Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
98/19.8YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
PEDIDO DE ESCUSA FORMULADO PELO JUIZ
Nº do Documento: RP2019041198/19.8YRPRT
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA EM PROCESSO DE CONTRA ORDENAÇÃO LABORAL
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 293, FLS 71-74)
Área Temática: .
Sumário: Deve ser deferido o pedido de escusa formulado, em processo contra-ordenacional, pelo Mmº Juiz quando: este é casado com a Exmª Procuradora Adjunta que tramita processo de inquérito criminal, que se encontra pendente, pelos mesmos factos em causa naquele (violação de regras de segurança); em que, conforme referido pelo Mmº Juiz, ambos “têm vindo a trocar informalmente impressões sobre o que esteve na génese dos mencionados dois processos”; e em que, em ambos os processos, a arguida é a mesma entidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 98/19.8YRPRT (Escusa em Proc. de contra-ordenação) Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1111)
Adjunto: Des. Rui Penha

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

1. O Exmº Sr. Dr. B..., Mmº Juiz de Direito, Juiz 3 do 1º Juízo de Trabalho da Comarca do Porto veio requerer a sua escusa no Proc. 2455/18.8T9VLG, este de impugnação judicial de decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho que, em processo contra-ordenacional, aplicou à aí arguida, C..., SA, uma coima.
Para tanto, alegou que, pelos mesmos factos em causa no mencionado processo contra-ordenacional, também corre termos, na 5ª Secção do DIAP do Porto o Proc. 11775/17.8T9PRT, este relativo a processo de Inquérito no qual se investiga eventual prática de um crime de violação de regras de segurança, processo esse que é tramitado pela Exmª Srª Procuradora-Adjunta, Drª D..., esposa do Requerente. Mais referiu que têm vindo a trocar informalmente impressões sobre o que esteve na génese dos mencionados dois processos.
Juntou certidão do Proc. 2455/18.8T9VLG, de onde decorre que: o mencionado Processo corre termos em tal Tribunal; que o mesmo tem por objecto impugnação judicial da decisão administrativa de 08.10.2018, proferida pela Autoridade das Condições de Trabalho (ACT), que condenou a aí arguida, C..., SA, na coima de €5.800,00 por contra-ordenação decorrente de alegada violação de regras de segurança a que se reporta o DL 273/2003, de 29.10, de que terá resultado a morte do trabalhador E....

Foi solicitada, pela ora relatora, informação ao Processo 11775/17.8T9PRT, na sequência do que foi informado que este tem por objecto “eventual prática de um crime de violação de regras de segurança, na sequência do acidente de trabalho que vitimou E... (instruído no Inquérito Sumário de Acidente de Trabalho da ACT), e em que é participante o Centro Hospitalar do Porto-...”, sendo denunciadas, entre outras, a empresa C..., S.A., que tal Inquérito se encontra distribuído à Exmª Procuradora Adjunta, Srª Drª D... e que ainda não foi proferida decisão final.

Colheram-se os vistos legais.
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3. Cumpre decidir, tendo em conta o referido no ponto 1).

3.1. Os arts. 39º e 40º do CPP dispõem, respectivamente, sobre causas de impedimento do juiz e por impedimento por participação em outro processo e, o art. 43º, sobre as causas de recusas e escusas, neste se referindo que: “1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º. 3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis. 4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2. 5. (…)”
O caso não se enquadra em nenhuma das situações a que se reportam os arts. 39º e 40º, pelo que há que apreciar se se enquadra, ou não, nas situações previstas no art. 43º, mormente no seu nº 1.
Neste preceito não está em causa a efectiva imparcialidade do juiz, a qual até se presume, mas sim a existência de circunstâncias que, fundadamente (“motivo sério e grave”), poderão fazer perigar a confiança pública na administração da justiça e, bem assim, que possam, aos olhos designadamente dos demais intervenientes – no caso, a ACT e a arguida -, fazer correr o risco de ser posta em causa essa imparcialidade, devendo o risco ser objectivamente considerado e de modo a que sejam dissipadas as “dúvidas ou reservas, pois as aparências podem ter importância, devendo ser concedida a escusa a todo o juiz de quem se possa temer um falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.” - – cfr. Acórdão do STJ de 05.07.2007, in www.dgsi.pt, Proc. 07P2565, no qual, para além do mais, se refere ainda que:
««Para que haja um julgamento independente e imparcial, necessário é o que o juiz que a ele proceda possa julgar com independência e imparcialidade.
Não está em causa a imparcialidade subjectiva do julgador que importava ao conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo nas circunstâncias dadas e que, aliás, se presume até prova em contrário.
"Mas – como refere o Conselheiro Ireneu Barreto (op. cit., pp. 114 e 115) – esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done.
Deve ser concedida a escusa a todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos."»».
E, no Acórdão do STJ de 06.07.2005, Proc. nº 2540/05-3, também citado (para além de outros) no mencionado aresto do STJ de 05.07.2007, refere-se que ««(1) – A imparcialidade subjectiva tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. (2) – A perspectiva subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário. (3) – Neste aspecto a função dos impedimentos constitui um modo cautelar de garantia da imparcialidade subjectiva. (4) – Mas a dimensão subjectiva não basta à afirmação da garantia. Revela, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objectiva. Nesta abordagem, em que são relevantes as aparências, intervêm por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v.g. a não cumulabilidade de funções em fases distintas do processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. (5) – A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o «ser» e o «parecer». (6) – Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na «tirania das aparências» ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser. (7) – As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e «grave») para impor a prevenção. (8) – O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do art. 40.º do CPP - art. 43 .º, n.ºs 1, 2 e 4, do mesmo diploma. (9) – A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança entre os interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão. (AcSTJ de 6/7/2005, Proc. nº 2540/05-3)»».

3.2. No caso, como decorre do alegado pelo Mmº Juiz que requereu a escusa e do demais referido no ponto 1) do presente acórdão, correm termos, pelos mesmos factos, dois processos: um, contra-ordenacional, de impugnação judicial da decisão proferida pela ACT de aplicação de coima à arguida C..., SA por alegada violação de normas de segurança de onde resultou a morte de um trabalhador, do qual é Juiz o Mmº Juiz que solicitou a escusa; outro, um processo de inquérito criminal, sobre esses mesmos factos, no qual a Exmª Magistrada do Ministério Público, que dele é titular, é casada com o mencionado Juiz, mais tendo este referido que têm vindo, ambos, a trocar, ainda que informalmente, “impressões sobre o que esteve na génese dos dois processos”.
Tratam-se, ambos os processos, é certo, de processos de diferente natureza, pendentes em diferentes tribunais e sendo de diferente natureza a intervenção do Mmº Juiz, no processo contra-ordenacional, e da Exmª Procuradora Adjunta, no processo de inquérito criminal.
Não obstante, o Ministério Público é, no processo criminal, o titular da acção penal, a ele competindo, para além da tutela sobre a investigação, a prolação de decisão de arquivamento ou de acusação. Sendo os factos comuns a ambos os processos, poderá estar em causa, aos olhos dos cidadãos em geral e dos intervenientes em particular (mormente, da ACT e da arguida), o risco de poder ser questionada a confiança na imparcialidade do Mmº Juiz no julgamento que faça no processo contra-ordenacional pois que neste poderá ter que ser confrontado com a necessidade de “sindicar” o juízo firmado pela Magistrada do Ministério Público, sua esposa, na decisão desta de acusar ou arquivar o processo de inquérito criminal.
Ora, tal afigura-se-nos poder justificar, de forma objectiva e séria, a existência do mencionado risco quanto ao juízo sobre a sua eventual falta de imparcialidade dada a menor equidistância por parte do Mmº Juiz. Reafirma-se que não está em causa a efectiva falta de imparcialidade, mas sim o risco/perigo de isso poder ser considerado aos olhos dos cidadãos em geral e dos intervenientes em particular no processo contra-ordenacional.
Diga-se que se nos afigura que a existência desse risco seria mais patente, não se nos oferecendo dúvidas de que se verificaria, se, por hipótese, o Mmº Juiz viesse a ser o titular do processo crime em que a acusação tivesse sido deduzida pela Magistrada do Ministério Público, sua mulher. Embora não sendo esse o caso dos presentes autos, a verdade é que, também nestes, estão em causa os mesmos factos que poderão motivar a decisão da sua mulher, no processo crime, de acusar (ou de arquivar).
Acresce que, segundo o próprio Mmº Juiz, tem ele e a Magistrada do MP, sua mulher, vindo a tocar “impressões” sobre a situação que originou os dois processos, donde decorre o risco de poder ser entendido que o Mmº Juiz poderá deter, ou vir a deter, conhecimento dos factos com base em outros elementos que não apenas aqueles que decorram da prova que venha a ser efectuada no âmbito do processo contra-ordenacional e, consequentemente, que isso possa afetar o julgamento. Diga-se que este, julgamento, apenas deverá ter por base a factualidade cujo conhecimento seja adquirido por via da prova que seja produzida no próprio processo e não já com base no conhecimento a que o juiz, por outra via, tenha, ou possa ter, acesso “informal”, mormente por via de elementos do processo de inquérito resultante da “troca de impressões” que haja mantido com a sua mulher, titular desse processo de inquérito.
Ou seja, e em conclusão, entende-se, nos termos do art. 43º, nº 1, do CPP, que, no caso, existe motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Mmº Juiz, pelo que lhe deverá ser deferida a escusa solicitada.
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4. Em face do exposto, acorda-se em deferir o pedido de escusa formulado pelo Mmº Juiz, Sr. Dr. B..., Mmº Juiz de Direito, Juiz 3 do 1º Juízo de Trabalho da Comarca do Porto relativamente ao Proc. 2455/18.8T9VLG que aí corre seus termos.

Porto, 11.04.2019
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha