Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
293/08.5TBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: INÊS MOURA
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO
VALORES CONFLITUANTES
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20190207293/08.5TBVLG.P1
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º161, FLS.260-269)
Área Temática: .
Sumário: I - O art.º 1871.º n.º 1 do C.Civil enferma de inconstitucionalidade material, na medida em que impõe um prazo limite para a propositura da acção de investigação de maternidade e de paternidade o que, impedindo a averiguação da verdade biológica, contraria de forma desproporcionada o direito à identidade pessoal previsto no art.º 26.º n.º 1 e o direito a constituir família estabelecido no art.º 36.º n.º 1 da CRP.
II - Estamos perante diferentes valores e direitos constitucionalmente protegidos que de alguma forma entram em conflito pelo que a limitação de um deles tem de obedecer a critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação, afigurando-se que a imposição de um limite temporal à interposição de uma acção de maternidade ou paternidade vem restringir de forma desproporcionada o direito fundamental à identidade pessoal e a constituir família, um direito pessoal da maior relevância e preponderante, que não deve ser postergado com a defesa da intimidade da vida privada e segurança jurídica do pretenso pai e herdeiros com reflexo apenas ou principalmente ao nível patrimonial.
III - Os avanços da ciência e da medicina e o seu papel absolutamente determinante hoje em dia enquanto instrumento probatório seguro de averiguação da maternidade e da paternidade biológica, permite ultrapassar uma das razões avançadas em defesa do estabelecimento de um prazo para a propositura da acção, que é precisamente o decurso do tempo com o envelhecimento da prova e da “memória” de quem pode testemunhar factos há muito ocorridos, bem como a sua falta de fiabilidade, permitindo os testes de ADN que hoje se realizam uma grande segurança no esclarecimento de situações mais dúbias e a descoberta da verdade.
IV - Considera-se ainda que não pode fechar-se os olhos a toda uma evolução doutrinária e jurisprudencial que tem vindo a ocorrer no sentido de sedimentar tal entendimento e que espelha o sentimento social, realçando-se a jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, entidade a quem compete especificamente pronunciar-se em matéria de natureza jurídico-constitucional, que inverte o entendimento seguido até então e que embora não tenha força obrigatória geral, não pode deixar de constituir uma orientação para outras decisões judiciais, a bem da segurança e certeza jurídica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 293/08.5TBVLC
Apelação 1ª

Relatora: Inês Moura
1º Adjunto: Francisca Mota Vieira
2º Adjunto: Paulo Dias da Silva
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do C.P.C.)
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Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório
Vem a A. B…, em 20 de Maio de 2008 intentar a presente acção de investigação de paternidade contra o RR. C… e outros, herdeiros de D… falecido a 5 de Novembro de 1965, pedindo que se declare que a A. é filha do falecido D…, declarando-se nulas e de nenhum efeito as habilitações e partilhas celebradas pela escritura pública de 16 de Maio de 2001, restituindo os RR. à herança todos os bens identificados no seu documento complementar e cancelando-se o registo de aquisição dos imóveis fundamentado naquela escritura pública.
Alega, em síntese que nasceu a 25 de Maio de 1956, sendo filha de E…, não constando a paternidade do seu assento de nascimento, sendo também filha do falecido D…, para quem a sua mãe trabalhou desde muito jovem e que passou assediá-la e ter com ela relações sexuais, quando a mesma tinha 26/27 anos de idade, o que aconteceu designadamente no período legal de concepção, em que o relacionamento sexual da mãe da A. foi exclusivo com aquele, sendo o referido relacionamento falado e comentado no lugar, tendo toda a gente atribuído a paternidade da A. ao D…, o que era do conhecimento deste e da sua esposa e sendo notória a semelhança fisionómica entre ambos.
As habilitações e partilhas entretanto realizadas pelos herdeiros do D… não levaram em conta o facto da A. também ser sua filha, preterindo-a como sucessora, só tendo a A. tido conhecimento da sua efectivação em Julho de 2007.
Os RR. vieram contestar, invocando a ilegitimidade das RR. F…, G… e H…, por apenas terem tido intervenção na escritura pública como testemunhas, não tendo qualquer interesse na presente acção e concluindo pela improcedência da acção e impugnando os factos alegados pela A.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e procedeu-se ao saneamento do processo que apreciando a excepção da ilegitimidade suscitada concluiu pela legitimidade de todos os RR., tendo seleccionado os factos assentes e organizado a base instrutória.
Foi realizada prova pericial pelo IML com exumação do cadáver do falecido D…, tendo sido elaborado relatório que conclui pela probabilidade da A. ser filha biológica do falecido em 99,99997%.
Tendo sido designada data para a realização da audiência de julgamento, no início da mesma em 21/05/2018, os RR. apresentaram requerimento invocando a caducidade do direito da A. de intentar a presente acção de investigação da paternidade, por terem decorrido mais de dez anos após a maioridade da A. Alegam, para tanto e em síntese, que tal prazo decorre da aplicação do art.º 1817.º n.º 1 do C.Civil na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril e aplicável às acções pendentes por força do disposto no artigo 3.º dessa Lei.
Conferido à A. o direito ao contraditório veio a mesma pronunciar-se no sentido da inconstitucionalidade do referido prazo e também pela inconstitucionalidade da referida norma transitória, concluindo pela improcedência da excepção da caducidade suscitada.
Foi proferido despacho apreciando a excepção da caducidade, tendo o tribunal a quo concluído pela sua verificação e em consequência julgou improcedente a presente acção, absolvendo os RR. do pedido.
É com esta decisão que a A. não se conforma e dela vem interpor recurso pedindo sua revogação e substituição por outra que considere a inconstitucionalidade do n.º 1 do Artigo 1817.º do Código Civil, ou se assim não se entender, que se considere que o mesmo não é aplicável à presente acção, atenta a inconstitucionalidade da norma transitória do Artigo 3.º do citado DL 14/2009, concluindo pela improcedência da excepção e ordenando o prosseguimento dos autos, apresentando, para o efeito, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
I. A norma do n.º 1 do Artigo 1817.º do C.Civil, na actual redacção introduzida pelo DL 14/2009, de 01 de Abril, é inconstitucional, pois mantém-se violado os princípio do direito à identidade pessoal e estabelecimento da filiação biológica,
II. Assim se mantendo intocada a douta fundamentação do douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de 10/01/2006, publicado no DR, 1.ª Série, de 08/02/2006, que decretou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da anterior versão daquele preceito, apenas diversa quanto ao prazo de propositura da acção de investigação de paternidade,
III. Por se entender que a propositura da acção de investigação de paternidade não pode estar subordinada a qualquer prazo, designadamente, de caducidade,
IV. Pois de outro modo seriam violadas as disposições conjugadas dos Artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa,
V. O que se mantém mesmo com a actual versão do citado n.º 1 do Artigo 1817.º do C.Civil,
VI. Tal como, aliás, foi reforçado com o recente Acórdão, com força obrigatória geral, do Tribunal Constitucional n.º 225/2018, de 24/04/2018, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 87, de 07/05/2018, no qual se reforça aquele entendimento, agora a propósito da procriação medicamente assistida, pois há interesses éticos, morais e sociais que não se compadecem com violações aos citados direitos fundamentais, em que avultam o direito à identidade pessoal e ao estabelecimento da filiação biológica,
VII. Pois a segurança jurídica e a estabilidade das relações jurídicas têm de ceder perante (mesmo que por mera hipótese) a possibilidade (só por si chocante) da ocorrência, por exemplo, de relacionamentos incestuosos;
VIII. Mesmo que assim não se entenda, acresce que a norma transitória do Artigo 3.º do citado DL 14/2009, de 01 de Abril (na qual se estabelece a aplicação às acções pendentes à data da sua entrada em vigor da nova redacção do n.º 1 do Artigo 1817.º do C.Civil) é igualmente inconstitucional, como vem sendo, aliás, entendido pelo Tribunal Constitucional,
IX. O que tem incidência na presente acção, pois foi proposta em 21/05/2008, tendo o citado DL entrado em vigor em 02/04/2009,
X. Porquanto, a aplicação retroactiva da nova redacção do n.º 1 do Artigo 1817.º do C.Civil ofende o princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança legítima ínsitos no princípio do Estado de Direito Democrático emergente do Artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, o disposto no n.º 3 do Artigo 18.º e no Artigo 20.º (tutela da segurança jurídica) da Constituição da República Portuguesa,
XI. Pois à data da propositura da presente acção, por força do citado Acórdão, com força obrigatória geral, do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de 10/01/2006, vigorava o entendimento de que a propositura das acções de investigação de paternidade não estava sujeita a qualquer prazo, podendo ser propostas a qualquer tempo;
XII. Aliás, após a prolação daquele douto Acórdão, foram propostas inúmeras acções de investigação de paternidade tendo como autores, inclusivamente, sexagenários, que foram julgadas, com definitivo estabelecimento da filiação biológica, antes da entrada em vigor do DL 14/2009;
XIII. Sabendo-se que os processos judiciais não se desenvolvem em tempo idêntico, a aplicação imediata daquele Diploma às acções pendentes à data da sua entrada em vigor tornaria o reconhecimento dos direitos e a tutela judicial dependente, em grande medida, da sorte, tratando-se de maneira diferente pessoas iguais,
XIV. O que violaria, inclusivamente, o princípio/direito fundamental da igualdade consagrado no Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
XV. Salvo sempre o devido respeito, a Douta Decisão recorrida viola todos aqueles princípios e preceitos constitucionais,
XVI. O que, como se sabe, e além do mais, é de conhecimento oficioso.
Os RR. vieram responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão proferida.
II. Questões a decidir
Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C.- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da inconstitucionalidade do art.º 1817.º n.º 1 do C.Civil ao estabelecer um prazo de 10 anos a contar da maioridade do investigante para a propositura da acção de investigação de maternidade;
- da inconstitucionalidade da norma transitória que constitui o art.º 3.º do Decreto Lei 14/2009 ao determinar a aplicação daquela norma às acções pendentes.
III. Fundamentos de Facto
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são aqueles que decorrem do relatório elaborado, realçando-se para o que interessa à decisão das questões colocadas, que:
- a Autora nasceu em 25.05.1956 não constando do assento de nascimento a sua paternidade e é filha de E… – assento de nascimento junto aos autos a fls. 24;
- a presente acção foi instaurada em 20.05.2008.
IV. Razões de Direito
- da inconstitucionalidade do art.º 1817.º n.º 1 do C.Civil ao estabelecer um prazo de 10 anos a contar da maioridade do investigante para a propositura da acção de investigação de maternidade
Entende a Recorrente que o art.º 1817.º n.º 1 do C.Civil na sua actual redacção é inconstitucional, violando o direito à identidade pessoal e ao estabelecimento da filiação biológica, pretendendo que a acção de investigação de paternidade não pode estar sujeita a qualquer prazo, sob pena de violação dos art.º 16.º n.º 1, 36.º n.º 1 e 18.º n.º 2 da CRP.
A decisão recorrida, referindo acolher o que vem sendo a jurisprudência maioritária do tribunal constitucional, considerou que há outros direitos envolvidos e dignos de tutela que justificam a compressão legal do prazo para o exercício do direito, sendo razoável o prazo de 10 anos estabelecido em tal norma, concluindo assim pela caducidade da acção por já ter decorrido tal prazo.
O art.º 1817.º n.º 1 do C.Civil que se reporta ao prazo para a propositura da acção de investigação de maternidade, aplicável à investigação da paternidade por remissão do art.º 1873.º C.Civil, estabelece agora, na redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2009 de 1 de Abril, que a acção só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
A discussão que tem vindo a fazer-se a respeito da constitucionalidade do estabelecimento de um prazo para a propositura da acção de investigação de maternidade ou paternidade pretende dar resposta à questão de saber se tal é suficiente para garantir aos filhos a tutela do seu direito à identidade e à história pessoal a que alude o art.º 26.º n.º 1, da CRP, bem como o seu direito a constituir família expresso no art.º 36.º n.º 1 e de estabelecer vínculos de filiação.
Será que pode admitir-se que o legislador estabeleça em lei ordinária um prazo limite para a propositura destas acções?
E em caso de resposta afirmativa, qual é o prazo razoável?
A resposta a estas questões não se tem revelado nada pacífica, pelo contrário, têm sido contraditórias as posições que têm vindo a ser manifestadas quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, seja a jurisprudência dos Tribunais comuns, seja a do Tribunal Constitucional.
Vale a pena olhar, ainda que sinteticamente, para o que tem sido a evolução quer legislativa, quer das posições que no nosso passado recente têm vindo a ser sufragadas sobre tal questão.
A redacção inicial do então art.º 1854.º do C.Civil de 1966, mantida quando da reforma do Código Civil de 1977, estabelecia que a acção de investigação da maternidade ou paternidade só podia ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
De acordo com o que nos dizem Pires de Lima e Antunes Varela, in. C.Civil anotado, Vol. V, pág. 82 ss., o estabelecimento do prazo em questão procurou afastar que a determinação da paternidade pudesse tornar-se num instrumento de caça à herança, tratando-se de uma questão que tem vantagem que se decida num tempo socialmente útil.
O Tribunal Constitucional veio no seu Acórdão n.º 23/2006 de 10 de Janeiro, a declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do art.º 1871.º n.º 1 do C.Civil, “na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos arts. 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.”
À data da propositura da presente acção, em 20 de Maio de 2008, já havia por isso sido proferido o referido acórdão do Tribunal Constitucional que veio declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do art.º 1871.º n.º 1 C.Civil ao estabelecer o prazo de caducidade de dois anos para a propositura da acção de investigação da maternidade e paternidade, com fundamento na violação dos mencionados preceitos constitucionais.
O legislador veio posteriormente alterar a redacção do referido art.º 1871.º n.º 1 do C.Civil, com a Lei 14/2009 de 1 de Abril, que entrou em vigor a 2 de Abril de 2010, prevendo agora que tal acção possa ser intentada durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, assim alargando o prazo de dois anos anteriormente previsto, para um novo prazo de dez anos. Esta alteração legislativa teve lugar na pendência da presente acção.
Não obstante tal ampliação do prazo para a propositura das acções de investigação de maternidade e paternidade, a polémica à volta do estabelecimento de um prazo limite para a instauração destas acções não acabou, continuando o Tribunal Constitucional a ser por diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da aludida norma, o que veio a fazer, designadamente no Acórdão que proferiu no proc. n.º 638/10 de 22/05/2012 em que decidiu: “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.”
Realça-se com interesse para esta questão o Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional proferido no proc. 401/2011 que se pronuncia no mesmo sentido de não julgar inconstitucional aquela norma, ali se referindo: “O prazo de 10 anos após a maioridade ou emancipação, consagrado no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, revela-se, pois, como suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma acção de investigação da paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada. Por estas razões cumpre concluir que a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.”.
Regista-se, no entanto, que esta decisão do plenário do Tribunal Constitucional esteve longe de ser consensual, tendo vindo a ser tomada por sete votos a favor e cinco contra, o que é revelador da manutenção da controvérsia e divergência de entendimentos sobre esta questão.
A doutrina que se pronuncia sobre esta situação apresenta-se como mais consensual do que a jurisprudência, no sentido de defender a imprescritibilidade do direito de investigar a maternidade e a paternidade. Vale a pena chamar a atenção para a evolução da posição do Prof. Guilherme Oliveira que é hoje no sentido da inconstitucionalidade da norma em questão e que a respeito das razões da inversão do seu entendimento ele próprio refere in. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforme de 1977, Vol. I, Estudo a pág. 50 ss.: “Voltando hoje ao assunto, penso que alguns dados mudaram. Nesta balança em que se reúnem os argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso. Desde logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero; e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica [Se não fosse esta tendência não se teria notado o movimento no sentido de acabar com o segredo acerca da identidade dos progenitores biológicos na adopção e na inseminação com dador]. Nestas condições, o “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal” ganharam uma dimensão nova que não pode ser desvalorizada. “ Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos arts. 1817.° e 1873° CCiv (…).”
Igualmente no sentido da imprescritibilidade do direito a propor a acção de investigação da maternidade e paternidade, defendendo que continua a ser inconstitucional o art.º 1871.º n.º 1 do C.Civil na sua actual redacção, não obstante o alargamento para dez anos após a maioridade ou emancipação do prazo para a propositura da acção, entendendo que uma configuração constitucional exige que o estatuto pessoal do filho possa ser definido a todo o tempo, pronunciaram-se, entre outros Jorge Duarte Pinheiro in. O Direito da Família Contemporâneo, pág. 140 e Luís Menezes Leitão, in. ROA, ano 73, Vol. I, pág. 396 ss.
Também no Supremo Tribunal de Justiça se verificaram entendimentos diferente, ora se pronunciando este tribunal no sentido de não ser inconstitucional a norma em causa na sua nova redacção, do que é apenas exemplo o seu Acórdão de 09/04/2013 supra mencionado que defende aquele entendimento “por o prazo de dez anos nela fixado não ser limitador do exercício da acção de investigação da paternidade”, ora sufragando os Acórdãos mais recentes o entendimento contrário, do que encontramos também exemplo no Acórdão de 06/11/2018 no proc. 1885/16.4T8MTR.E1.S2 in. www.dgsi.pt que nos diz: “A segurança jurídica usualmente invocada como fundamento da imprescritibilidade do direito mencionado em II apenas tem pleno sentido no plano patrimonial, desfrutando o direito a conhecer o ascendente biológico de uma valoração qualitativamente superior. A crescente relevância da prova por métodos científicos (mormente por testes de ADN) nas acções de investigação da paternidade faz desvanecer a importância da argumentação atinente ao riso de envelhecimento da prova, não sendo, por outro lado aceitável que a protecção da segurança patrimonial de outros filhos do pretenso progenitor exclua o direito eminentemente pessoal mencionado em II.
Mas não é só a jurisprudência dos Tribunais comuns que tem vindo a trilhar um novo caminho em sentido contrário ao inicialmente maioritário, essa tendência verifica-se também no Tribunal Constitucional, chamando-se a atenção para o recente Acórdão do Tribunal Constitucional de 4 de Outubro de 2018 no proc. 488/2018, que embora sem força obrigatória geral, decide pela inconstitucionalidade da norma em causa: “O TC - invertendo a jurisprudência firmada no acórdão n.º 401/2011, tirado e Plenário - decide julgar inconstitucional a norma do art. 1817º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade, por força do art. 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.”
A respeito dos fundamentos que sustentam cada um dos entendimentos contrários, diz-nos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/04/2013 no proc. 187/09.7TBPFR.P1.S1 in. www.dgsi.pt “A questão da sujeição de tais acções a prazo de caducidade envolvia a ponderação de direitos conflituantes. Por um lado, o direito do investigante a conhecer as suas raízes, a sua filiação biológica, a sua identidade pessoal, o que tem a ver com a dignidade da pessoa humana – arts. 1º, nº1, e 26º, nº1, da CR. Esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível. Por outro lado, o direito do investigado à sua reserva da intimidade da vida privada – art. 26º, nº1, da C.R. – entendendo-se que, para além de certo prazo considerado razoável, a estabilidade das suas relações pessoais e familiares e o seu passado não devem ser objecto de devassa, para além do facto de, a ser possível a investigação a todo o tempo, tal poderia dar azo a actuações oportunistas – “a caça à fortuna” – sabendo-se serem de êxito fácil tais acções de investigação, sobretudo, quando baseadas na falível prova testemunhal. Esta protecção que o prazo de caducidade conferia, passou a ser contestada quando, confrontados tais interesses e direitos antagónicos, se passou a considerar prevalecente o direito de investigação, tanto mais que a possibilidade da paternidade ser determinada através de exame de ADN frustra, cerce, a tentativa de “caça à fortuna” do ponto em que permite apurar com elevadíssimo grau de probabilidade, senão de certeza, se o investigado foi ou não o progenitor do investigante.”
O problema está então em saber, em face dos direitos conflituantes em presença, qual deles deve prevalecer: de um lado o direito à identidade pessoal e o direito a constituir família, associados ao princípio da dignidade da pessoa humana; do outro lado, o direito à privacidade e reserva da vida privada e razões de segurança jurídica.
Não pode deixar de levar-se em consideração uma tendência que se descortina na jurisprudência, que vai no sentido da inversão da posição que até há pouco tempo havia sido maioritária, ou seja, no sentido de entender que o estabelecimento de um prazo de caducidade neste tipo de acções configura uma restrição desproporcionada a direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.
Afigura-se útil para melhor esclarecimento, transcrever alguns excertos do mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional de 4 de Outubro de 2018, em fundamentação da decisão proferida: “A questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil tem sido analisada através de um princípio de harmonização ou concordância prática de bens em conflito – direito à identidade pessoal e ao estabelecimento da paternidade do investigante versus o direito à privacidade e à intimidade da vida familiar do investigado e da sua família, bem como a segurança jurídica destes (artigo 2.º da CRP) – pelo que o tratamento jurídico-constitucional deste conflito entre bens jurídicos faz-se de acordo com o método da ponderação, à luz do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), e está sujeito a evolução, por força do aprofundamento da consciência social e da valorização crescente do direito à identidade genética e pessoal. A defesa da consagração de prazos de caducidade das ações de investigação de paternidade assentou, durante anos, em razões ligadas à segurança jurídica, ao perigo de perturbação da prova dos vínculos que a possibilidade de intentar uma ação tardia potenciava e à necessidade de paralisar pretensões puramente egoísticas, por exemplo, a propositura de uma ação no final da vida do pretenso progenitor ou mesmo depois da morte deste apenas para “caçar fortuna”. Numa primeira fase, o Tribunal Constitucional, em relação aos prazos fixados na norma do artigo 1817.º, na redação do Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de novembro, decidiu sempre no sentido da compatibilidade destas normas com os princípios constitucionais. Contudo, os avanços científicos e o aparecimento de testes de ADN com uma fiabilidade próxima da certeza – probabilidades bioestatísticas superiores a 99,5% - fizeram desaparecer o receio do envelhecimento e aleatoridade da prova. Por outro lado, o surgimento de novos valores ligados ao conhecimento das origens, no âmbito da filiação, diminuiu o peso dos interesses do pretenso pai à segurança jurídica, a necessidade de prevenção da “caça às fortunas”, a paz da família conjugal do investigado e a reserva da vida privada, que começaram a ser olhados como interesses menores face ao superior interesse do filho em conhecer e ver reconhecida juridicamente as origens da sua existência. (…).
Os argumentos tradicionalmente aduzidos para defender a consagração de prazos de caducidade do direito de investigar a maternidade e a paternidade têm sido considerados anacrónicos, perante a evolução das conceções sociais e jurídicas e o avanço da ciência, entendendo a doutrina que esta positivação de um prazo de dez anos, após a maioridade ou emancipação, consiste numa restrição injustificada e desproporcionada ao direito fundamental ao conhecimento das origens genéticas, e portanto, constitucionalmente inadmissível. (…)
19. A fixação de um prazo para interposição da ação de reconhecimento judicial da paternidade faz com que o esgotamento desse prazo seja um facto extintivo do direito de propor a ação. O prazo de caducidade restringe os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família do investigante, bem como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade deste. Esta restrição não constitui um meio adequado, necessário e proporcional de respeitar os direitos do investigado, violando, por isso, a proibição de intervenção excessiva nos direitos fundamentais dos autores da ação. A natureza pessoalíssima dos direitos dos filhos, que decorrem da intimidade mais profunda do ser humano e da sua necessidade afetiva e social mais definidora da sua humanidade e personalidade, faz com que, na operação de balanceamento entre posições contrapostas, os direitos dos filhos sejam, na hierarquia axiológica da Constituição em que a dignidade da pessoa humana ocupa o topo (artigo 1.º da CRP), de superior valia em relação aos direitos do investigado. A privacidade do investigado (o direito de não ver exposta a sua esfera sexual e íntima) e da sua família, bem como a segurança jurídica patrimonial dos herdeiros daquele, não podem sobrepor-se aos direitos pessoalíssimos e inalienáveis do investigante, em termos de provocar a sua extinção pelo decurso do tempo. Por outro lado, não pode sequer afirmar-se que existe um direito do pretenso pai a não se vincular juridicamente a uma paternidade biologicamente comprovável, num contexto jurídico em que o progenitor tem, pelo contrário, o dever jurídico (e não apenas moral ou de consciência) de perfilhar (cf. Guilherme de Oliveira, «Caducidade das ações de investigação ou caducidade do dever de perfilhar, a pretexto do Acórdão n.º 401/2011 do Tribunal Constitucional», Lex Familiae, 2012, n.ºs 17 e 18, p. 113). O princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de não ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas, pode ser usado como critério de interpretação e de ponderação nos conflitos entre direitos (cf. Benedita Mac Crorie, «O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição da República Portuguesa», in Afonso Vaz et al. (Coord.), Jornada nos Quarenta Anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e Evolução, Universidade Católica Editora – Porto, 2017, pp. 104 e ss., p. 108. Em consequência, o conflito de direitos em causa no presente processo deve ser analisado e as normas constitucionais interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), não podendo deixar de se entender, num Estado de Direito, cujo centro é a pessoa humana, que os direitos de natureza pessoal têm preponderância sobre os direitos patrimoniais, havendo entre ambas as categorias de direitos e de interesses uma diferença qualitativa que deve ser decisiva no juízo de ponderação de interesses, como também se assinalou no Acórdão n.º 23/2006, onde se afirmou «(…) que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima, constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor». O direito de intentar a ação de investigação da paternidade é um direito de personalidade fundamental, e os direitos de personalidade beneficiam de regimes jurídicos especiais que decorrem de normas materialmente constitucionais, que, apesar da sua colocação sistemática em diplomas de direito ordinário, consagram direitos fundamentais extraconstitucionais, não formalmente tipificados no texto da Constituição, mas admitidos pela cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da CRP. Estas dimensões dos direitos fundamentais contribuem, assim, para salientar a primazia dos direitos de personalidade sobre os direitos patrimoniais, enriquecendo e densificando o conteúdo aberto das normas constitucionais invocadas como parâmetro da apreciação da constitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, atribuindo aos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade um maior peso quando em confronto com outros bens jurídicos como a segurança jurídica patrimonial dos outros herdeiros do investigado ou a paz familiar, o sossego e a privacidade deste e da sua família. A proteção da vida privada do pretenso pai não pode ser obtida à custa do direito do filho a investigar e a fazer reconhecer a filiação, tanto mais que a exposição da privacidade daquele no processo resulta do seu contributo para a procriação e da sua conduta anterior omissiva: se não tinha razões para duvidar da paternidade, devia tê-la assumido; se tinha dúvidas legítimas, devia ter colaborado na averiguação da verdade biológica. Quanto aos casos em que a ação é instaurada depois do falecimento do pretenso pai, não tendo este, em vida, conhecimento ou “suspeita” do nascimento, deve entender-se que não gozam, ainda assim, as posições jurídicas subjetivas deste, de merecimento de tutela suficientemente forte para contrabalançar os direitos do investigante, tanto mais que a estes direitos fundamentais correspondem também interesses de ordem pública. Como afirma Joaquim de Sousa Ribeiro («A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade». 2018, ob. cit., p. 216): «(…) não vemos como é que a medida do tempo possa ser aqui medida da tutela e fator único de uma alteração qualitativa no sentido da proteção conferida pelo ordenamento, deslocando-a da esfera do filho para a esfera do suposto pai».
20. À luz das normas constitucionais que consagram os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da sua personalidade, ao conhecimento da paternidade/maternidade, bem como ao estabelecimento das correspondentes relações de filiação (artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.ºs 1 e 4, ambos da Constituição), conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para propor uma ação de investigação da paternidade (e da maternidade). A limitação temporal do direito a interpor uma ação de investigação da paternidade, consagrada no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, não pode ser considerada constitucionalmente admissível, quer no plano da sua justificação, quer no plano dos seus efeitos, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP. É que, por comparação com a tutela que recebem no ordenamento jurídico os credores de direitos patrimoniais (para cujo exercício judicial a lei fixa um prazo geral de prescrição de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil), a ponderação de valores expressa na solução legal consagrada no artigo 1817.º, n.º 1 constitui apreciação “manifestamente incorreta”, na expressão do Acórdão n.º 23/2006, dos interesses ou valores em presença, em particular, quanto à intensidade e à natureza das consequências que esse regime produz para o investigante e para o investigado: o investigante, com a perda, aos vinte e oito anos de idade (ou qualquer outro limite temporal), do direito a saber quem é o pai, sofre prejuízos não patrimoniais, que afetam o cerne da sua personalidade, liberdade, estado pessoal e identidade, claramente desproporcionados em relação às desvantagens eventualmente resultantes, para o investigado e sua família, da ação de investigação e dos seus efeitos. Os direitos pessoais do investigado não ganham com o decurso do tempo uma força tão acrescida que justifique a sua prevalência sobre os direitos do filho e que o pretenso pai ganhe o direito à não sujeição ao reconhecimento da paternidade, assim se subtraindo ao vínculo familiar correspondente. Inversamente, os direitos do filho não perdem, com a passagem do tempo, intensidade valorativa nem diminui o seu grau de merecimento de tutela. A norma que estipula um prazo de caducidade constitui, assim, uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP, e do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Destas normas constitucionais, interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, decorre que as ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício destes direitos. Fica assim prejudicado o conhecimento da questão da constitucionalidade da concreta duração do prazo fixado no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil.”
Não estando em causa que estamos perante valores e direitos constitucionalmente protegidos que de alguma forma entram em conflito, consideramos também, na linha do entendimento maioritário agora defendido pelo Tribunal Constitucional, que o direito fundamental à identidade pessoal e a constituir família, que passa pelo estabelecimento da maternidade ou paternidade, se assume como um direito preponderante que deve impor-se à defesa da intimidade da vida privada e segurança jurídica.
Como é pacífico, a limitação de um direito constitucional tem de obedecer a critérios de proporcionalidade, necessidade e adequação, afigurando-se que a imposição de uma limitação temporal à interposição de uma acção de maternidade ou paternidade vem restringir de forma desproporcionada o direito fundamental à identidade pessoal, um direito pessoal da maior relevância, que não deve ser postergado com a defesa da segurança jurídica do pretenso pai e herdeiros com reflexo apenas ou principalmente ao nível patrimonial, que não pode deixar de qualificar-se como um direito qualitativamente inferior àquele.
Somos também sensíveis ao argumento que invoca os avanços da ciência e da medicina e o seu papel absolutamente determinante hoje em dia enquanto instrumento probatório seguro de averiguação da maternidade e da paternidade biológica, que permite ultrapassar uma das razões avançadas em defesa do estabelecimento de um prazo para a propositura da acção, que é precisamente o decurso do tempo com o envelhecimento da prova e da “memória” de quem pode testemunhar factos há muito ocorridos, bem como a sua falta de fiabilidade, permitindo os testes de ADN que hoje se realizam uma grande segurança no esclarecimento de situações mais dúbias e a descoberta da verdade.
Finalmente, consideramos ainda que não pode fechar-se os olhos a toda uma evolução doutrinária e jurisprudencial que tem vindo a ocorrer e que espelha o sentimento social, designadamente ao entendimento consagrado na jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, entidade a quem compete especificamente pronunciar-se em matéria de natureza jurídico-constitucional, tendo proferido decisão invertendo o entendimento seguido até então e que embora não tenha força obrigatória geral, não pode a nosso ver deixar de constituir uma orientação para outras decisões judiciais, a bem da segurança e certeza jurídica.
Desta forma, acompanhamos a conclusão a que chegou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2017 já citado, que refere na sua parte final: “Efetuada a análise crítica de tais argumentos, concluímos que, no horizonte de consolidação do princípio da verdade biológica como "estruturante de todo o regime legal", de reforço da tutela do direito à historicidade pessoal — enquanto direito à investigação e estabelecimento do respetivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade) e dos concomitantes vínculos jurídicos -, uma vez que o direito a conhecer tal ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e o direito do investigante a estabelecer os concomitantes vínculos traduz uma dimensão do direito a constituir família previsto no artigo 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, se verifica a inconstitucionalidade material do estabelecimento do prazo de caducidade previsto nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, por tal prazo limitador consubstanciar uma restrição excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artigo 70º do Código Civil), o que se declara. E, sendo a norma constante do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade da A., enquanto filha, propor a presente ação de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, inconstitucional, não ocorre caducidade do direito.”
Pelas razões expostas, conclui-se pela inconstitucionalidade material do art.º 1871.º n.º 1 do C.Civil na medida em que impõe um prazo limite para a propositura da acção de investigação de maternidade e de paternidade (por remissão do art.º 1873.º) o que, impedindo a averiguação da verdade biológica, contraria de forma desproporcional o direito à identidade pessoal previsto no art.º 26.º n.º 1 da CRP e o direito a constituir família estabelecido no art.º 36.º n.º 1, do que decorre não poder considerar-se a caducidade do direito da A. afirmado na decisão recorrida, que em conformidade se revoga.
- da inconstitucionalidade da norma transitória que constitui o art.º 3.º do Decreto Lei 14/2009 ao determinar a aplicação daquela norma às acções pendentes
A apreciação desta segunda questão suscitada pela Recorrente fica prejudicada com o entendimento expresso a propósito da anterior questão, não havendo por isso que conhecer da mesma, nos termos do disposto no art.º 608.º n.º 2 do C.P.C.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se o presente recurso interposto pela A. procedente, revogando-se a decisão recorrida que julgou caducado o seu direito a propor a presente acção, determinando-se em consequência o prosseguimento dos autos.
Custas pelos Recorridos.
Notifique.
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Porto, 24 de Janeiro de 2019
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva