Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9276/19.9T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: INSTRUÇÃO
DESISTÊNCIA DA INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP202204069276/9276/19.9T9PRT.P1
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Estando na disponibilidade do arguido e/ou do assistente requerer a abertura da instrução, nas situações que a lei enuncia (n.º 1 do art. 287.º do Código de Processo Penal), a partir do momento em que é proferido despacho a admitir tal ou tais requerimentos e é declarada aberta a fase da instrução, a mesma passa a ser obrigatória.
II - A admitir-se a desistência da instrução, tal representaria um afloramento do princípio do dispositivo (próprio do processo civil), contrário à natureza publicista do processo penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 9276/19.9T9PRT.P1

CONFERÊNCIA DE 09-02-2022. (Instrução – a assistente requereu a instrução para pronúncia das arguidas por crimes públicos - “desistência da instrução” admitida pela JIC / recurso do MP - procedência).
I
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Nos presentes autos n.º 9276/19.9T9PRT, provenientes do Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz 2, foi, em 25-06-2021, proferido despacho do seguinte teor:
“A desistência da queixa apresentada é válida e juridicamente eficaz, atenta a sua tempestiva apresentação, a legitimidade dos desistentes, a natureza do/s crime/s em causa e a não oposição do/s arguido/s (cfr. art.º 116.º, n.º 2, do C. P., e 51.º, n.º 3, do C.P.P.), bem como do M.º P.º, razão pela qual deverá ser homologada (cfr. art.º 51.º, n.º 2, do C.P.P.).
Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos citados preceitos legais, homologo a/s desistência/s da/s queixa/s determinando, em consequência, o arquivamento dos autos.
Em consequência, declaro extinto o procedimento criminal instaurado nos presentes autos.
Pelo incidente, condeno a assistente e a arguida em 2 Uc.s de taxa de justiça (art.º 515.º, n.º 1, al. d), do CPP) - (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário).
Notifique.
*
Quanto à desistência instrução:
Com todo o respeito, discordamos da posição do M.º P.º quanto a esta matéria.
Com efeito, o direito de requerer instrução é um direito pessoal e disponível - a instrução é facultativa (art.º 286.º, n.º 2, do CPP) - exercível, ou não, conforme a perspetiva que o arguido tenha do caso e da sua própria estratégia de defesa perante os factos de que é acusado.
Assim, considerando a desistência que antecede, esvazia-se esta fase de conteúdo, sendo desnecessária a prolação de decisão instrutória, por se tratar de um ato inútil e ato que as partes não pretendem que seja realizado.
Aliás, não faz qualquer sentido admitir-se uma “extinção” da instrução, mesmo com debate instrutório realizado, apenas porque os crimes, dada a sua natureza, admitem a desistência do procedimento criminal e não admitir a desistência da instrução quanto ao mais; o impulso processual nesta fase não foi do M.º P.º, foi da assistente; ora se é a assistente que não pretende ver a sua pretensão tutelada, é excessivo o M.º P.º querer mais do que um particular e força-lo a prosseguir um caminho que já quer percorrer.
Entendemos assim que tal pretensão é legítima, encontrando o seu fundamento no caráter facultativo da instrução.
Assim, considero a mesma como juridicamente relevante.
Notifique.
Oportunamente, arquive.
DN.” (ref.ª 426187681, de 25-06-2021).
*
Descontente com tal decisão, na parte em que considerou juridicamente relevante a desistência da instrução, dela interpôs recurso o Ministério Público, tendo apresentado a respetiva motivação e formulado as seguintes conclusões:
A)
Depois de ser apresentado requerimento de abertura de instrução e declarada aberta a instrução, tem de haver obrigatoriamente debate instrutório e com a consequente decisão instrutória.
B)
A [pretensão] da arguida AA e da assistente BB de desistirem da instrução, que, entretanto, já tinha sido declarada aberta, não tem suporte legal, pois se o tivesse, teriam invocado a norma ou normas que as legitimasse a tal e não o fizeram, nem o podiam fazer.
C)
É verdade que a instrução é uma fase se facultativa (porque a sua abertura só terá lugar se for requerida pelo arguido ou pelo assistente), porém, uma vez requerida e recebida não há lugar a desistência, que não está prevista na lei (neste sentido Paulo Albuquerque, Comentário do CPP, 4.ª edição, pág. 778).
D)
Mas mesmo a entender-se da possibilidade de desistência da instrução - que não se admite -, não era inteiramente disponível, já não seria admissível a desistência da instrução, requerida pela assistente, quando estejam em causa crimes de natureza pública como acontece nos autos - crimes de denúncia caluniosa e de abuso de poder.
E)
Porque nestes casos estará em causa a apreciação de condutas com maior gravidade - conferida pela especial valia dos bens jurídicos potencialmente atingidos e pelo elevado grau da sua alegada violação - que, por si e pelos interesses públicos subjacentes à necessidade do seu esclarecimento, justificam a comprovação judicial requerida ao despacho de arquivamento do Ministério Público mesmo em caso de desistência, sabendo-se, para mais, que o início ou prosseguimento do procedimento criminal não está nestes casos condicionada a qualquer impulso privado.
F)
Deve, pois, aplicar-se ao requerimento para abertura da instrução, analogicamente, nos termos art.° 4 do CPP, o disposto no art.° 415.º, n.° 1, do CPP, isto é, deve ser admitida a desistência do requerimento de abertura da instrução até ao momento em que for proferido despacho de abertura da instrução, nos termos do art.° 287.º, n.° 4, do CPP.
G)
O despacho recorrido acometeu, neste seguimento, as normas dos arts. 116.°, n.° 2, do CP, 51.°, n.°s 1 e 2, e 307.°, estes do CPP, por errada interpretação de que é admissível a desistência da instrução depois de declarada aberta, mesmo que estejam em causa crimes de natureza pública, por violação do princípio da legalidade.
Termos em que se impetra a esse Tribunal, dando provimento ao recurso:
- declare verificada a impossibilidade de desistência da instrução depois de declarada aberta, por não ter suporte legal;
- se revogue o predito despacho, ora colocado em causa, que face ao debate instrutório já efetuado verifique a existência ou não de indícios suficientes ou entendido que seja válida a desistência da instrução, que a mesma nunca terá lugar em crimes de natureza pública como acontece no caso dos autos, onde estão em causa crimes de denúncia caluniosa e de abuso de poder.
Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, melhor suprindo e apreciando, farão Justiça” (ref.ª 29387109, de 05-07-2021).
*
Admitido tal recurso, respondeu ao mesmo a arguida AA, apresentando a respetiva motivação, na qual sustentou, em síntese, que o Ministério Público não reune as condições necessárias para recorrer, por falta de legitimidade e de interesse em agir, além de que o recurso não tem fundamento legal, pois é admissível a desistência da instrução, nos termos em que foi formulada. (ref.ª 30596951, de 23-11-2021).
*
Remetidos os autos a este Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sustentando que, atenta a sua natureza facultativa, o assistente pode desistir da instrução que requereu, pelo que deverá o recurso improceder e manter-se o despacho recorrido (ref.ª 15305646, de 11-01-2022).
*
Foi efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, para apreciação em conferência.
II
A motivação apresentada, sintetizada nas respectivas conclusões, delimita o objeto do recurso (arts. 412.º, n.º 1, do CPP), sendo a única questão a apreciar a inadmissibilidade de desistência da instrução, invocando-se a violação do disposto nos artigos 116.º, n.º 2, do Código Penal e 51.º, n.º 2, e 307.º do CPP.
Porém, tendo a mesma sido suscitada na resposta da arguida AA, importa, previamente, indagar da legitimidade e interesse em agir do recorrente Ministério Público (condições necessárias para recorrer).
Porque relevantes para a apreciação do que está em causa no recurso, importa, antes de mais, elencar a tramitação processual ocorrida desde o despacho de encerramento do inquérito, a qual é a seguinte:
a) Em 12-01-2021 foi proferido pelo Ministério Público o seguinte despacho:
“Declaro encerrado o inquérito.
**
Notifique as assistentes BB e CC, nos termos do artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para, querendo, deduzir acusação particular relativamente ao crime de difamação denunciado, no prazo de 10 dias, consignando-se que o Ministério Público entende inexistirem nos autos indícios suficientes da sua prática.” (ref.ª 420810726, de 12-01-2021).
*
b) Em 29-01-2021 as assistentes BB e CC deduziram ACUSAÇÃO PARTICULAR E PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL contra as arguidas AA e DD, imputando a estas, com base nos factos aí descritos, um crime de DIFAMAÇÃO previsto e punível pelo artigo 180.º do Código Penal, além de pedirem a sua condenação a pagar a importância de 1.000,00€ (mil euros) para cada uma, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação até efetivo e integral pagamento. (ref.ª 28017729, de 29-01-2021).
*
c) Em 03-02-2021 foi proferido o seguinte despacho pelo Ministério Público:
“Arquivamento:
A) Quanto ao crime de denúncia caluniosa
Estes autos iniciaram-se com a queixa apresentada por BB e por CC contra AA e DD, denunciando, entre outros, factos abstratamente suscetíveis de configurar o cometimento de um crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365.º, n.º 1, do Código Penal. Com efeito, referem que as denunciadas apresentaram uma denúncia, com intenção de fosse instaurado procedimento criminal contra si, imputando-lhes a prática dos crimes de sequestro e maus tratos sobre EE (mãe das denunciantes e cunhada das denunciadas), apesar de terem plena consciência da falsidade das imputações realizadas. Denúncia essa que deu origem ao inquérito 8470/18.4T9PRT, o qual veio a ser arquivado (nessa parte).
No decurso do presente inquérito, BB e CC foram inquiridas na qualidade de testemunha, tendo confirmado o teor da queixa apresentada.
Constituídas como arguidas e interrogadas nessa qualidade, AA e DD negaram a prática dos factos que lhe são imputados, apresentando uma versão diversa dos mesmos. Com efeito, afirmaram ter denunciado factos que se lhe apresentaram como verdadeiros, uma vez relatados pelo seu irmão e/ou cunhada.
Além dos documentos juntos com a queixa, de entre os quais figura o despacho de arquivamento proferido no inquérito 8470/18.4T9PRT, diligenciou-se pela junção aos autos de certidão de outras peças processuais relevantes daqueles autos, nomeadamente da decisão instrutória.
Da fundamentação da decisão final proferida em sede de inquérito nos autos 8470/18.4T9PRT resulta que, relativamente aos crimes de sequestro e coação agravada, o inquérito foi arquivado face à insuficiência de indícios quanto à verificação dos elementos do crime. Na decisão instrutória subsequente reforça-se tal conclusão, quando se refere que a forma como o Ministério Público encerrou o inquérito foi a correta, arquivando o que era de arquivar e deduzindo acusação quanto ao que entendeu ser de submeter a julgamento; quanto ao mais, nada põe em causa o despacho de arquivamento proferido relativamente aos mencionados crimes.
Não se vislumbram outras diligências a realizar com interesse para o apuramento dos factos.
Em face da factualidade apurada em sede de inquérito, cumpre apreciar se a conduta da denunciada é ou não subsumível ao tipo legal de crime em questão.
Comete o crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.º 1, do Código Penal:
1 - Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
São elementos objetivos do crime:
- denunciar ou lançar suspeita da prática de crime, por qualquer meio;
- sobre uma pessoa determinada (concretamente identificada ou identificável e, como tal, suscetível de ser processada);
- perante autoridade, ou publicamente;
- falsidade da imputação assim realizada;
- tendo o agente conhecimento dessa falsidade.
Quanto ao elemento subjetivo, é um crime doloso, uma vez que a negligência não é expressamente punida (cfr. artigo 13.º, n.º 1, do Código Penal), ao que acresce um elemento subjetivo especial que se traduz na intenção de que seja instaurado procedimento criminal contra o denunciado.
Conforme se apurou, o despacho final proferido no inquérito a que deu origem a denúncia crime apresentada por AA e DD concluiu no sentido de não se verificarem indícios quanto à prática por BB e CC dos crimes de sequestro e coação aí denunciados. Fazendo uso das regras da lógica, daqui não podemos concluir perentoriamente que a conduta imputada é falsa, mas apenas e tão só que não foi possível, em inquérito, confirmar a sua ocorrência. Assim, se é certo que não podemos afirmar que BB e CC praticaram os crimes que lhe foram imputados na queixa apresentada, também não podemos afirmar o contrário, ou seja, que os não praticaram.
Posto isto, considera-se não estar suficientemente indiciado o pressuposto da falsidade da imputação que foi realizada pelas arguidas mediante a apresentação de queixa-crime contra as assistentes. Citando o Prof. Doutor Dr. FF “(…) só estará preenchido o tipo objetivo quando, comprovadamente, a pessoa denunciada não tiver cometido o facto (crime, contra-ordenação, ou ilícito disciplinar)”[1]
Pelo exposto, determino o arquivamento dos autos, nesta parte, ao abrigo do preceituado no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
B) Quanto ao crime de abuso de poder
Na denúncia apresentada, BB e CC relatam, ainda, que, no dia 22-05-2018, nas instalações do Hospital ..., na ocasião em que se pretendia submeter EE à realização de uma consulta/exame, a denunciada AA «intitulou-se do DIAP, ao mesmo tempo que exibia o cartão de identificação, e ordenou a não realização do exame».
Na perspetiva das denunciantes, tais factos são suscetíveis de configurar a prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal.
No decurso do inquérito, as denunciantes foram inquiridas na qualidade de testemunha, tendo confirmado a factualidade relatada na denúncia.
Foram, ainda, inquiridas as testemunhas GG e HH, já que ambos se encontravam presentes na situação relatada.
O primeiro, sobrinho da denunciada, esclareceu que, naquela ocasião, face à recusa de EE em entrar no gabinete médico, a assistente BB disse à médica que era melhor fazer um internamento compulsivo. Diante desta afirmação, a arguida AA disse que isso só era possível com ordens do Tribunal, mas nunca mostrou qualquer cartão profissional, nem se arrogou de trabalhar no DIAP.
HH, médica no Hospital ..., esclareceu ter convidado a doente a entrar para uma sala e que uma das senhoras também entrou e, com um papel, disse que era oficial de justiça e que a utente não precisava de fazer o exame, porque um outro médico havia dito que não era necessário. Mais referiu não ter visualizado o documento que essa pessoa tinha em seu poder e que alegava ser oficial de justiça e que o exame não foi feito em virtude do estado de alteração emocional da doente e situação que a rodeava.
Constituída como arguida e interrogada nessa qualidade, AA negou a prática dos factos. Esclarecendo que o que realmente sucedeu foi que, em virtude de a denunciante BB ter solicitado à médica que internasse compulsivamente a mãe, interviu dizendo que tal teria que ser autorizado ou solicitado ao Tribunal. A referência que fez ao Tribunal foi somente essa e em momento algum exibiu o seu cartão profissional, nem se referiu às suas funções e qualidade para impedir o que era pretendido naquele momento pelas filhas.
De acordo com a informação documental reunida nos autos, a arguida AA é funcionária pública, com a categoria de assistente técnica e, à data de 20-09-2019, exercia funções no edifício deste DIAP.
Não se perspetivam quaisquer outras diligências úteis a realizar com interesse para o esclarecimento dos factos.
Findo o inquérito, nos termos do disposto no artigo 283.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público deduz acusação quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.
Ao invés, o inquérito é arquivado logo que se tenha recolhido prova bastante da não verificação do crime, de que o arguido o não tenha praticado, ou quando não seja legalmente admissível o procedimento ou não tenha sido possível obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes – cfr. artigo 277.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
A lei define indícios suficientes como aqueles de que resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Seguindo a doutrina de Figueiredo Dias, relativamente à definição do que seja uma possibilidade razoável “(...) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.” – cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1.º vol., 1974, pág. 133. Possibilidade razoável é, pois, uma possibilidade mais positiva do que negativa que resulta da apreciação de todos os indícios, sinais, vestígios, suspeitas, ou indicações existentes nos autos, na medida em que, logicamente relacionados e conjugados, permitem convencer quanto à existência do crime e seu responsável e formular um juízo de prognose sobre a decisão a proferir em audiência de discussão e julgamento, atendendo às regras de admissibilidade e valoração da prova aplicáveis.
No caso em apreço, a prova assenta essencialmente em duas versões dos factos. De um lado, a versão apresentada pelas assistentes na denúncia, que, nos seus traços gerais, foi confirmada pela testemunha HH. De outro, a versão sustentada pelas arguidas e corroborada pela testemunha GG. Sopesadas as duas versões apresentadas, considerando o envolvimento e interesse de cada uma das partes no desfecho dos autos e a relação de proximidade que intercede entre a testemunha GG e as arguidas, somos levados a concluir que a realidade dos factos ocorreu tal como relatada pela testemunha HH, sendo esta a única que se afigura isenta e credível, por não apresentar qualquer relação com as partes ou interesse quanto ao desfecho do inquérito. Nesta medida, tem-se por suficientemente indiciado que, na ocasião em apreço, a arguida AA, exibindo um papel na mão de teor não concretamente apurado, disse que era oficial de justiça e que a utente não precisava de fazer o exame, porque um outro médico havia dito que não era necessário.
Prosseguindo, importa, agora, indagar se tal conduta, levada a cabo pela arguida, é ou não suscetível de configurar o denunciado crime de abuso de poder.
Vejamos.
Comete o crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º do Código Penal: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Trata-se de um crime específico próprio, na medida em que só pode ser cometido por funcionário, na aceção e com a delimitação que lhe é conferida pelo artigo 386.º do Código Penal. A responsabilidade penal funda-se, como tal, na qualidade do agente.
Visa-se, deste modo, proteger a autoridade e credibilidade da administração do Estado, manifestada no regular funcionamento das suas instituições e serviços em conformidade com os princípios igualdade, imparcialidade e proporcionalidade, e na prossecução das finalidades públicas que lhes estão subjacentes.[2]
Quanto ao elemento objetivo, a incriminação caracteriza-se pelo abuso de poderes ou pela violação de deveres inerentes às funções. Configuram abuso de poder, entre outras, a situações de incompetência para o ato em causa, violação da lei (quanto à base necessária para a sua atuação ou quanto às formalidades impostas), ou ainda de desvio de poder (isto é, utilização dos poderes para a prossecução de um fim diverso daquele para o qual foram concedidos).
Por sua vez, quanto ao elemento subjetivo, é um crime doloso, uma vez que a negligência não é expressamente punida – cfr. artigo 13.º, n.º 1, do Código Penal. Ao dolo acresce ainda um elemento subjetivo especial, que consiste na intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
É, porém, um crime formal ou de mera atividade, na medida em que para a consumação do tipo não se exige a efetiva obtenção do benefício ilegítimo ou a produção do prejuízo almejadas pelo agente.
Tendo presente tais considerações, entende-se que a factualidade que se considerou suficientemente indiciada não integra a tipicidade objetiva do crime de abuso de poder (ou de qualquer outro tipo de ilícito penal). De facto, o que resulta da prova produzida é que a arguida apenas se identificou enquanto funcionária e argumentou quanto à desnecessidade de realização do exame, porém, não utilizou qualquer prerrogativa funcional para impedir a sua concretização. Em consequência, impõe-se concluir como não verificada a conduta típica que consiste no abuso de poderes ou violação de deveres inerentes à função. Neste mesmo sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 25-10-2001, proferido Proc. n.º 1262/98, em cujo sumário[3] se pode ler:
«I - O tipo penal do art. 382.º do CP, sendo como é, um crime de intenção determinada, reclama, em sede da sua perfetibilidade típica subjetiva, um dolo específico, pois que os seus fins ou motivos (a intenção de o agente obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou a de causar prejuízo a outra pessoa) fazem parte integrante do respetivo tipo.
II - A invocação (mesmo que para escopos ilegítimos) de determinado estatuto profissional não chega para satisfazer à previsão típica do art. 382.º do CP, pois que esta demanda e pressupõe que o abuso de poderes ou a violação de deveres estejam interligados a um efetivo exercício de funções públicas por parte do agente, no momento da consumação do crime.».
Pelo exposto, conclui-se que a conduta levada a cabo pela arguida não integra a prática do crime de abuso de poder. Em consequência, determina-se o arquivamento dos autos, nesta parte, nos termos do artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
**
Quanto à acusação particular deduzida pelas assistentes:
O Ministério Público não acompanha a acusação particular deduzida pelas assistentes, pelas razões que infra se sintetizam.
As afirmações levadas à acusação particular, que as assistentes entendem ser atentatórias da sua honra e consideração, foram produzidas na sequência de uma denúncia sobre factos que integram a prática de crime, e, enquanto tal, no âmbito da defesa de valores penalmente protegidos. Inexiste qualquer elemento de prova que permita concluir, para além da dúvida razoável, que tais afirmações extravasam a antedita finalidade e que às mesmas subjazia a intenção de ofender as assistentes. Tanto mais que a denúncia em questão foi também da iniciativa da própria ofendida naqueles autos (8470/18.4T9PRT), que formulou afirmações de idêntico significado, conforme prova documental carreada para estes autos. Neste contexto, é compreensível a defesa das arguidas que se escudam na circunstância de terem tomado todos os factos denunciados como verdadeiros, por lhes terem sido transmitidos pelo irmão e cunhada, sujeitos diretamente visados pelos mesmos. Assim se considerando, a punibilidade das condutas em questão ficará excluída por se encontrarem reunidos os pressupostos previstos no artigo 180º, n.º 2, do Código Penal. (…)” – (ref.ª 421556417, de 03-02-2021).
*
d) Em 02-03-2021, a assistente BB, em face de tal despacho de arquivamento do Ministério Público, requereu a abertura da instrução, pedindo a pronúncia das arguidas AA e DD, com base nos factos aí descritos, por um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.º 1, do Código Penal, e ainda a primeira por um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º, do mesmo Código. (ref.ª 28261669, de 02-03-2021).
*
e) Em 04-03-2021, a arguida AA, dizendo não se conformar com a acusação particular contra si deduzida, requereu a abertura da instrução, com os fundamentos invocados, pedindo que, a final, seja proferido despacho de não pronúncia quanto ao imputado crime de difamação. (ref.ª 28287797, de 04-03-2021).
*
f) Em 07-04-2021, após remessa dos autos à distribuição, foi proferido o seguinte despacho pela Exm.ª Juiz de Instrução Criminal:
Requerimentos de Instrução que antecedem:
O tribunal é competente, em razão da matéria e do território.
Os requerentes têm legitimidade e interesse em agir, encontrando-se legalmente representados.
A fase de instrução é legalmente admissível.
Por tempestivo, recebo o requerimento que antecede e declaro aberta a fase de instrução.
Cumpra o disposto no art.º 287.º/5, do CPP.
A instrução visa a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento – cfr. art.º 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
É formada pelo conjunto de atos que o juiz entenda levar a cabo, sendo que os atos que não interessarem à instrução são indeferidos por despacho irrecorrível – art.ºs 289.º, n.º 1, e 291.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal.
A prova produzida nos autos é suficiente para a decisão instrutória, considerando a prova do inquérito, bem como a natureza das questões trazidas à instrução.
Como se refere no AC da RL N.º 2495/07-9, datado de 15-03-2007, “A decisão proferida em sede de instrução, acerca da realização ou não realização de diligências a realizar em instrução, assente na ponderação do interesse e utilidade que estas revelarem para a descoberta da verdade (…) o texto da norma em causa é claro ao atribuir ao juiz – e não à perspetiva de outros sujeitos processuais – o poder de avaliar quais os atos que interessam à instrução "(A instrução é formada pelo conjunto dos atos de instrução que o juiz entenda levar a cabo (…)” – artigo 289.º, n.º 1, primeiro segmento, do Código de Processo Penal.,) ou seja, quais os atos necessários à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação (Artigo 290.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Não consentindo a lei que o despacho, que em sede de instrução indefere a realização de diligências requeridas, seja arbitrário ou discricionário, devendo antes ser fundamentado num juízo que tenta obviar à utilização de expedientes dilatórios através da prática de ato sem interesse para a instrução e para a descoberta da verdade material, permite o seu indeferimento, pois os critérios da sua admissibilidade são, respetivamente, o da necessidade do ato para a realização das finalidades da instrução e o da sua legalidade, quanto às provas novas e o da sua indispensabilidade e inobservância dos requisitos legais do inquérito, relativamente às repetidas – neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal, fls. 783.
Como se refere no AC do TC n.º 611/2005/T, Publicação: Diário da República n.º 248/2005, Série II de 2005-12-28, (…) o poder-dever conferido ao juiz para proferir o indeferimento está balizado pelo limite do “apuramento da verdade” e pela consideração de “os atos requeridos não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo”. Não é só um “prudente arbítrio do julgador”, de que fala o citado n.º 4 do artigo 156.º, mas ainda e essencialmente, como regista o Ministério Público, “nos termos e dentro dos limites da lei, de um juízo prudencial, traduzido na densificação e na concretização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, em harmonia com o fim e a função do processo (nomeadamente a tutela dos valores da celeridade e da realização da verdade e da justiça materiais)”, sendo que o juiz, com a liberdade própria para aceitar ou rejeitar diligências probatórias, tem de indicar minimamente os motivos da decisão, como se constata no presente caso.”
Indefiro, assim, as diligências instrutórias requeridas - art.ºs 286.º, n.º 1, 288.º, n.ºs 1 e 4, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, e 291.º, todos do CPP.
Indefiro a tomada de declarações à assistente porquanto se trataria de um ato inútil, na medida em que a sua versão dos factos se encontra plasmada no requerimento instrutório.
Se, ainda assim persistir na sua audição e tratando-se de ato obrigatório, deverá dizê-lo, em cinco dias, caso em que será ouvida em sede de debate instrutório (considerando-se que prescinde do prazo a que alude o art.º 297.º, n.º 1, do CPP, tendo em conta o disposto no art.º 107.º, n.º 1, do mesmo diploma legal).
Designo, para Debate Instrutório, o próximo dia 21 de abril, às 14h30.
DN (art.º 297º, do CPP).” - (ref.ª 423412172, de 07-04-2021).
*
g) Em 21-04-2021, no início da diligência, “em virtude de uma eventual desistência da Instrução”, a Exm.ª Juíza de Instrução declarou suspensa a diligência de debate instrutório, designando nova data para continuação (ref.ª 423929459, de 21-04-2021).
*
h) Em 07-06-2021 realizou-se o debate instrutório, resultando da respetiva ata, no que agora interessa, que o Digno Magistrado do Ministério Público sustentou, em síntese, que, relativamente ao requerimento de abertura da instrução da assistente BB, deve ser proferido despacho de não pronúncia quanto aos crimes de denúncia caluniosa e de abuso de poder, sustentando, quanto ao requerimento de abertura da instrução apresentado pela arguida AA, existir a invocada extemporaneidade do direito de queixa (caducidade) relativamente aos factos e crime imputados na acusação particular, o que gera a nulidade da acusação, devendo, no entanto, improceder a arguida litispendência. Foi, então, designado dia 18-06-2021, pelas 14:30 horas, para a publicação da decisão instrutória (ref.ª 425630419, de 07-06-2021).
*
i) Em 17-06-2021, foi remetido aos autos o seguinte requerimento:
BB e CC, Assistentes e melhor identificadas nos autos à margem epigrafados, em que são Arguidas AA e DD, também melhor identificadas nos autos supra identificados, vêm, respeitosamente, expor e requerer a V. Exa. o seguinte:
1. As Assistentes declaram que desistem da queixa contra as Arguidas, da Acusação particular apresentada e ainda da Abertura de instrução.
2. As Arguidas não se opõem às desistências apresentadas pelas Assistentes nos presentes autos.
3. A Arguida AA desiste da respetiva abertura instrução, apresentada por si.
4. As Assistentes não se opõem à desistência apresentada pela Arguida AA.
5. As Assistentes desistem do Pedido de indemnização civil apresentado contra as Arguidas.
6. Com as referidas desistências declaram as Assistentes e as Arguidas, individual, mútua e reciprocamente que nada têm a reclamar ou a receber umas das outras, deste modo, colocando fim ao litígio.
7. As custas criminais a que haja lugar serão suportadas em partes iguais, prescindido de custas de parte.” (ref.ª 29229080, de 17-06-2021).
*
j) Em 22-06-2021, tendo vista dos autos, o Ministério Público tomou posição relativamente ao antecedente requerimento nos seguintes termos:
“Fls. 516 e v – Temos a dizer o seguinte:
- O único crime de que se discute nos autos em que é permitida a desistência do procedimento criminal é o de crime de difamação de que se encontram acusadas (fls. 271 e ss) as arguidas AA e DD, e atentas as declarações de vontade de fls. 516 e v nada temos a opor, pelo que promovo se entenda como válida e relevante tal desistência, pelo que deve ser homologada (art.º 51.º, n.º 2, do CPP);
- quanto aos crimes de que vêm acusadas as arguidas AA e DD – denúncia caluniosa e de abuso de poder -, pela assistente BB, os mesmos revestem natureza pública.
Trata-se de um crime público, podendo o Ministério Público intervir, não só para dar início ao processo, como para o fazer prosseguir, deixando tal prosseguimento de estar na disponibilidade do ofendido ou de quem o represente. Assim, a desistência da queixa por parte da assistente, não tem qualquer relevância;
- quanto ás requeridas desistências da instrução por parte de BB (fls. 320 a a 332v) e por parte de AA (fls. 344 a 349) resulta que a M.ª JIC apreciou os requerimentos de abertura de instrução, considerou-os legalmente admissíveis, recebeu-os e declarou aberta a instrução (fls. 456 e 457).
Queremos deixar claro que a pretensão da arguida AA e da assistente BB de desistir da instrução (já declarada aberta) não tem suporte legal, pois se o tivesse as requerentes o teriam invocado no requerimento de fls. 516 e v. Assim, pelo exposto, opomo-nos á pretensão de ser considerada válida a desistência da instrução.” (ref.ª 426056693, de 22-06-2021).
*
l) Na sequência, foi proferido o despacho recorrido (acima transcrito).
*
Cumpre apreciar e decidir.
Legitimidade e interesse em agir do recorrente Ministério Público (condições necessárias para recorrer):
Entende a arguida AA que o Ministério Público não reúne as condições necessárias para recorrer, argumentando, para tal, que no final do inquérito foi proferido despacho de arquivamento relativamente aos crimes de denúncia caluniosa e de abuso de poder, além de aquele não ter acompanhado a acusação particular deduzida pelas assistentes, sendo tal posição contrária à assumida pelo mesmo Ministério Público agora no recurso, ao sustentar a inadmissibilidade da desistência da instrução, concluindo que para a admissibilidade de um recurso torna-se necessário, para além da legitimidade de quem recorre, comprovar o interesse em agir (n.º 1 e 2 do art. 410.º [4] do CPP), estando tal interesse ligado à “utilidade efetiva na intervenção do tribunal superior”. Mais refere que, com o recurso interposto, o Ministério está a “reagir a uma decisão que admitiu, e bem, a desistência da instrução, cujo requerimento de abertura da instrução reagia ao despacho de arquivamento do próprio Ministério Público findo o inquérito”, pelo que o recorrente não tem legitimidade nem interesse em agir no recurso interposto e admitido, impondo-se agora, na instância de recurso, a sua rejeição, sendo invocado o disposto nos artigos 414.º, n.º 3, e 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
Vejamos.
Trata-se (legitimidade e interesse em agir) de dois pressupostos em matéria de admissibilidade dos recursos. Porém, respeitando o entendimento da recorrida AA, considera-se não lhe assistir razão.
Com efeito, no que à legitimidade para recorrer respeita, a lei atribui-a expressamente ao Ministério Público, podendo este recorrer de “quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido” (al. a) do n.º 1 do art. 401.º do CPP).
E de entre as atribuições do Ministério Público no processo penal, a lei enumera a competência para “interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa” (al. d) do n.º 2 do art. 53.º do mesmo Código).
Compreende-se essa amplitude da legitimidade do Ministério Público para recorrer (incluindo no interesse do arguido), na medida em que o mesmo tem como atribuições estatutárias, além do mais, o exercício da acção penal “orientado pelo princípio da legalidade” e a defesa da “legalidade democrática”, bem como de “velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis” (arts. 2.º e 4.º, n.º 1, alíneas a), d) e j), do Estatuto do Ministério Público).[5]
A legitimidade para recorrer, consagrada em tais normas e com essas amplitude e finalidades, designadamente da defesa da legalidade, não conhece limitações, sendo que não é o interesse dos intervenientes processuais, designadamente do arguido e/ou do assistente, que poderão condicionar o exercício desse direito, como parece defender a arguida AA quando se refere ao agitar “o que já estava serenado”.
Não se vislumbra, pois, em que medida carece o Ministério Público de legitimidade para recorrer de uma decisão judicial que, no seu entender, não tem apoio na lei.
No que respeita à alegada falta de interesse em agir, dispõe o n.º 2 do referido artigo 401.º do CPP que “Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.”
Relativamente a tal questão, veio o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 2/2011, de 16-12-2010, estabelecer que, “Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.” (in DR-I, de 27-01-2011).
Por sua vez, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 361/2016, decidiu “Não julgar inconstitucional a interpretação dos artigos 48.º, 53.º, n.º 2, alínea d), e 401.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, todos do Código de Processo Penal, segundo a qual, por falta de interesse em agir, o Ministério Público não tem legitimidade para recorrer de decisão absolutória, quando nas alegações orais produzidas na audiência de julgamento se haja pronunciado no sentido da absolvição.” (in DR-II, de 11-07-2016).
Porém, no caso presente não se verifica tal situação. Com efeito, não existem posições incompatíveis assumidas pelo Ministério Público neste processo.
Na verdade, como resulta do acima exposto (ponto c)), o Ministério Público, no final do inquérito, considerou não terem sido recolhidos indícios suficientes da prática, pelas arguidas, dos ditos crimes de denúncia caluniosa e de abuso de poder (não relevando agora o crime de difamação, imputado na acusação particular, pois que a desistência da queixa quanto a este foi validamente homologada).
Mas o mesmo Ministério Público não defende, agora, posição contrária, ou seja, sustentando que tais indícios existem. Neste recurso apenas é posta em causa a admissibilidade da desistência da instrução, não pugnando o Exm.º Procurador pela existência de indícios e pela prolação de decisão instrutória a pronunciar as arguidas.
A questão é colocada apenas ao nível da (in)admissibilidade da desistência da instrução, pelas razões apontadas na motivação e conclusões, por tal desistência não ser, no entendimento do recorrente, consentida pela lei, estando, por isso, em causa a defesa da legalidade.
É o “prejuízo” da violação da legalidade que legitima a reação do Ministério Público e sustenta o seu interesse em agir, pela via do presente recurso, tratando-se, naturalmente, de um interesse público, sabendo-se que o aqui recorrente representa o Estado.
Não tem, assim, sustentação a alegação da recorrida de que o Ministério Público não tem legitimidade e interesse em agir.
*
Inadmissibilidade de desistência da instrução, invocando-se a violação do disposto nos artigos 116.º, n.º 2, do Código Penal e 51.º, n.º 2, e 307.º do CPP.[6]
Nesta parte, sustenta o recorrente Ministério Público que a desistência da instrução apresentada nos autos (conforme indicado no ponto i) supra) não tem suporte legal (nem tendo as desistentes invocado a norma que tal legitima), pois que, apesar de facultativa, uma vez requerida a fase da instrução e recebido tal requerimento não é admissível a desistência da mesma, devendo aplicar-se, analogicamente, o disposto no artigo 415.º, n.º 1, do CPPP relativamente aos recursos, sendo que aqui estão em causa crimes de natureza pública (denúncia caluniosa e abuso de poder).
Vejamos.
Não há dúvidas que a instrução “tem carácter facultativo”, pois que isso mesmo estabelece o n.º 2 do artigo 286.º do CPP.
A mesma constitui uma fase processual autónoma (relativamente ao inquérito e ao julgamento) e pode ser requerida pelo arguido (relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, no caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação) ou pelo assistente (se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação), conforme estabelece o n.º 1 do artigo 287.º do mesmo Código.
A fase da instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (n.º 1 do citado art. 286.º).
Tendo presente o referido caráter facultativo, a questão coloca-se ao nível da possibilidade de desistência da instrução depois de o respectivo requerimento ter sido recebido e declarada aberta a fase da instrução por despacho judicial (aludido nos n.ºs 3, 4 e 5 do art. 287.º).
Numa primeira abordagem, atento aquele carácter facultativo da instrução, poderemos ser levados a considerar que também o requerente pode desistir da própria instrução a todo o tempo, como também é sustentado no parecer pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto.
Porém, bem vistas as coisas, julgamos que a resposta tem de ser negativa, considerando estar a razão, neste caso, do lado do recorrente Ministério Público, como se procurará demonstrar.
Como é sabido, o processo penal representa um conjunto encadeado de normas ordenadoras dos atos a levar a cabo num processo, com enunciação, além do mais, dos meios de prova a considerar, com vista à obtenção da verdade na administração da justiça, sendo ainda elencadas as consequências de atos praticados contra a lei adjetiva ou que ofendam princípios constitucionais estruturantes, designadamente do contraditório e do direito de defesa (n.ºs 1 e 5 do art. 31.º da CRP).
Trata-se de normas reguladoras da administração da justiça penal, conducentes à execução prática do direito penal substantivo, em que se traduz o ius puniendi do Estado.
Consequentemente, a tramitação processual não poderá, a não ser nos casos expressamente previstos na lei, ficar na livre disponibilidade dos sujeitos processuais.
Efetivamente, devido aos interesses que estão “em jogo”, não vigora no direito processual penal o princípio do dispositivo, sendo este um dos princípios estruturantes do direito processual civil.[7]
A margem de disponibilidade da procedibilidade e da acção penal por parte dos sujeitos (no caso o ofendido) está limitada aos crimes que o legislador considera de menor gravidade, onde não estão em causa, primordialmente, interesses públicos, classificados de crimes semi-públicos e particulares, relativamente aos quais é possível não iniciar o procedimento e também pôr termo ao processo, neste caso até à publicação da sentença em 1.ª instância, mediante desistência de queixa por parte do ofendido, sem oposição do arguido (arts. 113.º, n.º 1, e 116.º, n.º 2, do C. Penal e 51.º do CPP).
Mas a desistência de queixa (neste caso admitida quanto ao crime de difamação, que tem natureza particular) não é a mesma coisa que a desistência da instrução. Porém, se estiverem apenas em causa nos autos crimes de natureza semi-pública ou particular, relativamente a cuja(s) acusação(ões) o arguido tenha requerido a abertura da instrução, a eventual desistência de queixa pelo ofendido/assistente e sua homologação judicial faz, por consequência, terminar a fase da instrução, sem necessidade de proferir decisão instrutória.
Já nos crimes ditos “públicos”, aqueles cujo procedimento criminal não depende de queixa, tal desistência (de queixa) não é admissível, estando entre estes os crimes de denúncia caluniosa e de abuso de poder (arts. 365.º, n.º 1, e 382.º C. Penal, respetivamente), objeto de participação e imputados pela assistente BB às arguidas AA e DD no requerimento de abertura da instrução (ponto d) supra).
E é relativamente a estes que a Exm.ª Juíza pôs termo à instrução, aceitando a desistência da mesma, pois que a primeira parte do despacho, embora não o especificando (pois que não refere a que crime se reporta e usa a expressão “do/s crime/s em causa”) só poderia reportar-se ao crime de difamação (art. 180.º, n.º 1), que é de natureza particular (n.º 1 do art. 188.º do C. Penal) – (pontos b) e e) supra).
Assim, no caso sub judice não está em causa a legalidade da desistência da queixa apresentada pelas assistentes BB e CC relativamente ao imputado crime de difamação (do qual acusaram as arguidas AA e DD), a qual foi homologada pela primeira parte de tal despacho (não sendo este, nessa parte, objeto do recurso). Na verdade se apenas estivesse em causa esse crime, tal homologação faria, necessariamente, “cair” a fase da instrução, não prosseguindo a mesma.
Mas não foi isso que se passou, pois que a desistência da instrução foi admitida quanto aos ditos crimes de natureza pública (que não admitem, nem foi homologada, a desistência de queixa), relativamente aos quais as assistentes pugnaram pela pronúncia das arguidas, o que a lei não prevê.
Efetivamente, tal como refere o Exm.º Procurador recorrente, no decurso do processo legislativo de aprovação do atual Código de Processo Penal foi rejeitada uma proposta de redação para o n.º 2 do artigo 286.º do seguinte teor: “a instrução tem caráter facultativo, mas não admite desistência.”[8]
Não tendo sido aprovado o texto com a parte final, poderia julgar-se que, ao não ficar consagrada a inadmissibilidade de desistência da instrução, tal desistência será permitida.
Efetivamente, não existe no ordenamento adjectivo penal qualquer norma a prever a desistência da instrução ou a proibir tal desistência.
Contudo, ainda que a apresentação de requerimento de abertura da instrução esteja dependente da vontade dos sujeitos processuais (arguido e/ou assistente), após a apresentação e admissão do mesmo, ou seja, após declarada aberta da fase da instrução, julgamos que esta fase processual se torna obrigatória, terminando, em princípio,[9] com a decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia (arts. 307.º e 308.º do CPP).
Com efeito, estando na disponibilidade do arguido e/ou do assistente requerer a abertura da instrução, nas situações que a lei enuncia (n.º 1 do art. 287.º), a partir do momento em que é proferido despacho a admitir tal ou tais requerimentos e é declarada aberta a fase da instrução [10], a mesma passa a ser obrigatória.[11]
A admitir-se a desistência da instrução representaria um afloramento do aludido princípio do dispositivo (próprio do processo civil), contrário à natureza publicista do processo penal.
O legislador foi particularmente cuidadoso no elenco das situações em que as “desistências” são admissíveis, permitindo a desistência da queixa (nas situações já aludidas), além de prever expressamente a desistência do recurso interposto, mas com limitações temporais, pois que tal é permitido apenas “até ao momento de o processo ser concluso ao relator para exame preliminar” (art. 415.º, n.º 1, do CPP).
Também no âmbito do direito contra-ordenacional foi consagrada, na fase de impugnação judicial, a possibilidade de “o Ministério Público, com o acordo do arguido, retirar a acusação”, mas tal só poderá ocorrer “até à sentença em 1.ª instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 64.º” [despacho que conhece do recurso], tal como estabelece o n.º 1 do artigo 65.º-A do Regime Geral das Contra-ordenações.[12]
Igualmente foi consagrada a possibilidade de retirada do recurso pelo arguido “até à sentença em 1.ª instância ou até ser proferido o despacho o despacho previsto no n.º 2 do artigo 64.º”, sendo que “depois do início da audiência de julgamento, o recurso só pode ser retirado mediante o acordo do Ministério Público.” (art. 71.º do mesmo RGCO).
Tais normativos, maxime o dito artigo 415.º, n.º 1, do CPP (desistência nos recursos) legitimam o entendimento de que somente nos casos e termos legalmente previstos é possível a desistência de fases processuais cujo desencadear está na disponibilidade do requerente (recursos / impugnações), não sendo admissível, por isso, desistir em situações que lei não prevê expressamente.[13]
E não cremos que a possibilidade de desistência da instrução (depois de judicialmente admitida) possa estar dependente da qualidade do sujeito processual que a requereu, no caso o arguido e/ou o assistente, nem tão pouco de terem sido ou não praticados atos e produzida ou não prova nessa fase, como parece resultar do parecer do Exm.º Procurador-Geral Ajunto.
Com efeito, admitida a instrução, deixa o requerente de poder dispor dela, sendo ao Juiz que compete dirigir essa fase processual, tendo presentes as diligências probatórias requeridas e admitidas (arts. 288.º, n.º 1, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, 291.º e 292.º do CPP).
Ademais, a admitir-se a desistência da instrução, a mesma não produziria os efeitos pretendidos pelo requerente (ou quaisquer outros), tudo se passando como se ela nunca tivesse sido requerida, voltando os autos, forçosamente, ao momento em que foi proferido despacho final no inquérito, repristinando-se a acusação (pública ou particular) ou o arquivamento.
Mas se já tivessem sido realizadas diligências probatórias na instrução (vg. interrogatórios de arguidos e inquirição de testemunhas pelo JIC), que relevo e validade teriam essas provas nos autos?
Não existindo, agora, instrução, esses elementos probatórios seriam “apagados” e não poderiam ser utilizados em caso de reabertura do inquérito, isto na situação de a instrução ter sido requerida pelo assistente na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público (n.º 1 do art. 279.º do CPP)?
E se a instrução tivesse sido requerida pelo arguido, com a desistência da mesma, indo os autos para julgamento (pois que subsistia a acusação), tais elementos probatórios também não poderiam ser utilizados, com eventual prejuízo para a descoberta da verdade?
Além disso, a admitir-se a desistência, não pode deixar de equacionar-se a possibilidade de utilização da fase da instrução apenas como forma de protelar o andamento dos autos (no caso do arguido que foi acusado) ou mesmo de “gestão” da instrução em função do seu desenrolar, desistindo dessa fase se as diligências levadas a cabo não fossem favoráveis às pretensões do requerente, assim as inutilizando.
Por tudo quanto se deixa dito, cremos não ser defensável o entendimento de que a instrução, depois de admitida, continua na disponibilidade do requerente, podendo este dela desistir a todo o tempo. Tal possibilidade, além de não estar prevista em qualquer norma legal, vai contra princípios relevantes do processo penal, maxime do inquisitório, da descoberta da verdade e da administração da justiça.[14]
Nem tão pouco releva para o caso, a nosso ver, a qualidade do requerente da instrução, designadamente que tenha sido o assistente, não se descortinando razão válida para reconhecer especificamente a este o direito de desistir a qualquer momento da instrução, como é sustentado na resposta do recurso e no parecer.[15]
E este nosso entendimento, julgamos, em nada contraria a natureza facultativa da instrução, pois que tal natureza se reporta ao exercício do direito de requerer essa fase, esgotando-se no momento em que tal requerimento é admitido e a fase processual é declarada aberta.
Assim, a natureza facultativa da instrução significa apenas e tão só que essa fase processual só será desencadeada a requerimento (do arguido ou assistente – n.º 1 do art. 287.º do CPP).
Nem tão pouco a intervenção do Juiz de Instrução se substitui, no caso de formulação de requerimento de desistência (não admissível), ao Ministério Público, pois que a este competirá sempre (ressalvada o ato de abertura da instrução) promover o processo penal por crimes públicos (art. 48.º do CPP).
Ademais, o Juiz de Instrução também dispõe de poderes de investigação, realizando os atos que “entenda dever levar a cabo” (n.º 1 do art. 289.º), incluindo atos supervenientes com “interesse para a descoberta da verdade” (n.º 1 do art. 299.º do CPP), sendo esta uma fase, nas palavras de Germano Marques da Silva, “materialmente judicial”.[16]
No caso dos autos não foram realizadas quaisquer diligências probatórias no âmbito da instrução, pois que a Exm.ª Juíza, no despacho em que recebeu os requerimentos de abertura da instrução da assistente e da arguida (aludidos nos pontos d) e e)), indeferiu as diligências requeridas, apenas deixando em aberta a possibilidade de tomar declarações a esta última, tendo logo designado data para o debate instrutório, o qual teve lugar (pontos f) e h)).
Contudo, essa circunstância em nada altera tudo quanto se deixou dito, pois que a assistente, ao requerer a abertura da instrução, submeteu (também) as provas já existentes nos autos à apreciação da Exm.ª Juiz de Instrução, podendo esta, apesar de não dispor de outros elementos probatórios, vir a concluir pela existência de indícios da prática dos referidos ilícitos, ao contrário do entendimento manifestado pelo Ministério Público na decisão final do Inquérito.
Assim, perante o entendimento de que não é legalmente admissível a desistência da instrução, incluindo pelo assistente, o despacho recorrido não pode subsistir, impondo-se a prolação de decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia das arguidas, no que aos imputados crimes de denúncia caluniosa e abuso de poder diz respeito, em conformidade com o disposto nos artigos 307.º e 308.º do CPP.[17]
Nessa conformidade, procede o recurso interposto.
III
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a prolação de decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia das arguidas, no que aos imputados crimes de denúncia caluniosa e abuso de poder diz respeito, em conformidade com o disposto nos artigos 307.º e 308.º do CPP.
Sem custas.
*
Notifique.
*
Porto, 09-02-2022.
Raul Cordeiro
Carla Oliveira
____________
[1] Cfr. anotação ao artigo 365.º, in: Jorge de Figueiredo Dias (dir.), «Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo III, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 536.
[2] Neste sentido cfr. Paula Ribeiro de Faria, em anotação ao artigo 382.º, in «Comentário Conimbricense do Código Penal», vol. III, p. 774.
[3] Acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/criminal2001.pdf.
[4] Certamente quis dizer 401.º, pois que é este o normativo que se refere à “Legitimidade e interesse em agir” do recorrente.
[5] Aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27-08, com as alterações da Lei n.º 2/2020, de 31-03.
[6] No presente recurso não está em causa a primeira parte do despacho recorrido, no qual se homologou a desistência da queixa apresentada pelas assistentes BB e CC, contra as arguidas AA e DD, relativamente ao imputado crime de difamação, previsto e punível pelo artigo 180.º do Código Penal (pontos b) e i) supra).
[7] Efetivamente, no processo civil tal princípio tem especial consagração, designadamente, no direito de as partes desistirem da instância e do pedido, bem como de transigirem sobre o objeto da acção (arts. 283.º a 288.º do CPC), sendo que, mesmo aí, esse direito não é ilimitado, pois que “não é permitida a confissão, desistência ou transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis” (art. 289.º, n.º 1, do mesmo Código).
[8] Código de Processo Penal, V.II.TII, Assembleia da República – Divisão de Edições, 1999, pág. 169.
[9] Diz-se em princípio porque incidências podem ocorrer em que o “mérito” na instrução não venha a ser apreciado. Atente-se no caso de o arguido falecer no decurso da instrução, o que implicará a extinção da responsabilidade e do procedimento criminal (arts. 127.º, n.º 1, e 128.º, n.º 1, do C. Penal), bem como no caso de o ofendido desistir da queixa, tratando-se apenas de crimes semi-públicos ou particulares, com a respectiva homologação (arts. 113.º, n.º 1, e 116.º, n.º 1, do C. Penal e 51.º do CPP).
[10] Já antes de ser proferido tal despacho judicial nada invalida que o requerente da instrução dela desista (podendo nesse caso, quando muito, ser condenado em custas incidentais).
[11] Veja-se Jorge Emanuel Mendes Valente Dias, “Considerações sobre a prova e contraditório na fase de instrução no processo penal”, Dissertação de Mestrado em Direito, Universidade Portucalense, págs. 69 e 70.
[12] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, com as alterações posteriores (a última delas pela Lei n.º 109/2001, de 24-12).
[13] Por exemplo, a delimitação pela negativa está prevista no CPP para as provas, ao estabelecer o artigo 125.º que “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” (princípio da liberdade de prova).
[14] No sentido da inadmissibilidade da desistência da instrução, por tal não estar previsto na lei, podem ver-se Eduardo Maia Costa (in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, Almedina, pág. 964) e Fernando Gama Lobo (in Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 595), referindo ainda este último que não faria sentido essa previsão legal, “uma vez que, despoletada que seja, entramos numa fase irreversível de averiguação indiciária, que interessa a todos os intervenientes e não só aos requerentes da instrução, sendo certo que o tribunal tem sempre o dever de diligenciar pela descoberta da verdade.”
[15] A possibilidade de desistência ou não da instrução regularmente admitida não tem merecido tratamento relevante na jurisprudência, podendo ver-se, ainda que tratando de situação muito diferente, o Acórdão desta Relação de 13-01-2021 – Proc. 345/18.3PASTS.P1 (Desembargador Borges Martins), com o seguinte sumário: “A morte do/a assistente não extingue a instrução por ele/a requerida, mesmo que os seus sucessores indicados no artigo 113.º, n.º 2, do Código Penal pretendam essa extinção, não sendo aplicável analogicamente a esta situação o disposto nesse preceito.
na doutrina, atente-se no enunciado de posições apresentado por Henrique Gustavo Ribeiro Ferreira de Antas e Castro no estudo “Fase da Instrução: Quo Vadis? – Repensar o Sentido da Instrução Processo Penal Português”, Dissertação de Mestrado – Mestrado em Direito Judiciário (Direitos Processuais e Organização Judiciária), Universidade do Minho – Escola de Direito, Outubro de 2015, págs. 54 e 55, nota 179, nos termos que seguem, emitindo também a sua própria posição:
“Tem-se colocado a questão se o facto de a instrução ser facultativa confere ao seu requerente a faculdade de dela desistir, depois de elaborado o requerimento de abertura de instrução. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considerou que a lei não permite a desistência da instrução em qualquer momento, pois se “já tivesse sido produzida prova em sentido desfavorável ao requerente da instrução constituiria uma fraude à lei, isto é, uma fraude aos fins públicos da instrução, impedindo o tribunal de exercer o seu juízo de valoração sobre a prova produzida” (Cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição Atualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009, pp. 751-752).
Para MAIA COSTA, a desistência da instrução nunca será possível, pois não está prevista na lei (AA. VV., Código de Processo Penal…, ob. cit., p. 1000).
Em sentido totalmente distinto, ARTUR CORDEIRO consagrou um conjunto de requisitos para a desistência da instrução. No caso de ser o arguido o requerente, este, visto que a instrução é o exercício de um direito de defesa, poderá desistir sempre. O Autor não encontra a objeção apontada por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, na medida em que entende que qualquer elemento probatório que tenha sido obtido antes da desistência e que seja útil ou necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, mesmo que eventualmente prejudicial ao arguido, estará sinalizado, pelo que o Ministério Público ou o assistente podem requerer a sua produção na audiência de julgamento. Por outro lado, na circunstância de ser o assistente a requerer a abertura de instrução, este poderá desistir da instrução em caso de crimes de natureza semipública, desde que o arguido a isso não se oponha, já que sempre estaria na disponibilidade do assistente a desistência da queixa. No caso de crimes de natureza pública, a situação seria, pois, inquestionavelmente diferente, pois aí existem interesses públicos subjacentes à necessidade de esclarecimento das condutas em questão, não estando o prosseguimento do procedimento criminal dependente de qualquer impulso privado (cfr. ARTUR CORDEIRO, “Inquérito e Instrução…”, ob. cit.).
Por último, faremos apenas uma breve menção à opinião de RUI DA FONSECA E CASTRO, segundo o qual se deve aplicar analogicamente ao requerimento de abertura da instrução a norma do art. 415.º, n.º 4, do CPP, ou seja, a desistência do requerimento apenas é possível até ao momento em que for proferido despacho de abertura da instrução. Não seria, pois, esta a única manifestação do princípio do dispositivo no processo penal, já que existem outros afloramentos desse princípio, como são exemplo a possibilidade de desistência da queixa e da acusação particular, ou a possibilidade de desistência do recurso (cfr. RUI DA FONSECA E CASTRO, Processo Penal – Instrução: Tramitação, Formulários, Jurisprudência, 2.ª Edição (revista e atualizada), Lisboa, Quid Juris, 2014, pp. 62 e ss.). De referir ainda que a perspetiva de RUI DA FONSECA E CASTRO foi também perfilhada por PAULA MARQUES DE CARVALHO (cfr. PAULA MARQUES DE CARVALHO, Manual Prático de Processo Penal, 7.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 317).
Não concordamos com a doutrina de ARTUR CORDEIRO, porquanto entendemos que permanece válido o óbice apontado por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE na medida em que desistir da instrução no momento em que fosse produzida prova desfavorável ao seu requerente, seria contrário à lei. No entanto, não nos chocaria, e apesar de a possibilidade não estar legalmente prevista, a hipótese de desistência da instrução até um determinado momento, porventura nos moldes formulados por RUI DA FONSECA E CASTRO.”
[16] Curso de Processo Penal III, 2.ª Edição, Lisboa, Editorial Verbo, pág. 132.
[17] Ademais, a abertura da instrução requerida pelo assistente implica tributação em taxa de justiça, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 8.º do RCP.