Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4460/17.2T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
CONCORRÊNCIA DESLEAL
TRIBUNAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
Nº do Documento: RP201802214460/17.2T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º811, FLS.190-197)
Área Temática: .
Sumário: Visando a acção efectuar direitos ofendidos por actos de concorrência desleal (que extravasam dos estritos direitos da propriedade industrial) é competente o tribunal comum.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4460/17.2T8PRT.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, S.A. e C…, S.A. instauraram na Comarca do Porto - Juízo Local Cível do Porto - Juiz 4 – contra D…, Lda., todas com os sinais dos autos, o presente procedimento cautelar comum, alegando, em resumo que:
- As Requerentes integram o Grupo E…, um dos principais grupos portugueses a actuar no sector da reparação e substituição de vidros para veículos automóveis e actividades conexas;
- Actuam através de uma rede com 81 lojas que operam sob a marca "B…", rede esta que inclui lojas próprias (das Requerentes) e lojas aderentes (que são propriedade de terceiros).
- Pelo menos desde o início do último trimestre de 2016, a Requerida tem vindo a procurar adquirir os estabelecimentos de (pelo menos) quatro das aderentes da rede "B…", que exploravam um total de 24 lojas sob a marca "B…", representando cerca de 30% da referida rede de lojas, aliciando-as através de um modus operandi que qualificam como consubstanciando a prática de actos de concorrência desleal.
Concluem pelo decretamento da providência cautelar, devendo o tribunal ordenar que a Requerida que se abstivesse de continuar a praticar os actos de concorrência desleal que tem vindo a praticar.
Foi então proferido despacho, apreciando a competência do tribunal, decidindo nos seguintes termos:
“Em face do disposto no n.° 1 do art. 44.° (alçadas) e nas al. d) e c) do n.° 1 do art. 117.° (competência) da Lei n.° 62/2013, de 26 de agosto - aprova a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) - , deve ser apreciada a competência deste tribunal, em razão do valor da causa - cfr. o art. 104.°, n.° 2, do Código de Processo Civil.
Sobre esta matéria, e sem necessidade de mais considerações, versa o referido art. 117.° da LOSJ, resultando da sua aplicação que competente para a presente causa é o Juízo Central Cível do Porto.
Pelo exposto, julgo este tribunal incompetente, em razão do valor, para os termos do processo.
Ao abrigo do art. 105.°, n.° 1, do Cód. Proc. Civ., decido ser competente para a demanda cautelar, em razão do valor, o Juízo Central Cível do Porto, sem prejuízo de poder falecer a competência absoluta do juízo designado”.
Remetidos os autos ao Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3 – foi aí proferido despacho nos seguintes termos, que se transcrevem:
- Da incompetência material.
A competência em razão da matéria afere-se, em princípio, pelos termos em que o autor propõe ao tribunal que decida a questão, definida esta pela causa de pedir, pelo pedido e pela natureza das partes.
Constata-se que, as Requerentes da presente providência cautelar pretendem com a mesma que seja ordenado à Requerida que se abstenha de continuar a praticar os actos de concorrência desleal que tem vindo a praticar, nomeadamente contactando as pessoas e sociedades titulares de estabelecimentos comerciais (lojas) integrados na rede "B…" e/ou promovendo por quaisquer outros meios a aquisição, designadamente por trespasse, de tais estabelecimentos pela própria Requerida, invocando para o efeito que, se está perante uma situação de concorrência desleal nos termos do art. 317° do Código da Propriedade Industrial, sendo as medidas cautelares previstas no art. 338.º -I do CPI- providências cautelares específicas que se destinam a prevenir ou proibir a violação de um direito de propriedade industrial- aplicáveis aos actos de concorrência desleal previstos no art. 317.º do CPI.
Ora, desde que foram criados os Tribunais da Propriedade Industrial, que não se suscitam dúvidas de que lhes compete "conhecer das questões relativas a acções e providências cautelares em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial", nos termos do art. 111.º n.º 1 ai. j) e n.º 2 da actual LOSJ.
Consequentemente, não são os Juízos Cíveis os competentes em razão da matéria para este tipo de procedimento cautelar de inibição de práticas de concorrência desleal, mas sim o Tribunal da Propriedade Industrial.
Pelo exposto, julga-se este tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria, sendo competente o Tribunal da Propriedade Industrial e, consequentemente indefere-se liminarmente o requerimento inicial, ao abrigo dos arts. 96.º al. a), 97.º n.º 1, 99.º n.º 1 ex vi dos arts. 590.º n.º 1 e 226.º n.º 4 al. b) todos do CPC.
***
Inconformadas com o decidido, interpõem as requerentes recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:
1. Na decisão recorrida, o Tribunal a quo julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da providência cautelar requerida, por considerar competente o Tribunal da Propriedade Intelectual.
2. A pretensão das Recorrentes assenta na prática de atos de concorrência desleal por parte da Requerida nos termos do artigo 317.° do CPI.
3. Atenta a configuração que as Recorrentes deram à providência cautelar em crise, a mesma não assenta na prática de atos de concorrência desleal que constituam violações de direitos privativos de propriedade industrial, ou seja, direitos sobre bens imateriais.
4. Pese embora o instituto da concorrência desleal se encontre regulado no CPI (artigos 317.° e 318.°), e ao mesmo sejam aplicáveis, por força do n.° 2 do artigo 317°, as medidas cautelares previstas no artigo 338.°-l, tem sido entendimento pacífico que aquele configura um instituto autónomo e que não constitui um direito de propriedade industrial, enquanto direito privativo.
5. O Tribunal da Propriedade Intelectual não é competente para apreciar todos os atos de concorrência desleal, sem distinção, mas apenas aqueles que respeitem a direitos privativos de propriedade industrial, sendo este o sentido e alcance da norma atributiva de competência prevista no artigo 111°, n.° 1, alínea j) da LOSJ.
6. Pelo contrário, para conhecer de atos de concorrência desleal que não consubstanciam violações de direitos de propriedade industrial, como no presente caso, são competentes os tribunais comuns.
7. O Tribunal competente para apreciar o mérito da providência cautelar requerida pelas Recorrentes é o Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
8. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 111°, n.° 1, alínea j) e n.° 2 da LOSJ e dos artigos 317.° e 338-°-l do CPI, normas que foram, por isso, violadas.
***
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.ºs 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), a única questão que decorre das conclusões formuladas pela recorrente e a decidir no presente recurso resume-se a saber se o tribunal comum é competente, em razão da matéria, para conhecer dos pedidos formulados pelas requerentes.
Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra, para que ora se remete.
***
A competência em razão da matéria é um pressuposto processual, constituindo condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, julgando da procedência ou improcedência do pedido formulado pelo autor. Representa a medida de jurisdição de cada tribunal para conhecer de determinado litígio e é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, ou seja, em função da relação jurídica subjacente ao litígio, tal como o autor a configura, não importando para tal saber se, em substância, ao autor assiste ou não o direito que se arroga.
Como é sabido, o momento a atender para fixar a competência do tribunal é o da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, conforme dispõe o artigo 38.º, nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
A Constituição da República (CRP), no seu art. 211º, n° 1 estabelece a regra de que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
A atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum, como jurisdição residual que é (artigos 211.º, n.º 1, da CRP e 40º, n.º 1, da LOSJ), depende da inexistência de norma específica atributiva de competência a outra ordem jurisdicional. E dentro dos tribunais da jurisdição comum importa distinguir entre os tribunais de competência genérica e de competência especializada (artigo 80º, n.º 2, da LOSJ). Os tribunais de comarca desdobram-se
em juízos, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade (artigo 81º, n.º 1, da LOSJ), competindo aos juízos de competência genérica conhecer em 1.ª instância das causas que não sejam atribuídas a juízos de competência especializada.
A questão da determinação da competência para conhecer das acções relativas à prática de actos de concorrência desleal não é nova e já se colocava no domínio da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro. Inicialmente, antes da criação do tribunal de competência especializada para a propriedade intelectual, discutia-se se o julgamento de tais acções eram da competência dos tribunais cíveis ou dos tribunais do comércio. Mais tarde, entrou em vigor a Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho, que criou o tribunal de competência especializada para propriedade intelectual e o tribunal de competência especializada para a concorrência, regulação e supervisão, veio aditar um artigo 89º-A à Lei n.º 3/99, cuja alínea j) do n.° 1 dispunha que compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.
Ao fazer menção a actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial, e não a actos de concorrência desleal tout court, já a lei inculcava que nem todas as acções relativas à prática de actos de concorrência desleal cabiam no âmbito da competência material do tribunal da propriedade intelectual. E no acórdão da Relação de Coimbra de 16-04-2013 (Processo 900/13.8TBLRA.C1, in www.dgsi.pt) foi entendido que só é competente o Tribunal de Competência Especializada para a Propriedade Intelectual para conhecer das questões relativas a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial e quando a prática desses actos de concorrência desleal respeitem a direitos privativos da propriedade industrial. Aí se deu conta da divergência doutrinária entre Carlos Olavo (“A Propriedade Industrial e a Competência dos Tribunais de Comércio”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 61.º, p. 193 e ss.), defendendo que deve ser intentada no tribunal de comércio “uma acção por concorrência desleal, porquanto a repressão da concorrência desleal integra a propriedade industrial, nos precisos termos do artigo 1.º do respectivo Código” e Oliveira Ascensão (“Concorrência Desleal, AAFDUL, 1994, p. 266), para quem a apreciação da concorrência desleal não se inscreve na esfera de competências dos tribunais de comércio, pois que “a concorrência desleal não é, ela própria, propriedade industrial, é antes a sanção de formas anómalas de concorrência”, veio a concluir-se que “para o julgamento da acção fundada em actos de concorrência desleal que não impliquem a violação de direitos privativos — como o são os que tutelam invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos — são materialmente incompetentes os tribunais de comércio”, tendo acolhido a posição defendida por Oliveira Ascensão, afirmando a competência do tribunal judicial com competência cível, não especializada ou residual.
A lei actual – art.º 111.º, n.º 1, al. j) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – mantém a formulação da alínea j) do aludido n.° 1 do artigo 89º-A da Lei n.º 3/99, e já no seu domínio foi proferido o acórdão desta Relação do Porto de 13-04-2015 (Processo n.º 4722/14.0TBVNG.P1, in www.dgsi.pt), consagrando o entendimento de que visando a acção efectuar direitos ofendidos por actos de concorrência desleal, mas que extravasam dos estritos direitos da propriedade industrial que conduzem à competência do tribunal da propriedade intelectual, recai a competência nos tribunais judiciais. É este o entendimento que se crê pacífico e ora se acolhe. Como se escreveu no acórdão do STJ de 24.04.2012 (Processo n.° 424/05.7TYVNG.P1.S1), "IX - Pode haver acto de concorrência desleal sem haver violação de direitos privativos da propriedade industrial (e vice-versa), tratando-se de institutos distintos na medida em que através dos direitos privativos da propriedade industrial se procura proteger uma utilização exclusiva de determinados bens imateriais (v.g. direito à marca), enquanto que através da repressão da concorrência desleal se pretende estabelecer deveres recíprocos entre os vários agentes económicos.". E os direitos que subjazeram à criação do Tribunal da Propriedade Intelectual foram aqueles direitos absolutos – erga omnes -, de estrutura semelhante ao direito de propriedade regulado no Código Civil (art.º 1302.º ss.), mas que, ao invés de coisas corpóreas, móveis ou imóveis, incidem sobre determinados bens imateriais (invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos). A prática de actos de concorrência desleal, quando não relacionada com a violação de direitos dessa natureza, apesar de abrangida pela noção genérica do art. 317º do Código da Propriedade Industrial (DL.36/2003, de 5 de Março), não cabe no âmbito da competência material do Tribunal da Propriedade Intelectual, vocacionado apenas para a tutela dos direitos privativos da propriedade industrial.
Não pode, pelo exposto, manter-se a douta decisão recorrida, impondo-se a sua revogação e consequente atribuição ao tribunal recorrido da competência em razão da matéria para os termos da causa.
Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação interposta, em função do que revogam a decisão recorrida, declarando o tribunal recorrido competente para os termos da causa.
Sem custas, por não serem devidas.

Porto, 2018/02/21
João Proença
Maria Graça Mira
Estelita Mendonça