Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
109/14.3T9LRA.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
ADMISSIBILIDADE DA INSTRUÇÃO
INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
INQUÉRITO
Nº do Documento: RP20190522109/14.3T9LRA.P1
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 801, FLS 51-59)
Área Temática: .
Sumário: I – Admitida a abertura de instrução, ficou esgotado o poder jurisdicional quanto a tal questão, pelo que não pode o juiz, posteriormente e por ter estudado a matéria mais profundamente, considerar que aquela é inadmissível
II – Não é possível a utilização, simultânea ou subsequente, da intervenção hierárquica e da abertura de instrução para reagir a um mesmo despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público.
III – Lançado mão da intervenção hierárquica e obtendo sucesso, uma vez proferido novo despacho final do inquérito, pode o assistente, se confrontado com novo despacho de arquivamento, optar por um dos dois referidos meios de reação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 109/14.3T9LRA.P1
Secção Criminal

Conferência

Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Comarca: Porto
Tribunal: Porto - Juízo de Instrução Criminal-J1
PROCESSO: Instrução n.º 109/14.3T9LRA

ASSISTENTE/RECORRENTE: B…
ARGUIDO: C…

Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
1. Os denunciantes D… e B…, confrontados com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a 5/12/2016 e ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, no âmbito do inquérito n.º 109/14.3T9LRA, que corria termos na 1ª Secção do DIAP de Gondomar, dos Serviços do Ministério Público da Comarca do Porto, relativamente a factos vertidos na denúncia por si apresentada contra Dr. C… e desconhecidos, susceptíveis de integrar a prática dos crimes de falsificação de documento e burla qualificada, previstos e puníveis, respectivamente, pelos arts. 256º, n.ºs 1 e 3 e 218º, do Cód. Penal, suscitaram a intervenção hierárquica prevista no art. 278º, do Cód. Proc. Penal, por entenderem que não tinham sido esgotadas todas as diligências probatórias adequadas à cabal identificação do autor das infracções em causa.
2. A tese dos denunciantes obteve vencimento já que, por decisão proferida a 03/02/2017, pelo Ex.mo Sr. Procurador da República Coordenador das Secções de Gondomar do DIAP do Porto, foi deferido o pedido de prosseguimento da investigação por aqueles formulado.
3. Reaberto o inquérito e realizadas as diligências probatórias sugeridas no incidente de intervenção hierárquica e outras tidas por necessárias e convenientes, foi proferido, a 5 de Setembro de 2018, novo despacho de arquivamento, também ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
4. Notificados os denunciantes, entretanto, constituídos assistentes nos autos, veio a B… requerer a abertura de instrução, visando a pronúncia do arguido C… pela prática de 1 (um) crime de falsificação, previsto e punível pelo arts. 256º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 3, com referência ao art. 255º, n.º 1, do Cód. Penal.
5. O requerimento foi admitido, por despacho proferido a 8/11/2018, onde se exarou expressamente, além do mais, que “a requerida instrução é legalmente admissível (art. 286º, n.º 1 e 287º, n.º 3, ambos do C. Pr. Penal)”, designando-se logo data para o debate instrutório, posteriormente adiada para 14 de Dezembro, pelas 10h30m, por não terem sido requeridos nem se considerarem necessários quaisquer actos de instrução.
6. Entretanto, a 26 de Novembro de 2018, o arguido fez juntar aos autos requerimento onde suscitou a questão da inadmissibilidade da instrução.
7. Na data aprazada realizou-se o debate instrutório, designando-se para a leitura da decisão o dia 21 de Dezembro de 2018, data em que foi proferida a seguinte decisão instrutória:
“O Tribunal é competente em razão da matéria e do território.
O Ministério Público e a assistente têm legitimidade para acusar.
O arguido C… veio suscitar, já no decurso da presente instrução, a questão da inadmissibilidade legal da presente instrução.
Para tanto, argui que a assistente B… suscitou oportunamente a intervenção do superior hierárquico do magistrado do M. Público que proferiu o inicial despacho de arquivamento do inquérito, razão pela qual, e ao abrigo do disposto no art.º 278.º, n.º 2 do C. Proc. Penal, ficou-lhe vedado requerer posteriormente – como efectivamente requereu – a instrução.
Entende assim o arguido que a presente instrução é legalmente inadmissível, razão pela qual o requerimento de abertura de instrução deverá ser rejeitado.
Cumpre decidir.
No caso vertente, e analisando o inquérito que precedeu a presente instrução, verifica-se que foi proferido um inicial despacho de arquivamento do inquérito, sem acusação; inconformada com tal desfecho, a assistente suscitou a intervenção do superior hierárquico do magistrado ao M. Público que proferiu o dito arquivamento - ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 2 do C. Proc. Penal – a qual mereceu provimento, sendo por isso determinado que o inquérito prosseguisse com a realização de novas diligência probatórias; no termo dessas diligências foi novamente proferido despacho de arquivamento do inquérito, sem acusação.
Foi justamente este segundo despacho de arquivamento que foi objecto de discordância da assistente, que contra ele reagiu, requerendo a abertura da presente instrução, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 1, al. b) do C. Proc. Penal.
É por demais conhecida a controvérsia doutrinal e jurisprudencial em torno da questão de saber se o assistente (e/ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente) pode requerer a abertura da instrução depois de ter suscitado a intervenção do superior hierárquico do magistrado do M. Público que proferiu o arquivamento, sem acusação, do inquérito.
Incontornável é o comando legislativo vertido no art.º 278.º do C. Proc. Penal, do qual resulta com meridiana clareza e sem sombra de dúvida que a opção pela intervenção hierárquica preclude ao assistente (ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente) a possibilidade de requerer a instrução caso não tenha sucesso a suscitada intervenção hierárquica.
Se é assim, poder-se-á perguntar por que razão foi então proferido o despacho que julgou legalmente admissível a presente instrução, uma vez que a assistente já havia em momento anterior suscitado – sem sucesso – a intervenção hierárquica do M. Público.
A razão é simples: uma vez que o segundo despacho de arquivamento (aquele que foi impugnado através do requerimento de abertura de instrução em questão) surgiu na sequência de novas diligências probatórias que ainda não haviam sido realizadas no inquérito, este segundo despacho de arquivamento constituiu um novo e diverso despacho relativamente ao que inicialmente havia arquivado o inquérito e, por isso, se entendeu que era susceptível de ser sindicado por via judicial, através da instrução.
Reconhece-se, porém – e depois de mais profunda e alargada reflexão sobre o assunto – que essa não é a solução que esteve na mente do legislador, quando estabeleceu – ex vi o art.º 287.º do C. Proc. Penal – a dicotomia intervenção hierárquica/instrução.
Na verdade, a teleologia subjacente a essa rígida dicotomia legal intervenção hierárquica/instrução parecer ser a seguinte:
- o assistente (ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente), face ao arquivamento do inquérito sem acusação tem a faculdade (o poder potestativo, se assim se quiser entender) de optar livremente pela intervenção hierárquica ou pela instrução;
- a optar por qualquer delas (maxime, pela intervenção hierárquica) fica – definitiva e inexoravelmente – precludida a outra via, seja qual for o desfecho da via que escolheu.
Parece de facto poder inferir-se do texto da lei que se pretendeu manter a impugnação do despacho de arquivamento circunscrito exclusivamente ao M. Público (intervenção hierárquica) ou ao juiz de instrução criminal (instrução), sem possibilidade da existência de vasos comunicantes entre estas duas autoridades judiciárias.
Teleologicamente - e por apelo até à coerência do sistema jurídico processual penal - parece ser lícito afirmar-se que o que o legislador pretendeu consagrar foi um sistema rígido (não flexível) de impugnação do despacho de arquivamento do inquérito sem acusação, seja intramuros (através da intervenção hierárquica) ou extramuros (através do requerimento de abertura de instrução), mutuamente exclusivos: se o assistente (ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente) optou por provocar a intervenção hierárquica, não pôde deixar de antever o risco de soçobrar a sua pretensão: seja pelo indeferimento liminar do seu requerimento pelo superior hierárquico do magistrado do M. Público titular do inquérito, seja – como ocorreu no caso em apreço – pelo segundo despacho de arquivamento, subsequente às diligências ordenadas pelo superior hierárquico.
Ou seja, e em suma: o legislador pretendeu estabelecer de modo alternativo e mutuamente exclusivo a possibilidade de o assistente (ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente) reagir ao despacho de encerramento do inquérito sem acusação: a intervenção hierárquica ou a instrução; escolhendo a solução não judicial, o assistente (ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente) jamais pode suscitar a apreciação desse arquivamento ao juiz de instrução criminal; o mesmo se diga, mutatis mutandis, se optar pela instrução, pois nesse caso não pode submeter a apreciação dessa abstenção de acusar ao superior hierárquico do magistrado do M. Público que determinou o arquivamento do inquérito…
Assim sendo, é mister reconhecer que tem razão o arguido quando veio suscitar a questão da inadmissibilidade da presente instrução, em virtude de a assistente ter logo optado por provocar a intervenção hierárquica, subsequente ao inicial arquivamento do inquérito.
Resulta por isso do exposto que foram praticados actos que a lei não permitia que o fossem (a abertura da instrução e o subsequente debate instrutório), o que origina a irregularidade do despacho que declarou aberta a instrução (art.ºs 118.º, n.ºs 1 e 2, 119.º e 120.º - ambos a contrario sensu – e 123.º, todos do C. Proc. Penal).
Essa irregularidade implica não só a invalidade do dito despacho, como de todos os actos subsequentes (ou seja, afecta a instrução, no seu todo), o que ora se declara, com o consequente arquivamento dos presentes autos, uma vez que, não sendo legalmente admissível a instrução, os autos não podem prosseguir.
(…).”
8. Inconformada, a assistente B…, interpôs recurso, finalizando a motivação com as conclusões que se transcrevem:
1. A douta decisão proferida no âmbito dos presentes autos impunha, no entendimento do recorrente, decisão diametralmente oposta.
2. Considera-se na decisão, ora colocada em crise, que foram praticados actos contrários à lei, e em consequência, uma vez verificada essa irregularidade implica, não só a invalidade do despacho que admitiu a abertura de instrução, como como todos os actos subsequentes.
3. Findo o inquérito, realizado na sequência da denúncia apresentada pela recorrente e seu marido contra o arguido, Ex.mo Dr. C…, foi proferido despacho de arquivamento, datado de 05.12.2016, proclamado pelo Digno Procurador-Adjunto titular do processo - Fls. 419 e seguintes.
4. O referido despacho de arquivamento fundamenta-se na falta de indícios suficientes que permitam concluir que os arguidos praticaram os crimes que constam da denúncia apresentada, e, por outro lado, considerou-se não haver qualquer utilidade na realização de outras diligências para esclarecimento da verdade material dos factos.
5. Deste despacho, a recorrente e marido, suscitaram a intervenção hierárquica nos termos do disposto no artigo 278º do Código do Processo Penal.
6. Na sequência do deferimento da intervenção hierárquica formulada, foi determinada a reabertura do inquérito nos presentes autos. Cfr. Fls. 463 a 472.
7. Não obstante os novos actos de inquérito realizados, entendeu o Digno Procurador-Adjunto arquivar o processo, por considerar que não foram recolhidos elementos de prova que indiciassem suficientemente a prática dos crimes pelos arguidos. Cfr. Despacho datado de 05.09.2018.
8. A recorrente reagiu ao primeiro despacho de arquivamento através da intervenção hierárquica o qual teve provimento, ou seja, o Digno Procurador da República não manteve o arquivamento, antes determinou a realização de novas diligências, o que teve como consequência a reabertura do inquérito.
9. No entendimento da recorrente, se a decisão proferida em sede de Intervenção Hierárquica fosse no sentido de confirmar o arquivamento, estava-lhe vedada a possibilidade de requer a abertura de instrução face ao estipulado nos artigos 278º e 287º do Código do Processo Penal, uma vez que foi clara a intenção do legislador em evitar o recurso a tais institutos de forma cumulativa ou sucessiva.
10. Mas não foi isso que aconteceu, já que em sede de intervenção hierárquica determinou-se a realização de outras investigações que determinaram a reabertura do inquérito, tendo o segundo despacho sido proferido pelo Digno Procurador-Adjunto titular do processo e não pelo seu superior hierárquico.
11. Ou seja, entende a recorrente que nada impede de, perante este novo arquivamento, optar pela abertura de instrução. Cfr. Artigo 287º do Código do Processo Penal.
12. Uma vez que se trata de um novo despacho, que aprecia novas diligências de investigação e proferido na sequência da reabertura do inquérito e não um despacho confirmativo do arquivamento inicial.
13. Ao entender de forma diferente o Tribunal a quo, violou o disposto no artigo 287º do Código Penal.
9. Admitido o recurso, por despacho proferido a fls. 747 dos autos, responderam o Ministério Público e o arguido C…, o primeiro sufragando a procedência do recurso e este o seu não provimento, rematando as respectivas motivações com as conclusões seguintes: (transcrição sem destaques/sublinhados)
Ministério Público
1. As alterações legislativas aos arts 278º e 287º ambos do CPP inculcam a convicção de que foi intenção do legislador evitar que o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, pudessem cumulativamente requerer a intervenção hierárquica e a abertura da instrução relativamente, que estamos, perante dois meios de reacção alternativos e não cumulativos, sendo essa a posição que reputamos unânime da jurisprudência
2. No caso que nos ocupa existiram dois despachos de arquivamento distintos: ao primeiro despacho os assistentes reagiram por considerem não estar esgotados todos os meios de prova requerendo por isso através da intervenção hierárquica a reabertura do inquérito; no segundo despacho de arquivamento reagiram os assistente requerendo que o Mº juiz de instrução pronunciasse os arguidos por entenderam que os autos já dispunham de elementos que permitiam submeter os arguidos a julgamento;
3. Com efeito, confrontados com o despacho de arquivamento proferido a 5 de Dezembro de 2016 os assistentes suscitaram a intervenção hierárquica requerendo a reabertura do inquérito com a realização de novas diligências de investigação;
4. A intervenção hierárquica culminou com o superior hierárquico do magistrado titular do inquérito no âmbito dos poderes de coordenação e de direcção ordenado a reabertura do inquérito e a realização de novas diligências;
5. Realizadas as novas diligências de prova ordenadas foi proferido pelo Ministério Público titular do inquérito novo despacho de arquivamento que mereceu discordância dos assistentes e que requerem a abertura de instrução por entenderem, desta feita, que os elementos constantes no inquérito eram de molde a requerer o julgamento dos arguidos.
6. Acresce que a fase de instrução não se destina a completar o inquérito, a realizar diligências ali omitidas e necessárias para decidir se o processo deve transitar para a fase de julgamento.
7. Assim o assistente ao considerar que a investigação foi deficiente e pretendendo que seja completada, perante um despacho de arquivamento reagiu com o único meio próprio ao seu dispor que foi a suscitação da intervenção hierárquica, com vista a que se determine, nos termos do n.º 1 do artigo 278º o prosseguimento das investigações, com a realização das diligências necessárias, foi o que ocorreu nos autos com a intervenção hierárquica requerida.
8. Pelo que, face ao primeiro despacho de arquivamento por falta de indícios suficientes que fundamentassem uma acusação que resultou de uma deficiente investigação, com omissão de diligências essenciais, estava vedada aos assistentes a via da instrução, o meio próprio para reagir teria de ser o que utilizaram, a intervenção hierárquica no termos do art. 278º, do CPP.
9. No requerimento de intervenção hierárquica os assistentes não requerem, conforme o podiam fazer, que o superior hierárquico do titular do inquérito ordenasse a dedução de acusação o que eles pretenderam, e foi-lhes deferido, é que fosse reaberto inquérito e realizadas novas e mais diligências de prova.
10. Já o desiderato pretendido com o requerimento de abertura de instrução após o segundo despacho de arquivamento foi a prolação de despacho de pronúncia por entenderem que com as diligências entretanto realizadas os autos já dispunham de elementos suficientes que permitiam o julgamento dos arguidos.
11. Nesta medida é nossa convicção que tem sido reaberto inquérito e proferido novo despacho de arquivamento nos termos do art. 277º, do CPP abriu-se para os assistentes oportunidade requerer a abertura de instrução.
Arguido C…
1ª- A douta decisão recorrida, prolatada pelo Tribunal “a quo”, com rigor e competência exemplar, não merece a menor censurabilidade, antes pelo contrário, o Meritíssimo Juiz “a quo”, fez a correcta apreciação e aplicação do direito.
2ª- À recorrente fenecem, por completo, razões de direito para poder contrariar a bem elaborada, ponderada e douta decisão instrutória que, decidindo pela irregularidade do despacho que declarou aberta a instrução e pela sua invalidade, como de todos os actos subsequentes (a instrução no seu todo), declara o arquivamento dos presentes autos.
3ª- Pese embora, ter sido, inicialmente, recebido o requerimento de abertura de instrução, apresentado pela assistente/recorrente, por douta decisão instrutória, de fls. 724 e ss., ora recorrida, o Meritíssimo JIC, decidiu pelo arquivamento dos autos, por inadmissibilidade legal da instrução, decisão essa que não merece qualquer censura.
4ª- Após terem sido realizadas todas as diligências de inquérito pertinentes, designadamente, com a inquirição de testemunhas, realização de exames periciais, etc., em 05/12/2016, foi proferido, pelo Ex.mo Procurador-Adjunto, douto despacho de arquivamento, por se considerar que não se recolheram indícios suficientes da prática de qualquer ilícito penal, por parte dos arguidos.
5ª- Os ofendidos, devidamente notificados, de que, novamente, os autos tinham sido arquivados, não se conformando com aquele douto despacho de arquivamento, e não obstante, poderem requerer a abertura de instrução, optaram, inicialmente, por requereram a intervenção hierárquica, nos termos do disposto no art.º 278º, do C.P.Penal, a qual foi deferida e determinada a reabertura dos autos.
6ª- Reabertos os autos, não tendo sido carreadas quaisquer provas digno de crédito, o digno Procurador-Adjunto, por douto despacho de 05/09/2018, concluiu que “Não existindo quaisquer outros elementos probatórios que indiciem suficientemente a autoria dos factos, surgem-nos dúvidas da sua prática por parte dos arguidos.”, terminando por proferir, douto despacho de arquivamento, o qual, salvo o devido respeito, não merece a menor censura.
7ª- Sucede que, a assistente, ora recorrente, face à notificação que lhe foi efectuada pelo DIAP de Gondomar, utilizando a “folha tipo” das notificações, notifica os assistentes daquele despacho de arquivamento, subsequente, à intervenção hierárquica, ali deixando escrito, erradamente, de que dispõem do prazo de 20 dias para, querendo, requerer: Intervenção hierárquica (278º, n.º 2, do CPP); ou Abertura de Instrução (287º, n.º 1, al. b), do CPP); aproveitando-se dessa notificação, a recorrente, veio a requerer a abertura de instrução.
8ª- Contudo, tendo sido proferido despacho de arquivamento, após a conclusão do inquérito, em que os assistentes poderiam optar por requerer a intervenção hierárquica ou requerem a abertura de instrução, tendo optado pela intervenção hierárquica, pondo de parte a abertura de instrução, renunciaram, ao abrigo do disposto no art.º 278º, do C.P.Penal, a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento.
9ª- Acresce que, como a intervenção hierárquica, concluiu no mesmo sentido do que já havia sido decidido no inquérito, isto é, pelo arquivamento, havendo, assim uma “dupla conforme”, vieram, agora, e porque sucumbiram na intervenção hierárquica do M.P., requerer a abertura de instrução, constituindo, destarte, duplo despacho de arquivamento.
10ª- De acordo com o art.º 278º, n.º 2, do C.P.P., os dois modos de reacção, que assistia à recorrente, quanto ao questionado despacho de arquivamento, isto é, o de requerer a abertura de instrução ou de suscitar a intervenção hierárquica, e que sendo modos de reacção alternativos, e não cumulativos, nem sucessivos, não permite à assistente/recorrente, tentar, primeiro um e depois, caso sucumba, tentar o outro, como sucedeu “in casu”, em que, tendo na opção escolhida, sucumbido com o douto despacho de arquivamento do M.P., vem, então utilizar a outra alternativa, já precludida a da abertura de instrução.
11ª- No sentido e orientação ínsita na douta decisão recorrida, veja-se o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Proc. N.º 1759/11.5TAMAI.P1, de 06-02-2013, in www.dgsi.pt, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.
12ª- Dúvidas não poderão restar de que, “in casu”, tendo a assistente/recorrente, optado por apresentar reclamação hierárquica, a qual culminou com o douto e bem elaborado despacho de arquivamento, do Digno Procurador-Adjunto, fica-lhe vedado poder, depois, requerer abertura de instrução, sob pena de, adulterando o disposto no art.º 278º, n.º 2, do C.P.Penal, ver duplamente apreciada uma decisão que lhe é desfavorável e favorável ao arguido, ora recorrido.
13ª- Como elucidativo e eloquentemente é esclarecido na douta decisão recorrida: “Incontornável é o comando legislativo vertido no art.º 278º do C.Proc.Penal, do qual resulta com meridiana clareza e sem sombra de dúvida que a opção pela intervenção hierárquica preclude ao assistente (…) a possibilidade de requerer a instrução caso não tenha sucesso a suscitada intervenção hierárquica.”.
14ª- Veja-se, ainda, neste sentido, o douto Parecer do Conselho Consultivo da PGR, com o N.º 000312009, do Ex.mo Relator Pimentel Marcos, dizendo no item 6, do sumário: “6. O assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir nessa qualidade não podem requerer cumulativa ou sucessivamente a abertura da instrução e a intervenção hierárquica, tendo que optar por uma delas.”
15ª - Destarte, fenecendo, por completo, razões e argumentos à recorrente, para por em crise a douta decisão instrutória, a qual, como já se deixou plasmado anteriormente, tendo interpretado, correctamente, os art.s 278º, n.º 2 e 287º, ambos do C.P.P. e bem assim a doutrina e jurisprudência atinentes à matéria, não merecendo aquela decisão qualquer censura, deverá manter-se, na íntegra, devendo, antes, improceder as 1ª a 13ª conclusões, da motivação de recuso, o qual deverá, ser julgado improcedente por não provado.
10. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o legal parecer – art. 416º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal - pronunciando-se pelo provimento do recurso, louvando-se nos fundamentos da resposta do Ministério Público em 1ª instância que reforçou ainda com pertinentes citações doutrinárias e jurisprudenciais.
11. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, respondeu o arguido insistindo na sua tese.
12. Realizou-se o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência, que decorreu com observâncias das formalidades legais, nada obstando à decisão.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Resulta da estatuição do art. 412º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e é jurisprudência pacífica e perfeitamente estabilizada [v., além do mais, Acórdão do STJ, de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt] que o âmbito do recurso – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - é dado pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação.
Assim, no presente caso, a única questão suscitada é a de saber se após a reabertura do inquérito resultante de intervenção hierárquica suscitada pelo assistente o novo despacho de arquivamento, oportunamente proferido, pode ser objecto de requerimento de abertura de instrução.
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2. Decidindo
§1º Consoante se apura do exposto, o M.mo JIC, após proferir despacho de admissão do requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente, aqui recorrente, onde explicitamente afirmou a respectiva admissibilidade, veio na decisão instrutória a considerar que tal pretensão era inadmissível, admitindo embora que mudara o seu entendimento, não porque tivesse ocorrido qualquer alteração das circunstâncias em que firmara o seu despacho anterior, mas antes em resultado de “mais profunda e alargada reflexão sobre o assunto”.
Ora, estipula o art. 613º, n.º 1 e 3, do Cód. Proc. Civil, aqui aplicável ex vi art. 4º, do Cód. Proc. Penal, que proferida a sentença ou despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo apenas admissíveis alterações que não importem modificação essencial, de harmonia com a previsão do art. 380º, n.ºs 1, al. b), parte final, e 3, deste último diploma legal.
Estes normativos visam assegurar a estabilidade da decisão judicial, tutelando a segurança jurídica e acautelando a arbitrariedade decisória, em homenagem aos princípios da boa-fé e lealdade processual que também aos magistrados se impõem.
E, a este propósito importa sublinhar que a jurisprudência tem entendido que fora dos casos em que, nos termos legais, é permitido ao Juiz rectificar a decisão, o seu poder jurisdicional esgotou-se por imperativo legal, pelo que a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente, não valendo como decisão jurisdicional[1].
Quer isto dizer, que a decisão recorrida nunca poderia subsistir, impondo-se a revogação e substituição por outra que, apreciando os indícios constantes dos autos, pronunciasse ou não pronunciasse o arguido, tal como previsto no art. 308º, do Cód. Proc. Penal.
§2º Todavia, ainda que assim não se entendesse, afigura-se cristalino que a interpretação restritiva realizada na decisão recorrida não tem qualquer cabimento legal.
Vejamos.
A questão reconduz-se aos meios de reacção ao despacho de arquivamento deduzido pelo Ministério Público, contemplados no art. 278º, do Cód. Proc. Penal, com as alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 59/98, de 25/08 e 48/2007, de 29/08, cujo teor é o seguinte:
1 - No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento.
2 - O assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente podem, se optarem por não requerer a abertura da instrução, suscitar a intervenção hierárquica, ao abrigo do número anterior, no prazo previsto para aquele requerimento.
Ainda que anteriormente se tenha questionado a possibilidade de ambos os meios - intervenção hierárquica/requerimento de abertura de instrução - poderem ser usados simultânea ou subsequentemente, cremos que a jurisprudência e doutrina são agora unânimes na afirmação de que o interessado [assistente ou denunciante com a faculdade de se constituir nessa qualidade] apenas poderá optar por uma dessas vias, até porque o prazo disponível para o efeito é único e idêntico [20 dias a contar da notificação do despacho de arquivamento]. E se optar pela intervenção hierárquica já não poderá requerer a abertura de instrução caso aquela não tenha sucesso.
Ocorre que, também in casu e nesta matéria, existe plena sintonia dos intervenientes processuais, sendo ainda certo que é igualmente sobre ela que se debruça o Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 6/2/2013, proferido no processo n.º 1759/11.5TAMAI.P1, disponível in dgsi.pt., insistentemente citado pelo arguido C….
E, também o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 713/2014, publicado no DR n.º 238/2014, II Série, de 10/12/2014, onde se decidiu “Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos artigos 278.º, n.º 2, e 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, optando por suscitar a intervenção hierárquica, o assistente ou o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, vê, sempre e irremediavelmente, precludido o direito de requerer a abertura de instrução ou renuncia a uma apreciação judicial do despacho de arquivamento do titular do inquérito”.
Esta formulação, aliás muito semelhante à vertida na decisão recorrida […a optar por qualquer delas (máxime, pela intervenção hierárquica) fica – definitiva e inexoravelmente – precludida a outra via, seja qual for o desfecho da via que escolheu], tem, porém, um contexto muito diverso do que ora nos ocupa já que o recorrente aí defendia a tese de que o citado art. 278.º, vedando aos interessados a utilização simultânea da intervenção hierárquica e da abertura da instrução, não obstava ao uso sucessivo desses dois instrumentos processuais de controlo da decisão de encerramento do inquérito.
E, fazendo o cotejo da fundamentação desse douto aresto facilmente se intui que, à decisão recorrida, falhou um pressuposto essencial; A preclusão da outra via reporta-se tão-só ao concreto despacho de arquivamento que foi questionado por via hierárquica, aí se explanando o seguinte: “impondo-se concluir que, estando garantida ao assistente ou ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente, nos termos expostos, a possibilidade de requerer a abertura da instrução face a uma decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito criminal, a proibição de o fazer quando opta pela reclamação hierárquica daquela decisão, revelando-se justificada por um fundamento razoável, é uma limitação que não se revela desproporcionada face aos diferentes interesses em jogo, encontrando-se a adoção dessa solução normativa dentro dos poderes do legislador ordinário que lhe são cometidos pelo n.º 7, do artigo 32.º, da Constituição.” (sublinhados e negrito nossos)
Simplesmente não é esse o enquadramento da questão controvertida nos presentes autos.
Com efeito, ao contrário de todas as hipóteses referidas, no caso em apreço, a intervenção hierárquica suscitada pela recorrente quanto ao despacho de arquivamento proferido a 5/12/2016, teve sucesso.
E, tendo sido deferido o pedido de prosseguimento da investigação, ficou obviamente prejudicado o impugnado despacho de arquivamento, pelo que finda a realização das diligências probatórias tidas por necessárias e adequadas, veio a ser proferido novo despacho, embora também de arquivamento, nos termos do art. 277º, do Cód. Proc. Penal, e, por conseguinte, sujeito aos mesmos trâmites legais que o anterior, designadamente os relativos aos meios de reacção disponíveis para os assistentes, já que nenhuma norma legal ou princípio contempla a restrição de direitos que o despacho recorrido lhes impôs[2].
E a questão da existência de vasos comunicantes entre duas autoridades judiciárias diferentes (Ministério Público/JIC) nem sequer se coloca, pois que, embora os actos processuais sejam da mesma natureza (despacho de arquivamento), a sua substância é perfeitamente autónoma e distinta pois que, o despacho objecto de (re)apreciação pelo superior hierárquico do titular do inquérito, não é mesmo que agora é submetido ao respectivo JIC que dele conhecerá sem possibilidade de intervenção alheia, sendo certo que a opção firmada na decisão recorrida nem sequer se compagina harmonicamente com a circunstância de, caso tivesse havido despacho de acusação em vez de arquivamento, assistir ao arguido a faculdade de fazer intervir o JIC, requerendo a abertura de instrução, ao abrigo do disposto no art. 287º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal.
Resumindo e concluindo:
> É pacífico o entendimento de que não é possível a utilização, simultânea ou subsequente, da intervenção hierárquica e da abertura da instrução para reagir a despacho de arquivamento formulado pelo Ministério Público;
> Lançando mão da intervenção hierárquica e obtendo sucesso, uma vez proferido novo despacho final do inquérito pode o assistente, se confrontado com novo despacho de arquivamento, optar por qualquer dos meios de reacção que a lei prevê quanto a tal decisão, ao abrigo da previsão dos arts. 278º, n.º 2 e 287º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal, à semelhança do que aconteceria se, ao invés, tivesse sido deduzida acusação, hipótese em que ao arguido sempre assistiria o direito de requerer a abertura de instrução, de harmonia com o preceituado na alínea a), do n.º 1, do citado art. 287º.
Termos em que, por violação do esgotamento do poder jurisdicional e manifesta desadequação aos termos do processo e legislação aplicável, não pode subsistir o despacho recorrido que, por isso mesmo, terá que ser revogado e deve ser substituído por outro que, apreciando os indícios recolhidos, profira o despacho previsto no art. 308º, do Cód. Proc. Penal.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto julgar procedente o recurso da assistente B… e revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, reconhecendo a anteriormente declarada admissibilidade da abertura de instrução, aprecie os indícios recolhidos em ordem a proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia do arguido, em conformidade com a previsão do art. 308º, do Cód. Proc. Penal.
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Sem custas – arts. 513º, n.º 1 e 515º, n.º 1, al. b), ambos a contrario, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[3]]
Porto, 22 de Maio de 2019
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Cfr., neste sentido, embora a propósito de questão diversa, o Ac. STJ, de 6/5/2010, rel. Álvaro Rodrigues, in dgsi.pt.
[2] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Processo Penal”, Universidade Católica, 3ª Ed., Actualizada, pág. 724, nota 7, e Maia Costa, in “Código de Processo Penal” (Comentado), Almedina-2014, pág. 975, nota 6.
[3] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.