseguiu recolher e carrear para os autos prova indiciária que permite, objetivamente, formular esse juízo de probabilidade qualificada, no sentido da condenação.
2.4 – Pelo exposto, emitimos parecer no sentido de que, na procedência do recurso, será de decretar a revogação do despacho impugnado e a sua substituição por outro que pronuncie o arguido B… nos termos da acusação pública contra ele deduzida.
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto pela arguição do vício de falta de fundamentação e por matéria de Direito com avaliação do mérito dos indícios pretendendo-se a revogação da decisão e sua substituição por decisão de pronúncia.
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Do enquadramento dos factos.
Do despacho recorrido consta:
Foi requerida a abertura da instrução pelo arguido B… (fls.268/277), relativamente à acusação, contra ele deduzida pelo M. Público (a fl.s 259/262), pela alegada comissão de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 4, 5 e 6 do C. Penal, por entender o requerente que não resultam dos autos indícios suficientes em como praticou tal crime.
Conclui, assim, pela sua não pronúncia, com o consequente arquivamento dos autos, tendo requerido o seu próprio interrogatório e a inquirição de testemunhas.
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Procedeu-se ao requerido interrogatório do arguido.
Realizou-se depois o debate instrutório, no decurso do qual o M. Público concluiu no sentido da pronúncia do arguido, por entender que os indícios recolhidos no inquérito são suficientes para assegurar uma mais provável condenação daquele; o arguido continuou a pugnar pela sua não pronúncia.
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O art. 286.º, n.º 1 do C. Pr. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento“.
Ou seja, a actividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se - apenas e só - a verificar (a comprovar) se a acusação do M. Público é congruente com os indícios probatórios recolhidos em inquérito ou se, pelo contrário, tais indícios não permitem sustentar a sujeição a julgamento do arguido, pelo imputado crime de violência doméstica.
Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito.
Ora, nos termos do art.º 308.º, n.º 1 do C. Pr. Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
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Conforme refere o art.º 152.º, n.º 1, do C. Penal,
“1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Por outro lado, o nº 2, do mesmo preceito legal estatui que “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.
O crime de violência doméstica – que, recorde-se, está integrado no lugar sistemático dos crimes contra a integridade física – resultou do desdobramento dos crimes de homicídio (art.º 132.º, n.º 2, al. a) do C. Penal) e de ofensas corporais qualificadas (art.º145.º do C. Penal), operado pelas alterações de 2007 ao C. Penal.
A criminalização em apreço visa a protecção “…da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal, ou enquanto participante de uma realidade familiar ou análoga.” (Código Penal, Parte Geral e Especial, com notas e comentários, M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Almedina, 2015, pg. 647, em comentário ao art.º 152.º do C. Penal).
Pese embora esse referido lugar sistemático, a doutrina e a jurisprudência têm colocado o acento tónico na protecção conferida por este tipo de crime ao bem jurídico da saúde, enquanto elemento valioso complexo, compreendendo a saúde física e mental (Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., t. I, pg. 512), sendo essencial que esse ataque ocorra no âmbito de contexto familiar ou análogo.
Ou seja, ainda que o crime em causa se possa decompor em condutas típicas de outros tipos legais de crime (tais como a ofensa à integridade física, a ameaça ou a injúria), o que o distingue relativamente a essas outras condutas criminalmente tipificadas é o resultado ou consequência da conduta do agente: a vítima é colocada em um estado de sujeição ou subordinação relativamente ao agressor, que condiciona a sua autonomia da vontade.
A degradação da saúde da vítima (entendida como um todo, física, psíquica e psicológica), mercê da agressão por parte do agente, deve assim resultar permanente ou, pelo menos, prolongada no tempo, em termos tais que a vítima fica incapaz de reagir, ou de o fazer em termos relevantes, pelo que a sua dignidade, enquanto pessoa humana, fica seriamente afectada.
Daí que uma ofensa corporal, uma ameaça ou uma injúria se distingam da violência doméstica, pois que pese embora dessas condutas do agente possa resultar igualmente uma diminuição da autonomia da vontade da vítima ou a degradação da sua dignidade, esses efeitos não têm carácter duradouro, permanente ou prolongado no tempo, ao contrário do que sucede na violência doméstica.
Ponto é que a agressão ocorra no âmbito de uma relação conjugal, familiar ou equiparada.
“O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc.
Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar, repetimos, a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.”, refere-se no ac. da Rel. de Coimbra, de 17.JAN.18 (204/10.8GASRE.C1).
Porém, nem todos os factos que ocorrem em contexto familiar, numa relação ou por causa dela, preenchem o tipo objectivo de ilícito de violência doméstica.
Com efeito, a nossa doutrina e a jurisprudência têm entendido que, no crime de violência doméstica, a acção típica, tanto se pode revestir de maus-tratos físicos – como sejam as ofensas corporais - como de maus-tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros tipos de agressões, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima (ac. da Relação do Porto, de 26.MAI.10, 28.09.2011 e 29.FEV.12, por ex.).
Conforme se refere neste último aresto, “Os maus-tratos previstos pelo crime de violência doméstica do art. 152.º do Cód. Penal, têm subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, capaz de eliminar ou limitar claramente a sua condição e dignidade humanas. Com a Reforma de 1995, os maus-tratos psíquicos passaram a estar contemplados com um leque mais alargado de condutas, como humilhações, provocações, ameaças (de natureza física ou verbal), insultos, privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, ou seja, condutas que revelam desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou de fraqueza mas não, necessariamente, um sofrimento psicológico.
O relevante é que os maus-tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vítima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta.”.
Assim, o crime de violência doméstica tutela a dignidade humana da pessoa individual e abrange qualquer tipo de agressão à vítima, quer física como verbal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., t. I, pg. 512; ac. da Relação de Lisboa, de 05.JUL.16, pr. 247/16.8PAVNG-A.P1: “O crime de violência doméstica protege a dignidade humana, tutelando a integridade física da pessoa individual e a sua integridade psíquica, sendo decisivo à sua imputação que a conduta em causa tenha carácter violento ou que assuma uma configuração global de desrespeito à dignidade da pessoa da vítima, de desejo de prevalência, dominação e controlo sobre a vítima.”).
Pressupõe a existência de um relacionamento entre agente do crime e vítima dele (relação conjugal ou análoga, actual ou passada, ainda que sem coabitação: Comentário…, cit., pg. 513) e pode ser praticado de modo omissivo (Comentário…, cit., pg. 517).
O resultado da conduta pode traduzir-se em uma mera actividade e pode consistir em um dano efectivo como no perigo desse mesmo dano (Comentário…, pg. 520).
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus-tratos a que alude o art.º 152.º-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.
Enquanto nos maus-tratos físicos se incluem os castigos corporais e as ofensas corporais simples, nos maus-tratos psíquicos compreendem-se, designadamente, humilhações, provocações, ameaças e curtas privações de liberdade de movimentos. Finalmente, importa sublinhar que o crime em causa exige o dolo, isto é, o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude.
Como se exarou no ac. da Rel. do Porto de 30.SET.15 (pr. ), “… a própria finalidade da previsão normativa – protecção do bem jurídico – tutelando em geral a dignidade da pessoa humana – (em toda a sua plenitude: física e mental, numa relação próxima do ambiente familiar ou análogo, onde existem sentimentos de afectividade, de convivência, confiança, conhecimento mútuo, e ocorram actos de intimidade e de partilha da vida em comum, numa relação viva de cooperação mútua) – que permite e justifica a relação de especialidade com outras normas punitivas, que protegem o mesmo bem (geral: a dignidade da pessoa humana).
Está em causa a protecção da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal (…), constituindo o tipo de crime em apreço, um dos vectores de tutela especial reforçada, que se pode apreciar nos seus desenvolvimentos gradativos, face ao mais ligeiro ou mais grave grau de violência exercida sobre certas pessoas vinculadas ao agente (…) que vão da ofensa à integridade física simples qualificada, aos crimes de maus tratos, à ofensa à integridade física grave qualificada e, no limite, ao homicídio qualificado”.
Conforme referem M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio (cit., pg. 647, em comentário ao art.º 152.º do C. Penal) no Ac. da Rel. De Évora, de 18.MAR.13 (pr.78/12.4GDVCT.G1) se exarou que “A simples prática de crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, ou injúria, não configura um crime de violência doméstica só por a vítima ser cônjuge, ou ex-cônjuge; é necessário que se verifiquem «maus-tratos físicos ou psíquicos.”.
Segundo os citados autores, os maus-tratos físicos ou psíquicos devem traduzir-se em actos que revelem sentimentos de crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima (cit., pg. 650).
Na mesma senda, se exarou no referido ac. da Rel. do Porto de 30.SET.15 que o resultado da actuação do agente na violência doméstica tem de traduzir uma gravidade que vá para além da simples ofensa em causa, pois o mau trato traduz uma ofensa à dignidade humana, bem jurídico abrangente que (para além da saúde) está subjacente a toda a protecção legal, o que tem que ser entendido para além da integridade física ou da honra (objecto de protecção de outras normas penais), citando o ac. da Rel. de Guimarães, de 10.JUL.14, o qual enunciou que “Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente as ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar…”, e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal), não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir num crime familiar), ou seja, é necessário que iniba a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.
O juiz de instrução criminal, em sede de instrução, analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
Ora “O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças.
O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus-tratos”.
A conduta do arguido, embora penalmente relevante, surge no contexto de uma relação que apenas esporádica e negativamente se manifestava, não espelha uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja susceptível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima.”, como decidiu o ac. da Rel. de Coimbra, de 07.FEV.18 (pr. 663/16.5 PBCTB.C1).
Partindo do bem jurídico tutelado pelo tipo de ilícito em questão e que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa, resulta claro que os indícios recolhidos em inquérito não permitem concluir de forma segura que esse apoucamento da vítima tenha ocorrido.
O relevante é que os maus tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretende exercer em relação à vítima, decorrente da posição de maior vulnerabilidade desta última.
Assim, analisando globalmente os indícios recolhidos em inquérito, importa sublinhar que não se indicia de modo claro e inequívoco a verificação do supra referido resultado ou consequência da conduta do agente do crime de violência doméstica: a colocação da vítima em um estado de sujeição ou subordinação tais relativamente ao agressor, que fique condicionada de modo relevante, significativo e duradouro a sua autonomia da vontade (“O verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual, reside no facto de o tipo legal prever e punir condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.” – ac.da Rel.de Guimarães, de 04.JUN.18, pr. 121/15.5GAVFL.G1).
Não resulta com efeito do inquérito que tenha ocorrido a também referida degradação da saúde da ofendida, mercê das agressões verbais por parte do arguido, em termos tais que se possa afirmar para lá de dúvida razoável que ela tenha ficado incapaz de reagir, ou de o fazer em termos relevantes, pelo que não se pode sustentar que a sua dignidade, enquanto pessoa humana, tenha ficado seriamente afectada como resultado da conduta do arguido.
Assim, os factos que ocorreram no contexto familiar da ofendida e do arguido não preenchem o tipo objectivo de ilícito de violência doméstica que o ofendido pretende ter existido.
Mesmo que a ofendida tivesse sido menoscabada e apoucada pelas palavras que alegadamente lhe foram dirigidas pelo arguido, não é evidente, porém, que dessas condutas dele tenha resultado o efeito que se pretende punir com a incriminação prevista no art.º 152.º do C. Penal.
Importa aliás referir que, inicialmente, por despacho de 26.JAN.18 (fl.s 148), o então magistrado do M. Público titular do inquérito entendeu que “A denunciante, quando inquirida, confirmou, em síntese, o teor da queixa apresentada.
Por sua vez, o denunciado, quando interrogado como arguido, negou frontalmente a prática dos factos de que é acusado.

Não tendo sido apresentados qualquer prova cabal, resta apenas a mera alegação da denunciante face à negação dos factos por parte do arguido.
Face ao exposto, apenas podemos concluir que os indícios recolhidos são manifestamente insuficientes para imputar ao denunciado a prática dos factos participados, pelo que o procedimento criminal em causa não tem qualquer viabilidade.”.
Só depois, face aos aditamentos de fls.159 (“Já cheiras a defunto…”) e de fl.s 160 (o arguido fechou a água da habitação) foi reaberto o inquérito e, efectuadas algumas diligência probatórias, se decidiu pela acusação em apreço.
Relativamente a esses aditamentos, o arguido explicou no requerimento de abertura de instrução (pontos 36. a 40. e 46. a 50.) o contexto em que tal aconteceu, de modo verosímil e credível, pelo que as razões que determinaram o inicial arquivamento do inquérito – a insuficiência de prova suficiente – continuam válidas.
O que parece ter existido entre os ex-cônjuges foi uma relação conflituosa e tumultuosa entre ambos, com agressões verbais do arguido dirigidas à ofendida, certamente causadoras de tristeza, angústia, desmoralização e revolta dela, mas que não permitiriam afirmar ser mais provável uma condenação que uma absolvição do arguido pelo imputado crime de violência doméstica.
Assim sendo, face à prova indiciária existente, é lícito concluir que os indícios recolhidos em inquérito não têm força persuasiva suficiente para se prognosticar que - efectuado o julgamento - será mais provável a condenação do arguido pela comissão do crime de violência doméstica que a sua absolvição.
Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos da primeira parte do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C.Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIA o arguido B…, com os sinais dos autos, pelos factos e imputação vertidos na acusação contra ele dirigida pelo M.Público, a fl.s 259/262.
*
Cumpre apreciar.
Vem o Digno recorrente arguir o vício de falta de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia, quer na vertente de facto como na vertente de direito, referindo que nos artigos 97º, n.º 5, 283º, n.º 3, al. b), aqui aplicável por força do art.º 308º, n.º 2, todos do CPP o juiz na decisão instrutória não elencou nenhum facto, nem os que considera suficientemente indiciados nem aqueles que entende não estarem suficientemente indiciados, considerando que a decisão é nula.
Desde logo cabe referir que, diversamente do que se sustenta, o vício invocado não constitui uma nulidade, mas uma irregularidade sujeita ao regime previsto no art.123º do CPP, pois os requisitos no art.283º nº3 estão todos dimensionados para a decisão instrutória/pronúncia (ver por todos Ac.TRP de 8/09/2010).
Depois, analisando os termos da irregularidade em causa como decidiu o Douto Acórdão do TRL de 15/02/2007 O formalismo exigido para o despacho de não pronúncia é diverso do referente ao despacho de pronúncia, já que só a este último é exigido o cumprimento do disposto no art.283º, nº3 do CPP, ex vi art.308º nº2, do mesmo diploma. Ao despacho de não pronúncia é aplicável o disposto no art.97º, nº5, do CPP, que dispõe que «os actos decisórios são fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».”
Deste modo, a exigência que o recorrente reclama, sobre a tomada de posição sobre cada um dos factos indiciados e não indiciados, o suporte legal que invoca (cfr. art.283º nº3 do CPP) é expressamente dimensionado para o despacho de pronúncia, pelo que, sendo certeira a jurisprudência referida, considera-se que o despacho de não pronúncia ora impugnado, independentemente da análise sucinta dos indícios que fez, concordando-se ou não, a análise mostra-se feita, o que determina que se cumpriu com o dever de fundamentação, assim improcedendo o recurso nesta parte.
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Quanto ao restante objecto de recurso, primeiramente, antes de se analisar o mérito sobre a densidade de indícios existentes nos autos, cabe estabelecer as fronteiras típicas do crime que fora imputado ao arguido em sede de acusação, pois só assim se poderão interpretar a importância jurídica dos indícios existentes. Depois, importará saber se a análise que o Tribunal “A Quo” procedeu sobre a tipicidade do art.152º do CP, foi certeira.
Contrariamente ao que se possa supor, o quadro normativo que deriva do tipo especial de violência doméstica, emerge entre sujeitos que estão ligados por especiais deveres de respeito, consideração e dedicação implicadas na vida em comum (onde é imanente o dever de cuidar e respeitar o “outro”), os quais assentam numa relação de proximidade, de conhecimento mútuo e por isso de elevada exposição. É necessário sublinhar que o conteúdo dos deveres recíprocos elevam e substanciam o estatuto da dignidade de um perante o outro, nessa relação.
O Ac.RelP de 28.09.2011, veio sintetizar “No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.

O reforço da tutela prevista no art.152º do CP surge porque o agressor pode vitimizar a ofendida de forma dramática. Para o cometimento do crime não é necessária que ocorra o drama das múltiplas e continuadas agressões, o legislador quis antecipar a tutela. Com efeito, quando uma única agressão ultrapassa os limites ao respeito devido à companheira, que nunca deviam ter sido ultrapassados, subsiste o perigo de se iniciar irremediavelmente um ciclo de violência (composto pelo seguinte iter: a agressão, pedido de perdão pelo agressor; o perdão concedido; nova agressão e assim sucessivamente) que tendencialmente se agravará. Portanto, basta uma agressão que atinja os referidos limites (não exigindo o tipo uma especial gravidade desta agressão tal como vem sendo sustentado por diversos acórdãos), para consumar o crime previsto no art.152º do CP, e é aqui se surpreende na previsão legal um tipo de perigo, tutelando o perigo abstracto na reiteração de futuras agressões, que poderão vir a seguir àquela “única” agressão. O perigo é abstracto porque na formulação legal não se tipifica o perigo concreto. Depois, a única agressão que tem a virtualidade de fechar a tipicidade deste crime de perigo (nesta componente de agressão única), é aquela que em potência se renovará em futuras agressões, acompanhada, claro está, do dolo de domínio e de subjugação, associada à intenção de lesar a dignidade. Esta potencialidade reside nas agressões desrespeitosas, que diminuam a ofendida e a coloquem numa posição de sujeição perante futuras agressões. Com efeito, existem agressões, como um soco na face ou uma violenta chapada (a face identifica-se com os parâmetros da personalidade do individuo), que não sendo muito relevantes em termos de gravidade objectiva nos termos do art.143º do CP, significam, no entanto, no seio da comunhão conjugal o que nunca poderia ter acontecido, ou seja, a sujeição da companheira ao medo, que a imobiliza perante futuras agressões, o que o agressor sabe, aproveitando para, a partir daí, impor a sua vontade, no seio dessa comunhão, exercendo então a tirania do mais forte, passando a desferir chapadas quando se quiser impor. É o perigo dessa tirania que o tipo de perigo do art.152º na “única agressão” visa tutelar e esconjurar, sem necessidade de esperar pela consumação do intenso e continuado sofrimento que decorre da reiteração. O legislador perante uma única agressão perigosa, quis antecipar a tutela, punindo logo o agressor como crime de violência doméstica.
É que, ultrapassados os importantes limites do respeito pela dignidade da vítima no seio da comunhão conjugal, iniciado este grau de agressões está “aberta a porta” para a sucessão dos ciclos de violência que caracterizam a violência doméstica.
Subsumir as agressões com a potencialidade de iniciar ciclos de violência conjugal aos tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP, contraria o regime especial previsto no art.152º do CP.
Com as agressões e os maus tratos psíquicos, os deveres ao serem frontalmente violados, “por regra”, ou melhor, em princípio, ferem a dignidade do cônjuge ou da companheira, assim se mostrando quase inerentemente atingidos, tornando os tipos legais das ofensas à integridade física ou de injúrias (cfr.art.143º e 181º) tutelares de agressões de escala menor ou residual (porque também desacompanhados de dolo de querer dominar e de atingir a dignidade), por isso inaplicáveis àqueles maus tratos.
A ontologia normativa de uma violenta bofetada, um soco ou uma cabeçada infligidos na face de uma mulher, altera-se por completo se essa mulher for um cônjuge ou companheira, pois, os planos da dignidade mostram-se reforçados e encimados pela relação de proximidade afectiva, pela comunhão de vida. No art.152º do CP não é tutelada a dignidade humana, mas sim da dignidade da mulher ou do homem companheiro ou cônjuge.
No naipe gradativo de agressões, é claro que um simples empurrão ou uma palmada num braço ou a injúria com um nome de carga ofensiva moderada (embora criminosa); coacções ou ameaças de baixa densidade ou meramente isoladas; ou mesmo uma bofetada depois de uma provocação desnecessária previamente dirigida pela vítima (bofetada que pode resultar de uma reacção mal medida do arguido) não integram o dolo de maus tratos físicos da violência doméstica (pois, embora dolosa, é de baixa densidade e a tipicidade desse dolo situa a agressão fora da violência doméstica, antes se integrando no art.143º do CP, não obstante a agressão na face). Daí que o recenseamento destas agressões constituindo delitos disponíveis pela vítima, porque semipúblicos, serão subsumíveis aos arts.143º, 153º, 154º 181º todos do CP, respectivamente, sem prejuízo pela agravação que deriva da especial censurabilidade cfr.arts.145º nº1 alínea a) e 132º nº2 do CP. É que, sendo a carga de indignidade das agressões, um resultado desvalioso, situa-se na ilicitude e não na culpa (aqui se discordando que os maus tratos implicam uma culpa especialmente censurável). A culpa até poderá ser especialmente censurável, mas o tipo não o exige, bastando o dolo de domínio e de lesar a dignidade. Ou seja, certa agressão física a uma companheira pode não ter a carga de indignidade típica do crime de violência doméstica (precisamente porque o desvalor do resultado não é acentuado), mas ser especialmente censurável, e, por isso, integrar o art.145º nº1 alínea a) do CP.
No entanto, pode ocorrer que, sucessivas desconsiderações, pressões psicológicas (sem que integrem injúrias, coacções ou ameaças) e atitudes que não preencham, sequer, a tipicidade de algum dos delitos previstos nos arts.143º, 153, 154º ou 181 do CP, no seu conjunto constituam maus tratos degradantes e desumanos, assim aviltando a dignidade da companheira, o suficiente para subsumir o art.152º. Tudo isto para significar que a realidade do crime de violência doméstica é inteiramente distinta daquela que é tutelada pelos citados tipos legais “atomísticos”.

A questão é sensível porque alguma jurisprudência reclama para o patamar típico do crime de violência doméstica uma maior carga de indignidade, densificando-a para além da literalidade típica (e até a contrariando, quando exige um padrão de frequência) assim direccionando a subsunção de agressões, ameaças e injúrias (que atinge a dignidade da companheira ou companheiro) para os tipos previstos nos arts.143º, 153º, 181º do CP (que deveriam, a nosso ver, ser classificadas de violência doméstica, mas que por força dessas especiais interpretações, vem a ser subsumidas para crimes de ofensas à integridade física, injúrias), desqualificando estes comportamentos. Concretamente, pretende ler-se e substanciar a violação da dignidade em contextos e situações como a subjugação ou dominação da vítima, associados a padrões de frequência.
Este tipo de densificações, alteram a tipicidade dos delitos, sendo muito questionáveis dado que, facilmente, ferem o princípio da legalidade. Com efeito, podem bem existir maus tratos físicos e psíquicos típicos do art.152º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente), e como se sabe a lei dispensa expressamente o padrão de frequência. Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de subjugação.

Assente que está o recorte exegético do art.152º do CP, interessa agora aferir do suporte indiciário que decorre dos autos.
Conforme disposto no art. 286º, nº 1 do C. P. Penal, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Constitui uma atividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.
Nos termos do art. 308º, n.º 1 do C. P. Penal, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Devendo ser bem interpretada a densidade de indícios existentes, salvo o devido respeito, verifica-se que o Tribunal “A Quo” não o fez correctamente. Concretamente, não se atentou no depoimento do filho de ambos com 14 anos (no ano de 2018), D…, o qual a fls.182 e 183, é bem claro quando relata a vivência com o pai e o feitio deste, controlador e autoritário (feitio que foi igualmente confirmado pelo depoimento de E… em depoimento de fls.176), em particular o episódio em que o arguido corta a água da residência e todas as vicissitudes condicionantes que daí resultaram, tendo a mãe e o depoente de se socorrer da ajuda das tias (irmãs da mãe) para lavar a roupa em casa destas, situação que durou algum tempo, circunstâncias indiciadas que vieram a ser confirmadas pelo depoimento das irmãs da ofendida, as testemunhas F… a fls.178 e G… a fls.180, tornando credível, não só, o depoimento do filho do casal, como o próprio acontecimento do corte da água e suas consequências. E contrariamente, ao que foi entendido pelo Tribunal “A Quo”, a versão apontada pelo arguido é singeleza do inverosímil, quando o mesmo sustentou haver cortado a água por causa de uma fuga de água. É que, se fosse esse o caso, implicaria imediatamente uma inundação que poderia e teria de ser resolvida no próprio dia por um canalizador (de salientar que a documentação junta pelo arguido com o requerimento de abertura de instrução, por si só, não infirma a realidade transmitida por aquele conjunto de indícios). Devendo ser atribuída credibilidade indiciária ao depoimento do filho, também não existem razões à partida para duvidar do que o mesmo relatou sobre as expressões que ouviu seu pai dirigir a sua mãe “Já cheiras a defunto”.
Também contrariamente ao que foi entendido pelo Tribunal “A Quo”, não se evidencia que a ofendida houvesse utilizado ou transportado para este processo os litígios do direito da família, antes, diversamente, o que resulta é que a ofendida e o filho tiveram de sair de casa de morada de família, a qual veio a ser atribuída ao arguido.
Quanto ao episódio mais longínquo referente aos arts.1 a 4 da acusação, para além do depoimento da ofendida, temos os depoimentos de fls.32 e 33 de sua irmã G… referindo que por essa altura a sua irmã se refugiou em sua casa durante uma semana (só regressando porque o arguido disso a convenceu), assim contextualizando indiciariamente o episódio de violência, o que veio a ser indiciariamente confirmado pela testemunha H… a fls.34 e 35, que confirma os referidos factos.
A densidade dos indícios subsume à vontade os parâmetros previstos no art.308º do CPP impõe, devendo ser proferido um despacho de pronúncia.
Ac. TRC de 16-01-2013 aferindo uma situação algo similar sustentou que “O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesem essa dignidade. Tendo o arguido privado a sua esposa do acesso à água, gás, electricidade, telefone e correio, na casa onde ambos habitavam, deve interpretar-se tal conduta, segundo as regras da experiência comum, como a privação dos bens essenciais no espaço da residência que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, atentatória da dignidade humana e quem assim actua não pode desconhecer esse facto (basta que se coloque mentalmente na mesma situação).
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso merece parcial provimento.

DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso penal parcialmente procedente e consequentemente, nos termos e fundamentos expostos, revogar a decisão do Tribunal “A Quo”, determinando-se que este Tribunal profira despacho de pronúncia com descrição dos factos que constavam da acusação e com a enunciação dos meios de prova aí descritos, com a imputação jurídica que também resultava da acusação.

Sem custas.
Notifique.

Sumário:
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Porto, 15 de Janeiro 2020.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha