Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0110502
Nº Convencional: JTRP00032049
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
CONTA BLOQUEADA
CHEQUE POST-DATADO
DESCRIMINALIZAÇÃO
BURLA
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
Nº do Documento: RP200110100110502
Data do Acordão: 10/10/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J PENAFIEL 2J
Processo no Tribunal Recorrido: 80/98
Data Dec. Recorrida: 05/10/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO. REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: DL 454/91 DE 1991/12/28 ART11 N1 A.
DL 454/91 DE 1991/12/28 ART11 N3 NA REDACÇÃO DO DL 316/97 DE 1997/11/19.
CP95 ART2 N2 ART218 N1.
Sumário: Provado que o arguido em 1996 sacou um cheque para pagamento de mercadorias, de valor superior a 1000 contos, que, apresentado a pagamento, foi devolvido com a declaração de "conta bloqueada" pelo facto de o arguido ter solicitado ao banco sacado, em data anterior à emissão do cheque, o cancelamento da conta, bem sabendo que assim causava um prejuízo patrimonial à ofendida, pretendo com isso obter um benefício ilegítimo, mostra-se verificado o crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punido no artigo 11 n.1 do Decreto-Lei n.454/91, de 28 de Dezembro (versão originária).
Tratando-se, porém, de cheque post-datado, tal conduta ficou descriminalizada face ao disposto no Decreto-Lei n.316/97, de 19 de Novembro.
Tal conduta não integra o crime de burla. A entender-se o contrário, o eventual crime de burla estava em concurso aparente com o de emissão de cheque sem provisão e por isso, atendendo às regras da especialidade, apenas prevalecia este último crime, pelo que não faz sentido dizer-se que há crime de burla quando falta um dos requisitos do crime de emissão de cheque sem provisão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de processo comum singular n.º .../..., de ... Juízo do tribunal de Penafiel, mediante acusação do M.º P.º, foi o arguido AMADEU ....., casado, comerciante, nascido a 7/02/49, filho de A...... e de Carolina ....., natural de ..... e residente na Rua ....., julgado pela prática, em autoria material, de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 218º, n.º 1 do Código Penal.
A final foi condenado na pena de 10 (dez) meses de prisão, que foi declarada suspensa na sua execução pelo período de 18 meses.
Inconformado, interpôs recurso o arguido, tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte:
1. Os factos pelos quais o arguido veio acusado e condenado integram o crime de emissão de cheque sem provisão e não o crime de burla qualificada, pois enquadram-se integralmente nos elementos daquele tipo de ilícito, conforme a orientação do Supremo Tribunal de Justiça descrita no Acórdão n.º 13/97 de 18/06 (in DR, 1 série, pp. 2939), bem como a orientação do legislador de 1997 que pelo DL 316/97 de 19/11, no seu art. 11º, veio expressamente prever a conduta típica do encerramento da conta, anterior ou posterior à emissão do cheque, como um dos elementos objectivos do crime de emissão de cheque sem provisão.
2. O crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. primeiro pelo DL 454/91 de 28/12 e depois pelo DL 316/97 de 19/11, é especial relativamente ao crime de burla p. e p. pelo art. 218º do Código Penal, exigindo-se assim a sua aplicação preferencial.
3. Além disso, o DL 316/97 de 19/11 descriminalizou as condutas de emissão de cheques sem provisão relativamente a cheques pós-datados. Tal é o caso dos presentes autos. Nestes termos e por aplicação do disposto no art. 2º n.º 2 e 4 do Código Penal e 29º da CRP, deveria o arguido ter sido absolvido.
4. Mesmo que assim não se entendesse, e sem conceder, o arguido não deveria ter sido acusado e condenado pelo crime de burla qualificada, mas, quando muito, pelo crime de burla simples, uma vez que proibida a integração analógica de lacunas em Direito Penal, até à entrada em vigor da Lei n.º 65/98, não era possível a qualificação dos crimes patrimoniais em razão do valor, devendo por isso ser sempre considerados como crimes simples, o que não aconteceu no caso dos presentes autos.
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Respondeu o M.º P.º com as seguintes conclusões:
1. Tendo-se apurado, entre outros factos, que ao abrir mão do cheque dos autos, no valor de 1.157.827$00, sabia o arguido que o mesmo não iria ser pago e que os empregados da firma ofendida entregaram ao arguido a mercadoria por ele adquirida acreditando que o cheque era bom para pagamento e seria descontado logo que apresentado na agência bancária, tal consubstancia erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados pelo arguido, integrador do crime de burla qualificada, p. e p. pelo art.º 218 n.º 1 do C. Penal, pelo qual se encontrava acusado.
2. Tal afasta a punição pelo crime de emissão de cheque sem provisão, não obstante tratar-se de cheque pós datado e o arguido ter ordenado o bloqueamento da sua conta bancária em data anterior à emissão do cheque.
3. Até à entrada em vigor da Lei n.º 65/98 , de 2 de Setembro, sempre foi possível a qualificação dos crimes patrimoniais em razão do valor uma vez que a referência a “unidade de conta” sempre se manteve na definição do art.º 202º do C. Penal e o D.L. 212/89 a manteve, também para efeitos substantivos, nos art.ºs 5º e 6º n.º 1 e não obstante o art.º 8º al. b) deste diploma ter revogado a al. h) do n.º 1 do art.º 1º do CPP.
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Nesta Relação, o Ex.mo PGA, louvando-se também nos argumentos do M.º P.º na 1ª Instância, entende que o recurso não merece provimento.
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Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, e efectuada a audiência de julgamento, cumpre apreciar e decidir.
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E a única questão é a de saber que tipo de ilícito comete aquele que emite um cheque, pós datado, para pagamento de mercadorias, quando a conta sacada já havia sido bloqueada por sua ordem.
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A sentença recorrida considerou provados os seguinte factos:
1. No dia 09/02/96 o arguido deslocou-se ás instalações da firma «C....., L.da», sitas em ....., nesta comarca, onde adquiriu diversa mercadoria, devidamente descriminada na factura de fls. 6, no valor global de 1.157.827$00;
2. Para pagamento da referida mercadoria, o arguido, de forma voluntária, preencheu, assinou e entregou, cerca de 15 dias antes da data constante como de emissão, à firma «C....., L.da» o cheque n.º ........., sobre a Agência de Paredes do Banco A, no montante de 1.157.827$00;
3. Acreditando que o cheque era bom para pagamento e seria descontado logo que apresentado na competente Agência bancária, os empregados da firma ofendida entregaram ao arguido a mercadoria por ele adquirida;
4. Apresentado a pagamento na Agência desta cidade do Banco B, foi o referido cheque devolvido em 12/2/96 com a declaração «conta bloqueada»;
5. Tal declaração ficou a dever-se ao facto de o arguido em 2/1/96 ter solicitado à Agência sacada o cancelamento da respectiva conta;
6. Ao abrir mão de tal cheque sabia o arguido que o mesmo não iria ser pago, já que a conta se encontrava bloqueada e que assim causava prejuízo patrimonial à firma ofendida, como causou, no montante titulado pelo cheque, ainda não pago até hoje;
7. Quis obter um beneficio ilegítimo, tendo perfeito conhecimento que o seu comportamento era proibido por lei;
8. O arguido é vendedor, auferindo cerca de Esc.70/80 contos/mês;
9. É casado e tem 1 filho menor;
10. Tem a 4ª classe;
11. Não são conhecidos antecedentes criminais nos autos.
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E considerou não provado quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, que estejam em oposição ou tenham ficado prejudicados pelos que ficaram provados.
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A Sr.ª Juíza a quo considerou que a matéria de facto apurada era subsumível à previsão do art.º 218º, n.º 1 do C. Penal, isto é, que o arguido tinha cometido um crime de burla.
Por seu lado, o arguido entende que a conduta é subsumível ao disposto no n.º 1 al. a) do DL 454/91, de 28 de Dezembro.
A questão foi objecto de controvérsia jurisprudencial, resolvida pelo Ac. do STJ de 8/5/97, para fixação de jurisprudência, in DR, I série, de 18/6/97.
Nele se decidiu:
“A declaração «devolvido por conta cancelada», aposta no verso do cheque pela entidade bancária sacada, equivale, para efeitos penais, à verificação da recusa de pagamento por falta de provisão, pelo que deve haver-se por preenchida esta condição objectiva de punibilidade do crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelo art.º 11º, n.º 1, alínea a) do Decreto Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro”.
Se é certo que este acórdão não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, menos certo não é que estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão – n.º 3 do art.º 445º do CPP -, sendo ainda certo que o M.º P.º recorre obrigatoriamente de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso sempre admissível – n.º 1 do art.º 446º do CPP.
Os argumentos em abono da tese do acórdão estão nele plasmados e, por isso, dispensamo-nos de aqui os repetir.
Há quem entenda, porém, que a conduta integrava a prática de um crime de burla porque se trata de “um cheque falso, destituído da credibilidade que qualquer título de crédito possui, utilizado para enganar outrem” – voto de vencido do Sr. Cons. Manuel de Andrade Saraiva.
Foi esta a tese seguida na decisão recorrida, que vai de encontro ao argumentos do M.º P.º.
Com reservas, inclinamo-nos para a tese defendida no acórdão citado, não sem que se acrescente que, ao fazê-lo, teremos de entender que o eventual crime de burla está em concurso aparente com este e que, por isso, e atendendo às regras da especialidade, apenas prevalece o crime de emissão de cheque sem provisão pelo que não faz sentido dizer-se que há crime de burla quando falta um dos requisitos do crime de emissão de cheque sem provisão.
E ainda mais somos levado a tal quando o legislador, ao alterar o DL 454/91, de 28 de Dezembro, tomou expresso partido na querela jurisprudencial, ao consagrar legislativamente a posição do citado Acórdão.
Com efeito, lê-se no preâmbulo do DL 316/97, de 19 de Novembro:
“Ampliado também, ao abranger na incriminação a falta de paga-mento por irregularidade do saque, naturalmente se dolosa, e a criação voluntária pelo sacador ou terceiro de impedimentos ao paga-mento do cheque, quer pelo encerramento da conta, quer pela alteração das condições da sua movimentação mediante o saque de cheques. Procura-se, por esta forma, pôr termo a divergências da jurisprudência e da doutrina relativamente ao âmbito dos impedimentos criados pelo sacador ou terceiro ao pagamento de cheque regularmente emitido e entregue para pagamento, cujo não pagamento não resultava verdadeiramente de falta de provisão na conta, mas de factos de análoga relevância aos já agora previstos no artigo 11º, n.º 1, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro”.
Daí que, na redacção dada ao art.º 11º do DL 454/91 por este diploma expressamente se tenha consignado que é punido como autor de um crime de emissão de cheque sem provisão:
“Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a) ....
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque; ou
c) ....
se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido ....
....”
De todo o exposto se conclui que a conduta do arguido é subsumível à previsão do art.º 11º do DL 454/91, de 28 de Dezembro, na sua redacção primitiva (para o efeito equivalente à actual, segundo a tese que perfilhamos).
E, como tal, deveria punido.
Sucede, porém, que, por vontade expressa do legislador – DL 316/97, citado – quis-se “excluir da tutela penal os denominados cheques de garantia, os pós-datados e todos os que se não destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente”- cfr. exórdio do dito DL.
Por isso é que o n.º 3 do art.º 11º deste diploma legal estatui que “O disposto no n.º 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador”.
Ora, nos termos do n.º 2 do art.º 2º do C. Penal, “O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma nova lei o eliminar do número das infracções; ...”.
Transpondo os princípios para os autos, temos que:
- Ao preencher, assinar e entregar o cheque n.º ........., sacado sobre a Agência de Paredes do Banco A, no montante de 1.157.827$00 à queixosa, para pagamento de mercadorias, o qual foi apresentado a pagamento na Agência desta cidade do Banco B, cerca de 15 dias depois da data da emissão, e devolvido em 12/2/96 com a declaração «conta bloqueada», pelo facto de o arguido em 2/1/96 ter solicitado à Agência sacada o cancelamento da respectiva conta, bem sabendo que o mesmo não iria ser pago, já que a conta se encontrava bloqueada e que assim causava prejuízo patrimonial à firma ofendida, como causou, no montante titulado pelo cheque, ainda não pago até hoje, pretendendo obter um beneficio ilegítimo, tendo perfeito conhecimento que o seu comportamento era proibido por lei, o arguido teria cometido um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo art.º 11º n.º 1 do DL 454/91, de 28 de Dezembro, na sua versão originária, e não um crime de burla, como vinha acusado e pelo qual foi condenado;
- Tal conduta está hoje excluída da tutela penal por força do disposto no n.º 3 do art.º 11º do dito DL 454/91, com a redacção do DL 316/97, de 19 de Novembro, precisamente porque o cheque foi preenchido, assinado e entregue cerca de 15 dias antes da data constante como de emissão;
- Porque assim, e por força do disposto no n.º 2 do art.º 2º do C. Penal, impunha-se a absolvição do arguido.
DECISÃO:
Nestes termos, ao abrigo das disposições legais supra citadas, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, que substituem por acórdão que absolve o arguido da acusação que sobre ele impendia.
Sem tributação.
Porto, 10 de Outubro de 2001
Francisco Marcolino de Jesus
Nazaré de Jesus Lopes Miguel Saraiva
Joaquim Manuel Esteves Marques