Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
24733/17.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: DIREITO A RESERVA SOBRE A INTIMIDADE
INTROMISSÃO NA VIDA PRIVADA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
Nº do Documento: RP2019041124733/17.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º693, FLS.219-232)
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeito de se estabelecer o limite da condenação, a que se refere o artigo 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o valor do pedido global a considerar é aquele que, decorrendo da mesma causa de pedir, se apresenta como a soma do valor de várias parcelas, em que o mesmo se desdobra ou decompõe.
II - Os limites da condenação, ditados pelo princípio do dispositivo, reportam-se ao pedido global e não às parcelas em que, para determinação do quantum indemnizatório, há que desdobrar o cálculo do dano.
III - O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direito fundamental de personalidade, caracteriza-se juridicamente como inato, inalienável, irrenunciável e absoluto, no sentido de que se impõe, por definição, ao respeito de todas as pessoas.
IV - A esta luz, a reserva juscivilística envolverá, designadamente, a proibição de introdução não autorizada em casa alheia, a proibição de observação às ocultas do domicílio de outrem e das pessoas que nele se encontrem, bem como a proibição de captação fotográfica ou por qualquer outro meio de imagens da residência de cada qual, e na área, privada, que a circunda (logradouro, jardim, parque, etc.).
V - Consequentemente, sempre que terceiro capte, sem o consentimento dos respectivos proprietários, imagens da sua residência através de um drone que a sobrevoou, passando essas imagens a fazer parte de um vídeo que divulgou nas redes sociais (sendo aí alvo de várias visualizações e partilhas), pratica aquele um facto ilícito (na primeira variante de ilicitude prevista no nº 1 do art. 483º do Código Civil), porque violador do mencionado direito absoluto.
VI - Os danos não patrimoniais consequentes a lesões a direitos de personalidade podem ser rotulados, em regra, como graves, justificando a atribuição de uma compensação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 24.733/17.3T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto – Juízo Local Cível, Juiz 8
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
B… e C… intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra D…, S.A., na qual concluem pedindo a condenação desta a pagar-lhes uma indemnização de €5.000,00 por danos patrimoniais e de €3.000,00 de danos não patrimoniais decorrentes da violação do direito de reserva da intimidade e vida privada e direito de propriedade ou, em alternativa, ao recebimento da quantia de €8.000,00 pela utilização comercial indevida da imagem da sua propriedade privada com base em enriquecimento sem causa, bem como a verem retirada da rede social digital facebook a imagem da sua casa com a sanção pecuniária compulsória por cada dia em não se cumpra a decisão no valor de €5.00.
Citada a ré apresentou contestação na qual alega, em síntese, que com o vídeo em causa não pretendeu obter qualquer tipo de vantagem financeira, nem teve intenção de ofender a vida privada dos autores, tratando-se de um vídeo institucional efectuado sem qualquer intrusão na propriedade de quem quer que seja e, portanto, sem aptidão para a produção dos danos alegados por aqueles.
Realizou-se audiência prévia, sendo proferido despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objecto do litígio e fixaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser prolatada sentença na qual se julgou a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência condenou a ré «a pagar aos autores a quantia de €6.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, devidos à taxa legal para as operações civis, contabilizados desde esta data até integral pagamento e, ainda, a retirar o vídeo da rede digital do facebook, com a sanção pecuniária compulsória no montante de €5.00/diários por cada dia de atraso, após o trânsito em julgado da presente ação, no mais se absolvendo a ré».
Não se conformando com o assim decidido, veio a ré interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes:
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3. Recurso da matéria de facto
3.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
A)- Encontra-se inscrito em nome da autora, C… junto da Autoridade Tributária e Aduaneira um imóvel situado no concelho de Águeda, distrito de Aveiro, freguesia de …, com o artigo matricial n.º 375.
B)- A ré é uma sociedade comercial dedicada ao comércio de pronto-a-vestir conhecida por G…, SA e que em 1 de março de 2013 passou a designar-se D…, SA.
C)- Ao autor, através do seu filho E… foi dado a conhecer um vídeo que a ré divulgou na sua plataforma de rede social facebook alusiva ao aniversário da empresa e marca “ G…”.
D)- Onde aparece a casa pertencente aos autores.
E)- Desde 4 de julho de 2017 que se mantém on-line este vídeo, a que se acede em https://www.facebook.com/search/..., ou por simples introdução no campo de pesquisa em qualquer página inicial do Facebook da frase «G… 50 anos», ou no canal youtube em https://www.youtube.com/watch... a afirmação, que acompanha o vídeo, e que diz «..! Cumprem-se 365 dias celebração do aniversário dos nossos .... É tempo de voltar a agradecer. Este belo vídeo que hoje lançamos é isso mesmo: um pouco da nossa história e um enorme OBRIGADA!».
F)- Este vídeo teve pelo menos 99 mil visualizações e 354 partilhas no facebook e 1600 visualizações no youtube.
G)- As imagens da propriedade dos autores foram obtidas através de um drone que sobrevou a mesma.
I)- E foram captadas e divulgadas sem qualquer pedido prévio aos autores.
J)- A imagem da casa dos autores ocupa 20 segundos seguidos do início de um vídeo de três minutos e dez segundos e aparece ainda no final.
L)- A imagem da casa dos autores é seguida de atividade como uma senhora de idade a tricotar, imagem de lãs, teares, cones de fio, malha, uma unidade fabril com operárias, os pavilhões fabris, uma loja e uma iniciativa de compra, onde as personagens não serão modelos profissionais, uma escolha de compra online, camisas expostas, o desenho de peças, a confeção das mesmas, novamente os armazéns fabris, costura, lavagem, e outras atividades próprias dos vários segmentos deste ramo de atividade e depois aparece novamente a casa dos autores a cerca de 20 segundos do final do vídeo.
M)- A família fundadora da G… tem uma casa própria em ….
N)- O custo da produção base de um vídeo semelhante ao em causa nos autos poderá oscilar entre €10.000,00 e os 15.000,00€ acrescidos de IVA.
O)- Datado de 17 de julho de 2017 foi enviado à ré o email constante de fls. 19 v. e cujo teor se dá por integralmente reproduzido e no qual sob o assunto “Uso abusivo de imagem propriedade privada em vídeo publicitário- N/ cliente C… e B…” se refere que o assunto “já será do conhecimento de V/exas por dois contactos nossos efectuados na semana passada” e que “para grande surpresa dos nossos clientes, V. Exas tem usado a imagem da propriedade de … sem autorização prévia, com a inerente exploração comercial e retorno financeiro indevido. É facilmente identificável a imagem que inaugura o vídeo dos 50 anos da G…, quer no V/ website quer na plataforma social Facebook. (…)” sendo que “será do interesse de V.Exas a resolução amigável do presente assunto (…) caso tal não suceda, ver-nos-emos forçados a desencadear os meios judiciais aos dispor (….).”
P)- Em consequência da conduta da ré os autores sentiram-se incomodados e perturbados com a invasão da sua intimidade e privacidade quer pela divulgação da imagem da sua casa quer pela associação da mesma à marca da ré e à família desta.
R)- A região onde está situado o estabelecimento fabril e casa da ré e casa dos autores, em … é uma região pequena onde todas as pessoas se conhecem.
S)- O vídeo em causa nos autos foi ainda divulgado na página oficial da ré.
T)- Para realização de um vídeo o Palácio H… propôs a ré o preço de €1.900 pela disponibilização do Salão Nobre.
U)- Para além do vídeo em causa nos autos a ré entre o período de 4.7.2016 a 4.7.2017 realizou outras campanhas e outros vídeos.
V)- Do vídeo em causa nos autos e para além das imagens a que se alude supra e de outras existem imagens de Arrancada, de crianças a dançar ballet e a tocar violino.
X)- Pelos serviços prestados, no âmbito da realização do vídeo em causa, a ré liquidou à empresa I… a quantia de €7.500,00 acrescida de IVA.
Z)- O vídeo em causa encerrava o ciclo de comemorações dos 50 anos da G….
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2.3. Factualidade considerada não provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
- o vídeo em causa nos autos tenha sido objeto de comentários, conversas e interpelações e associações erradas entre a casa dos autores e a ré em …;
- relativamente ao imóvel dos autores não se tenha acesso à visualização das janelas ou porta de acesso principal;
- o vídeo em causa nos autos se destinasse a ser visto única exclusivamente pelos clientes G…;
- e não se destinasse a promover as peças que se comercializam na G….
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4. FUNDAMENTOS DE DIREITO
4.1. Da (alegada) violação do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada e familiar dos autores
No caso vertente, o tribunal a quo considerou que a ré, ao captar imagens da casa dos autores e utilizá-las num vídeo que divulgou em mais que uma rede social com várias partilhas e milhares de visualizações sem qualquer consentimento destes, violou o seu (deles, autores) direito à reserva sobre a intimidade da vida privada e familiar, incorrendo, assim, em responsabilidade civil (extracontratual).
A apelante rebela-se contra esse sentido decisório, sufragando o entendimento de que a sua atuação não é passível de consubstanciar qualquer violação do aludido direito de personalidade.
Quid juris?
Como é consabido, adentro da tutela da personalidade, o art. 80º do Código Civil protege, como direito especial, o bem da reserva (resguardo e sigilo) do ser particular e da vida privada de cada indivíduo, que aliás também em ampla medida goza de garantia constitucional[1].
Este direito postula uma liberdade fundamental: a que cada um tem de, sem prejudicar terceiros, orientar a sua vida privada como entender, a qual compreende as mais diversas realidades.
Por isso, a questão que, neste conspecto, se coloca é a de saber o que pode ser considerado conteúdo da vida privada para efeito de protecção juscivilística, sendo certo, desde logo, que a referência a uma “vida privada” inculca uma outra, a “vida pública”, em relação à qual não haverá reserva – ou, pelo menos, o mesmo tipo de reserva.
Em termos gerais tem-se entendido[2] que a reserva da vida privada que a lei protege compreende os actos que devem ser subtraídos à curiosidade pública, por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos, os afectos, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, as dificuldades próprias da difícil situação económica e as renúncias que implica e até por vezes o modo particular de ser, o gosto pessoal de simplicidade que contraste com certa posição económica ou social; os sentimentos, acções e abstenções que fazem parte de um certo modo de ser e estar e que são condição da realização e do desenvolvimento da personalidade. Tratar-se-á, numa delimitação possível ou de simples referência de critérios, dos sectores ou acontecimentos da vida de cada indivíduo relativamente aos quais é legítimo supor que a pessoa manifeste uma exigência de discrição como expressão de um direito ao resguardo.
No entanto, a delimitação do conceito de vida privada para o efeito que ora nos ocupa não é fácil[3], sendo a extensão da reserva variável em função de circunstâncias concretas e da maior ou menor notoriedade das pessoas envolvidas.
Assim o exprime, aliás, o artigo 80.º do Código Civil, que, depois de afirmar que «todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem» (n.º 1), apresenta dois critérios de que poderá socorrer-se o intérprete na delimitação do âmbito de tutela do direito à intimidade da vida privada, dispondo que «a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas» (n.º 2).
De facto, a notoriedade de certas pessoas reduz o objecto do direito de reserva à intimidade da vida privada. A relevância social de certas pessoas, pelas funções que desempenhem, pela profissão que exercem, pela celebridade que alcançaram ou pela proeminência social que atingiram, pode justificar que factos ou circunstâncias da vida privada e peculiaridades que esta apresente sejam transmitidos ao conhecimento do público por exigências de interesse público. Em tais casos, a colectividade tem interesse, que deve ser considerado legítimo, em conhecer factos da vida de personagens que, consciente ou inconscientemente, ou mesmo por força da natureza das relações sociais, se expõem à publicidade. Nestes casos, e muito embora a reserva da intimidade conserve sempre um círculo inultrapassável, «a vida privada tenderá a abranger menos aspectos e a ser mais limitada do que a das pessoas que cultivam o que LYON-CAEN chamou de “jardim secreto”, ou seja, que vêem no anonimato e na conservação de uma esfera de isolamento, condições indispensáveis à sua felicidade»[4].
Por outro lado, a extensão da reserva é também condicionada pela natureza do caso. Trata-se não já de atender a elementos subjectivos, mas a caracteres objectivos; de traços específicos que caracterizam e envolvem uma determinada situação concreta independentemente da pessoa considerada. Serão os casos, em princípio, de actos ocorridos em público, acessíveis, por isso, ao conhecimento e à apreensão de quem os tenha observado, ou o carácter histórico de determinado evento. O critério objectivo inerente à natureza do caso significará que não será admissível que interesse à reserva tudo quanto é exterior ao sujeito, no sentido de que não pode ser individualizado o que, por definição, é público.
Mas isto apenas como critério geral. É que não será possível admitir que elementos da vida privada de uma pessoa se tornem em actividades públicas pelo simples facto de a pessoa se encontrar em lugar público ou acessível ao público.
Por isso, afigura-se útil aplicar na densificação do conceito de vida privada a chamada «teoria dos três graus ou das três esferas», de criação jurisprudencial alemã[5].
Segundo essa construção, podem diferenciar-se: a esfera da vida íntima ou da intimidade, correspondente a um domínio inviolável e intangível da vida privada, subtraído ao conhecimento de outrem; a esfera da vida privada propriamente dita, que abrange factos que cada um partilha com um núcleo limitado de pessoas; e a esfera da vida pública ou da vida normal de relação, envolvendo factos susceptíveis de serem conhecidos por todos, que respeita à participação de cada um na vida da colectividade.
Na esfera da vida privada stricto sensu integrar-se-á o respeito das camadas intermédias e periféricas da vida privada, como, no que ao caso releva, as reservas do domicílio e de lugares adjacentes, tutelando-se juscivilisticamente para além da residência habitual, as residências secundárias e outras formas de habitação, mesmo que a título ocasional ou transitório, aí se abrangendo outrossim logradouros, quintais, pátios, jardins ou espaços vedados anexos à habitação.
Aliás, como já anteriormente se referiu, a inviolabilidade de domicílio está igualmente garantida constitucionalmente (cfr. art. 34º, nº 1 da Lei Fundamental), sendo que a doutrina se vem pronunciando no sentido de que essa garantia abrange não só a residência habitual (incluindo habitações precárias), mas também a residência ocasional, os locais de trabalho, o domicílio voluntário geral e o domicílio profissional[6].
A esta luz, a reserva juscivilística envolverá, designadamente, a proibição de introdução não autorizada em casa alheia, a proibição de observação às ocultas do domicílio de outrem e das pessoas que nele se encontrem, bem como a proibição de captação fotográfica ou por qualquer outro meio (v.g. por teleobjectivas, vídeo ou por intermédio de drones) de imagens do interior do domicílio no seu conceito amplo. De facto, o domicílio integra o que se vem denominando de “núcleo duro da vida privada”[7], sendo que nesse núcleo estará naturalmente o que se passa no interior da residência de cada qual, e na área, privada, que a circunda (logradouro, jardim, parque, etc.), já que a casa é - na expressão do acórdão do STJ de14.06.2005[8] - “o último reduto da privacidade de cada um, o lugar onde cada pessoa, em princípio, está como quer e só com quem quer”.
Ora, o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direito fundamental de personalidade, caracteriza-se juridicamente como inato, inalienável, irrenunciável e absoluto, no sentido de que se impõe, por definição, ao respeito de todas as pessoas.
Consequentemente, sempre que terceiros registem ou documentem imagens do domicílio de outrem pela forma descrita e sem a anuência do titular do respectivo direito de personalidade tal consubstancia uma violação objectiva do mesmo, isto é, independentemente da intenção do agente[9].
Como assim, ao invés do que a apelante preconiza, ao captar, sem o consentimento dos autores, imagens da propriedade destes através de um drone que a sobrevoou, passando essas imagens a fazer parte de um vídeo que divulgou nas redes sociais (sendo aí alvo de várias visualizações e partilhas), praticou, pois, um facto ilícito (na 1ª variante de ilicitude prevista no nº 1 do art. 483º do Cód. Civil), porque violador do mencionado direito absoluto.
Improcedem, pois, as conclusões 22 a 26.
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4.2. Da (alegada) insignificância dos danos
A apelante esgrime igualmente o argumento de que, mesmo admitindo a antijuridicidade do seu comportamento, ainda assim não existe fundamento para a fazer incorrer em responsabilidade civil, posto que os danos (não patrimoniais) sofridos pelos autores não assumem a gravidade legalmente suposta para justificar a atribuição de uma indemnização.
É certo que a lei substantiva (art. 496º, nº 1 do Cód. Civil) estabelece como requisito específico de admissibilidade da indemnização (rectius, compensação) aí prevista, a acrescer aos pressupostos gerais da responsabilidade civil definidos no art. 483º, que o dano se revista de gravidade tal que mereça a tutela do direito.
Com o estabelecimento desse pressuposto específico (atribuindo ao julgador a tarefa de apreciar quais os danos que pela sua gravidade merecem a tutela do direito) visou o legislador evitar o risco de um indiscriminado alargamento da responsabilidade civil, permitindo a adequação do Direito positivo à evolução do sentido de justiça na consciência jurídica, não excluindo a compensação do dano não patrimonial considerado digno de tutela em cada momento histórico, mas vedando, ao mesmo tempo, a indemnização dos danos considerados triviais ou insignificantes.
Ora, contrariamente ao posicionamento da apelante, a gravidade do dano não tem tanto a ver com a sua dimensão ou extensão mas sobretudo com a seriedade – ou melhor, a juridicidade – da situação[10], o que temos por adquirido em casos como a dos autos, já que ninguém (fora das hipóteses legalmente previstas) é obrigado a “suportar” a intromissão alheia na sua residência sem o seu consentimento.
Daí que, como bem enfatiza MENEZES CORDEIRO[11], «na presença de um direito de personalidade, tal “gravidade” tem-se como consubstanciada: a indemnização deve ser arbitrada (…). Trata-se de uma peça-chave na concretização social dos direitos de personalidade».
Afirmado, deste modo, que o comportamento da ré integra uma violação do direito de personalidade dos autores e assume gravidade que justifica a atribuição de uma compensação pelos danos (não patrimoniais) ocasionados, resta determinar se o quantum fixado pelo decisor de 1ª instância se revela ajustado, o que nos conduz à apreciação da última questão que baliza o objecto do presente recurso.
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4.3. Da justeza do valor fixado a título de compensação pelos danos não patrimoniais
A apelante insurge-se, também, contra o montante arbitrado na decisão recorrida por o considerar excessivo, pugnando que o mesmo deve antes cifrar-se, quando muito, em valor não superior a €1.000,00.
Atentemos.
Nesta matéria rege o art. 496º Código Civil, cujo nº 1 dispõe que “[N]a fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” e, prossegue-se no nº 3 do mesmo preceito, “[O] montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”.
O legislador fixou, pois, como critérios de determinação do quantum indemnizatur por danos não patrimoniais: a equidade (artigo 496.º, nº 3); o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso (art. 494º ex vi da primeira parte do nº 3 do art. 496.º).
Como, a este propósito, tem sido recorrentemente sublinhado, a responsabilidade civil por danos não patrimoniais assume uma dupla função: compensatória e punitiva.
Compensatória porquanto o quantum atribuído a título de danos não patrimoniais consubstancia uma compensação, uma satisfação do lesado, porque se atende à extensão e gravidade dos danos (art. 496.º, nº 1).
A função punitiva advém da circunstância da lei enunciar que a determinação do montante da indemnização deve ser fixada equitativamente, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso.
O art. 496.º, nº 1 do Código Civil confia, assim, ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, não em função da adição de custas ou despesas, mas no intuito de arbitrar ao lesado a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ele se viu afetado. Daí que os danos não patrimoniais não possam sujeitar-se a uma medição mas sim a uma valoração.
A gravidade do dano dever aferir-se por um padrão objetivo e não por um padrão subjetivo derivado de uma sensibilidade requintada ou embotada. Na fixação do montante da compensação deve também atender-se aos padrões adotados pela jurisprudência, à flutuação do valor da moeda, à gravidade do dano tendo em conta as suas repercussões, os constrangimentos sofridos pelo lesado bem como outras circunstâncias do caso que se mostrem pertinentes.
Impõe-se uma verdadeira tutela do dano não patrimonial e o valor da compensação deve ser fixado equitativamente, considerando, na forma enunciada, todas as circunstâncias que contribuam para uma solução harmoniosa, equitativa e justa, atendendo à referência dos critérios geralmente adotados pela jurisprudência e a todas as circunstâncias do caso concreto que permitam alcançar aquele desiderato, designadamente ressarcir o mal feito e desincentivar, quer junto do agente, quer junto de outros elementos da comunidade, a repetição de práticas prevaricadoras. Este último aspeto é particularmente enfatizado por MENEZES CORDEIRO[12] nas situações, como a presente, em que esteja em causa a violação de direitos de personalidade, sustentando que se torna “fundamental que o agente nunca possa retirar benefícios da sua actuação prevaricadora: nem imediatos, vendendo, por hipótese e com lucros, o produto da devassa, nem mediatos, através da notoriedade que obtenha. Desta forma, no cálculo da indemnização, o Tribunal, além dos demais aspectos do caso, deverá suprimir o lucro e, ainda, retribuindo o mal feito, prevenir, em geral e no particular, a repetição das afrontas”, acrescentando, mais adiante, que “na actual civilização tecnológica, apenas o Direito, apoiado na cultura que o suporte, poderá prevenir a total devassa da privacidade do ser humano”.
Como assim, ponderando essas necessidades desincentivadoras e de prevenção, considerando que a casa dos autores ficou identificável no que se refere à sua localização e que as imagens da mesma foram divulgadas nas redes sociais onde essas imagens foram alvo de diversas visualizações e partilhas (pelo menos 99 mil visualizações, 354 partilhas no facebook e 1600 visualizações no youtube, com grande probabilidade de aumento desses números, já que, como é consabido, com o desenvolvimento dessas redes e a sua utilização para comunicar, a comunicação deixou de ser one-to-one para passar a ser one-to-millions, na medida em que essas visualizações são efectuadas, praticamente, sem qualquer limitação) e considerando os constrangimentos sofridos pelos autores com a violação registada ao seu direito de reserva, cremos, ainda assim, que o valor fixado pelo tribunal a quo acaba por se mostrar excessivo para os ressarcir, tendo sobretudo em atenção o curto tempo de visualização da casa (que, no seu conjunto, não ultrapassa vinte segundos), o facto de as imagens terem sido colhidas com certo distanciamento em relação às partes “mais reservadas” do imóvel e a gravidade dos danos, que assume um grau menos intenso do que teria sucedido se as imagens registadas tivessem sido de quartos, de salas ou de zonas de serviço da residência ou de pessoas no seu interior.
Destarte, nos termos do art. 566º, nº 3 do Cód. Civil, reputamos como razoável e équo fixar essa compensação no montante de €4.000,00 (quatro mil euros).
Procedem, assim, em parte, as conclusões recursórias formuladas pela recorrente.
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III - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente em consequência do que se altera a decisão recorrida, condenando-se a ré no pagamento aos autores da quantia de €4.000,00 (quatro mil euros), a título de compensação pelos danos não patrimoniais, confirmando-se no mais a decisão recorrida.
Custas a cargo de autores e ré na proporção do respetivo decaimento.
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Porto, 11.04.2019
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Cfr. arts. 26º, nºs 1, in fine, e 2 (direito à reserva da intimidade da intimidade da vida privada e familiar), 34º (inviolabilidade do domicílio e da correspondência) e 35º (proibições de tratamento informático de dados referentes à vida privada e de acesso a dados pessoais).
[2] Cfr., sobre a questão e inter alia, Parecer n.º 95/2003 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in Diário da República, II Série, n.º 54, de 4 de Março de 2004.
[3] Sobre a dificuldade de definição de um conceito de privacidade e as diversas dimensões do conceito de «privacy», que alguns definem como o «direito a ser deixado só ou a ser deixado em paz», cf. PAULO MOTA PINTO, O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume LXIX, Coimbra, 1993, pp. 504-524.
[4] Assim, RITA AMARAL CABRAL, O Direito à Intimidade da Vida Privada (Breve reflexão acerca do artigo 80.º do Código Civil), Separata dos Estudos em Memória do Professor Paulo Cunha, 1988, pág. 26 e seguinte.
[5] Para maior desenvolvimento, cfr., MENEZES CORDEIRO, in Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, tomo III (Pessoas), 2004, págs. 206 e seguintes e PAULO MOTA PINTO, A limitação voluntária do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. II, 2001, pág. 530 e seguinte.
[6] Cfr., inter alia, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa, 3ª edição revista, pág. 213.
[7] Cfr., por todos, acórdãos do Tribunal Constitucional de 11.04.1992 e de 23.04.1997, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
[8] Prolatado no processo nº 05A945, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Assim, MENEZES CORDEIRO, ob. citada, pág. 215.
[10] Sobre o critério da gravidade, vide desenvolvidamente MARIA MANUEL VELOSO, Danos não patrimoniais, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III, 2007, págs. 501-508.
[11] Ob. citada, pág. 112; no mesmo sentido milita MARIA MANUEL VELOSO (ob. citada, pág. 505), onde sustenta que danos consequentes a lesões de bens da personalidade podem ser rotulados, em regra, como graves.
[12] Ob. citada pág. 215; em análogo sentido se pronuncia PAULA MEIRA LOURENÇO, in A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2006, págs. 288 e seguintes.