Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12435/17.5T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CRIME MILITAR
INSUBORDINAÇÃO MILITAR
AMEAÇA
OUTRAS OFENSAS
PERGUNTAS PROIBIDAS
Nº do Documento: RP2018100312435/17.5T9PRT.P1
Data do Acordão: 10/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º42/2018, FLS.34-44)
Área Temática: .
Sumário: I - O juiz, no uso dos poderes de disciplina e de direção da audiência, deve impedir que sejam formuladas perguntas sugestivas e advertir quem prevarica; se a advertência for ignorada, então, na valoração desse depoimento, não pode deixar de ter em conta que faltou espontaneidade nas respostas.
II - O conceito "em presença de militares reunidos", art. 89º do atual CJM não é substancialmente diverso do conceito "em presença de tropa reunida", do art. 79º, n.º1, al. a) do anterior CJM.
III - Uma ocasional e fortuita presença de quatro militares da GNR que confluíram para um local onde estava o arguido - também militar da GNR, mas que não estava por ocasião de serviço militar - para o fiscalizarem enquanto enquanto condutor de um motociclo não preenche o conceito de "militares reunidos".
IV - A ameaça que releva para o tipo legal de insubordinação do art.º 89º do CJM tem de reunir as mesmas características da ameaça do art.º 153.º do CP.
V - A afirmação "se não estivessem aqui os restantes camaradas eu atirava-te à Ria", no contexto em que foi proferida, não configura anúncio de mal futuro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 12435/17.5TCPRT.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura
I - Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 12435/17.5T9PRT, corre termos pelo Juízo Criminal (J2) da Instância Central, Comarca do Porto, B… foi submetido a julgamento, por tribunal colectivo, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de “insubordinação por ameaças ou outras ofensas previsto e punível pelo artigo 89.º, n.º 2, al. b), do Código de Justiça Militar.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, após deliberação do Colectivo, foi proferido o acórdão datado de 17.05.2018 (fls. 481 e segs.) e depositado na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, o Tribunal Colectivo delibera julgar improcedente por não provada a acusação em função do que:

1. Absolve o arguido B… da autoria material, na forma consumada, de um crime de insubordinação por ameaças ou outras ofensas, previsto e punido pelo artigo 89.º, n.º 2, al. b), do Código de Justiça Militar.
2. Sem tributação”.

Inconformado com a decisão absolutória, o Ministério Público dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes “conclusões” (transcrição integral):

«1 – O Ministério Público interpõe recurso do douto Acórdão, no qual se decidiu absolver o arguido B… da prática, de um crime de insubordinação por ameaça ou outras ofensas, p. e p. pelo art.º 89.º, n.º 2, al. b), do CJM, impugnando a decisão sobre a matéria de facto considerada como não provada e descrita nas al.s i) e j).
2 – O Tribunal considerou como não provados, designadamente, os seguintes factos: i. O arguido dirigindo-se ao primeiro-sargento C…, disse-lhe: “sabes bem quem sou?”, “só porque pensas que és sargento és mais do que os outros”, “já eu era guarda e tu não eras nascido”, “lá por teres um irmão que é oficial não tenho medo de ti”, “quem é que pensas tu que és”, “tu estás a falar assim porque tens as costas quentes”; “Não servia para guarda quanto mais para sargento”; e, j. O arguido atuou da forma descrita contra um superior hierárquico, que se encontrava no exercício de funções e por causa destas, na presença de outros militares, com a intenção de ofender o primeiro-sargento C… na sua honra e consideração, bem como de o convencer que o atingiria na sua vida, perturbando-o, desse modo, no seu sossego e tranquilidade, bem sabendo que a conduta era prevista e punida com crime de natureza militar.
Na FUNDAMENTAÇÃO do douto Acórdão refere-se a fl. 12, último parágrafo, que: Ainda do depoimento das testemunhas não resultaram provadas as expressões indicadas em i, por os depoimentos não terem sido, no que a estas se refere espontâneas (salvo o devido respeito não são permitidas respostas sugestivas ou que contenham a resposta para que a testemunha afirme sim ou não) e só estas são adequadas a alicerçar a convicção do Tribunal Colectivo.
3 – Quanto à decisão sobre a matéria de facto considerada como não provada e descrita nas al. i); sobre esta matéria, prestaram declarações, conforme consta da acta de julgamento do dia 07.05.2018:
A testemunha C…, 1.º Sargento, o qual referiu: Entre os 03:10 minutos e os 03:30 minutos, à seguinte pergunta do Ministério Público “quer contar o que se passou?”. A testemunha C…, em resposta, descreveu pormenorizadamente a sua intervenção com o arguido e referiu, nessa descrição, designadamente; Entre os 09:30 minutos e os 10:20 minutos referiu que o arguido lhe disse “que o atirava à ria” e “que não era guarda não era nada”. Tais declarações foram prestadas sem qualquer outra intervenção ou questão que tenha sido colocada pelo Ministério Público.
A testemunha D…, Guarda Principal, o qual referiu; Entre os 03:15 minutos e os 03:45 minutos, à seguinte pergunta do Ministério Público “conte-nos o que se passou, durante a fiscalização de trânsito, com o arguido?”. A testemunha D…, em resposta, descreveu pormenorizadamente a sua intervenção com o arguido e referiu, nessa descrição, designadamente; Entre os 05:00 minutos e os 05:30 minutos referiu que o arguido disse “o sargento não era ninguém para estar a identifica-lo”. Entre os 07:20 minutos e os 08:30 minutos referiu que o arguido disse que o sargento “não servia para sargento nem guarda devia ser” e que “se não estivesse lá a patrulha atirava-o à ria”.
A testemunha E…, o qual referiu: Entre os 05:00 minutos e os 05:20 minutos, à seguinte pergunta do Ministério Público “o que é que se passou o que é que viu?”. A testemunha E…, em resposta, descreveu pormenorizadamente a sua intervenção e referiu, nessa descrição, designadamente; Entre os 06:10 minutos e os 07:40 minutos referiu que “estava um individuo de motorizada que não se quis identificar”, “houve umas ameaças”, “o condutor da motorizada, que estava à civil, não se quis identificar ao Sargento que estava devidamente uniformizado”. Entre os 08:00 minutos e os 09:00 minutos referiu que o arguido disse “se não estivessem aqui estes camaradas atirava-o à ria, dirigindo-se ao Sargento”. A instancias do Tribunal, entre os 14:00 minutos e os 16:00 minuto, a testemunha referiu que o arguido disse, dirigindo-se ao Sargento C…, “não me identifico perante si”, “atiro-te à ria”, “você é sargento mas nem para guarda serve” e “Se não estivessem aqui estes camaradas atirava-o à ria”.
Ainda, sobre esta matéria, prestou declarações, conforme consta da acta de julgamento do dia 10.05.2018: A testemunha F…, a qual referiu o seguinte: Entre os 06:30 minutos e os 07:45 minutos referiu que “quanto cheguei os ânimos estavam exaltados”, o arguido B… disse para o Sargento C… “não sabe ser militar da GNR” e que “se não estivessem lá os camaradas atirava-o à ria”.
4 - Constata-se assim que não tem fundamento a invocada falta de espontaneidade dos depoimentos das testemunhas, tanto mais que, somente a testemunha C… foi confrontada com as expressões constantes da acusação e, apenas, depois de ter prestado o seu depoimento, espontâneo, durante o qual referiu, designadamente, que o arguido lhe disse “que o atirava à ria” e “que não era guarda não era nada”.
5 - Da nulidade, por falta de fundamentação, da decisão que entendeu não valorar os depoimentos das testemunhas, por não serem espontâneos: O Tribunal, não apresenta uma exposição, tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos e factos concretos em que fundamenta tal entendimento. Como resulta das transcrições supra, os depoimentos das referidas testemunhas foram prestados de forma espontânea, sem que tenha sido feita qualquer pergunta sugestiva, sendo por isso válidos, como meios de prova.
6 - Pelo que, tal decisão - de não valorar os depoimentos das referidas testemunhas -, que não se mostra minimamente fundamentada, em factos concretos, é nula nos termos dos art.º 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP. Nulidade que expressamente se invoca.
7 - Consequentemente, deverá a matéria constante da al. i) da matéria de facto não provada, porque se mostra comprovada, ser considerada como provada e constar, como tal, da Fundamentação do douto Acórdão, ora recorrido.
8 - Quanto à decisão sobre a matéria de facto considerada como não provada e descrita nas al. j); Dos factos considerados provados resulta já comprovado que o arguido agiu bem sabendo que se dirigia a um superior hierárquico, que se encontrava no exercício de funções e por causa destas (cfr. factos provados 7 e 9 a 16).
9 - A questão essencial que se suscita, e é apreciada no douto Acórdão ora recorrido, é a de saber qual a melhor interpretação do conceito “em presença de militares reunidos, constante do n.º 2, do art.º 89.º do CJM, sendo entendimento do Tribunal de que se “exige (…) em presença de uma reunião de militares, (designadamente formatura)”, citando em apoio da sua posição o entendimento do douto Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 967/96, de 11/07.
10 – Porém, o que essencialmente importa reter do aludido Acórdão é que, não é o local, nem o número, de militares que estão reunidos, que releva para que se verifique o preenchimento do conceito de na presença de militares reunidos. Essencial, é sim que as condutas, em apreciação, "afectem inequivocamente interesses de carácter militar", infracções que, por isso mesmo, hão-de ter com a instituição castrense uma conexão relevante, quer porque existia um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque um nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa militar.
11 - O actual art.º 1.º, n.º 2, do CJM dispõe-se que “constitui crime estritamente militar o facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado pela lei”. Por sua vez, o art.º 4.º, n.º 1, al a), do referido Código dispõe que 1 – Para efeito este Código, consideram-se militares: a) Os oficiais, sargentos e praças dos quadros permanentes das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana em qualquer situação”.
12 - O conceito estratégico de defesa nacional foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministro n.º 19/2013, publicada no DR de 05.04.2013, de que salienta: “Os valores fundamentais a proteger pela estratégia de segurança e defesa nacional são; a independência nacional, o primado do interesse nacional, a defesa dos princípios da democracia portuguesa, bem como dos direitos humanos e do direito internacional, o empenhamento na defesa da estabilidade e da segurança europeia, atlântica e internacional. (…). O ambiente de segurança global confronta-se, nomeadamente, com os seguintes riscos e ameaças: - O terrorismo transnacional e outras formas de extremismo violento, com impacto altamente desestabilizador; - A pirataria, baseada sobretudo em Estados em colapso ou com fraco controlo do seu território e afitando rotas vitais do comércio internacional; - A criminalidade transnacional organizada, que inclui tráficos de pessoas, armas e estupefacientes, constituindo uma ameaça à segurança de pessoas e bens, com potencial de criação de Estados frágeis; - A proliferação de armas de destruição massiva (nucleares, biológicas, químicas e radiológicas), com a agravante de poderem ser apropriadas por grupos terroristas. (…).
12 - A situação, que foi apreciada e decidida no douto Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 967/96, prende-se com a simples presença (…) no local da prática do crime, de dez ou mais militares (…) num jantar de confraternização entre militares levado a efeito num restaurante de todo alheio à instituição militar. Tal reunião (num jantar de confraternização entre militares levado a efeito num restaurante de todo alheio à instituição militar) é de facto alheia aos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas.
13 - Porém, a factualidade em apreciação nestes autos, é muito diversa da factualidade apreciada pelo citado Acórdão do Tribunal Constitucional. Nestes autos, trata-se de apreciar a conduta, concretamente palavras dirigidas a um superior, que se encontrava no exercício das suas funções, de fiscalização do trânsito, e por causa delas, eventualmente, integradora dos conceitos de “ameaçar ou ofender”.
14 - Fiscalização que visava, não apenas controlar o cumprimento das regras de circulação do veículo, mas também assegurar a segurança nacional e internacional, designadamente, em matéria de terrorismo transnacional, pirataria, criminalidade transnacional organizada (tráficos de pessoas, armas e estupefacientes), a proliferação de armas de destruição massiva, etc..
15 - Acresce que, como foi considerado provado, no local encontravam-se, para além do ofendido, Sargento C…, também, o Guarda D…, mais dois guardas do Posto da … e, ainda, do estagiário G….
16 - Mostra-se pois preenchido, salvo o devido respeito por melhor opinião, o conceito de “em presença de militares reunidos” exigido pelo art.º 89.º, n.º 2, do CJM.
17 - Consequentemente, deverá a matéria constante da al. j) da matéria de facto não provada, porque se mostra comprovada, ser considerada como provada e constar, como tal, da Fundamentação do douto Acórdão, ora recorrido.
18 - A norma (art.º 89.º, n.º 2, do CJM) pune quer a ameaça quer a ofensa, designadamente, por meio de palavras ou gestos. A ofensa da honra do ofendido, resulta claramente da expressão você é sargento mas nem para guarda serve. A ameaça mostra-se consumada porque, a expressão se não estivessem aqui camaradas atirava-o à Ria, embora sob condição, revela uma intensão de concretização no futuro.
19 - A conduta do arguido mostra-se adequada a por em causa os bens jurídicos, complexos, protegidos pela norma, desde logo, a liberdade de decisão e acção, bem como a honra e consideração do ofendido, mas também, a defesa nacional, na medida em que é posta em causa a eficácia da cadeia de comando, pelas ameaças e injúrias dirigidas ao superior, e, consequentemente, a operacionalidade da força da GNR.
20 - A conduta imputada ao arguido na acusação, e que se mostra comprovada pela prova produzida no decurso da audiência de julgamento, preenche o tipo legal de crime de insubordinação por ameaças ou outras ofensa, previsto no art.º 89.º, n.º 2, al. b), do CJM, pelo que se impõe a condenação do arguido B… em pena de prisão, que se entende dever ser substituída por multa, atentas as circunstâncias do caso, a culpa, a personalidade do arguido e as exigências de prevenção.
21 - A decisão ora recorrida violou as normas constantes dos art.º 125.º do CPP e o art.º 89.º, n.º 2, al. b), do CJM».
Pretende, pois, que, no provimento do recurso, o acórdão recorrido seja revogado e substituído por outro que condene o arguido.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 513) e notificado o arguido, veio este apresentar resposta em que, naturalmente, defende a confirmação do decidido e, consequentemente, que seja negado provimento ao recurso.
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Subiram os autos ao tribunal de recurso e, já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que sufraga a posição do Ministério Público no tribunal recorrido, concluindo pela procedência do recurso.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação
O recorrente tem de enunciar especificamente os fundamentos do recurso (ou seja, dizer por que discorda da decisão que impugna), devendo terminar com a formulação de conclusões.
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum e delimitam o horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e acórdão do STJ de 27.05.2010, in www.dgsi.pt/jstj).
A discordância do recorrente cinge-se à decisão sobre matéria de facto, pois que a condenação do arguido pela prática do crime de que foi acusado, por que pugna, tem pressuposta a alteração da factualidade provada.
É bem sabido que a impugnação da decisão de facto pode fazer-se, quer invocando algum ou alguns dos vícios da sentença enunciados no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal (a designada impugnação de âmbito restrito), quer a existência de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1.ª instância[1].
Foi a segunda das referidas vias (a impugnação ampla, com base na prova produzida em audiência e documentada através de registo em suporte informático) que o recorrente entendeu seguir.
No entanto, em sede de valoração da prova, o recorrente argui uma nulidade que, na sua óptica, a proceder, por si só, implicaria a alteração factual pretendida.
Assim, as questões que o recorrente submete à apreciação do tribunal de recurso são estas:
- se, no âmbito do julgamento da matéria de facto, o tribunal cometeu uma nulidade;
- se, no mesmo âmbito, o tribunal apreciou e valorou incorrectamente a prova produzida e, por conseguinte, cometeu um erro de julgamento em matéria de facto.
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Delimitado o thema decidendum, importa atentar na factualidade considerada provada e na não provada.
Factos Provados:
1. O arguido é Cabo, por exceção, de Infantaria, número …….., exercendo funções no Destacamento de Trânsito de ….
2. No período compreendido entre as 22h00 do dia 26 de agosto de 2015 e as 04h00 do dia 27 de agosto de 2015, o primeiro-sargento C… (à data dos factos segundo-sargento) encontrava-se escalado de Graduado de Ronda, tendo como condutor o Guarda-principal D….
3. No período compreendido entre as 23h00 do dia 26 de agosto e as 07h00 do dia 27 de agosto de 2015, o arguido, cabo-chefe B…, estava nomeado e efetuou um serviço de gratificado para o qual estava escalado.
4. Após ter terminado o gratificado (acompanhamento do transporte de grandes dimensões), o sargento-ajudante H… dispensou o arguido, bem como os restantes militares que efetuaram o mesmo serviço (antes do período para que estavam nomeados ter terminado).
5. Cerca das 03h30, o arguido de regresso a casa, já fora do exercício de funções, no seu veículo pessoal e à paisana, circulava na Rua …, em …, e após ter passado por baixo do tabuleiro da A… e da zona do estacionamento de autocaravanas, mas antes de chegar à garagem de estacionamento, ali existente, o arguido imobilizou o seu motociclo, deixando a respetiva iluminação ligada, - à data o local tinha pouca iluminação púbica - a fim de satisfazer uma necessidade fisiológica, que lhe sobreveio, na vegetação (designadamente canavial), ali existente, e para onde se dirigiu, entrando uns metros adentro dela, distância que não se logrou concretizar.
6. Ora um dos locais - fixos - de fiscalização de trânsito do Posto Territorial …, é a ..., zona de ação de fiscalização daquele Posto Territorial, que fica a cerca de 200 metros do local onde o arguido imobilizou a viatura, na berma.
7. Cerca das 3h40m, o então segundo Sargento C… e o Guarda-principal D…, que o acompanhava tripulando a viatura, que se faziam transportar em viatura devidamente caracterizada da GNR, os quais estavam devidamente uniformizados, e no exercício das suas funções de fiscalização estradal, para o que estavam escalados, fizeram circular a viatura em direção ao local onde o arguido imobilizou o motociclo conforme acima indicado em 5 e 6.
8. O arguido que tinha ingressado na vegetação ali existente, afastando-se da berma onde havia deixado o motociclo, para os fins aludidos em 5, o que fazia com o capacete colocado, não se apercebeu da chegada da viatura da GNR, vindo a ser abordado, pelo então segundo Sargento C…, que para tanto teve de entrar pela vegetação ali existente, na procura do tripulante da viatura.
9. O arguido não se apercebeu igualmente da incursão na vegetação do então segundo Sargento, que se veio a colocar nas suas imediações, pelas costas, apercebendo-se da presença de alguém quando falou, pedindo um momento para ali se deslocar, mas de nada lhe valeu pois viu-se agarrado no braço esquerdo, o que o levou a questionar o que se passava.
10. Só de seguida o arguido visualizou que uma viatura imobilizada em contramão caraterizada da Guarda Nacional Republicana, bem assim, que era um dos elementos daquela Guarda que, nas descritas circunstâncias, o abordava sem que tenha, na altura, distinguido ser o então segundo Sargento I….
11. A abordagem por parte do então segundo Sargento C… ao arguido, naquelas concretas circunstâncias, gerou por parte deste palavras de indignação proferidas de forma exaltada, a respeito da desnecessidade de ir atrás dele, - isto é a respeito da atuação e procedimento adotado inicialmente e por fim por inexistir a possibilidade objetiva de o arguido ter sido visto a conduzir o veículo, levando a que o arguido dissesse que não se identificava, sendo certo que o Cabo B… tem um tom alto de voz, mas natural, que foi gerador de mal entendidos, pelos presentes.
12. No contexto de indignação exaltada gerada pela forma de procedimento de fiscalização estradal adotada, não foi verificado ao arguido qualquer ilícito criminal ou de mera ordenação social, - (onde tudo foi escrutinado quer no que respeita ao arguido condutor como ainda ao veículo) apesar de logo que o arguido tirou o capacete o Guarda-Principal D…, o ter reconhecido como sendo o Cabo B…, do Destacamento de Transito de …, o qual ali se identificou civil e profissionalmente, bem como realizou o teste de pesquisa de álcool no sangue de natureza quantitativa, cujo resultado foi 0/00 (zero).
13. À forma como o procedimento descrito em 12 decorreu, são concomitantes as relações tensas que existiam entre alguns dos elementos da Guarda do Posto …, e o cidadão Cabo B…, de quem este se queixava, em razão de durante cerca de três anos, não lograrem pôr cobro a queixas do arguido, por ruído produzido nas horas de descanso, por um vizinho.
14. Já decorria a fiscalização ao arguido quando chegou ao local uma viatura caraterizada da GNR com dois Guardas do Posto …, acompanhados por um estagiário, G…, que iria juntar-se na fiscalização estradal a realizar no local conhecido por …, a qual ocasionalmente se dirigiu onde se encontrava o arguido a ser fiscalizado, com vista a inteirarem-se da necessidade de prestar apoio, os quais se encontravam devidamente uniformizados e no exercício de funções, quando o arguido na sua indignação exaltada soltou a expressão que era dirigida ao então segundo Sargento C…, “se não estivessem aqui os restantes camaradas eu atirava-te à ria”.
15. De acordo com a hierarquia de funções, o posto de segundo Sargento é superior ao de cabo, quando em funções ou por causa destas, o que o arguido sabia.
16. O arguido atuou livre, voluntária e conscientemente.
17. A atuação do arguido não foi dirigida a que este se furtasse da fiscalização estradal.
18. Do relatório social do arguido consta: “natural da zona da Guarda, o agregado familiar de origem do arguido, foi composto pelos progenitores e três filhos, sendo o arguido o mais novo dos irmãos. A família esteve emigrada durante algum tempo em França, trabalhando o progenitor, na época, na construção civil. O mesmo viria a falecer, quando o arguido contava cinco anos de idade. Este acontecimento veio acarretar dificuldades económicas acrescidas, no quotidiano desta família.
Em termos escolares o arguido concluiu o 9º ano de escolaridade, tendo frequentado a Escola J…. Anos mais tarde viria a obter o 12° ano através do projeto Novas Oportunidades. Após ter cumprido serviço militar, ingressou na GNR, em1989.
Contraiu matrimónio aos 30 anos de idade, tendo dois filhos de 22 e 18 anos respetivamente.
B… reside, na morada constante dos autos, com a cônjuge e os filhos, em moradia adquirida através de empréstimo bancário. O cônjuge desenvolve atividade profissional, por conta própria, como Técnica Superior de Higiene e Segurança no Trabalho.
Ambos os filhos do arguido são estudantes, estando o mais velho frequentar no ensino Superior e o mais novo prestes a ingressar igualmente na Universidade.
Não envolveu a família nesta situação, tem vivenciado o desenrolar da sua situação jurídico- penal, de forma solitária e com sentimentos de forte revolta.
As informações enviadas pelos seus superiores hierárquicos, apontam para o sentido de o arguido desempenhar as suas funções com responsabilidade, de perseveração da imagem e para o cumprimento do serviço que lhe está afeto.
O arguido tem um percurso de vida normativo, com investimento nos aspetos familiares e profissionais.”
19. O arguido é casado tem dois filhos, a esposa tem uma profissão liberal aufere o salário médio mensal de cerca de 600€ o arguido de 1.200€ a que acrescem, quando existem o valor dos serviços remunerados, este agregado familiar reside em casa própria adquirida com recurso ao crédito, suportando o valor mensal de cerca de 480€ (prestação nesta variável).
20. Do CRC do arguido nada consta.
Factos não provados:
a) O arguido é Cabo-Chefe da Cavalaria.
b) A estrada por onde o arguido fazia circular o motociclo denomina-se estrada da … - … ou a EN … - ., esta última da competência de fiscalização da PSP, e onde os condutores efetuam manobra de inversão de marcha quando avistam a GNR a fiscalizar.
c) O arguido imobilizou o motociclo com vista a inverter o sentido de marcha que lhe empreendia e para se furtar à fiscalização por parte da GNR que estava a fiscalizar na … - ….
d) A Guarda F… era quem acompanhava o segundo Sargento nas circunstâncias descritas em 7.
e) O arguido tinha-se afastado concretamente 10 metros do local onde tinha imobilizado o veículo quando foi abordado pelo segundo Sargento C…, apercebendo-se de imediato deste pois aquele o cumprimentou, apesar do que o arguido não parou.
f) A viatura identificada em 9 estava com a luz desligada.
g) O arguido não parou quando o então segundo-sargento C… efetuou a abordagem mesmo depois de aquele o ter cumprimentado.
h) O arguido foi puxado pelo braço esquerdo pelo então segundo Sargento C…, o qual fez o braço estalar levando a que o arguido quase caísse ao chão.
i) O arguido dirigindo-se ao primeiro - sargento C…, disse-lhe: “sabes bem quem sou?”, “só porque pensas que és sargento és mais do que os outros”, “já eu era guarda e tu não eras nascido”, “lá por teres um irmão que é oficial não tenho medo de ti”, “quem é que pensas tu que és”, “tu estás a falar assim porque tens as costas quentes”; “Não servia para guarda quanto mais para sargento”.
J) O arguido atuou da forma descrita contra um superior hierárquico, que se encontrava no exercício de funções e por causa destas, na presença de outros militares, com a intenção de ofender o primeiro - sargento C… na sua honra e consideração, bem como de o convencer que o atingiria na sua vida, perturbando-o, desse modo, no seu sossego e tranquilidade, bem sabendo que a conduta era prevista e punida com crime de natureza militar.
K) O então segundo Sargento C… com intuito de rebaixar e intimidar na sua honra e perante os demais Guardas ali presentes, designadamente mais novos inclusive um estagiário da GNR, o arguido disse por diversas vezes que ele era Sargento e o arguido apenas Cabo.
L) Como consequência direta e necessária da atuação do então segundo Sargento C…, sofreu ferimentos no braço esquerdo, sendo os mesmos que determinaram a assistência pelos serviços “Clínica Médica L…”.
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A lei estabelece os parâmetros a que devem obedecer os actos processuais, designadamente as exigências de fundamentação dos actos decisórios.
Mas as exigências do cumprimento desse dever e as consequências da sua inobservância não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Cód. Proc. Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º), para a decisão instrutória (artigos 309.º e 310.º) e para os despachos que aplicam medidas de coacção (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo).
Atentemos em alguns aspectos desses regimes.
Em primeiro lugar, a nulidade da sentença é coisa distinta da nulidade do julgamento.
A anulação do julgamento implica a anulação da sentença proferida, mas esta pode ser anulada sem que o seja o julgamento. Basta, para tanto, que ocorra alguma das situações previstas no art.º 379.º do Cód. Proc. Penal.
Em segundo lugar, importa não confundir os erros de julgamento (que incidam sobre o mérito da causa) e os vícios de forma.
Uma coisa, é decidir mal, quer porque se apreciou e valorou erradamente a prova, quer porque se interpretou e aplicou mal o direito aos factos apurados. Outra coisa, bem diversa, é não observar as prescrições que a lei estabelece para a prática dos actos processuais, inobservância que pode originar vícios formais. No primeiro caso, temos o error in judicando que, como ensina o Professor Germano Marques da Silva (no seu “Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, pág. 113) é fundamento de recurso e “não cabe(m) na previsão normativa das nulidades, nomeadamente na disciplina da sua impugnação específica”; no segundo caso, temos o error in procedendo que, podendo, por si só, ser fundamento de recurso, tem o seu regime específico, designadamente quanto à sua invocação.
Em terceiro lugar, importa ter presente que o regime geral das invalidades em processo penal é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Em regra, a declaração de nulidade tem por efeito tornar inválido o acto em que foi cometida, bem como os que dele dependerem e aquela puder afectar (artigo 122.º, n.º 1), havendo, no entanto, de ter-se em consideração o princípio do máximo aproveitamento possível dos actos (n.º 3 do mesmo artigo 122.º).
Em quarto lugar, as nulidades dos actos, em regra, não são arguidas em recurso, mas antes mediante requerimento de arguição perante a autoridade judiciária que praticou o acto (eventualmente) nulo, ou que omitiu um acto essencial, e é da decisão que recair sobre essa arguição que, em princípio, poderá recorrer-se.
As nulidades podem, por si só, constituir fundamento de recurso ou serem invocadas no recurso interposto da sentença (mesmo não sendo nulidades da própria sentença), como se dispõe no n.º 3 do artigo 410.º do Cód. Proc. Penal.
Só as nulidades da própria sentença podem/devem ser arguidas na motivação (logo, no prazo) do recurso[2].
É neste enquadramento que tem de ser apreciada a arguição de nulidade que o recorrente diz decorrer da “falta de fundamentação da decisão que entendeu não valorar os depoimentos das testemunhas, por não serem espontâneos”, pois não é apresentada uma exposição completa, mas concisa, dos motivos e factos concretos em que fundamenta tal entendimento (conclusão 5.ª).
Não é claro o recorrente quanto ao acto que estaria ferido de nulidade.
Afirma-se que é «a decisão que entendeu não valorar os depoimentos das testemunhas, por não serem espontâneos” e que essa decisão «é nula nos termos dos art.º 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP», invocação que nos remete para a sentença.
Importa então verificar se é fundada a alegação de que o acórdão recorrido omite fundamentação da decisão de não valorar os depoimentos (de C…, D…, E… e F…), começando por perscrutar o texto da decisão recorrida.
Nele pode ler-se a este propósito:
«O depoimento do então segundo Sargento C… e do Guarda-principal D…, porque diretamente envolvidos na ocorrência com o arguido e solidários com os colegas do seu Posto, contra quem o arguido se manifesta, prestaram depoimentos interessados no desfecho da causa, para além de intervenientes no desenrolar do procedimento de fiscalização, toldados pela ideia que iriam fiscalizar um condutor em fuga. É esta convicção destes militares que torna incompreensível, a forma de procedimento, (ir para dentro da vegetação quando o arguido foi urinar) que temos por desproporcionado, e que fez gerar indignação. Assinalamos que o arguido manifesta, de forma exuberante a sua indignação, tem uma personalidade emotiva, tem um tom de voz (natural) alto o que leva a ser mal-entendido e dá azo a reações e excessos desnecessários, atento o motivo que o movia e assente em 8 – o que se revelou confirmado, bem como o que se lhe seguiu assente em 9 a 12, revelando-se incontroverso que o então segundo Sargento C…, ingressou na vegetação (canavial) aludido na acusação) e meteu a mão ao ombro do arguido, enquanto aquele ali estava de costas, o que gerou indignação exaltada. Por outro lado, quem estivesse na designada …, tem que desfazer uma curva, (o que foi confirmado pelos militares E… e F…) a fim de visualizar o local onde o arguido tinha imobilizado o veículo, pelo que, ao arrepio do que alegam os agentes fiscalizadores estes não o viram a circular a partir daquele local, (que é um largo assinalado a laranja a fls. 465/466) adequado a operações de fiscalização a viaturas, vindas dos Bares do centro da cidade de Aveiro, apesar de assim o terem assinalado como local de fiscalização, no talão emitido pelo aparelho Dragar alcooteste Modelo 7110KIII de deteção quantitativa de verificação de álcool no sangue, teste a que sujeitaram o arguido. Revelando-se confirmado que o arguido foi identificado e fiscalizado bem assim como o seu veículo, apesar da indignação manifestada de forma exuberante, e pela forma como foi realizada a fiscalização participou por abuso de poder contra o agente fiscalizador o então segundo Sargento C…, (pois diz-lhe humilhado perante os demais militares pela forma como o então segundo Sargento C… o abordou na fiscalização e lhe falou à frente dos demais guardas e até do estagiário que veio a acompanhar na segunda viatura.
A prova dos factos 13, 14 e 16 decorreram não só de o arguido de tal facto dar nota, como ainda de os elementos da GNR … terem confirmado aquelas ocorrências, tensões e participações do arguido contra elementos do Posto …, aludidos pelo Guarda-principal D… e Guarda F…, solidários para com os seus camaradas.
Por outro lado, relevaram os depoimentos dos militares E…, F… e da testemunha estagiário da GNR que os acompanhava, no que respeita à expressão aí dada por assente, pois proferida naqueles termos e não como o arguido alegou ter dito e que lhe conferia outro sentido, já que, neste particular aspeto as testemunhas foram espontâneas, consensuais e coerentes no seu relato, logrando convencer o Tribunal Coletivo. Assim o Tribunal coletivo firmou a sua convicção com base na prova presencial, ouvida em audiência que pelo cidadão B…, foi proferida aquela expressão, como assente, o que o arguido fez de forma livre, voluntária e consciente.
(…)
«Quanto aos factos não provados…
(…)
Ainda do depoimento das testemunhas não resultaram provadas as expressões indicadas em i, por os depoimentos não terem sido, no que a estas se refere espontâneas (salvo o devido respeito não são permitidas respostas sugestivas ou que contenham a resposta para que a testemunha afirme sim ou não) e só estas são adequadas a alicerçar a convicção do Tribunal Coletivo. Como ainda não se provaram os factos j e k, pois o circunstancialismo que rodeou os factos os infirma, o arguido negou-os, dependo tais factos do contexto da troca de palavras trocadas, e que levaram a queixas designadamente do arguido contra o então segundo Sargento C…, e foi do despacho de arquivamento de tal queixa que emerge a organização contra o queixoso o presente processo-crime, uma vez que no que à expressão provada respeita apenas os elementos da GNR … ter-se-ão se apercebido, mas já não o agente que assumiu a fiscalização.
Isto é, no que respeita à expressão assente o Cabo B… de queixoso passou a arguido em processo-crime.
Acresce que, o arguido nega ter proferido as expressões que lhe estão imputadas na acusação ou a única proferida foi com sentido diverso, por outro lado do depoimento das testemunhas de acusação a única expressão que apareceu espontânea, foi a dada como provada, já que às demais, o Tribunal não lhe deu fiabilidade atento o circunstancialismo que rodeiam os factos em apreciação, que são aliás sequenciais a um arquivamento por queixa do arguido contra o Sargento C…, por abuso de poder».
Deste trecho da fundamentação decorre, com meridiana clareza, que não é correcto afirmar, como faz o recorrente, que o tribunal entendeu não valorar os depoimentos testemunhais.
Na realidade, o tribunal valorou-os, designadamente para dar como provado que o arguido afirmou, dirigindo-se ao sargento C…, «se não estivessem aqui os restantes camaradas eu atirava-te à ria», mas fê-lo com naturais reservas, nomeadamente pela falta de espontaneidade das testemunhas.
Uma testemunha narra factos e pode fazê-lo de dois modos: ininterruptamente, num encadeamento narrativo de acontecimentos; fragmentariamente, se o relato se produz por reacção sincopada a perguntas que lhe são dirigidas[3].
Um depoimento prestado pelo modo indicado em primeiro lugar será, em princípio, mais espontâneo, o que não é dizer que seja mais verídico ou credível do que quando a testemunha responde a perguntas que lhe são dirigidas.
Uma inquirição correctamente efectuada pode (deve) produzir um depoimento genuíno, espontâneo, credível. Ponto é que o inquiridor saiba o que perguntar e como perguntar e que respeite as regras da inquirição, evitando, nomeadamente, a formulação de perguntas sugestivas (as leading questions dos sistemas da common law).
Às testemunhas não devem ser feitas perguntas impertinentes ou sugestivas, perguntas que sugerem ou insinuam determinadas respostas, ”que provocam, inspiram ou simplesmente facilitam determinada resposta”[4] (artigo 138.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal).
Mas, como é bem sabido, constitui prática corrente o desrespeito dessas regras, quer no interrogatório do arguido em audiência, quer na inquirição do assistente, do demandante civil e das testemunhas. Desrespeito que acontece do lado da acusação, como por parte da defesa. Umas vezes, intencionalmente, são feitas perguntas cavilosas e capciosas. As mais das vezes, as perguntas são sugestivas.
O juiz, no uso dos poderes de disciplina e de direcção da audiência, deve impedir que sejam formuladas essas perguntas e advertir quem prevarica. Se a advertência for ignorada, então, na valoração desse depoimento, não pode deixar de ter em conta que faltou espontaneidade e genuinidade nas respostas.
A testemunha C… era quem poderia proporcionar ao tribunal um esclarecimento completo e cabal do que se passou, pois foi protagonista do acontecimento, mas, como reconhece o recorrente, enquanto falou espontaneamente, apenas, confirmou que o arguido lhe disse “que o atirava à ria” e “que não era guarda não era nada”.
Está bem de ver que perguntar à testemunha se as palavras proferidas pelo arguido, naquelas circunstâncias, são as mencionadas na acusação (e que, no acto, são reproduzidas) é sugerir uma resposta afirmativa.
Por isso, nenhuma censura merece a decisão do tribunal de, quanto a esse ponto, não valorar integralmente e sem reservas esses depoimentos, mas só na estrita medida do decidido.
De todo o modo, não foi cometida qualquer nulidade. Quando muito, estaríamos face a um erro de julgamento em matéria de facto, por incorrecta apreciação e valoração da prova.
*
Diferentemente do que acontece com a invocação dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, em que temos uma impugnação de âmbito restrito porque o recorrente tem de cingir-se ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, no erro de julgamento a apreciação alarga-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento dos ónus de especificação impostos pelos n.os 3 e 4 do art. 412.º do Cód. Proc. Penal.
Em que é que se traduzem esses ónus?
Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, pág. 1131) explicita-os em termos perfeitamente claros.
O recorrente que pretenda impugnar, com sucesso, a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar:
- os concretos pontos de facto que considera terem sido: incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”);
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras do citado autor (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
É com base na citada norma que se tem defendido, sem discrepâncias, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Se é hoje inquestionável que a Constituição da República consagra (ainda que implicitamente), entre as garantias de defesa, o duplo grau de jurisdição, também, em matéria de facto (artigo 32.º, n.º 1), também é pacífico o entendimento de que isso não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre este ponto, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, e de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www. dgsi.pt).
Outro ponto que tem sido sublinhado na jurisprudência dos tribunais superiores e tem merecido geral aceitação é o seguinte: para provocar uma alteração da decisão em matéria de facto, não basta a existência de provas que, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.
Como bem se faz notar no acórdão da Relação de Coimbra de 08.02.2012 (Des. Brízida Martins), disponível em www.dgsi.pt, “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127.º, e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Como, também impressivamente, se assinala no acórdão, da mesma Relação, de 04.05.2016 (in www.dgsi.pt) «torna-se necessário que (o recorrente) demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção».
Já sabemos que o recorrente impugna a decisão quanto aos factos descritos nas alíneas i) e j) do elenco de factos não provados.
Aí são narrados factos objectivos (um conjunto de afirmações, alegadamente, produzidas pelo arguido que materializariam a acção de insubordinação) e factos subjectivos (a intenção manifestada pelo arguido de ofender um superior hierárquico na sua honra e consideração, bem como de o perturbar no seu sossego e tranquilidade, apesar de bem saber que era conduta prevista e punida como crime de natureza militar).
O ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida exige do recorrente que, por referência ao consignado na acta, indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2012, de 08.03.2012, DR, I, n.º 77, de 18.04.2012, o STJ manifestou o entendimento de que, para o efeito, basta “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”), pois são essas que devem ser ouvidas, lidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal).
Das conclusões acima transcritas, tal como do “corpo” da motivação recursiva, resulta que o recorrente vê nos depoimentos das já mencionadas testemunhas (o sargento C… e os guardas D…, E… e F…) as provas que imporiam decisão diversa da recorrida.
Isto porque, na óptica do recorrente, ao contrário do que foi entendido pelo Colectivo de Juízes do julgamento, não lhes faltou espontaneidade no relato dos factos que fizeram e isso seria suficiente para lhes conferir crédito.
Vejamos.
No nosso ordenamento jurídico, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador), pelo que, por regra[5], qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o princípio da livre convicção do julgador.
O juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só[6]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Como já se assinalou, os referidos depoimentos foram valorados pelo tribunal, mas com muitas reservas e não foi, apenas, por falta de espontaneidade das testemunhas que os prestaram.
Um dos critérios de fiscalização ou verificação dos meios de prova tem a ver com as características da declaração ou atendibilidade intrínseca, em que a sindicância se exerce sobre o conteúdo narrado, procurando aferir-se da sua credibilidade.
Factores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, a sua completude e verosimilhança decorrente da ausência de contraste com outros elementos probatórios constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade dessa declaração.
A fiscalização sobre a declaração, comprovando a sua espontaneidade ou coerência, expressa uma regra (ainda que de débil eficácia persuasiva) segundo a qual as declarações espontâneas e coerentes são fiáveis.
Quando a fiscalização se exerce sobre o próprio declarante, verificando a sua credibilidade, tem-se em consideração a sua personalidade, a veracidade demonstrada em fases anteriores do processo, a sua posição de interesse em relação aos factos e ao desfecho do processo, etc.
O primeiro aspecto do juízo sobre a valoração da prova é o da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, intervindo aqui elementos não racionalmente explicáveis (a convicção que, através da imediação, o tribunal forma sobre a prova directa produzida na sua presença depende de uma série de circunstâncias de percepção, experiência e até de intuição que não são, ou dificilmente são, exprimíveis na fundamentação).
Depois, intervêm “as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência” (G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 186).
Uma das exigências legais da fundamentação é a indicação dos meios de prova, das razões de ciência das testemunhas e declarantes e dos motivos que permitem, ou não, conferir credibilidade a cada um deles.
Segundo Perfecto Andrès Ibañez (“Jueces e Ponderatión Argumentativa”, 2006, pág. 32, citado por Mouraz Lopes in “A fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português – Legitimar, Diferenciar, Simplificar”, Almedina, 2011, p. 232), “este tipo de exame requer, primeiro, a identificação das correspondentes fontes de prova (a pessoa, o documento, o objecto da perícia) e a sua localização original no cenário dos factos ou o tipo de relação mantida com estes. Terá de valorar-se também a aptidão do meio probatório proposto para obter a informação útil da fonte de onde provém, levando em consideração as circunstâncias, o estado de conservação em função do decurso do tempo e de outros factores. Produzido o exame deverá concretizar-se a utilidade em elementos de prova susceptíveis de valoração”.
Na valoração individual da prova examina-se a fiabilidade de cada uma das provas em concreto. A articulação das provas entre si e a sua avaliação conjunta permitem o conhecimento global dos factos que, por sua vez, se irá reflectir no resultado da totalidade da prova atendível.
Ao juiz é conferida liberdade na escolha e na valoração das provas, mas esta liberdade é controlada ou controlável, é uma discricionariedade vinculada, que assenta num modelo racionalizado e a garantia de racionalidade concretiza-se na fundamentação da decisão de facto que cumpre precisamente a “função de controlo daquela discricionariedade, obrigando o juiz a justificar as suas próprias escolhas”.
Voltando ao concreto, além da falta de espontaneidade, foi a falta de isenção e objectividade daquelas testemunhas (“…prestaram depoimentos interessados no desfecho da causa, para além de intervenientes no desenrolar do procedimento de fiscalização, toldados pela ideia que iriam fiscalizar um condutor em fuga”) que levou o tribunal a quo a manifestar sérias reservas quanto à sua credibilidade.
Há que reconhecer que a actuação do sargento C… se pautou pelo despropósito e pelo excesso e nenhum dos guardas que o acompanhavam teve um acesso de sensatez, mesmo depois de terem reconhecido o cabo B….
Perante uma situação em que um cidadão imobiliza o seu ciclomotor na via pública (deixando as respectivas luzes acesas) e se entranha num canavial para satisfazer uma necessidade fisiológica (urinar), normal e sensato seria que aguardassem o seu regresso para junto do veículo e então realizassem a acção de fiscalização que, no seu entendimento, se justificava.
Que necessidade havia de ir atrás dele e interpelá-lo no canavial quando ele se “aliviava”?
Por outro lado, se não foi um acto de agressão, como pretendeu o arguido que tivesse sido[7], o agarrá-lo pelo ombro nessas circunstâncias, também não foi, certamente, um acto amistoso do sargento C… para com aquele, antes constituiu um excesso completamente escusado.
Mas não se ficou por aqui a conduta censurável destes agentes de autoridade, já que não foi, inteiramente, verídico o relato que fizeram dos factos. Isto porque, se estivessem no local onde disseram que estavam (a chamada “…” de Aveiro) não podiam visualizar o local onde o arguido tinha imobilizado o veículo, pelo que “ao arrepio do que alegam os agentes fiscalizadores estes não o viram a circular a partir daquele local (…), apesar de assim o terem assinalado como local de fiscalização no talão emitido pelo aparelho Dragar alcooteste Modelo 7110KIII de deteção quantitativa de verificação de álcool no sangue, teste a que sujeitaram o arguido”.
Sendo esta a actuação (no mínimo, nos limites da legalidade) de agentes de autoridade com um dos seus pares, não é difícil imaginar o que aconteceria se se tratasse de um cidadão comum, indefeso e impotente face aos abusos policiais, e que manifestasse um pouco da indignação que exteriorizou o cabo B….
Não poderíamos estar mais de acordo com a afirmação (do acórdão recorrido) de que “revelar-se-ia uma mais-valia a formação cívica adequada de elementos da autoridade que contatam diretamente com os cidadãos de molde a não se criarem questões relativas à sua atuação”. Apenas acrescentaremos que as instituições, a comunidade, os cidadãos, enfim, a democracia ficariam a ganhar se deixasse de haver agentes policiais a actuar em roda livre.
Os juízes, enquanto julgadores, não são (não podem ser) meros receptores de depoimentos, exige-se-lhes sentido crítico e não têm de aceitar a versão das testemunhas chamadas a depor, seja pela acusação, seja pela defesa.
A credibilidade da prova pessoal está estritamente dependente da personalidade, do carácter e da probidade moral dos declarantes/depoentes.
Sendo esses atributos, em princípio, inapreensíveis ou indetectáveis mediante o exame e a análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, porque lhe falta a imediação e a oralidade que o julgamento da primeira instância proporciona, o tribunal de recurso só em casos de excepção (nomeadamente quando são afrontadas as regras da lógica e da experiência comum) poderá/deverá afastar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo na apreciação da prova. Essa é a orientação que se tem imposto na jurisprudência[8] e não vemos razões para dela divergir.
Para ter sucesso na impugnação da decisão sobre matéria de facto, o recorrente teria que evidenciar que ela não está objectiva e logicamente fundamentada, mas está bem de ver que não logrou fazê-lo.
As provas que indicou não impõem, de todo, decisão diversa da recorrida.
*
Se bem entendemos, o recorrente considera que, mesmo em face do complexo de factos provados, o arguido devia ter sido condenado pelo crime de que estava acusado.
Assim seria porque a norma do art.º 89.º, n.º 2, do CJM pune, quer a ameaça, quer a ofensa e a ameaça mostra-se consumada porque a expressão “se não estivessem aqui camaradas atirava-o à Ria”, embora sob condição, revela uma intenção de concretização no futuro (conclusão 18.ª).
Por outro lado, dos factos provados, também resulta que o arguido agiu bem sabendo que se dirigia a um superior hierárquico, que se encontrava no exercício de funções e por causa destas (conclusão 8.ª) e quanto ao conceito “em presença de militares reunidos” a sua densificação não exige, ao contrário do que foi entendido na primeira instância, que se esteja em presença de uma reunião de militares, designadamente uma formatura.
Não releva o local nem o número de militares que estão reunidos para o preenchimento desse elemento objectivo do tipo, mas sim «que as condutas, em apreciação, "afectem inequivocamente interesses de carácter militar", infracções que, por isso mesmo, hão-de ter com a instituição castrense uma conexão relevante, quer porque existia um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque um nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa militar».
O crime em causa está assim definido no Código de Justiça Militar (aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro):
Artigo 89.º
Insubordinação por ameaças ou outras ofensas
1 - O militar que, sem motivo legítimo, ameaçar um superior no exercício das suas funções e por causa delas, em disposição de ofender, com tiro de arma de fogo, uso de explosivos ou de arma ou outro acto de violência física, é punido:
a) Em tempo de guerra, com pena de prisão de 2 a 8 anos;
b) Em tempo de paz, com pena de prisão de 1 a 4 anos.
2 - O militar que, no exercício de funções e por causa delas ou em presença de militares reunidos, ameaçar ou ofender um superior no exercício das suas funções e por causa delas, por meio de palavras, escritos, imagens ou gestos, é punido:
a) Com pena de prisão de 1 a 4 anos, nos casos da alínea a) do número anterior;
b) Com pena de prisão de 1 mês a 2 anos, nos casos da alínea b) do número anterior.
Interessa-nos, para o caso, o n.º 2 e do texto norma resulta que agentes do crime, seja do lado activo, seja do lado passivo, têm de ser “militares no exercício de funções e por causa delas ou em presença de militares reunidos”, devendo o segundo (aquele contra quem é dirigida a acção de insubordinação) ser, ainda, superior hierárquico do primeiro.
Sendo inquestionável que a Guarda Nacional Republicana (GNR) é uma força de segurança de natureza militar, integrada por militares organizados num corpo especial de tropas, também é ponto assente que o arguido, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, não se encontrava no exercício de funções, pois tinha sido dispensado pelo seu superior hierárquico depois de ter efectuado um “serviço de gratificado” e estava de regresso a casa, vestido como qualquer cidadão civil.
A questão (que o recorrente qualifica como “questão essencial”) que importa apreciar e decidir consiste, então, em saber se a situação se subsume ao conceito de “militares reunidos”.
Na primeira instância, entendeu-se que não e a conclusão está assim fundamentada:
«O atual Código de Justiça Militar não estabelece o conceito de “militares reunidos”, (como tinha o CJM de 1977 que se dirigia a “tropa reunida”, quando em formatura), isto é, o crime é cometido quando os militares reunidos assim se encontram por força de um ato ou razão de serviço, mas já não quando a presença militar seja ocasional e/ou fortuita.
Explicitando aceitar que a simples qualidade de militar não faz do agrupamento ou aglomerado de militares uma reunião de (dez ou mais) pessoas (ou menos como nos autos) presentes. Tal entendimento que foi tido como suficiente para considerar como qualificativa (ou adequado a integrar a tipicidade objetiva do tipo de insubordinação por ameaças ou outras ofensas) de um crime essencialmente militar (…), foi declarado inconstitucional, na medida em que a qualidade de militar do arguido, da vítima, ou dos dois, por si só, e de outros militares ocasionalmente presentes, não chega que dali resulte um crime essencialmente militar (vide ac. TC nº 967/96, de 11.07 a respeito do conceito de militares reunidos).
Esta incriminação exige que ambos os agentes (agente do crime e ofendido) sejam militares no exercício de funções e por motivo do seu desempenho ou em presença de uma reunião de militares, (designadamente formatura) um militar de hierarquia inferior se dirija a um superior, no exercício das suas funções e por causa delas.
É pressuposto que o ilícito se mantenha no âmbito estritamente castrense, isto é, com observância do disposto no artigo 215º, da CRP, o que significa que só se pode submeter à jurisdição militar aquelas infrações que afetem inequivocamente interesses de carácter militar e que, por isso mesmo, hão-de de ter com a instituição militar uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional.
(…)
Ora na situação “sub iudice”, o arguido apesar de militar da GNR – Cabo do Destacamento de …, - não estava por ocasião de serviço militar, nem o facto tem qualquer conexão com aquele serviço.
Acresce que o facto imputado ao arguido (cuja disponibilidade para o serviço não deve ser confundida com estar em situação permanente em serviço) não aconteceu aquando de militares reunidos, em razão de funções ou por causa de funções que lhe tivessem acometidas.
Antes o arguido enquanto cidadão, fora do exercício de funções, - como qualquer civil- e ainda sem que para tanto tenha concorrido qualquer situação de serviço, foi sujeito a uma fiscalização estradal, levada avante pelo então ao tempo segundo Sargento C…, que se fazia acompanhar pelo Guarda D…, que ali estavam no exercício das suas funções, uniformizado e transportando-se em viatura caraterizada.
Já deixamos expressos nos factos assentes os contornos da fiscalização estradal, quando o arguido estava à civil, fora de funções, apesar de ser um militar- Cabo do Destacamento de Transito, o qual é conhecedor dos procedimentos a observar, designadamente das condições que deviam existir para a ação de fiscalização, e qual o procedimento adequado, - o que podia ter ocorrido com qualquer cidadão, com a particularidade de o Cabo B… não ser um militar apreciado por vários elementos do posto …. Mas a realidade é que os factos não ocorrem entre militares em serviço, e por causa dele nem perante militares reunidos, o que não é sinónimo de ocorrência fortuita de presença de quatro militares, diga-se dois carros de patrulha, como no caso aconteceu. Então, sempre que a uma ocorrência respondessem duas ou mais viaturas que por via de regra transportam dois militares estávamos perante militares reunidos, se o fiscalizado à civil fosse na sua vida profissional um militar.
De facto a ocorrência não teve lugar perante militares reunidos, em razão de convocatória prévia para ali a exercer funções ou por causa delas, mas antes da ocorrência ocasional ao local, tanto quanto é certo que já viriam fazer a fiscalização para a … - …».
Apesar de proficientemente fundamentada, a decisão recorrida, já o sabemos, não colheu os favores do Ministério Público, para quem o conceito de “militares reunidos” não requer que se esteja em presença de uma reunião de militares.
Afigura-se-nos que a razão não está com o recorrente.
O conceito ínsito na expressão “em presença de militares reunidos” do artigo 89.º, n.º 2, do actual CJM não é substancialmente diverso do conceito “em presença de tropa reunida” do artigo 79.º, n.º 1, al. a) do anterior CJM (aprovado pelo Dec. Lei n.º 141/77, de 09 de Abril).
O artigo 16.º do anterior CJM definia o que, para a verificação da qualificativa ali prevista, se considerava crime cometido na presença de tropa reunida («quando praticado em formatura ou estando presentes dez ou mais militares, não se compreendendo neste número os agentes do crime») e o então Supremo Tribunal Militar, em acórdão de 23 de Março de 1995, chegou a manifestar o entendimento de que a presença daquele número mínimo de militares, não tinha, necessariamente, a ver com acto ou razão de serviço, podendo ser ocasional e fortuita.
Porém, o Tribunal Constitucional (acórdão de 11.07.1996) teve entendimento oposto e julgou inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 2.º da Constituição, a norma daquele artigo 16.º, na interpretação do acórdão do Supremo Tribunal Militar, segundo o qual «o conceito de “tropa reunida” é preenchido pela simples presença, ainda que ocasional e fortuita, no local da prática do crime, de dez ou mais militares, mesmo quando tal local não seja local de serviço».
Ora, o que aqui temos é uma ocasional e fortuita presença de quatro militares da GNR que confluíram para um local onde estava o arguido (por coincidência, também militar da GNR, mas que, nessa circunstância, era um cidadão como qualquer outro) para o fiscalizarem enquanto condutor de um motociclo.
Sendo o direito penal militar um direito de tutela dos bens jurídicos militares, s.d.r, não lobrigamos como é que uma corriqueira fiscalização de trânsito se pode ligar à função militar específica e que conexão relevante tem com a instituição castrense. Muito menos se compreende a afirmação de que a fiscalização tinha em vista «assegurar a segurança nacional e internacional, designadamente, em matéria de terrorismo transnacional, pirataria, criminalidade transnacional organizada (tráficos de pessoas, armas e estupefacientes), a proliferação de armas de destruição massiva, etc. (cfr. conclusão 14.ª).
Mas há outra razão para se ter por não preenchido o tipo objectivo do ilícito militar em causa.
Mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto, não pode considerar-se ter havido ofensa (por palavras, escritos, imagens ou gestos) do arguido a um seu superior hierárquico.
Resta, então, ponderar se a afirmação “se não estivessem aqui os restantes camaradas eu atirava-te à ria”, provadamente proferida pelo arguido, deve considerar-se uma ameaça.
Cremos não merecer objecção a afirmação de que a ameaça que para o tipo legal de insubordinação do artigo 89.º do CJM releva tem de reunir as mesmas características da ameaça do artigo 153.º do Código Penal.
Ameaça é a promessa/anúncio de um mal futuro.
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada”, UCE, 473), “consiste na comunicação de uma mensagem a um destinatário com significado da prática futura de um mal ao destinatário ou a um terceiro”.
Américo Taipa de Carvalho (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 1999, p. 343) explica que “o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal”.
Mal iminente é aquele que está em vias de, ou prestes a, ser infligido.
No crime de ameaça, o agente promete vir a cometer um crime num tempo que não aquele em que faz o anúncio (e, provavelmente, em circunstâncias outras que não aquelas que se verificam no momento do prenúncio do mal).
É a característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que distingue a ameaça da concretização do mal anunciado.
As dificuldades surgem quando se trata de densificar ou concretizar o conceito de “mal futuro”.
Temos para nós que, para se saber se estamos perante o anúncio de um “mal futuro” que se projecta na liberdade de acção e de decisão futura (visando, portanto, o agente limitar ou coarctar a liberdade pessoal do visado) ou antes diante de um “mal iminente” que pode considerar-se já um acto de execução de um dos crimes do catálogo legal[9], é fundamental a contextualização da situação.
Afirmações como «limpo-te o sebo», «é hoje que te vou matar», «enfio-te um tiro nos cornos», «vou-te acabar com a vida» ou outras do mesmo jaez tanto podem ser entendidas como anúncio de mal futuro como a manifestação de violência que está prestes a concretizar-se.
Depende do contexto, do circunstancialismo em que as afirmações são proferidas.
No caso, a afirmação proferida pelo arguido “se não estivessem aqui os restantes camaradas eu atirava-te à ria” não pode considerar-se anúncio de um mal que ainda não aconteceu, mas que há-de vir, que há-de concretizar-se num incerto tempo futuro, ainda que próximo.
A ser mesmo um propósito sério do arguido, a violência a exercer concretizar-se-ia naquele local e naquela ocasião. Aquelas palavras do arguido não denunciam que na sua mente a concretização do por si verbalizado ficaria reservado para local e momento diversos.
Aliás, as palavras do arguido são mais uma manifestação de basófia ou, quando muito, a mera exteriorização da sua indignação pela atitude do sargento C… (que considerou abusiva e ilícita) do que o anúncio de um mal que seria infligido naquele exacto momento ou no futuro.
Faltam, pois, elementos constitutivos, de natureza objectiva, do crime de insubordinação, pelo que não procedem as conclusões do recurso.
III Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a decisão recorrida.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).
Porto, 03.10.2018
Neto de Moura
Luís Coimbra
Raúl Jorge Passos, Major General
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[1] Como se pode ler no acórdão do STJ de 27.05.2010 (www.dgsi.pt/jstj), “a partir da reforma de 1998 passou assim a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, nº 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
[2] Excepcionalmente, pode a nulidade da sentença ser arguida, no prazo-regra de 10 dias, perante o órgão jurisdicional que a proferiu se não houver recurso ordinário (por ser inadmissível ou porque quem tem legitimidade não recorre), nos termos previsto no n.º 3 do artigo 120.º do Cód. Proc. Penal.
[3] Cfr. Maria Clara Calheiros, Para uma Teoria da Prova, Coimbra Editora, p.149
[4] Conselheiro Santos Cabral, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 566.
[5] Uma das poucas excepções é a prova pericial.
[6] Como se faz notar no acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt/jstj), as provas produzidas avaliam-se pela sua força persuasiva, não pelo seu número.
[7] Note-se que tudo começou com uma participação feita pelo aqui arguido contra o sargento C…, a quem acusava de o ter agarrado, violentamente, pelo braço, causando-lhe dores.
[8] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ, de 27.02.2003, e da Relação de Coimbra de 06.12.2000 e de 06.03.2002.
[9] Crimes contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.