Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9310109
Nº Convencional: JTRP00007907
Relator: RAMIRO CORREIA
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RP199303109310109
Data do Acordão: 03/10/1993
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T COR PORTO 3J
Processo no Tribunal Recorrido: 823/92-2
Data Dec. Recorrida: 11/26/1992
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: CP82 ART316 N1 C.
Sumário: Deve ser rejeitada por manifestamente infundada a acusação pelo crime de burla previsto e punido pelo artigo 316, nº 1, alínea c), do Código Penal, por uso de transporte colectivo sem bilhete que, em vez de referir que o arguido se negou a pagar o preço da viagem que efectuou, menciona que " lhe foi passado o talão de " aviso de multa " nº..., no montante de..., de multa, acrescido de..., correspondente ao custo de um bilhete pré-comprado e que a arguida não pagou tal quantia ".
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação
I - No Tribunal Criminal da Comarca do Porto o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra Ana Maria ...., com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática de um crime de burla em meio de transporte previsto e punido pelo artigo 316, nº 1, alínea c) do Código Penal, com base nos seguintes factos:
Em 16 de Maio de 1992, pelas 18 horas, na Avenida
25 de Abril - Valongo - desta comarca, a arguida viajava no interior do autocarro nº 923, da carreira 94, do Serviço de Transportes Colectivos do Porto, com sistema de cobrança por agente único, sem para tal estar munida de título de transporte válido, pois a validade do que detinha, havia terminado no " Seixo ", pelo que viajara além da zona de validade.
Foi-lhe, pois, passado o talão de " Aviso de multa " nº 41949, no montante de 1500 escudos de multa, acrescido de 135 escudos, por referência ao preço mínimo cobrável de 30 escudos, correspondente ao custo de um bilhete pré-comprado - módulo 1.
Porém, a arguida não liquidou tal quantia, a qual se encontra ainda por pagar.
A arguida agiu livre e conscientemente e com o propósito concretizado de viajar em autocarro do S.T.C.P. - Serviço de Transportes Colectivos do Porto - sem pagar o preço respectivo, cuja obrigação conhecia e a qual se encontra ainda em dívida.
Bem sabia que a sua conduta era proíbida e punida por lei.
II - O Meritíssimo Juiz do 3º Juízo Correccional a quem o processo foi distribuído, entendendo, essencialmente, que " a dívida contraída abarca apenas o preço da viagem e já não o quantitativo da multa, sendo que a exigência deste último visa tão só a obtenção do pagamento voluntário que faz cessar o procedimento pela contravenção ", e não tendo sido dada a oportunidade à arguida de pagar apenas o preço da viagem que realizou indevidamente, rejeitou a acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, uma vez que se não verificava um dos elementos essencialmente constitutivos do crime - a negação de solver a dívida contraída.
III - Não se conformando com tal despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público que, em síntese conclusiva, motivou do seguinte modo: a) Em conformidade com o douto entendimento do Meritíssimo Juiz no despacho recorrido, é elemento do crime de burla para obtenção de meio de transporte previsto e punido pelo artigo 316, nº 1, alínea c) do Código Penal, a negação do agente em solver a dívida que terá de corresponder ao preço do respectivo bilhete. b) Todavia, no caso " sub-judice ", a verificação de tal elemento só era susceptível de se apurar com a produção da prova em julgamento. c) Por isso, não continham os autos elementos para, antes daquele acto judiciário, rejeitar a acusação por manifestamente infundada. d) Ainda não havia, pois, matéria indiciária que justificasse o recurso à norma jurídica que fundamentou o despacho recorrido - artigo 311, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal.
Termina, pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substitição por outro em que se designe dia para julgamento.
IV - Respondeu ao recurso a arguida, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.
V - O Meritíssimo Juiz manteve o despacho recorrido.
VI - Nesta instância, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
Corridos os vistos legais.
Cumpre decidir.
VII - Sempre temos entendido que a expressão
" manifestamente infundada " do artigo 311, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal abrange não só as hipóteses em que os factos descritos na acusação não constituem crime, mas também aquelas situações em que os indícios dos autos são insuficientes para permitir a condenação do arguido em julgamento pelos factos acusados - cf. neste sentido Acórdãos da Relação de Lisboa de 24/04/90 in Colectânea de Jurisprudência, Ano XV, Tomo 2, página 181 e de 24/10/90 in Colectânea de Jurisprudência, Ano XV, Tomo 4, página 185 e da Relação de Évora de 04/04/89 in Boletim do Ministério da Justiça nº 386, página 528 e Dr. Germano Marques da Silva in " Do Processo Penal Preliminar ", página 360.
" Manifestamente infundada " há-de ser, pois, a acusação que, " por forma clara e evidente ( no sentido de que se mete pelos olhos dentro ) é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo flagrante injustiça e violência para o arguido a designação de julgamento ".
( Acórdão desta Relação de 09/05/90 in Recurso nº 9410 da 4ª Secção ).
VIII - No caso dos autos, ressalta à evidência que a acusação não pode atingir o seu objectivo - a condenação da arguida pelo crime imputado.
Com efeito, prescreve o artigo 316, nº 1 do Código Penal:
" Quem, com intenção de não pagar... c) Utilizar meios de transporte ou entrar em qualquer recinto público sabendo que tal supõe o pagamento de um preço, e efectivamente se negar a solver a dívida contraída será punido com prisão até 6 meses ou multa até 15 dias ".
É elemento essencialmente constitutivo deste crime, ou, - para quem assim o entenda - condição objectiva de punibilidade, a " negação em solver a dívida contraída ".
Ora, da acusação não consta que a arguida se tenha negado a pagar o preço da viagem que efectuou sem bilhete válido; dela apenas consta que lhe foi " passado o talão de " Aviso de multa " nº 41949, no no montante de 1500 escudos de multa, acrescido de 135 escudos por referência ao preço mínimo cobrável de 30 escudos, correspondente ao custo de um bilhete pré-comprado - módulo 1 " e que a arguida não pagou tal quantia.
IX - A lei, ao referir-se " à negação em solver a dívida contraída ", só pode ter querido aludir ao preço da viagem efectuada e que não foi pago, ou seja, ao não pagamento do respectivo bilhete.
Porém, para se concluir, com o mínimo de segurança, que a arguida se recusou ou negou a pagar o preço da viagem, necessário seria que se lhe tivesse facultado a oportunidade de efectuar tal pagamento, o que não foi feito.
Com efeito, como refere o Excelentíssimo Procurador- -Geral Adjunto " o aviso para pagar a multa afasta a possibilidade de ter sido dada oportunidade à arguida de pagar a importância da dívida ".
X - O que os Serviços dos Transportes Colectivos pretenderam, foi denunciar a arguida como autora da contravenção ao artigo 3, nº 2 do Decreto-Lei nº 118/78 de 24 de Maio.
XI - Bem rejeitada foi a acusação por " manifestamente infundada ", até porque a submissão de um arguido a julgamento sem fundamento válido e que vem a ser absolvido, " não deixa de constituir uma forma de punição não só pela mancha do seu bom nome e reputação, como também pelo sofrimento - às vezes traduzido em prisão preventiva e despesas e incómodos que advém dessa submissão " - cf. Acórdão da Relação de Évora de 09/06/92 in Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo 3, página 358.
De conformidade com o exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando o douto despacho recorrido.
Não é devida taxa de justiça.
Porto, 10 de Março de 1993
Ramiro Correia
Judak Figueiredo
Fonseca Guimarães