Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9290/20.1T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO
PERSI
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
CONHECIMENTO OFICIOSO
QUESTÕES NOVAS
Nº do Documento: RP202206089290/20.1T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 06/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A integração em PERSI e a comunicação de extinção do procedimento funcionam como uma condição de admissibilidade da ação, declarativa ou executiva, constituindo a sua falta exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância [art. 18.º, nº 1 al. b) do DL 227/2012 de 25 de Outubro].
II - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 9290/20.1T8PRT-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução do Porto-J7
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
Por apenso à execução que A... SA, lhe moveu, vieram os executados, AA e BB, com os demais sinais nos autos, apresentar os presentes embargos de executado, pretendendo a procedência dos mesmos com a extinção da execução.
Na petição inicial invocaram a excepção dilatória da ilegitimidade activa, considerando que a cessão invocada pelo exequente não foi notificada aos executados, e a excepção inominada da falta de integração dos executados no PERSI.
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A exequente contestou, pugnando pela improcedência dos presentes embargos de executado, prosseguindo a execução a sua normal tramitação, referindo, em súmula, que notificou os executados da cessão (e que mesmo que assim não tivesse procedido, sempre tal se verificaria com a citação nos presentes autos), e que deu início à fase inicial do PERSI e respectiva extinção.
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Foi proferido despacho a convidar o exequente a concretizar a data em que deu início ao PERSI invocado, e fim, e por que forma, a que o exequente não respondeu.
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Foi designada data para a realização de audiência prévia com as finalidades previstas no artigo 591.º, n.º 1, alíneas a) e b), do C.P.C., tendo nessa diligência sido requerido pela exequente que fosse oficiado o Banco cedente-Banco 1..., S.A para vir juntar aos autos a documentação em causa uma vez que pese embora tenha diligenciado no sentido de obter a referida documentação tal não foi possível, o que foi deferido, tendo ficado ainda em ata que caso nada viesse a ser dito pela entidade em causa o tribunal consideraria que não existe suporte documental dos factos invocados nos artigos 22.º e 23.º da contestação, e consignou-se ainda que as partes referiram nada ter a opor que fosse de imediato proferida decisão sendo desnecessária nova marcação para audiência prévia.
A entidade identificada foi notificada no dia 8-11-2021, tendo informado conforme requerimento datado de 2-12-2021, cujo teor se dá por reproduzido.
Na sequência da informação do Banco 1..., veio a exequente requerer a correcção da contestação aos embargos apresentada, mormente o teor dos artigos 22.º e 23.º, na medida em que tal indicação de inclusão no PERSI se tratou de mero lapso, o qual deveria ser relevado, e apenas justificável pela massificação de tratamento de processos no âmbito da carteira de créditos cedida por aquela entidade bancária.
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Conclusos os autos foi proferido despacho saneador sentença que julgou procedentes os embargos determinando, por consequência, a extinção da execução.
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Não se conformando com o assim decidido veio a exequente interpor recurso, concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
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Devidamente notificados contra-alegaram os executados concluindo pelo não provimento do recurso, mais requerendo, para a hipótese da procedência do argumentário da exequente, a ampliação do âmbito do recurso, circunscrita à questão da prescrição.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se estão reunidos os pressupostos para julgar procedente a exceção dilatória inominada resultante da falta de integração dos executados-embargantes no PERSI, enquanto condição objetiva de procedibilidade da ação executiva.
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No caso de procedência do recurso, a única questão a apreciar na ampliação do seu âmbito prende-se com a questão da prescrição dos créditos executados.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. Por deliberação extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, tomada em reunião extraordinária, no dia 03 de Agosto de 2014, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 5 do art.º 145-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo D.L. n.º 298/92, de 31 de Dezembro, foi aplicada uma medida de resolução ao Banco 2... S.A. e, nessa sequência, constituído o Banco 1..., S.A.
2. Nos termos daquela mesma deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, os créditos que eram da titularidade do Banco 2... S.A., foram transferidas para a titularidade do Banco 1..., S.A., com efeitos à data daquela deliberação.
3. Mediante contrato de cessão de créditos celebrado em 07 de Junho de 2019 o Banco 1..., S.A., cedeu à A... SA, um conjunto de créditos vencidos de que era titular, conforme resulta do contrato de cessão de créditos junto como n.º 1 no requerimento executivo e aqui dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4. Em 28 de Dezembro de 2005, mediante escritura pública celebrada nas instalações do Banco 2... S.A, os Executados celebraram com o Banco 3... S.A. um contrato de mútuo, garantido por hipoteca, nos termos do qual o Banco cedente emprestou aos Executados a quantia de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), conforme resulta da escritura pública junta como documento n.º 4 no requerimento executivo e que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5. Para garantia das obrigações assumidas, foi constituída hipoteca voluntária sobre a prédio urbano (AP. ... de 2005/12/19), sito na Rua ..., ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ..., da dita freguesia, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. ....
6. A aludida Hipoteca foi registada na referida Conservatória do Registo Predial através da AP. ... de 2005/12/19).
7. Conforme resulta do Documento Complementar anexo à Escritura Pública já melhor identificada, ficou convencionado que o pagamento do referido mútuo seria efetuado em prestações mensais, sucessivas e constantes, de capital e juros, vencendo-se primeira 30 dias após a celebração do mesmo e as demais em igual período dos meses seguintes.
8. Os Executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao Banco mutuante, não tendo pago a prestação que se venceu em 10/09/2018, tal como as prestações subsequentes.
9. À data do incumprimento, a taxa de juro contratual para o empréstimo mencionado no ponto 1 do presente requerimento executivo era de 6,5 % (3,5 %, taxa juros remuneratórios de acordo com os critérios fixados no título executivo acrescida de 3,00 % de sobretaxa de mora).
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Factos não provados
Não se provou que:
a) Que o exequente deu cumprimento à fase inicial e extinção do PERSI.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se estão reunidos os pressupostos para julgar procedente a exceção dilatória inominada resultante da falta de integração dos executados-embargantes no PERSI, enquanto condição objetiva de procedibilidade da ação executiva.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que se verificava a referida excepção dilatória inominada.
Desse entendimento dissente a apelante alegando que o contrato já se encontrava resolvido à data da entrada em vigor do referido regime legal (PERSI), razão pela qual lhe não era aplicável o seu regime, além de que foram encetados vários procedimentos com os executados com vista à regularização da situação de incumprimento em que se encontravam, os quais se revelaram todos infrutíferos.
Quid iuris?
Importa, desde logo, enfatizar que não tendo a apelante impugnado o quadro factual que o tribunal recorrido deu como provado e não provado, como lhe era, aliás, permitido (cfr. artigo 640.º e ss. do CPCivil), conformou-se com o mesmo sendo, portanto, em função dele que a questão supra enunciada terá de ser decidida.
É que, como se extrai das alegações recursivas, toda a argumentação da apelante não tem qualquer respaldo no quadro factual que o tribunal recorrido deu como provado, antes assentando numa versão factual que aí não consta sem que, como já se referiu, a apelante não tenha impugnado a fundamentação factual.
Isto dito, a questão que importa dilucidar consiste, assim, em apurar se a instauração da presente execução estava dependente da prévia promoção de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), apesar dos anteriores procedimentos instaurados e já considerados extintos.
O Decreto-Lei 227/2012, de 25 de Outubro, que entrou em vigor no dia 01 de janeiro de 2013, visou, como consta do artigo 1.º, estabelecer princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários, na qualidade de consumidores e criar a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.
Com esse objetivo, indica no seu preâmbulo, como medida essencial, a definição de um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), “no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor”.
O diploma em causa veio obstar que as instituições bancárias confrontadas com situações de mora ou incumprimento relativamente a contratos de crédito celebrados, pudessem imediatamente recorrer às vias judiciais para obterem a satisfação dos seus créditos relativamente aos devedores que possam integrar o conceito de “consumidores”, tal como este é tratado pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril), visando, com isso, e através dos mecanismos nele previstos, a proteção dos que, na relação contratual da qual emergiram aqueles contratos, têm uma posição mais enfraquecida e menos protegida.
Após a entrada em vigor do referido diploma e ao abrigo do disposto no artigo 39.º do citado diploma, as instituições bancárias ficaram obrigadas a promover várias diligências relativamente a clientes bancários em mora ou incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, tendo de integrá-los, obrigatoriamente, no chamado Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) (artigo 12.º e 14º do citado D.Lei nº 272/2012, de 25 de Outubro), “no âmbito do qual devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor”.
Como se refere no Ac. STJ de 9 de fevereiro 2017, Proc. 194/13.5TBCMN-A.G1.S1[1] “[o] PERSI constitui uma fase pré-judicial, em que se visa a composição do litígio por mútuo acordo, entre credor e devedor, mediante um procedimento que comporta três fases: a fase inicial; a fase de avaliação e proposta; a fase de negociação (artigos 14.º, 15.º e 16.º)”.
Na fase inicial, a instituição, depois de identificar a mora do cliente, informa-o do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida, desenvolvendo diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado; persistindo o incumprimento, integra-o, obrigatoriamente, no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequente à data do vencimento da obrigação em causa (artigos 13.º e 14.º, nº 1).
Na fase de avaliação e proposta, a instituição de crédito procede à avaliação da situação financeira do cliente para apurar se o incumprimento é momentâneo ou tem carácter duradouro. Findas as diligências, apresenta ao cliente uma ou mais propostas de regularização do crédito adequadas à sua situação financeira e necessidades, se considerar que o mesmo tem condições para cumprir. Se a averiguação feita tiver revelado incapacidade do cliente bancário para retomar o cumprimento das suas obrigações ou regularizar o incumprimento, mesmo com recurso à renegociação do contrato ou à sua consolidação com outros contratos de crédito, comunica ao cliente o resultado da avaliação e a inviabilidade de obtenção de um acordo no âmbito do PERSI, o qual se extinguirá [artigo 17.º, nº 2 al. c)].
A fase da negociação tem por objetivo obter o acordo do cliente para a proposta ou uma das propostas apresentadas pela instituição de crédito com vista à regularização do incumprimento.
Durante o período que decorre entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste procedimento, está vedado à instituição de crédito intentar ações judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito [artigo 18.º nº 1 al. b)].
A jurisprudência tem entendido, de forma unânime, que sendo a integração do devedor no PERSI e a ulterior extinção daquele procedimento condições objetivas de procedibilidade da ação executiva, esta só poderia ser instaurada verificadas as referidas condições, isto é, integração do mutuário devedor no PERSI e extinção do procedimento e a sua comunicação a este em suporte duradouro (designadamente, carta ou email), recaindo sobre o exequente o ónus de o comprovar.
Instaurada execução sem que se mostrem verificadas as aludidas condições, tal virá a redundar na verificação de uma exceção dilatória inominada ou atípica, que determina a absolvição do executado da instância executiva.[2]
Como se defendeu no Ac. Rel. Porto 26 de abril de 2021, Proc. 19728/19.5T8PRT-A.P1[3] “[…] quando a instituição bancária de todo se demitiu dos seus deveres legais de regularização dos contratos de crédito bancário, nada diligenciando quer junto do seu cliente bancário, quer junto dos fiadores do mesmo[…] por identidade de razão e até por maioria de razão, o regime deve ser o mesmo que seria aplicável se acaso tivesse sido instaurado o PERSI, pois que, a não se entender deste modo, facilmente se frustrariam os propósitos do legislador de sujeitar as instituições bancárias a um dever de tentarem a regularização dos contratos de crédito incumpridos, beneficiando-se as instituições infratoras desse dever legal.
Por isso, em sede de direito civil, a violação do impedimento legal ao exercício do direito de ação, constitui causa legal de inexigibilidade das obrigações exequendas, patologia de conhecimento oficioso (artigo 578º do Código de Processo Civil) e não suprível no processo judicial indevidamente instaurado”.
Resta referir que suscitada a excepção em sede de embargos de executado, na distribuição do ónus de prova observam-se a regras gerais, cabendo ao executado/embargante a prova dos factos que invoca como fundamento de oposição à execução, nos termos gerais do artigo 342.º, nº 2 do CCivil.
Esta regra material afere-se pela posição de cada parte na execução e não pela estrita posição formal na oposição à execução, o que significa que, é ao executado/embargante, que tem uma posição de demandado na execução, que cumpre alegar e provar os factos impeditivos ou extintivos do direito de que o exequente se arroga.[4]
Postos estes breves considerandos, cumpre agora aferir se, atendendo aos factos dados como provados, os executados reuniam as condições para serem integrados no citado procedimento, motivado pelo incumprimento a partir de Setembro de 20108 (cfr. ponto 8. da fundamentação factual).
E a resposta é, respeitando entendimento diverso, positiva.
Como se começou por referir o procedimento aplica-se a certos contratos de crédito.
O artigo 2.º do citado diploma, na redação original, indicava o âmbito dos contratos a que se aplicava o diploma:
1 - O disposto neste diploma aplica-se aos seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários:
a)- Contratos de crédito para a aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria;
b) Contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel;
c) Contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho, com exceção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo;
d) Contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 101/2000, de 2 de junho, e 82/2006, de 3 de maio, com exceção dos contratos em que uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel de consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável nos termos do próprio contrato;
e)- Contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês.
2 - O disposto no presente diploma não prejudica o regime aplicável aos sistemas de apoio ao sobre-endividamento, instituído pela Portaria n.º 312/2009, de 30 de Março.
Nos termos do art. 3º a) do citado diploma, entende-se por ““cliente bancário” o consumidor, na aceção dada pelo nº 1 do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96 de 31 de julho, alterada pelo DL 67/2003 de 08 de abril, que intervenha como mutuário em contrato de crédito”.
A redação do artigo 2.º, nº 1 foi alterada pelo Decreto-Lei 70-B/2021, de 6 de Agosto, passando a dispor quanto ao âmbito dos contratos a que se aplica o diploma:
1 - O disposto no presente decreto-lei aplica-se aos seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários:
a) Contratos de crédito relativos a imóveis abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho, na sua redação atual;
b) (Revogada.)
c) Contratos de crédito aos consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, na sua redação atual;
d) Contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, na sua redação atual;
e) Contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês.
2 - O disposto no presente decreto-lei não prejudica o regime aplicável aos sistemas de apoio ao sobre-endividamento, instituído pela Portaria n.º 312/2009, de 30 de março, na sua redação atual.
O Decreto-Lei 70-B entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, a 7 de Agosto de 2021.
O novo diploma manteve a redação do artigo 3.º al. a) que define quem deve ser considerado “cliente bancário” para os efeitos de aplicação deste diploma.
Nos termos do artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil, a nova redação do artigo 2.º não é aplicável no caso dos autos, porque a situação que determina a inclusão do contrato no PERSI, se verificou em data anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei 70-B/2021 de 06 de Agosto.
Com efeito, resulta dos factos apurados que a situação de incumprimento do contrato de mútuo se reporta a Setembro de 2018, sendo pois de aferir dos pressupostos para promover o procedimento à luz do diploma em vigor na data em que ocorreram os factos–D.Lei 227/2012 de 25 de Outubro (cfr. ponto 8. da fundamentação factual).
O contrato em causa tem a natureza de contrato de crédito garantido por hipoteca sobre bem imóvel (cfr. pontos 4. a 6. da fundamentação factual), integrando-se, por isso, no âmbito de aplicação do diploma, quanto ao conteúdo, atenta a previsão do artigo 2.º, nº 1 als. a) e b) do diploma citado.
Porém, este regime jurídico apenas será aplicável ao caso dos autos, caso os apelados possam ser considerados como consumidores, nos termos do citado DL 67/2003 de 08 de Abril.
O artigo 1.º-B da Lei 67/2003, de 8 de Abril define como consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 24/96, de 31 de Julho.
Considerando o texto da Diretiva 1999/44/CE, que refere que consumidor é qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional, tem sido entendido que o conceito de consumidor para a Lei 67/2003 deve restringir-se a esta aceção mais restrita, afastando do mesmo as pessoas coletivas, porquanto apenas pode estar em causa o uso privado dos bens adquiridos.
Observa a este respeito o Professor Calvão da Silva[5] “consumidor é a pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado–uso pessoal, familiar ou doméstico–de modo a satisfazer necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens ou serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”.
O DL 67/2003, de 8 de Abril é aplicável apenas ao consumidor, entendido este, nos termos da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, como qualquer pessoa singular que atue com objetivos não respeitantes à sua atividade comercial ou profissional, ou seja que adquira bens ou serviços para uso pessoal ou familiar.
Face a este enquadramento jurídico, tem de se entender que o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) instituído pelo DL 227/2012, de 25 de Outubro, apenas é aplicável aos contratos elencados no seu artigo 2.º desde que celebrados com clientes enquadráveis no conceito legal de consumidor para efeitos da lei do consumo.
Ora, considerando as finalidades previstas na aquisição do imóvel, destinado exclusivamente a habitação própria e permanente dos mutuários (cfr. escritura pública de aquisição) e não estando provado que a referida compra foi realizada no âmbito da atividade profissional ou comercial que os executados-embargantes exerçam, têm de considerar-se aqueles (mutuários) na posição de consumidores.
Por outro lado, como se prevê no artigo 12º do citado diploma (PERSI) “as instituições de crédito promovem as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito”.
A situação de incumprimento ocorreu a partir de Setembro de 2018 (cfr. ponto 8. da fundamentação factual).
De acordo com o disposto no artigo 14.º, nº 1 do mesmo diploma: “mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa”.
É, pois, inequívoco que a entidade bancária que cedeu o crédito a apelante/exequente estava obrigada a integrar os recorridos no PERSI, sendo que, dos autos, não resulta que alguma vez tal procedimento tivesse ocorrido.
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Argumenta a apelante que tal procedimento não tinha que ter sido promovido, porque o contrato já havia sido resolvido antes da entrada em vigor do citado regime legal (PERSI).
Cumpre, desde logo, salientar que, ao contrário do que refere a apelante na sua conclusão M), o tribunal recorrido na sua decisão em nenhures afirma que o contrato nunca terá sido resolvido.
Como noutro passo já se referiu, o que releva para decidir a questão colocada no recurso é apenas o quadro factual que o tribunal recorrido deu como assente, já que o mesmo não foi objecto de impugnação por parte da apelante.
Ora, do citado quadro factual, não consta que o contrato de mútuo tenha sido resolvido em data anterior à entrada em vigor do D. Lei 227/2012 de 25 de Outubro.
Antes pelo contrário, tal como vertido no requerimento executivo (cfr. artigo 12º), correspondente ao ponto 8. da fundamentação factual, o que foi alegado foi apenas uma situação de incumprimento e não de resolução do contrato.
Aliás, diga-se, que numa postura totalmente contraditória com o afirmado na contestação aos embargos, de que os executados haviam sido sujeitos ao PERSI (sem nunca o comprovar), vem agora a apelante, em sede de recurso, afirmar, perante informação dada pelo cedente do crédito, que os mesmos não estavam adstritos a tal regime.
Diante do exposto, torna-se evidente que a invocada resolução do contrato não tem qualquer assento no quadro factual que o tribunal recorrido deu como provado.
Hic et nunc, ainda que assim não fosse, o recurso não teria melhor sorte.
Com efeito, quer a questão da resolução do contrato quer a dos invocados acordos de regularização são, como nos parece evidente, questões novas.
Acontece que, como supra se consignou, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objecto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[6], em relação ao objecto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[7]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excepcionada quando a lei expressamente determine o contrário[8] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[9]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte activa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às excepções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que a apelante/exequente nunca, na respectiva contestação aos embragos, aduziu tais questões, sendo que, se trata de questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pela apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questões que não são de conhecimento oficioso.
Acresce que, preceitua o artigo 573.º, nº 2 do CPCivil que “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei manda deduzir em separado” (nº 1) e que “depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou que se deva conhecer oficiosamente.”
Como escreve o Prof. Lebre de Freitas[10] “o réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer excepção dilatória ou peremptória (com a única excepção das que forem supervenientes) e deduzir as excepções não previstas no artigo 289.º, nº 2. Se o não fizer, preclude a possibilidade de o fazer”.
Resulta de tal dispositivo e dos aludidos princípios da concentração e preclusão, que, como regra, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, sob pena de o réu ver precludido o seu direito ou a possibilidade de o voltar a fazer.
No caso, é manifesta a preclusão do direito às invocadas excepões e, como tal, processualmente inadmissível a sua alegação e conhecimento em sede de recurso.
Destarte, nunca tais questões podiam ser conhecidas por este tribunal de recurso.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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Na improcedência do recurso, prejudicada fica a apreciação da ampliação do seu âmbito no que tange à questão da prescrição dos créditos peticionados.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente, por não provada, e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela apelante/exequente (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 08 de Junho de 2022.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] In www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, entre outros, podem consultar-se os Ac. Rel. Lisboa 04 de novembro de 2021, Proc. 9509/15.0T8ALM-A.L1-6, Ac. Rel. Lisboa 21 de outubro de 2021, Proc. 12205/18.3 T8SNT-A.L2-2, Ac. Rel. Lisboa 07 de maio de 2020, Proc. 2282/15.4T8ALM-A.L1-6, Ac. Rel. Porto 23 de fevereiro de 2021, Proc. 8821/19.4T8PRT-A.P1, Ac. Rel. Porto 09 de maio de 2019, Proc. 21609/18.0T8PRT-A.P1, Ac. STJ 16 de novembro de 2021, Proc. 21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1, Ac. STJ 09 de fevereiro de 2017, Proc. 194/13.5TBCMN-A.G1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] Disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Rui Pinto in Manual da Execução e Despejo,1ª edição, agosto de 2013, Coimbra Editora, Coimbra, pag. 438; Ac. Rel. Coimbra 24 de novembro de 2020, Proc. 3655/18.6T8CBR-B.C1; Ac. Rel. Lisboa 07 de maio de 2020, Proc. 2282/15.4T8ALM-A.L1-6, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] João Calvão da Silva in Venda de Bem de Consumo, 3ª ed., 2006, Coimbra, Almedina, pág. 44.
[6] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8.
[7] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147.
[8] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados.
[9] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.
[10] In “Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 2º Vol. Pág. 295.