Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1170/14.6TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA BACELAR
Descritores: IMPUTAÇÃO GENÉRICA DE FACTOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RP201606151170/14.6TAVFR.P1
Data do Acordão: 06/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1009, FLS.78-92)
Área Temática: .
Sumário: I - Nos crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus tratos, violência doméstica, tráfico de estupefacientes) a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento.
II - Se, em qualquer imputação penal, a alegação factual não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, no crime de violência doméstica a exigência é ainda maior, dada a amplitude do tipo penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1170/14.6TAVFR.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 1170/14.6TAVFR, da Comarca de Aveiro – Santa Maria da Feira – Instância Local – Secção Criminal – J1, o Ministério Público, fazendo uso do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, acusou
B…, divorciado, corticeiro, nascido a 25 de Abril de 1960, em …, Ovar, filho de C… e de D…, residente na Rua …, n.º …, em …, Ovar,
pela prática,
a) de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, n.º 4 e n.º 5 do Código Penal;
b) de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), n.º 2, n.º 4, n.º 5 e n.º 6 do Código Penal.

O Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e no artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, pediu a condenação do Arguido a pagar:
- a E…, a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial, quantia não inferior a € 50 000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação até efetivo e integral pagamento;
- a F…, a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial, quantia não inferior a € 50 000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a notificação até efetivo e integral pagamento.

E…, devidamente identificada nos autos, constitui-se neles Assistente.

Apresentou o Arguido contestação escrita, onde oferece o merecimento dos autos.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada em 11 de novembro de 2015, foi decidido:
«1) Julgo procedente a acusação pública deduzida nos autos contra o arguido e, em consequência, condena-se o arguido B…, como autor material de dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152º, nº1, alíneas a) e d) e n.º 2 do Código Penal, nas penas de respectivamente, três anos e cinco meses de prisão e de dois anos de prisão, sendo que em cúmulo jurídico de tais penas parcelares se condena o arguido na pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, sendo a sua execução suspensa por igual período, sujeitando-se o arguido ao cumprimento das seguintes regras de conduta, cujo cumprimento deverá ser fiscalizado pela equipa do DGRS:
1.º - Submissão do arguido a acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico, de acordo com as prescrições médicas julgadas adequadas ao perfil do arguido e cumprimento das prescrições médicas que forem dadas no âmbito de tais acompanhamentos;
2.º- Submissão do arguido a tratamento de dependência alcoólica de acordo com diagnóstico médico a ser efectuado para tal efeito, devendo o arguido seguir as prescrições médicas que forem dadas nesse âmbito;
3.º - Frequência de programa adequado a ser indicado pela equipa do DGRS e direccionado para a prevenção da Violência Doméstica.
2) Condeno ainda o arguido-demandado a pagar à ofendida E… uma indemnização no montante de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida tal quantia de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar desde a presente data até integral pagamento, absolvendo-o do demais pedido;
3) Condeno ainda o arguido-demandado a pagar ao ofendido F… uma indemnização no montante de €5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida tal quantia de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar desde a presente data até integral pagamento, absolvendo-o do demais pedido;
4) Condeno o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se em 4 U.C. de taxa de justiça nos termos da tabela III a que se refere o artº 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Judiciais, mais sendo o arguido demandado condenado no pagamento das custas cíveis em proporção ao decaimento.»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1.ª O Recorrente foi condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica: um contra a ex-mulher E…, e outro contra o filho menor F….
2.ª Face à factualidade dada como provada, o Recorrente não aceita que tenha cometido algum daqueles crimes.
3.ª Quanto ao crime contra a ex-mulher E…, cujo inconformismo se restringe à matéria de direito, analisando a factualidade dada como provada nos pontos 4 a 11, tal não corresponde a factos concretos, mas antes a imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa.
4.ª Logo, tais imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e do lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado (art.º 32º n.º 1 da CRP), não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, devendo ser tidas por não escritas, como é entendimento jurisprudencial generalizado, nos termos exemplificados e transcritos supra.
5.ª Dando-se por não escritas, face à alteração da matéria de facto verificada, restam como suporte à qualificação jurídica da conduta do Recorrente as situações descritas nos pontos 12, 13, 14 e 16, da matéria de facto dada como provada.
6.ª E, quanto a este último, o ponto 16, a dar-se por provado que o Recorrente puxou os dedos da E… para trás, “com o propósito de os partir”, tal entendimento é meramente conclusivo, sem nenhum suporte factual que possa levar a essa conclusão. Logo, nunca poderia ser dado como provado tal “propósito”.
7.ª E será a factualidade apurada nos pontos 12, 13, 14 e 16 (neste último, considerando o supra ressalvado) suporte bastante parta qualificar a actuação do Recorrente como a de autor de um crime de violência doméstica cometido sobre E…? Entendemos que não, pois, nenhum daqueles factos, cada um por si ou em conjunto, têm “gravidade” suficiente para integrar um crime de violência doméstica.
8.ª Pois, sendo o bem jurídico tutelado por este crime a proteção da pessoa individual e a sua dignidade humana, bem como, a sua saúde física, psíquica e mental, não são todas as ofensas, corporais e/ou outras, que cabem na previsão criminal do referido art.º 152º, do CP, mas apenas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, que traduzam crueldade ou insensibilidade por parte do agente, consubstanciando-se na perpretação de qualquer acto de violência que afecte a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando a sua dignidade enquanto pessoa inserida num contexto conjugal. (a este propósito, veja-se Ac. Rel. Lisboa de 08/11/2014, in Colectânea de Jurisprudência, pág. 330, TomoV/2014, referido supra)
9.ª Assim, os factos descritos nos pontos 12, 13, 14 e 16, da matéria de facto provada, embora não desprovidos de censura, não assumem a gravidade que se exige por forma a poder concluir-se que o recorrente atentou contra a dignidade da ofendida, não sendo, por isso, tais factos aptos a lesar o bem jurídico protegido pelo crime em apreço – a saúde física, psíquica e emocional e a dignidade da pessoa humana.
10.ª Pelo exposto, entende-se que o Recorrente não cometeu o crime em que foi condenado contra E….
11.ª Tendo, por isso, sido violado o comando legal previsto no art.º 152º, do CP, uma vez que a factualidade provada não integra a previsão desta norma. Tal factualidade seria passível de integrar, outrossim, o crime da ofensa à integridade física simples, p. e p. no art.º 143º, do CP, em relação ao qual o crime de violência doméstica se encontra numa relação de especialidade.
12.ª Nessa conformidade, deverá o Recorrente ser absolvido do crime de violência doméstica contra E…, em que foi condenado e, consequentemente, absolvido da indemnização que lhe foi arbitrada, por falta dos pressupostos de que depende a sua procedência.
13.ª Quanto ao crime contra o filho menor F… - cujo inconformismo diz respeito á matéria de facto e matéria de direito - começando pela vertente matéria de direito: mesmo que se aceitasse a matéria de facto dada como provada, tais factos seriam insusceptíveis de integrar a qualificação do crime de violência doméstica, entendendo-se por violado o estatuído no art.º 152º, do CP, por incorrecta integração. Isto porque,
14.ª O descrito na matéria de facto dada como provada nos pontos 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 20, não é susceptível de integrar a qualificação de um crime de violência doméstica sobre o menor F….
15.ª Objectivamente, o F… foi atingido por um pontapé numa ocasião, e sofreu um arranhão na mão, noutra.
16.ª Porém, como já se referiu atrás, não são todas as ofensas corporais que cabem na previsão criminal do art.º 152º, mas apenas aquelas que se revistam de uma certa gravidade e que traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança do agente, e que sejam aptas a lesar o bem jurídico protegido com o crime de violência doméstica – a saúde física, psíquica e emocional e a dignidade da pessoa humana. (como, por exemplo, tão bem resume o citado Ac. Rel. Lisboa, de 08/11/2014, in Colectânea de Jurisprudência, pg. 330, Tomo V/2014)
17.ª Por isso, nenhum dos factos ali descritos e dados como provados são suficientemente graves a, cada um por si ou em conjunto, integrar o crime de violência doméstica.
18.ª Acrescendo que, quanto ao elemento subjectivo deste tipo de crime, exige-se o dolo.
19.ª Ora, como facilmente se alcança, com simples recurso à experiência comum, da dinâmica de cada um dos acontecimentos, nenhuma das ofensas físicas sofreu lhe eram dirigidas, nem foram intencionais. Foram actos reflexos e/ou involuntários.
20.ª Inexistindo, assim, quer o elemento objecto, quer o subjectivo do tipo de crime.
21.ª Existiu ainda errónea interpretação no estatuído no n.º 2, do art.º 152º, do CP, que tem enquadramento apenas enquanto agravante da moldura penal do crime de violência doméstica, sendo que, a qualificante integradora do crime, está reservada ao seu n.º 1.
22.ª Quanto à matéria de facto, se ainda restassem dúvidas relativamente inexistência do dolo, enquanto elemento subjectivo necessário à consumação do crime em apreço, bastaria reparar nas declarações proferidas pelo próprio F…, aquando da prestação do seu depoimento em audiência de julgamento (gravadas no local supra referido).
23.ª É o próprio ofendido F… que refere que “o arranhão foi sem intenção” e que “sofreu o pontapé porque se meteu na frente”, e que o Recorrente lhe disse “não era para ti, desculpa”.
24.ª Perante o afirmado, é inequívoco que a única conclusão que é possível retirar-se, é a de que o recorrente nunca teve intenção de atingir fisicamente o F…, não podendo, por isso, ter existido dolo, necessário à qualificação deste crime.
25.ª Assim, foi violado o comando legal do art.º 152º, do CP, pois a factualidade provada não é susceptível de integrar a previsão desta norma legal. Quando muito a factualidade provada seria passível de integrar um crime de ofensa á integridade física por negligência, p. e p. no art.º 148º, do CP.
26.ª Face ao exposto, sendo inequívoco que o Recorrente não cometeu o crime em que foi condenado contra o menor F…, deverá dele ser absolvido, bem como, e em consequência, da respectiva indemnização arbitrada, por não estarem verificados os pressupostos de que depende a sua procedência.

SEM CONCEDER,
27.ª No tocante ao PEDIDO CÍVEL: A título de danos não patrimoniais o Recorrente foi condenado a pagar a E… a quantia de 10.000,00 €, e a F… a quantia de 5.000,00 €.
28.ª É manifesto o exagero das quantias arbitradas, considerando a factualidade dada como provada, não se percebendo o raciocínio lógico que levou à sua fixação, em clara violação do princípio da equidade, ao qual se recorre.
29.ª Face à sua condição sócio.económica, nunca o Recorrente possuirá tal montante, sendo-lhe tal imposição de cumprimento impossível.

NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e, consequentemente:
a) Ser o Recorrente absolvido do crime de violência doméstica contra E…, com as legais consequências;
b) Ser absolvido do crime de violência doméstica contra F…, com as legais consequências;
Sem conceder,
c) Serem substancialmente reduzidas as indemnizações arbitradas a E… e F….

Assim decidindo farão V. Ex.as
JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Na resposta que, sem conclusões, foi apresentada pelo Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, concluiu-se pela improcedência do recurso.

Respondeu, também, a Assistente, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«A) O Recurso interposto pelo Arguido assenta essencialmente em alegada indefinição temporal e local dos acontecimentos descritos nos pontos 4 a 11 da Douta Sentença, alegando por isso um constrangimento ao seu contraditório;
B) Alega ainda o Arguido que as imputações que lhe são feitas são genéricas e não passíveis de contraditório, por recurso a fórmulas vagas, imprecisas e obscuras;
c) Não restam quaisquer dúvidas que durante a constância do matrimónio existiram agressões físicas e psicológicas do Arguido à Ofendida, bem como aos seus filhos;
d) O alegado constrangimento ao contraditório só surge em sede de Recurso em vista ao afastamento da condenação, pois, desde o início dos autos até ao final da sessão de julgamento jamais o Arguido alegou desconhecimento ou qualquer dificuldade na identificação dos acontecimentos que compunham os factos que lhe eram imputados;
e) Pois, em bom rigor, sempre identificou tais acontecimentos com clareza e precisão, tendo oferecido aos autos a sua versão dos mesmos, não obstante não ter convencido o Douto Tribunal;
f) Quanto à indicação precisa do local dos acontecimentos, tal alegação é despropositada e injustificável, pois, em todos os pontos da matéria de facto dada como provado a Douta Sentença identifica o local dos factos no interior do domicílio do Arguido e Ofendida;
g) Quanto à precisão da indicação temporal dos factos, o mesmo se dirá, pois a Douta Sentença sempre refere a constância do matrimónio, mais, nos pontos 11 a 17 a indicação feita é ainda mais precisa quanto ao lapso temporal;
h) Arguido e Ofendida estiveram casados durante 26 anos, pelo que, a indicação da hora, dia, mês e ano para cada um dos factos jamais seria razoável tendo em conta as regras de experiência comum, bem como, o mais comum “homem médio”;
i) Bem como, o mesmo se dirá para as testemunhas, entenda-se os filhos do ex-casal, que desde pequenos vivenciaram situações de agressividade entre cônjuges, que marcaram o seu crescimento e educação, pelo que, a indicação precisa no tempo de cada um dos factos jamais seria razoável, até porque, no tipo de ilícito inerente a estes autos não é o necessário, conforme se demonstrou na citação supra do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo n.º 1133/13.9PHMTS.P1 e do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no processo n.º 1631/12.1PBBRG.G1;
j) A 23ª alteração ao Código Penal, introduzida pela Lei n.º 59/2007 de 4/7, vem clarificar a desnecessidade de um comportamento reiterado por parte dos Arguidos(as) para com as(os) Ofendidas(os) neste tipo de ilícito criminal, bastando um só comportamento para configurar o presente ilícito criminal;
k) Dispõe o Art. 374, n.º 2 do CPP que a fundamentação e exposição de uma Sentença deve ser tão completa e concisa, quanto aos motivos de facto e de direito que a fundamentam, na medida do possível;
l) Pelo que, para este tipo de ilícito criminal, será bastante que a Douta Sentença indique o lapso temporal no qual os acontecimentos se verificaram, in casu, na constância do matrimónio;
m) Tanto que não seria humanamente exigível à Ofendida a precisa concretização da hora, dia, mês e ano de todos os acontecimentos descritos nos presentes autos;
n) Pois, caso assim se entendesse, estaríamos a descurar a harmonia de todo um ordenamento jurídico, isto é, não será de todo razoável que o direito penal substantivo puna determinado comportamento, que, depois, será indemonstrável atentas as regras do direito processual;
o) Até porque, o conceito de fundamentação exigido pelo Artigo 374º, n.º 2 do CPP, e conforme entendimento do STJ no Douto Acordão no processo n.º 043771, já supra citado, refere que “No conceito de fundamentação compreendem-se tão somente: a enumeração dos factos provados, a enumeração dos factos não provados e a exposição, tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.” SIC
p) Pelo que, jamais se vislumbra quaisquer constrangimento ao contraditório do Arguido, tão pouco, quaisquer violação do direito constitucionalmente consagrado no Art. 32º da Constituição da Republica Portuguesa;
q) Quanto ao pedido cível, atenta a gravidade dos factos, a sua reiteração e as décadas de sofrimento causadas à Ofendida, defende-se a razoabilidade da Douta Sentença, bem como os valores em que o Arguido resultou condenado;

DESTA FORMA,
Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, recorre-se ao Sereno Arbítrio de V. Exas., para que nestes termos e nos demais de Direito que Doutamente suprirão, se dignem negar provimento ao Recurso interposto pelo Arguido e, consequentemente, mantendo na íntegra o teor da Douta Sentença proferida, fazendo-se assim a devida JUSTIÇA.»
*
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Por entender que «(…) o Recorrente, servindo-se de textos jurisprudenciais, que nos parece ter descontextualizado, arquitectou uma “defesa” em que vem invocar supostas “insuficiências” da sentença, eventualmente traduzíveis – na sua subjectiva e interessada opinião – em erros de julgamento quanto à matéria de facto e ao crime de que foi vítima o seu filho e de direito relativamente à subsunção jurídica da sua conduta quanto aos factos de que foi vítima a sua ex-mulher, mãe destes seus dois filhos.»

Observou-se o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Na resposta que apresentou, a Assistente manifesta adesão ao parecer do Ministério Público, nesta Instância.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[1], o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito –, por obstativas da apreciação de mérito, como são os vícios da sentença previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[2]

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões
- da (in)validade, para uma condenação, de descrição factual genérica;
- do enquadramento jurídico dos factos considerados como provados;
- da desadequação, por excesso, das indemnizações fixadas.
*
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. O arguido celebrou casamento com E…, no dia 05 de Julho de 1987, em …, Santa Maria da Feira, que foi dissolvido por divórcio decretado por Douta Sentença datada de 02 de Junho de 2014, devidamente transitada em julgado nesse mesmo dia.
2. Na constância do casamento nasceu:
a) F…, nascido no dia 15 de Outubro de 1998, em …, Santa Maria da Feira.
b) G…, nascido no dia 22 de Março de 1990.
3. Na constância do casamento, o arguido residiu na Rua …, n.º .., em …, Santa Maria da Feira, com E…, G… e F….
4. A partir de momento não determinado, desde a data da celebração do referido casamento, o arguido, dirigindo-se a E…, manifestava-lhe o seu desagrado sempre que esta saía do domicílio comum, ainda que na sua companhia.
5. Volvido um período de tempo não determinado, na constância do casamento, o arguido passou a dirigir-se a E…, no interior do domicílio comum, apodando-a de cabra, de vaca, de cadela e de puta, ofendendo a sua honra e consideração.
6. Volvido um período de tempo não determinado, na constância do casamento, no interior do sobredito domicílio comum, o arguido, dirigindo-se a E…, passou a gesticular, simulando que a estrangulava, provocando-lhe medo.
7. Após, a partir de momento não determinado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, apertou-lhe, um número não apurado de vezes, o pescoço, provocando-lhe falta de ar.
8. Após, a partir de determinado momento não apurado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, passou a intimidar E…, um número não apurado de vezes, tendo em data não concretamente apurada utilizando um machado com o qual partiu um tanque na sequência de uma discussão com aquela, provocando-lhe receio e medo.
9. Após, a partir de determinado momento não apurado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum e na presença de F…, dirigiu-se, um número não determinado de vezes, a E…, apodando-a de puta, vaca, cabra e cadela e dizendo-lhe: “eu mato-te, eu ponho fogo à casa”, ofendendo a honra e consideração desta e provocando-lhe medo.
10. Após, a partir de data não apurada, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, desferiu, um número não apurado de vezes, bofetadas, murros e pontapés no corpo de E…, provocando-lhe dores.
11. Em momento não determinado, durante o Verão de 2013, no interior do domicílio comum, o arguido, na sequência de uma discussão com E…, apertou-lhe o pescoço, provocando-lhe falta de ar e dores.
12. Em momento não concretamente apurado, durante a primeira semana do ano de 2014, no interior do domicílio comum, na presença de F…, o arguido empunhou uma face de cozinha, abeirou-se de E… e, olhando para esta, enquanto lhe estendia tal objecto pelo cabo disse-lhe que se ela quisesse que o matasse e em seguida sorriu e deu pequenas gargalhadas, intimidando-a.
13. Em momento não determinado do dia 07 de Janeiro de 2014, no interior do domicílio comum e na presença de F…, o arguido, na sequência de discussão com E…, tentou desferir-lhe um pontapé.
14. O arguido não conseguiu atingir o seu propósito de ofender o corpo de E…, porque F… interveio, separando o arguido.
15. O arguido, ao ser separado, não conseguiu desferir o pontapé no corpo de E…, tendo atingido F….
16. Em data posterior não determinada, o arguido, no interior do domicílio comum, na sequência de uma discussão com E…, agarrou-lhe uma das mãos para, de seguida, lhe puxar os respectivos dedos para trás, com o propósito de os partir, o que não conseguiu, provocando-lhe apenas arranhão na mão, porque F… intercedeu, separando o arguido.
17. Nesse momento, quando F… separava o arguido, este arranhou-lhe a mão direita, provocando-lhe dores.
18. Em resultado da actuação do arguido, o menor F… foi agredido no seu corpo e presenciou vivências de raiva e medo, directa e repetidamente, sobre a sua progenitora, provocando-lhe perturbação emocional e afectiva com tradução comportamental em aumento da irritabilidade e zanga, dificuldade em lidar com os sentimentos de mágoa, afastamento do seu progenitor e necessidade de suporte em consulta de psicologia.
19. O arguido quis e conseguiu, molestar física e psicologicamente a ofendida, E…, bem sabendo que esta era sua cônjuge, agredindo o seu corpo, intimidando-a, ameaçando-a, ofendendo a sua honra e consideração, no interior do domicílio comum, na presença de menor, submetendo-a a um tratamento desrespeitoso da sua personalidade e autoestima, mostrando-se, por isso, a sua actuação desligada das mais elementares regras de conduta social e de vivência gregária e, por isso, merecedora de particular reprovação.
20. O arguido quis e conseguiu molestar física e psicologicamente o seu filho menor, F…, nascido a 15 de Outubro de 1998, bem sabendo que é seu filho, com quem coabitava, de quem dependia economicamente e a quem incumbia educar, submetendo-o a um ambiente familiar disfuncional pautado por uma exposição precoce, constante e agressões físicas e verbais, do arguido à sua mãe, E…, e ofendendo-o no seu corpo, pelo menos por duas vezes, provocando-lhe dores, raiva, tristeza e angustia, sujeitando-o a um tratamento desrespeitoso da sua personalidade e autoestima, provocando-lhe perturbação emocional e afectiva com tradução comportamental em aumento da irritabilidade e zanga e dificuldade em lidar com sentimentos de mágoa e, por isso, merecedor de especial reprovação.
21. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e puníveis por lei.
22. O arguido não tem antecedentes criminais.
23. O arguido encontra-se a residir com as irmãs em casa dos pais, recebendo mensalmente a título de subsídio de desemprego o montante de 540,00€; paga ao Banco empréstimo no montante de 85,00€ mensais pagando a ofendida igual quantia para o mesmo efeito; paga 100,00€ mensais a título de pensão de alimentos ao filho Ismael; estudou até ao 4.º ano de escolaridade»

Relativamente a factos não provados, consta da sentença [transcrição]:
«Não resultou provado que:
1. O arguido tivesse dito à ofendida que a amassava no contexto referido no ponto 9. dos factos provados.
2. Em data não concretamente determinada, entre 25 e 26 de Janeiro de 2014, no interior do domicílio comum, na presença de F…, o arguido, na sequência de discussão com E…, desferiu-lhe empurrão, o que determinou a queda desta no solo, provocando-lhe dores.»

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«A convicção do tribunal acerca da factualidade dada como provada assentou no conjunto da prova produzida e examinada em julgamento.
Vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova (cfr. artº 127º do Código de Processo Penal).
Tal consagração legal não significa que o julgador possa proceder arbitrária e caprichosamente à avaliação da prova, ou que a lei lhe ofereça a faculdade de julgar como lhe aprouver, sem provas ou mesmo contra as provas produzidas.
Antes pelo contrário, este princípio significa antes que o tribunal deve julgar segundo a consciência que formou.
E essa convicção é formada, não em obediência a regras preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas sim através da influência que as provas produzidas exerceram no espírito do julgador, após as ter apreciado e avaliado segundo critérios de valoração racional e lógica, segundo a sua experiência, sendo que, neste particular aspecto, não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção directa que a imediação e a oralidade conferem ao julgador.
Tendo por base os pressupostos supra expostos, a presente decisão teve por base a prova produzida em audiência, globalmente considerada, nomeadamente, as declarações dos ofendidos E… (ex mulher do arguido) e F… (filho do casal) e do filho mais velho do casal, G…, os quais tinham conhecimento e vivência directa dos factos, tendo prestado depoimento de forma segura, pronta, coerente e consistente, descrevendo os factos com rigor e pormenor o que denotou conhecimento dos mesmos e sinceridade, sendo que a ofendida, não obstante ter deposto de forma emotiva, o fez com contenção, demonstrando vivência directa dos factos e ressonância emocional no seu relato, tendo descrito os mesmos factos de forma própria e fluida, denotando naturalidade e espontaneidade nas respostas e quando confrontada respondia de forma consistente com o demais declarado, embora não se limitando a repetir o já declarado, mas antes reiterando e alargando o horizonte contextual dos factos que relatou de forma natural e com uma consistência inerente apenas a quem vivenciou directamente os factos, pelo que a ofendida - em conjugação com os elementos constantes dos autos e indicados na douta acusação pública e com os depoimentos de F… e das testemunhas da acusação e ainda da testemunha H… - convenceu plenamente o Tribunal.
As testemunhas G… e H… prestaram depoimento de forma isenta, coerente e segura, denotando razão de ciência e vivência directa dos factos que descreveram, o que fizeram com rigor, pelo que convenceram plenamente o tribunal.
Teve-se igualmente em conta, o relatório do IML de fls. 47 e ss., do qual resulta uma perturbação emocional e afectiva do ofendido F… por ter sido exposto à vivência de violência entre o casal, demonstrando dificuldade em lidar com sentimentos de raiva e mágoa bem como um aumento da irritabilidade e zanga, concluindo este relatório pela recomendação de orientação de F… para receber suporte em consulta de psicologia tendo em vista lidar com tal perturbação e evitar a estruturação da mesma em futuras sequelas psíquicas. De resto, o ofendido F… declarou em audiência que as discussões duravam horas e que às vezes era já só o pai a ralhar alto sozinho, não se calando até às 2,00h e 3.00h da manhã, sendo que o menor tinha aulas no dia seguinte de manhã cedo.
Mais declarou o ofendido F… que se recorda pelo menos desde os seus 10 anos de idade que os pais sempre discutiram muito e que era o pai o causador das discussões, pois pegava por qualquer coisa irrelevante, sendo que o pai insultava, ameaçava e batia na mãe inúmeras vezes e que o mesmo tinha receio de deixar a mãe sozinha em casa com o pai, porque o pai acalmava-se quando ele se metia entre os dois, pelo que receava pelo que o pai pudesse fazer na sua ausência, tendo chegado a não sair de casa para ir ter com os amigos a pedido da mãe. Mais declarou que a nível do rendimento escolar nunca deixou que a situação de casa o afectasse mas que de facto havia muitas noites em que dormia pouco e no dia seguinte tinha que ir cedo para a escola. Declarou ainda que os fins de semana eram terríveis, porque o pai bebia mais e ele fica mais agressivo com o álcool e que só desejava que passassem depressa. F… declarou ainda que era bom sair de casa e afastar-se daquele ambiente de discussões e que se sentia triste e com medo dos comportamentos do pai.
Teve-se ainda em conta o Assento de casamento e de nascimento de fls. 56 a 59, CRC de fls.147.
Teve-se igualmente em conta as declarações do arguido que reconheceu alguns dos factos que lhe vinham imputados, embora desvalorizasse os mesmos dando-lhes uma veste diferente, menos gravosa e diminuindo acentuadamente a agressividade dos seus actos, declarando designadamente que passava as mãos pelo pescoço da ofendida e que com os ânimos exaltados “vai uma mão ou outra “ e que pode ter “arranhado” a ofendida, o arguido admitiu ainda ter chamado a ofendida de “cadela” e de lhe ter oferecido a faca com o cabo virado para a ofendida dizendo-lhe “mata-me se quiseres”.
Admitiu ainda o arguido desconfiar da fidelidade da mulher porque esta deixou de lhe ligar e de se relacionar consigo enquanto marido, rejeitando-o, pelo que estranhou tal comportamento e não gostava que a mulher saísse. O arguido admitiu igualmente ter dito, no contexto de uma discussão com a ofendida, que iria por fogo à casa e que certa vez, estando nervoso igualmente por causa de uma discussão com a ofendida, pegou num machado e partiu um bocado do tanque existente no pátio da casa do casal.
Admitiu ainda o arguido que das vezes que atingiu o filho F… foi porque ele se meteu no meio da discussão e o atingiu sem querer, tendo sido uma vez numa perna e outra um arranhão numa mão. Mais admitiu o arguido que o filho Ismael presenciava muitas discussões.
As testemunhas I…, J… e K…, apresentadas pelo arguido, não mereceram credibilidade pois denotaram grande falta de isenção, estando preocupados em defender o arguido e em criticar a ofendida, demonstrando não ter contacto próximo e contínuo com os filhos do casal, além de não terem conhecimento efectivo da dinâmica familiar, pelo que estas testemunhas focaram o seu depoimento no teor da conversa telefónica que ouviram.
Estas testemunhas apenas declararam ter ouvido um telefonema entre a ofendida e o arguido em alta voz - o que desde já se duvida - pois tal não é uma situação habitual - na qual a ofendida terá dito ao arguido que se este não pagasse a casa do casal ao banco, esta apresentaria queixa por maus tratos contra o arguido. Contudo mesmo admitindo tal situação, estas testemunhas terão ouvido uma conversa ou parte de uma conversa fora do contexto, tendo dando grande importância às frases que ouviram de forma descontextualizada, pelo que não mereceram as suas considerações e juízos credibilidade, sendo de resto as mesmas irrelevantes face ao objecto do processo, não tendo abalado minimamente a solidez da demais prova produzida e supra referida, razão pela qual em nada contrariaram ou retiraram credibilidade às testemunhas da acusação e aos ofendidos, que vivenciaram a dinâmica do casal directa e continuamente. Assim, mesmo admitindo a veracidade desta conversa, tal em nada abala e em nada afasta a ocorrência dos factos constantes da acusação, nos moldes supra dados como provados.
Note-se ainda que os filhos do casal bem como a ofendida foram unânimes em declarar que o arguido não discutia com a mãe fora de casa nem em frente a pessoas que não fossem do agregado familiar e que por vezes só dizia para irem embora de determinado local e mal chegava ao carro começava logo a discutir com a ofendida E…, pelo que estes familiares não podem esclarecer o tribunal sequer no que se refere à personalidade do arguido, pois este tinha comportamentos muito diferentes dentro e fora de casa e quando na presença de outras pessoas fora do seu agregado familiar.
*
No que diz respeito à matéria de facto não provada teve-se em atenção a circunstância de a prova produzida não ter confirmado a mesma.»
*
Conhecendo.

«O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.»[3]

O Tribunal recorrido fixou os factos que considerou como provados e não provados, por referência à acusação apresentada pelo Ministério Publico, e fundamentou, de forma clara e cabal as razões porque assim decidiu.

Não obstante, a factualidade provada, merece reparo.
O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, na sua vertente de ofensas dirigidas ao cônjuge, visa prevenir e reprimir a violência no seio da família, que se considera – e bem – inadequada, grave e perniciosa em termos individuais e coletivos.
O recato tradicionalmente associado à família não pode, nem deve, constituir um obstáculo à tutela do direito penal, desde logo por ser menos gravosa que a violência praticada fora dessa esfera – entre familiares e, nomeadamente, entre cônjuges, existe dever acentuado de respeito cuja violação, pelas consequências que acarreta, exige intervenção.
A ratio do indicado tipo de crime não se encontra, no entanto, na proteção da comunidade familiar ou conjugal, mas na proteção da pessoa humana, enquanto membro de um concreto e determinado agregado familiar.
E o tipo de crime em questão abarca todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a dignidade da pessoa humana, que se revelam em maus tratos físicos ou psíquicos, abrangendo, as ofensas corporais, os castigos corporais, as ameaças, as humilhações, as provocações, as pequenas privações de liberdade e de movimentos e as ofensas de cariz sexual.
O bem jurídico protegido é plural e complexo, visando essencialmente a saúde – física e psíquica e/ou mental –, mas não deixando de incluir a proteção da dignidade humana, no âmbito de uma específica relação interpessoal.

A reiteração de comportamentos que podem integrar a prática do crime de violência doméstica coloca a questão – comum a outros tipos legais (v.g. crimes sexuais, de tráfico de droga, de lenocínio) – difícil e quase arbitrária, de proceder à contagem do número de crimes.
«A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual “diminuição da culpa pelo facto”, um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável”]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma “unidade resolutiva”, realidade que se não deve confundir com “uma única resolução”, pois que, “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação” (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).
Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.»[4]

De forma pacífica, o crime de violência doméstica tem sido doutrinalmente definido como crime habitual.
«Crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual».[5]
«O crime habitual, no sentido que à expressão confere a actual legislação, é um crime em que a consumação se protrai no tempo (dura) por força da prática de uma multiplicidade de actos “reiterados". Que a persistência temporal na consumação se não dá mediante a prática de um só acto, mas de uma multiplicidade deles - eis o que distingue o crime habitual do crime permanente; que os actos que vão consumando o crime são, não sucessivos, mas reiterados - eis o que distingue o crime habitual do crime contínuo. O ponto central da definição do crime habitual é, por isso, o que deve entender-se por "actos reiterados". (...) Apenas se pode admitir a "consumação por actos reiterados" (um crime habitual) em casos especiais – o mesmo é dizer, nos casos e termos em que isso é expressamente possibilitado pelo tipo de crime. (...) Como a doutrina indica, os crimes "habituais" (seja qual for o entendimento a dar à "habitualidade" do crime, o mesmo é dizer, à "reiteração" dos actos de que se compõe) correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles.»[6]

A tutela do direito penal, face ao disposto no n.º 1 do artigo 30.º do respetivo compêndio, reporta-se, por regra, a atos isolados, dando origem a que cada ato configure um crime autónomo.
Situações ocorrem, no entanto, em que se impõe prevenir acontecimentos distintos. Para o que se configuraram, doutrinariamente, construções tendentes a punir num mesmo crime variados atos de execução de um ou de distintos tipos consagrados na lei.
No artigo 119.º do Código Penal, que se reporta ao início do prazo de prescrição do procedimento criminal, acolheram-se algumas das referidas construções – as do crime permanente [na alínea a) do seu n.º 2], do crime continuado [na alínea b) do seu n.º 2], do crime habitual [na alínea b) do seu n.º 2]. E no n.º 3 do artigo 19.º do Código de Processo Penal reconhecem-se os crimes que se consumam por atos sucessivos ou reiterados, também designados por crimes prolongados, de trato sucessivo ou exauridos.

Os crimes habituais não podem deixar de se considerar como “modalidade” dos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo.
E em crimes desta natureza, a incidência do tempo na unidade resolutiva que os caracteriza «não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas (…).
É decisiva a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente e que funda o critério de definição da unidade ou pluralidade de infracções , escreve o Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infracções , pág.96 .
A pluralidade de actos, prossegue aquele penalista , in op. cit. , pág. 97 , só não determina uma pluralidade de acções típicas na medida em que cada uma delas exprime um puro explodir ou “ déclancher “ , mais ou menos automático , da carga volitiva correspondente ao projecto criminoso inicial , ensinando as regras da psicologia que se entre os factos medeia um largo espaço de tempo os últimos da cadeia respectiva já não são a mera descarga dos primeiros, exigindo um novo processo deliberativo.»[7]
Neste mesmo sentido, e mais recentemente se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça – acórdão citado na nota de rodapé 4 –, ao considerar que «a interrupção dos atos criminosos durante um ano não autoriza a sua unificação».

Posto isto, e quanto aos crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo,
- é seu requisito processual que o tipo incriminador suponha ou preveja a reiteração e que esta revele uma persistência da resolução criminosa, encerrando uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude;
- são seus requisitos substantivos positivos a homogeneidade da conduta do agente, a sua repetição no tempo, a violação do mesmo tipo de crime ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico e, em caso de crimes contra as pessoas, a identidade da vítima;
- é seu requisito substantivo negativo a ocorrência de hiato ou hiatos significativos de tempo entre as diversas condutas, de tal forma que coloquem em crise, no âmbito da apreciação dos factos, que a repetição das condutas se deva a uma efetiva tendência ou hábito de vontade criminosa do agente.

E quanto ao crime de violência doméstica – na sua vertente de ofensas dirigidas ao cônjuge –, não resta senão concluir que, enquanto crime de reiteração, abrange a prática de uma multiplicidade de condutas, reiteradas (e não sucessivas) ao longo de determinado período de tempo (sem hiatos significativos), que se praticaram na pessoa do cônjuge, ainda que de natureza diversa, desde que todas elas se tenham reportado a maus tratos, físicos ou psíquicos.
Com o que se pretende acentuar, convocando as palavras de Plácido Conde Fernandes que «É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.»[8]

De regresso ao processo, constatamos que a Assistente e o Arguido estiveram casados um com o outro durante mais de 28 (vinte e oito) anos.
Entre os factos considerados como provados consta:
A partir de momento não determinado, desde a data da celebração do referido casamento, o arguido, dirigindo-se a E…, manifestava-lhe o seu desagrado sempre que esta saía do domicílio comum, ainda que na sua companhia. – ponto 4.
Volvido um período de tempo não determinado, na constância do casamento, o arguido passou a dirigir-se a E…, no interior do domicílio comum, apodando-a de cabra, de vaca, de cadela e de puta, ofendendo a sua honra e consideração. – ponto 5
Volvido um período de tempo não determinado, na constância do casamento, no interior do sobredito domicílio comum, o arguido, dirigindo-se a E…, passou a gesticular, simulando que a estrangulava, provocando-lhe medo. – ponto 6
Após, a partir de momento não determinado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, apertou-lhe, um número não apurado de vezes, o pescoço, provocando-lhe falta de ar. – ponto 7
Após, a partir de determinado momento não apurado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, passou a intimidar E…, um número não apurado de vezes, tendo em data não concretamente apurada utilizando um machado com o qual partiu um tanque na sequência de uma discussão com aquela, provocando-lhe receio e medo. – ponto 8
Após, a partir de determinado momento não apurado, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum e na presença de F…, dirigiu-se, um número não determinado de vezes, a E…, apodando-a de puta, vaca, cabra e cadela e dizendo-lhe: “eu mato-te, eu ponho fogo à casa”, ofendendo a honra e consideração desta e provocando-lhe medo. – ponto 9
Após, a partir de data não apurada, na constância do casamento, o arguido, no interior do domicílio comum, desferiu, um número não apurado de vezes, bofetadas, murros e pontapés no corpo de E…, provocando-lhe dores. – ponto 10
Em data posterior [9] não determinada, o arguido, no interior do domicílio comum, na sequência de uma discussão com E…, agarrou-lhe uma das mãos para, de seguida, lhe puxar os respectivos dedos para trás, com o propósito de os partir, o que não conseguiu, provocando-lhe apenas arranhão na mão, porque F… intercedeu, separando o arguido. – ponto 16
Nesse momento, quando F… separava o arguido, este arranhou-lhe a mão direita, provocando-lhe dores. – ponto 17

Semelhante descrição de acontecimentos, dada a indefinição temporal que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa.

E considerando a previsão do artigo 152.º do Código Penal, «a exigência de uma delimitação factual que permita a subsunção àqueles conceitos genéricos é uma preocupação quotidiana de quem acusa, defende e julga, que não pode ser desvirtuada por abusivas e, portanto, inaceitáveis, generalizações.
(…) em termos práticos, maus-tratos significa o exercício de violência. Mas o conceito necessita de ser escalpelizado e tem sido intensamente objecto de análise na jurisprudência e doutrina, considerando os problemas que suscita em termos de definição do tipo e repetição de actos de violência praticados.
“O tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de activar a reacção penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. “… a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de actos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade”.[10]
Assim, neste tipo de crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus-tratos, violência doméstica, tráfico de droga), a precisa indicação e concretude dos factos necessários à integração no tipo é elemento essencial do julgamento. E é, na sequência, o cerne do direito de defesa.
Se a alegação factual – em qualquer imputação penal - não pode ser facilitada pelo uso de formas gerais, imprecisas, sem individualização de cada um dos factos, com utilização de fórmulas “vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras”, neste tipo de crime a exigência é muito maior dada a amplitude do tipo penal.
Aliás, a jurisprudência do STJ neste campo é clara e insofismável, quer a propósito do crime de tráfico de droga, quer a propósito de crimes de maus-tratos e violência doméstica, sempre onde se pretende ultrapassar a dificuldade de prova de múltiplos factos pela imputação genérica e, logo, por presunção. Porque a isso se resume esta prática: acusa-se por presunção factual, pretendendo-se a condenação por presunção factual.
Assim, só de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de STJ:

5 - Não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ("procediam à venda de produtos estupefacientes", "essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos", "a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", "utilizavam também "correios", "utilizavam também crianças", etc.).
6 - As afirmações genéricas, contidas no elenco desses "factos" provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como "factos" inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2004 - Proc. 04P908, Rel. Cons. Santos Carvalho);

I - O princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2007 - Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes);

VI – Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão do STJ de 15-11-2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho);

III - Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.
IV - Por isso, será de ter por não escrita aquela imputação genérica (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2008 (Proc. 07P4197, rel. Cons. Raul Borges);

XX - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal.
XXI - Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. De 06-05-2004, Proc. N.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. N.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. N.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. N.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. N.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. N.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. N.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. N.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. N.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. N.º 4197/07 - 3.ª. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-07-2008 - Proc. 07P3861, Rel. Cons. Raul Borges).»[11]

Posto isto, não resta senão concluir que os factos dados como provados nos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 16 e 17 devem considerar-se como não escritos.
E como não escritos se devem considerar, também, os factos que deles dependem:
- os constantes do ponto 1 dos não provados;
- os constantes dos pontos 19 e 20 dos provados;
- os que no ponto 18 dos provados vão para além de “em resultado da atuação do arguido, o menor F… foi agredido no seu corpo”;
-os que no ponto 19 dos provados vão para além de “O arguido quis e conseguiu, molestar física
e psicologicamente a ofendida, E….”

Expurgada, desta forma, a matéria de facto, temos como provado:
«1. O arguido celebrou casamento com E…, no dia 05 de Julho de 1987, em …, Santa Maria da Feira, que foi dissolvido por divórcio decretado por Douta Sentença datada de 02 de Junho de 2014, devidamente transitada em julgado nesse mesmo dia.
2. Na constância do casamento nasceu:
a) F…, nascido no dia 15 de Outubro de 1998, em …, Santa Maria da Feira.
b) G…, nascido no dia 22 de Março de 1990.
3. Na constância do casamento, o arguido residiu na Rua …, n.º .., em …, Santa Maria da Feira, com E…, G… e F….
4. A partir de momento não determinado, desde a data da celebração do referido casamento, o arguido, dirigindo-se a E…, manifestava-lhe o seu desagrado sempre que esta saía do domicílio comum, ainda que na sua companhia.
5. Em momento não determinado, durante o Verão de 2013, no interior do domicílio comum, o arguido, na sequência de uma discussão com E…, apertou-lhe o pescoço, provocando-lhe falta de ar e dores.
6. Em momento não concretamente apurado, durante a primeira semana do ano de 2014, no interior do domicílio comum, na presença de F…, o arguido empunhou uma face de cozinha, abeirou-se de E… e, olhando para esta, enquanto lhe estendia tal objecto pelo cabo disse-lhe que se ela quisesse que o matasse e em seguida sorriu e deu pequenas gargalhadas, intimidando-a.
7. Em momento não determinado do dia 07 de Janeiro de 2014, no interior do domicílio comum e na presença de F…, o arguido, na sequência de discussão com E…, tentou desferir-lhe um pontapé.
8. O arguido não conseguiu atingir o seu propósito de ofender o corpo de E…, porque F… interveio, separando o arguido.
9. O arguido, ao ser separado, não conseguiu desferir o pontapé no corpo de E…, tendo atingido F….
10. Em resultado da actuação do arguido, o menor F… foi agredido no seu corpo.
11. O arguido quis e conseguiu, molestar física e psicologicamente a ofendida, E….
12. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e puníveis por lei.
13. O arguido não tem antecedentes criminais.
14. O arguido encontra-se a residir com as irmãs em casa dos pais, recebendo mensalmente a título de subsídio de desemprego o montante de 540,00€; paga ao Banco empréstimo no montante de 85,00€ mensais pagando a ofendida igual quantia para o mesmo efeito; paga 100,00€ mensais a título de pensão de alimentos ao filho Ismael; estudou até ao 4.º ano de escolaridade»

Por fim, e esgotando a cognição deste Tribunal da Relação em relação à matéria de facto, impõe-se deixar expresso que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal.

Perante os factos agora considerados como provados, no contexto de um casamento com a longevidade já assinalada, não vislumbramos a persistência e a gravidade indispensáveis a afirmar a culpa agravada exigida pelo crime de violência doméstica.
Não vislumbramos, também, que o comportamento do Arguido tenha surgido e se haja concretizado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade.

Assim sendo, cometeu o Arguido um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Atente-se que a factualidade provada evidencia uma tentativa de ofensa à integridade física não punível, face ao disposto nos artigos 143.º, n.º 1, e 23.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
E que os factos provados não constituem a ameaça prevista e punida pelo artigo 153.º do Código Penal.
Aspetos reportados à pessoa da Assistente, E….

Relativamente ao F…, a conduta do Arguido – conforme a factualidade provada – evidencia a falta do elemento típico subjetivo.
O Arguido não teve o propósito de atingir fisicamente o seu filho. Este acabou por receber um pontapé, dirigido pelo Arguido à Assistente, quando procurava afastar aquele desta.

Aqui chegados, importa, agora, extrair consequências do que se deixou dito
Há-de o Arguido ser absolvido da prática dos crimes de violência doméstica.
E daqui decorre
i) que o Arguido deve ser absolvido do pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público em representação de F…, face ao disposto no n.º 3 do artigo 403.º do Código de Processo Penal e porque da factualidade provada não resulta o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil consagrados no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil;
ii) que deve ser o Arguido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 143.º do Código Penal – que em sede recursória admitiu ter praticado, sendo que o processo fornece os elementos, a tanto, necessários;
iii) que deve ser ajustado – reduzido – o montante destinado a indemnizar os prejuízos de natureza não patrimonial suportados pela Assistente E… em virtude do comportamento do Arguido.

Posto isto, e porque não corre qualquer circunstância que, nos termos do artigo 72.º permite a atenuação especial da pena, a moldura penal abstrata que corresponde ao crime de ofensa à integridade física simples cometido pelo Arguido situa-se entre 1 (um) mês e 3 (três) anos de prisão ou multa entre 10 (dez) e 360 (trezentos e sessenta) dias – artigos 143.º, n.º 1, 41.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Considerando que o Arguido não tem antecedentes criminais, entendemos que a imposição de pena não privativa de liberdade realiza, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 70.º do Código Penal.
Na determinação da medida a pena, atendendo ao que se dispõe no artigo 71.º do Código Penal, destacamos o mediano grau de ilicitude dos factos, a reduzida gravidade das suas consequências, a natureza da culpa – dolo direto, e que o comportamento do Arguido se insere em contexto de discussão.
Na fixação do quantitativo diário da multa, atender-se-á, ainda, à situação económica do Arguido – que está desempregado e tem garantido o pagamento de prestações de empréstimo bancário e da pensão de alimentos a um dos seus filhos.
Posto isto, entendemos dever impor ao Arguido a pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de € 900,00 (novecentos euros).

No que concerne à indemnização cujo montante devemos agora ponderar, diz-se no n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil que na sua fixação deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. E do n.º 3 do mesmo preceito resulta que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.

«O art. 494.º alude ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso justificativas.
A expressão “em qualquer caso”, tanto abrange o dolo como a mera culpa (v. C.J. 1986, 2º, 233 e, Vaz Serra in Rev. Leg. Jur., 113º-96).
Demais circunstâncias do caso é uma expressão genérica que se pretende referir a todos os elementos concretos caracterizadores da gravidade do dano, incluindo a desvalorização da moeda.
Equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim, um critério para a correcção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.
Na verdade, a lei não dá qualquer conceito de equidade, mas, tem-se aceite a mesma como a consideração prudente e acomodatícia do caso, e, em particular, a ponderação das prestações, vantagens e inconvenientes que concorram naquele (v. Ac. do S.T.J. de 19-4-91 in A.J. 18º, 6).
A fixação da indemnização em termos de equidade deve levar em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida; nessa perspectiva, tem-se feito jurisprudência no sentido de que tal como escapam à admissibilidade de recurso “as decisões dependentes da livre resolução do tribunal” (arts. 400., n.1, al. b), do CPP e 679. do C PC), em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras – cf., entre outros, Acs. de 29-11-01, Proc. n. 3434/0º1; de 08-05-03, Proc. n. 4520/02; de 17-06-04, Proc. n, 2364/04 e de 24-11-05, Proc. n. 2831/05, todos da 5.ª Secção. Ac. do STJ de 07.12. 2006 , Processo n. 3053/06 - 5.ª Secção).»[12]

De regresso ao processo, tendo presente a factualidade provada e que indemnização por danos não patrimoniais tem por finalidade compensar desgostos e sofrimentos suportados, entendemos a quantia de € 300,00 (trezentos euros) adequada ao ressarcimento dos prejuízos suportados pela Assistente.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, dando parcial procedência ao recurso, decide-se
(i) alterar a matéria de facto provada nos termos supra expostos;
(ii) absolver o Arguido da prática dos crimes de violência doméstica que lhe são imputados nos autos;
(iii) absolver o Arguido do pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público em representação de F…
(iv) condenar o Arguido, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de € 900,00 (novecentos euros).
v) reduzir para € 300,00 (trezentos euros) a quantia necessária ao ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial suportados pela Assistente E…;
vi) manter, no restante, o decidido (condenação em custas).

Sem tributação.
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Porto, 2016 junho 15
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Ana Bacelar
Nuno Ribeiro Coelho
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[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, relatado pelo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos – acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de novembro de 2012 – Relator: Santos Carvalho – processo n.º 862/11.6TAPFR.S1 – acessível em www.dgsi.pt/jstj
[5] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, página 314.
[6] Lobo Moutinho, in “Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português”, página 620, nota 1854.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de julho de 2006 – Relator: Armindo Monteiro – processo 06P1709, acessível em www.dgsi.pt/jstj
[8] In “Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal” – Revista do CEJ, n.º 8, 1,º semestre, página 307.
[9] A 7 de janeiro de 2014, por referência ao ponto 13 dos factos provados.
[10] Ricardo Bragança de Matos, in “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima”, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, págs.100-101).
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17 de setembro de 2013, proferido no processo n.º 97/11.8PFSTB.E1 – acessível m www.dgsi.pt/jtre
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de fevereiro de 2011, relatado pelo Senhor Conselheiro Pires da Graça, no processo n.º 395/03.4GTSTB.L1.Si – acessível em www.dgsi.pt