Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1296/19.0PAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMÉLIA CATARINO
Descritores: IDENTIFICAÇÃO DE SUSPEITO POR ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
CRIME DE SEQUESTRO
CRIME DE TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS CRUÉIS
DEGRADANTES E DESUMANOS
CRIME OMISSIVO
DEVER DE GARANTE
Nº do Documento: RP202212211296/19.0PAVNG.P1
Data do Acordão: 12/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A deslocação à casa do ofendido, e sua posterior condução ao Posto da GNR, para identificação por suspeita de crime, onde ele permaneceu por cerca de nove horas, é ilegal.
II - A colocação do ofendido numa sala dentro do Posto da GNR constitui um impedimento sério e adequado a impossibilitar o ofendido de se libertar, pois se este foi levado para o Posto da GNR pelos arguidos, militares da GNR, é do senso comum que só com autorização destes, ou dos outros guardas que aí se encontravam, poderia sair do Posto, o que constitui retenção contra vontade, integradora do tipo de crime de sequestro p.p. pelo artigo 158.º, n.º 1 e n.º 2, g) do Código Penal.
III – No caso vertente, os arguidos militares da GNR tinham o dever de garantia, o qual assenta num dever especial (dever pessoal, como refere o n.º 2 do artigo 10.º do Código Penal) de evitar o resultado, que é o dever de garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, que resulta do artigo 272.º da Constituição da República; por isso, cometem os crimes de sequestro por omissão os militares da GNR que se encontravam naquele Posto, que tinham o domínio da situação, e com ele um dever de atuar, e que o não fizeram, não tendo impedido que os arguidos agentes do crime por ação cerceassem e retirassem a liberdade ao ofendido.
IV - O facto de quatro militares da GNR, divididos em dois carros-patrulha, irem a casa de um suspeito para procederem à sua identificação é manifestamente excessivo, e também revelador de que a intenção desses militares não era procederem a tal identificação, mas antes, levar o suspeito da prática de um furto para as instalações da GNR, para aí obterem a confissão relativa a essa prática, para o que três dos arguidos violentamente o agrediram, tudo isto "à vista" dos restantes militares da GNR que no Posto se encontravam de serviço, e que deixaram que se concretizassem as imputadas ações, é suscetível de integrar os crimes de sequestro e de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes e desumanos, p.p. pelos art.ºs 158.º, n.º 1 e n.º2, g), e 243.°, n°1, a), e n.º 3, todos do Código Penal, que estes últimos militares praticaram por omissão, nos termos do art.º 10.º do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1296/19.0PAVNG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto, juiz 1
Relatora: Amélia Catarino


SUMÁRIO
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Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

No processo de Instrução nº 1296/19.0PAVNG.P1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto, juiz 1, foi proferida decisão instrutória, nos termos da qual se decidiu:
NÃO SE PRONUNCIAM os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, pelos factos e imputação jurídica constantes da acusação pública de fl.s 700/706.

Inconformado o Ministério Público veio interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação, e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“I- Nos presentes autos, o Mº Pº deduziu acusação contra FF, CC, II, EE, DD, BB, AA, GG e HH, imputando-lhe a pratica de factos suscetíveis de integrarem os crimes de sequestro e tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes e desumanos, p.p. pelos art°s 158° nº 1 e nº2, g) e 243° n°1. a) e nº 3, todos do CP.
II - Em síntese, o Mº Pº refere que o primeiro arguido sendo militar da GNR aposentado conhecia e/ou tinha mesmo proximidade com os restantes arguidos e por via disso, convencendo-se que teria sido um seu vizinho que lhe furtou o seu veículo automóvel, com a ajuda dos arguidos CC, II, EE e DD "transportaram" o tal vizinho, JJ para as instalações da GNR ..., onde o colocaram num quarto sem luz, sem local para se sentar, amontoado de mobiliário e caixotes, onde os arguidos II, EE e DD violentamente o agrediram, com vista à confissão da autoria do furto do veículo e sua localização, por um período de 9 horas, tudo isto "à vista" dos restantes militares da GNR que no Posto se encontravam de serviço, e que violando grosseiramente o disposto no art° 212° da CRP deixaram que se concretizassem as imputadas ações, suscetíveis de integrarem os referidos crimes, que estes praticaram por omissão, nos termos do art° 10° do CP.
III - Diz o MMº Juiz que não Pronuncia os arguidos pela pratica dos referidos crimes:
A) Apesar de ter dado como suficientemente indiciado que o ofendido JJ foi então transportado (da sua residência) pelos militares CC, II, DD e EE para o Posto ... no dia 25.AGO.19;
B) Apesar de ter dado como suficientemente indiciado que permaneceu o ofendido naquele posto da GNR entre as cercas 13h00 até cerca das 22h00 do dia 25.AGO.19, salvo o período de tempo em que o fizeram deslocar ao Porto e a locais do município ...;
C) Apesar de a fls. 1216 da sua decisão ter admitido que no interior desse local o ofendido ter sido agredido por militares dessa força policial;
D) Apesar de ter dado como suficientemente indiciado que também o arguido FF, nas instalações da GNR agrediu o ofendido;
E) Apesar de ter dado como fortemente indiciado que na sequência dessas condutas o ofendido sofreu as lesões por si descritas a fls. 1220 a 1221.
IV- Pelo que, obviamente que o M°P° não pode concordar com o MM° Juiz, porquanto, o "transporte" do ofendido para o Posto da GNR ..., onde este foi obrigado a permanecer durante 9 horas, bem como a sua deslocação a diversos locais com vista à recuperação de um alegado veículo furtado, não encontra qualquer justificação legal, nem mesmo o art° 250° do CPP, que afaste a conduta dos arguidos à sua subsunção ao art° 158° do CP, pois o que os arguidos CC, II, EE e DD fizeram por ação e os restantes arguidos por omissão foi privar o ofendido da sua liberdade.
Factos reconhecidos pelo MMº Juiz;
V - O MMº Juiz não dá como suficientemente indiciado que o ofendido, no Posto da GNR ... foi conduzido para uma sala luz, sem local para se sentar, amontoada de caixotes e mobiliário, onde os arguidos II, EE e DD o agrediram. Mas dá como suficientemente que o ofendido no referido Posto foi agredido por militares da GNR, cfr. fls. 1216 e que não logrou o ofendido identificar quem foram os agressores, cfr. fls. 1219. Perante isto, é legitimo perguntar-se, se a razão pela qual o ofendido não conseguiu reconhecer os seus
agressores não teve que ver com o facto de ter sido agredido na tal sala.
Como legitimo é perguntar-se, como é que o ofendido, que não conhecia as instalações do Posto da GNR ..., e muito menos a tal sala onde diz ter sido agredido, a descreve, tal e qual como o M°P° a encontrou na diligência que fez e que consta de fls. 295 a 307, apresentada como prova da acusação, em relação à qual o MM0 Juiz fez "tábua rasa";
VI - O MM° Juiz dá como provado que, enquanto se encontrava nas instalações do referido Posto ..., o ofendido também foi agredido fisicamente pelo arguido FF, que ali se dirigiu por diversas vezes ao longo desse dia 25.AGO.19, e não retira daí qualquer consequência? É que estes factos dados como provados, subsumíveis ao crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelas disposições conjugadas dos art°s 143° n°l e 145° n°l al-a) e b), este por referência ao art° 132° n°2 al-m) do Cp, praticado por ação pelo referido arguido e por omissão pelos restantes arguidos, deveriam ter ido comunicados ao M°P°, por respeito ao disposto no art° 303° do CPP.
Não o tendo feito, violou o MM° Juiz a supra referida disposição legal;
VII - Bem assim, como a disposição legal do art° 308° nº 1 e n°2 do CPP;
VIII - Porquanto o despacho sob censura dá por suficientemente indiciados factos subsumíveis ao crime de sequestro, mas não pronuncia os arguidos por este crime;
IX- E contradiz-se em relação aos factos suscetíveis de integrarem o crime de tratamento cruel, degradante e desumano, pelo qual também os arguidos se encontram acusados;
X - Pelo que, por respeito às normas acima referidas, deve o despacho sob censura ser substituído por outro, que Pronuncie os arguidos nos precisos termos em que foram acusados.”

Admitido o recurso, o arguido II, veio responder pugnando pela sua improcedência e pela confirmação da decisão de não pronuncia, referindo que não existe qualquer contradição dos factos provados, e que a decisão se encontra bem fundamentada.

HH e GG, também vieram apresentar resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida dada a manifesta inexistência de indícios.

Igualmente respondeu o arguido CC, pugnando pela manutenção do decidido e pela improcedência do recurso.

Também o arguido EE, veio apresentar resposta ao recurso, nos mesmos termos pugnando pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

O arguido DD, respondendo ao recurso pugna pela sua improcedência.

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer subscrevendo e aderindo às considerações e motivos constantes da resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1.ª instância, devendo julgar-se o recurso procedente, revogando-se a decisão instrutória de não pronúncia, ordenando-se a remessa dos autos para julgamento.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto apreciar:
- se ao dar como provado que enquanto se encontrava nas instalações do referido Posto ..., o ofendido foi agredido fisicamente pelo arguido FF, que ali se dirigiu por diversas vezes ao longo desse dia 25.AGO.19, subsumíveis ao crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelas disposições conjugadas dos art°s 143° n°1 e 145° n°1 al-a) e b), este por referência ao art° 132° n°2 al-m) do CP, praticado por ação pelo referido arguido e por omissão pelos restantes arguidos, e ao não proceder a essa comunicação ao MP, o MMº juiz a quo violou o disposto no artigo 303º, e o artigo 308º, nº1, e nº2, do CPP;
- se o despacho sob censura dá por suficientemente indiciados factos subsumíveis ao crime de sequestro;
- se há contradição em relação aos factos suscetíveis de integrarem o crime de tratamento cruel, degradante e desumano;
- Se existem nos autos indícios suficientes para pronunciar os arguidos;

II.1. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões tendo presente o teor da decisão recorrida, que se transcreve:
“DECISÃO INSTRUTÓRIA
O Tribunal é competente em razão da matéria e do território.
O Ministério Público tem legitimidade para acusar.
Não existem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer.
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Foi requerida a abertura da instrução pelos arguidos AA (a fl.s 927/934), BB (a fl.s 935/945), CC (a fl.s 875/899), DD (a fl.s 904/916), EE (a fl.s 919/925), FF (a fl.s 953/958), GG e HH (a fl.s 973/977), relativamente à acusação pública dirigida contra eles e outro pelo M. Público (a fl.s 700/706), pela acusada prática de um crime de tortura e outros tratamentos cruéis degradantes ou desumanos e de um crime de sequestro.
Para tanto, os requerentes arguem que não só não praticaram os crimes que o M. Público lhes imputa, como ainda não foram recolhidos indícios no inquérito em como o fizeram, concluindo pela sua não pronúncia.
Requereram o seu próprio interrogatório, a inquirição de testemunhas e a obtenção de documentos.
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Aberta a instrução, procedeu-se apenas ao interrogatório dos arguidos requerentes da instrução.
Realizou-se depois o debate instrutório, no decurso do qual o M. Público concluiu no sentido de deverem ser pronunciados todos os arguidos pela comissão dos crimes por que foram acusados, pois entende terem sido recolhidos indícios suficientes em como o fizeram; a defesa dos requerentes da presente instrução concluiu como nos respectivos requerimentos de abertura de instrução, pelo arquivamento dos autos.
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O art. 286.º, n.º 1 do C. Pr. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.“
Ou seja, a actividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se - apenas e só - a verificar (a comprovar) se a acusação deduzida pelo M. Público contra os arguidos requerentes quanto aos referidos crimes de tortura e outros tratamentos cruéis degradantes ou desumanos e de sequestro assenta em indícios suficientes em como aqueles praticaram tal crime.
Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito.
Ora, nos termos do art.º 308.º, n.º 1 do C. Pr. Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aa arguida de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia a arguida pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia “.
Por seu turno, e agora de acordo com o art.º 283º do C.Pr. Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de aa arguida vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.“.
Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido ou a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar os arguidos; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
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Percorrendo o inquérito, em especial as declarações do ofendido JJ (a fl.s 3/4, 48/50, 421/425 e 686/690 dos autos), logo se verifica que o mesmo refere ter sido agredido no interior do Posto da GNR ..., no dia 25.AGO.19, entre as 13h.00 e as 22h.00 desse dia, por vários elementos daquele corpo policial e de por eles ter sido retido contra a sua vontade no interior daquelas instalações.
Todavia, nas várias ocasiões em que foi inquirido, o arguido afirmou sempre desconhecer quem foram os militares da GNR que o agrediram e mantiveram – contra a sua vontade – no local, apenas referenciando o arguido FF como o tendo agredido.
É de realçar que essa imputação que o ofendido faz ao referido arguido apenas ocorreu na ocasião em que fez a queixa (em 26.AGO.19, a fl.s 3/4 do inquérito que precedeu a presente fase da instrução); nas suas declarações, que posteriormente foram recolhidas ao longo do inquérito (a fl.s 48/50, 421/425 e 686/690), bem como no âmbito do procedimento disciplinar n.º ... em curso na GNR (a fl.s 57/59 do Apenso junto aos presentes autos), o ofendido JJ manteve que não sabia quem o agrediu nem conseguiria reconhecer quem o fez; ou seja, já não incriminou o arguido FF…
De concreto, o ofendido apenas referenciou que os militares da GNR que o procuraram no local onde residia (na morada da sua avó KK) e o levaram para o Posto ... foram os mesmos que o encerraram no compartimento onde posteriormente foi agredido (declarações a fl.s 686/690).
Ou seja, e a fazer fé nas declarações daquele ofendido, os guardas da GNR CC, II, DD e EE transportaram-no contra a sua vontade ao Posto da GNR ..., tendo-o encerrado num compartimento escuro onde, de acordo com o ofendido, foi repetidamente agredido por militares da GNR, mas cuja identidade disse desconhecer.
Os referidos arguidos CC, II, DD e EE convergem com as declarações do queixoso no que respeita à abordagem que lhe fizeram em cada da avó, bem como relativamente ao transporte dele até ao Posto da GNR ....
Esta impossibilidade de identificação dos concretos agressores do ofendido perpassa por todo o inquérito, pois que nenhum dos arguidos reconheceu ter maltratado o queixoso, posição que mantiveram quando, a pedido das suas defesas, foram interrogados na presente fase da instrução.
Certo é que o queixoso JJ foi efectivamente agredido, pelo menos fisicamente, no interior daquele aquartelamento, como resulta – para além das suas declarações – da cópia do episódio de urgência de fl.s 44/46 e da perícia médica realizada pelo INMLCF (a fl.s 435/438).
Conforme se referiu supra, o ofendido JJ foi incapaz de identificar os seus agressores, à excepção do arguido FF. É certo que o arguido FF sempre negou ter agredido, física ou verbalmente, o ofendido; contudo, para além da imputação que o ofendido fez dessa agressão (sublinha-se: apenas na queixa com que se iniciou o inquérito, e nunca das outras vezes em que foi inquirido), outros arguidos – como infra se verá - referem ter o JJ sido agredido pelo arguido FF, fora do compartimento onde aquele afirma tê-lo sido por outros militares da GNR.
O requerente AA rejeita a acusação que o M.Público lhe dirige, afirmando não ter em qualquer momento
agredido, física ou verbalmente, o ofendido JJ, sendo que em parte do dia 25 de Agosto de 2019 esteve fora do Posto da GNR ..., em serviço de patrulha, algum tempo depois das 16h.00 e até cerca das 19h.00.
Mais referiu que terminou o seu serviço perto das 20h.00, altura em que se ausentou definitivamente do local.
Este arguido AA (pontos 43. a 46. do seu requerimento de abertura da instrução) afirma ter presenciado o arguido FF agredindo o ofendido JJ.
Do inquérito e da instrução não foi recolhido qualquer indício em como o mesmo tenha agredido o ofendido ou que tenha de qualquer forma contribuído ou facilitado a prática dos actos que lhe são, e a outros, imputados pelo M. Público.
De igual modo o arguido BB também requereu a instrução, sustentando a sua defesa que entrou ao serviço de atendimento do Posto ... pelas 15h.00 do dia 25.AGO.19; mais afirma que efectivamente se apercebeu, pouco depois, que o ofendido JJ se achava na secretaria daquele Posto da GNR, evidenciando ferimentos na face e que, mais tarde, entre as 17h.00 e as 19h.00, voltou a ver o ofendido, que nesse momento foi agarrado pelas orelhas por um dos seus camaradas e que evidenciava sinais de sangramento; referenciou um dos presentes como sendo o arguido FF.
O arguido CC também requereu a instrução, argumentando a respectiva defesa que nada fez de criminoso conforme se acha vertido na acusação do M. Público, reconhecendo, no entanto, que fez transportar o ofendido JJ ao Posto da GNR ..., uma vez que aquele - quando abordado no exterior da casa onde habitava e onde fora interpelado pelo arguido e outros camaradas dele – teria confessado o furto do carro do arguido FF, sendo por isso necessário constituí-lo como arguido e proceder aos demais trâmites legais; mais invoca o depoimento daquele ofendido, no que respeita ao facto de o requerente CC ter sido simpático consigo, aconselhando-o a confessar os factos, e nomeadamente tendo-lhe fornecido cigarros para o mesmo fumar.
Apesar de o ofendido afirmar que não confessou nessa altura o furto do carro - tendo por isso sido transportado contra a sua vontade ao Posto da GNR – não existe maneira de afastar a contradição de versões dele e dos arguidos CC e DD, pois estes sustentaram sempre que o ofendido confessou, no momento em que o abordaram junto à residência onde habitava, que se havia apropriado do carro do arguido FF.
Ante estas duas versões factuais diametralmente opostas e irreconciliáveis entre si quanto à confissão pelo ofendido do furto do carro e da voluntariedade dele em acompanhar os militares da GNR ao Posto ..., não se vislumbram razões para privilegiar a do arguido em detrimento daquela apresentada pela defesa dos arguidos: ambas evidenciam a mesma plausibilidade (nenhuma delas se apresenta como fantasiosa ou improvável, por apelo às regras da experiência comum), pelo que, atenta a presunção de inocência que todo e qualquer cidadão beneficia e o princípio in dubio pro reo, não pode assentar-se como suficientemente indiciado que o ofendido JJ tenha sido transportado ao Posto ... de modo ilegal e que, assim, tenha sido vítima, nesse segmento factual, de um crime de sequestro.
De todo o modo, o ofendido JJ declarou no procedimento disciplinar (cuja certidão se acha apensa aos presentes autos) que acompanhou voluntariamente os guardas da GNR ao Posto ..., por não ser portador de documento de identificação (a fl.s 57/59 desse apenso).
A defesa do arguido DD, no seu requerimento de abertura da instrução, alega que não existem indícios dos crimes que o M. Público lhe imputa, uma vez que o requerente se ausentou do Posto ... logo depois de ter conduzido o ofendido a esse local, por volta das 14h.00; de facto, e por apelo à escala de serviço de fl.s 38/39, o arguido DD teria que desempenhar as suas funções até essa hora no dia 25.AGO.19, sendo certo não se lobrigar no inquérito qualquer indício em como tenha aí permanecido depois daquela hora, apenas tendo de regressar ao seu Posto às 23h.00 desse mesmo dia.
Por outro lado, o ofendido JJ esclareceu (fl.s 48/50) que os militares da GNR que viu fora da sala onde
disse ter sido agredido eram diversos daqueles que o foram buscar a casa da sua avó, pelo que parte da acusação que aponta ao arguido DD as agressões àquele não encontra eco na prova indiciária recolhida no inquérito.
No requerimento de abertura da instrução, a defesa deste arguido invoca ainda a nulidade dessa acusação, pois “…As referências feitas, na acusação, a propósito do arguido DD são imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes de qualquer atuação sua…” e por “…da leitura da mencionada peça processual verifica-se não estarem descritos quaisquer factos ilícitos típicos praticados pelo arguido.”.
Neste particular importa salientar que são coisas diversas se verter em uma acusação imputações genéricas (quanto ao modo, tempo e lugar dos factos) e carecerem essas imputações de suficiente e sólida indiciação; no caso em apreço, a acusação impugnada aponta ao arguido - e a outros seus camaradas - factos concretos e determinados, pelo que não padece da apontada nulidade; todavia, esses factos não encontram respaldo suficiente e credível na prova indiciária recolhida em inquérito pois, como se procurou demonstrar, nem o ofendido conseguiu identificar quem o agrediu naquele dia 25 de Agosto, nem os acusados reconhecerem tê-lo feito. É, pois, uma questão de apreciação de indícios e não de invalidade da acusação por omissão das exigências legais que está aqui em causa.
Também a defesa do arguido EE requereu a realização da instrução, sustentando não ter praticado os factos que na acusação pública lhe são imputados, invocando em sua defesa não só as declarações do queixoso JJ (em como não viu o arguido EE no local depois de ter sido conduzido por ele e outros militares da GNR aos Posto ...), mas também a escala de serviço que se acha a fl.s 38/39 dos autos, da qual consta que o requerente da instrução terminou o seu serviço às 14h.00 do dia 25.AGO.19.
Assim é, com efeito: além de o ofendido não ter reconhecido o arguido EE como sendo um dos agressores e de o não ter visto no local depois de aí ter sido conduzido, não existem indícios em como aquele haja permanecido no Posto da GNR ... depois da hora de término do seu serviço.
Por outro lado, a invocada nulidade do inquérito, nos termos do art.º 120.º n.º 2, al. d) do C. Pr. Penal (“…uma vez que o inquérito se revelou insuficiente por se terem omitido diligências que se reputavam como essenciais para a descoberta da verdade material…”) não se verifica, pois que a falta de inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido - guarda LL (que se encontraria no serviço de atendimento das 7 horas às 15 horas), guarda MM e do militar NN (que estavam de serviço às ocorrências das 15 horas e as 23 horas) - não constituem diligências obrigatórias de inquérito.
A defesa do arguido FF sustenta que este requerente da instrução não cometeu os crimes por que vem acusado, tanto mais que não conhecia qualquer dos restantes arguidos, nem sobre eles tinha qualquer ascendente que pudesse justificar a prática, por todos os acusados, dos factos que o M. Público lhes imputa.
Do inquérito e dos interrogatórios realizados em sede de instrução não é possível, com efeito, deduzir que o arguido
FF conhecesse suficientemente os seus camaradas de profissão então em serviço no Posto ...: os restantes arguidos afiançam o invocado pelo requerente da instrução e das escutas telefónicas que se acham transcritas nos autos igualmente não é lícito concluir em sentido contrário.
Por isso, a tese vertida na acusação – em como o arguido FF conhecia os militares da GNR que em 2019 lá prestavam funções, mantendo uma relação de amizade e de maior proximidade com os arguidos EE e DD e, por via disso, estes e os restantes acusados, por anuência expressa ou tácita, e a pedido e no interesse do arguido FF, aceitaram que seria utilizada violência física e psicológica sobre o ofendido JJ para o obrigar a falar e admitir os factos que lhe eram imputados – não tem apoio em indícios sólidos, credíveis e robustos que permitam augurar uma mais provável condenação desses arguidos pelos crimes elencados nessa acusação.
Todavia, e como supra se referiu já, não só o ofendido JJ acusou o arguido FF de o ter agredido, como igualmente os co-arguidos AA e BB referiram terem presenciado tal agressão.
Além disso – e pese embora o esforça da sua defesa para demonstrar o contrário – das transcrições das escutas das
conversas telefónicas que se encontram junto aos autos e em que o referido arguido foi interveniente, resulta que o requerente FF não só agrediu o ofendido JJ como, posteriormente, diligenciou para que este não o implicasse no sucedido nas instalações do Posto ... (fl.s 87/89, 105/107, 120/156, 178/187, 214/226, 241/261, 288/294, 377/329 e 351/358), sendo particularmente esclarecedoras aquelas relativas às sessões n.º 74 (de 16.DEZ.19), 220 (de 22.DEZ.19), 226 (de 23.DEZ.19) e 821 (de 23.JAN.20…
Certo é que foi bem sucedido nesse seu intento, pois que aquele ofendido – tirando a queixa inicial – nunca mais referiu ter sido agredido pelo arguido FF, nem, já agora, logrou identificar em concreto qualquer dos militares da GNR como sendo os agressores…; o mesmo se diga relativamente às mútuas desistências de queixa (fl.s 13 e 37 dos autos) do ofendido e dele próprio arguido FF.
Ou seja: existem nos autos indícios suficientes em como o arguido FF agrediu fisicamente o queixoso JJ no dia 25.AGO.19; não se consegue ir mais além relativamente aos factos vertidos na acusação quantos aos crimes de sequestro e de tortura e outros tratamentos cruéis degradantes ou desumanos, pois que, relativamente a este arguido, não se acham indícios em como tenha conseguido determinar os seus camaradas da GNR em limitar a liberdade de circulação do referido ofendido e em o sujeitar a sevícias físicas e psicológicas para lhe arrancar a confissão de um crime; conjugando as reticências do ofendido quanto à identificação de quem o sujeitou a esse tratamento com a negação pelos arguidos dos factos vertidos na acusação pública, na ausência de outros indícios que permitissem – porventura por apelo às regras da experiência comum – discernir quem fez o quê, quando e como e tendo sempre na linha do horizonte a já referida presunção da inocência que todo e qualquer cidadão beneficia, nada mais resta senão decidir pela não pronúncia do arguido FF dos crimes por que foi acusado.
Todavia, como igualmente se mencionou já, são convergentes os relatos do ofendido JJ e dos co-arguidos AA e BB em como o arguido FF agrediu aquele ofendido; tal conduta integra a prática do crime de ofensa à integridade física; contudo, sendo crime semi-público e tendo o ofendido, em 03.OUT.19, declarado desistir da queixa que apresentara em 26.AGO.19 (fl.s 13 dos autos), segue-se que carece o M. Público de legitimidade para persegui-lo criminalmente por tal crime.
A defesa dos arguidos HH e GG refere no respectivo requerimento
de abertura da instrução que aqueles não agrediram por qualquer modo o ofendido JJ, o qual viram, na presença nomeadamente do co-arguido CC, sem que ostentasse quaisquer sinais de ter sido agredido; referiram terem acompanhado aquele seu camarada CC à denominada zona da ..., conjuntamente com o JJ, por este ter indicado essa zona como local onde possivelmente se acharia o carro furtado ao arguido FF; mais alega a sua defesa que as instalações onde os requerentes desempenham as suas funções não são próximas da zona onde se situa o Posto da GNR ..., pelo que nenhum deles se poderia ter apercebido da condução do JJ para aí, nem das agressões que o mesmo terá sofrido.
Mais uma vez por apelo ao inquérito se verifica que, na verdade, o local de trabalho dos arguidos HH e
GG se situa em local diverso e algo distante das instalações do Posto da GNR que partilha o mesmo espaço; portanto, é verosímil a afirmação da sua defesa em como não estariam em condições de se inteirarem das movimentações dos seus camaradas conjuntamente com o ofendido JJ ou de ouvirem os ruídos decorrentes das agressões de que este foi sujeito.
No que respeita concretamente ao crime de sequestro que lhes é imputado (e que se consubstanciaria na condução do ofendido JJ, contra a vontade deste, a uma zona onde supostamente se encontraria o carro furtado ao arguido FF) importa sublinhar que – na versão daquele ofendido – foi o mesmo que “inventou” tal local para fazer cessar as agressões a que estava a ser sujeito; se assim foi, então a deslocação dele, sob a custódia dos arguidos HH, GG e CC, não foi efectuada sob coacção deles, mas por iniciativa dele, pelo que não se pode aqui falar de sequestro. De todo o modo, e como se referiu já a propósito da imputação do mesmo crime a outros arguidos, essa versão factual apenas foi trazida aos autos pelo JJ, pois que todos os arguidos afirmam que aquele ofendido espontaneamente assumiu o furto da viatura e se prontificou, voluntariamente e livre de qualquer intimidação, a se deslocar aos locais onde o dito carro se encontraria.
Aliás, em sede do referido procedimento disciplinar n.º ... em curso na GNR, o ofendido JJ,
inquirido no âmbito do mesmo (fl.s 57/59 do Apenso) refere ter ido de livre vontade às instalações da GNR ..., em virtude de não ter consigo o cartão de cidadão; este seu relato contraria o que inicialmente referira no inquérito que precedeu a presente instrução, o que adensa as incertezas, dúvidas e reticências que já anteriormente se assinalaram quanto à realidade dos factos em análise…
Aqui chegados, e apreciando globalmente a matéria probatória indiciada recolhida em inquérito e na instrução, conclui-se que:
- o ofendido JJ foi transportado por militares da GNR ao Posto ... no dia 25.AGO.19, por suspeitas de ser o autor do furto de uma viatura automóvel pertencente ao arguido FF;
- no interior desse local foi agredido por militares dessa força policial;
- não logrou o ofendido identificar quem foram os agressores;
- o ofendido foi transportado a vários locais desta cidade ... e de V. ..., por indicação sua, para tentar lograr a recuperação da referida viatura furtada;
- permaneceu o ofendido naquele Posto da GNR entre cerca das 13h.00 até cerca das 22h.00 do dia 25.AGO.19, salvo durante os períodos de tempo em que o fizeram deslocar ao Porto e a locais do município ...;
- enquanto se encontrava nas instalações do referido Posto ..., o ofendido foi agredido fisicamente pelo arguido FF.
Face a esta factualidade apenas é lícito afirmar que o ofendido JJ foi agredido e retido nas instalações
do Posto da GNR ... contra a sua vontade por militares dessa força militarizada.
Porém, essa afirmação não consente augurar que, submetida a julgamento a acusação impugnada pelos requerentes da instrução, os acusados viessem a ser condenados pelos crimes que o M. Público lhes imputa: desde logo porque não é possível apurar quem fez o quê, sendo certo que a responsabilidade mútua dos arguidos por via da alegada comparticipação criminosa esbarra com a impossibilidade de determinar quem foram os efectivos comparticipantes nessa actividade delituosa; se os factos foram praticados por todos os arguidos, apenas por alguns deles ou por outros não identificados é dúvida que persiste nesta fase processual da instrução.
Ainda se poderia ponderar a possibilidade de os arguidos CC, II, DD e EE serem responsabilizados criminalmente pelo crime de sequestro, no que respeita à condução do ofendido JJ ao Posto da GNR, por ausência de razão legal para o fazer; no entanto, considerando que aquele ofendido é contraditório quando afirma inicialmente que foi levado contrariado àquele local e, depois, já disse que o foi voluntariamente por não ser detentor de documento de identificação; e considerando igualmente que os referidos arguidos referiram que o JJ logo confessou ser o autor do furto do carro do arguido FF, quando o interpelaram ao início da tarde junto da sua residência, afigura-se ser muito ténue a possibilidade da condenação deles por tal crime.
Decorre daí que, num juízo de prognose acerca do mais provável desfecho do julgamento dos factos vertidos na acusação do M. Público, se recorte como mais provável a absolvição dos arguidos que a sua condenação pelos crimes de tortura e outros tratamentos cruéis degradantes ou desumanos e de sequestro; a condenação deles por tais crimes afigura-se como mais longínqua que a respectiva condenação.
Por outro lado, pese embora o co-arguido II não tenha requerido a instrução, considerando o disposto no art.º 307.º, n.º 4 do C. Pr. Penal, o que vem de referir-se quanto aos outros arguidos é-lhe extensível, ou seja, não se recorta como provável que viesse a ser condenado, caso os factos constantes da acusação a ele referentes fossem submetidos a julgamento.
*
Por conseguinte, apenas se mostra indiciariamente demonstrado que:
- no dia 21.AGO.19, o arguido FF deslocou-se ao Posto da GNR ... para formalizar queixa-crime contra desconhecidos pela prática de crime de furto do seu veículo automóvel;
- o arguido FF, é ..., na situação de reforma, tendo prestado serviço, enquanto no activo, no Posto ...;
- no dia 25.AGO.19 o referido arguido deslocou-se novamente àquele Posto, para dar conta que o suspeito do furto
era o aqui ofendido JJ;
- por isso, entre as 12.30 horas e as 13.00 horas desse mesmo dia, os arguidos CC, II, DD e EE, envergando todos eles a farda da GNR, deslocaram-se à Praceta ..., ..., concelho ..., fazendo-se transportar em dois veículos da GNR, dirigindo-se depois os arguidos CC e II à residência da avó do ofendido, onde o mesmo se encontrava e também morava, e ficando os arguidos DD e EE no interior da viatura da GNR onde ambos viajaram;
- entretanto chegou ao local o arguido FF que também chegou a abordar o ofendido JJ, seu vizinho, responsabilizando-o pelo desaparecimento do seu veículo automóvel;
- o ofendido JJ foi então transportado por aqueles militares da GNR ao Posto ... no dia 25.AGO.19;
- no interior desse local foi agredido, física e verbalmente por militares dessa força policial;
- não logrou o ofendido identificar quem foram os agressores;
- o ofendido foi transportado a vários locais desta cidade ... e de V. ..., por indicação sua, para
tentar lograr a recuperação da referida viatura furtada;
- permaneceu o ofendido naquele Posto da GNR entre cerca das 13h.00 até cerca das 22h.00 do dia 25.AGO.19, salvo durante os períodos de tempo em que o fizeram deslocar ao Porto e a locais do município ...;
- enquanto se encontrava nas instalações do referido Posto ..., o ofendido foi agredido fisicamente pelo arguido FF, que ali se dirigiu por diversas vezes ao longo desse dia 25.AGO.19;
- como consequência necessária a adequada das agressões de que foi vítima, sofreu o ofendido JJ as seguintes lesões físicas:
* cabeça e face: hematoma na órbita esquerda. Edema e rubor de ambos os pavilhões auriculares, com ferida contusa no pavilhão auricular direito. Equimose arroxeada periorbitária esquerda;
* tórax: três escoriações avermelhadas e irregulares, com crosta hemática, de dimensões infracentimétricas, situadas na região supra-clavicular direita. Equimose situada na face lateral do hemitórax esquerdo, com 16cm por 9cm de maiores dimensões; área de pontuado avermelhado situado na metade esquerda da região dorsal, com 6cm por 3cm de maiores dimensões. Tumefação mole, não aderente a planos subjacentes, situada na linha média da região lombar;
* membro superior direito: equimose arroxeada ocupando situada nos terços médio e proximal das faces lateral e posterior do braço, com 12cm por 11 cm de maiores dimensões, sobre a qual se observam duas áreas equimóticas avermelhas "em carril", com o centro poupado (cuja produção terá sido feito por objeto cilíndrico), a maior com 13cm de comprimento e a menor com 5 cm de comprimento;
* equimose arroxeada com centro poupado, situada no terço médio da face medial do antebraço, com 6cm de diâmetro;
* membro superior esquerdo: duas equimoses arroxeadas situadas no terço médio da face posterior do braço, cada uma com 3cm de diâmetro; duas equimoses arroxeadas com centro rosado, situadas no terço médio da face antero-medial do braço, a maior com 4,5cm por 3cm de maiores dimensões e a menor com 3cm de diâmetro;
* membro inferior direito: equimose arroxeada situada no terço médio da face lateral da coxa, com 8cm de diâmetro. Abrasão ténue e acastanhada, situada no quadrante inferolateral da face anterior do joelho direito, com 3cm de diâmetro;
* membro inferior esquerdo: equimose arroxeada "em carril", com o centro poupado (cuja produção terá sido feita por objeto cilíndrico), situada na face lateral da perna. Abrasão ténue com pontuado hemorrágico, situada no quadrante infere-medial da face anterior do joelho direito, com 3cm de diâmetro múltiplas escoriações superficiais no tronco, e membros inferiores, com edema da coxa direita face externa;
- essas lesões determinaram para cura 12 dias de doença para a consolidação médico-legal: com afectação parcial da capacidade de trabalho geral (12 dias).
- em nexo causal com as lesões sofridas e acima descritas, sofreu o ofendido JJ uma cicatriz, com 2 cm de comprimento, na face posterior da orelha direita, junto à sua implantação de pequenas dimensões ao nível da orelha direita;
- no dia 25 de Agosto de 2019, estavam ao serviço no Posto da GNR ... e no Núcleo de Investigação Criminal que funcionava no mesmo local, para além do arguido CC, o arguido II, Guarda da GNR em funções de patrulha com o arguido CC no horário indicado, os arguidos DD e EE, Guardas da GNR, ambos em funções de patrulha entre as 8 horas e as 14 horas; o arguido BB, Guarda da GNR em funções de atendimento ao público entre as 15 horas e as 23 horas; os arguidos GG e HH, Guardas da GNR em funções de piquete 24 horas no Núcleo de Investigação Criminal e o arguido AA, Guarda da GNR em funções de serviço de patrulha entre as 14 horas e as 20 horas.
Pelo contrário, não se mostra suficientemente indiciado que:
- o ofendido JJ foi encaminhado pelos arguidos CC e II para uma sala ao
fundo do segundo corredor daquelas instalações, localizada imediatamente a seguir a uma porta, à direita, de entrada para o espaço da secretaria e NIC;
- os dois arguidos CC e II deixaram o ofendido JJ durante pelo menos 10/15 minutos no interior dessa sala, fechando a porta, e deslocando-se depois o arguido CC para a secretaria;
- a sala onde ficou o arguido caracterizava-se por ter dimensões reduzidas, tendo um armário em altura encostado à parede do lado direito de quem entrava e com uma secretária encostada à parede do lado esquerdo, sem cadeiras ou sofá, sem luz natural, por não ter janelas, sem luz elétrica acionada e com alguns caixotes no chão.
- os arguidos II, DD e EE entraram nessa sala fechando de seguida a porta e, de imediato, falando os três ao mesmo tempo e em voz alta, e chamando ao ofendido filho da puta e ladrão, desferiram-lhe vários socos e pontapés, atingiram-no com golpes de bastão e com parte de uma mangueira, estando o ofendido JJ com os braços e mãos levantados, quase deitado no chão, tentando evitar que o atingissem na zona da cabeça, mas acabando por ser atingido em todas as zonas do corpo, e pedindo repetidamente que lhe parassem de bater.;
- numa das ocasiões em que o ofendido JJ foi agredido pelos arguidos II, DD e EE pela forma descrita e na sala fechada e sem luz, foi-lhe encostado à cabeça um cano de arma de fogo;
- a meio da tarde, mas admitindo-se como já mais próximo do fim do dia, o ofendido JJ, na esperança de fazer terminar as agressões, acabou por indicar falsamente locais onde poderia ser encontrado o veículo do arguido FF;
- todos os arguidos que se encontravam no Posto da GNR tomaram conhecimento da presença do ofendido JJ no Posto e todos eles sabiam que o mesmo tinha sido para aí encaminhado no sentido de admitir a autoria do crime de furto denunciado pelo arguido FF e de indicar o local onde o veículo automóvel deste poderia ser encontrado;
- todos os arguidos, por anuência expressa ou tácita, e a pedido e no interesse do arguido FF, aceitaram que seria utilizada violência física e psicológica sobre o ofendido JJ para o obrigar a falar e admitir os factos que lhe eram imputados, plano que também todos os arguidos admitiram poder prolongar-se no tempo, sem limite de horas necessárias, e de modo a que não fosse possível ao visado reconhecê-los mais tarde;
- todos os arguidos agiram deliberada, livre, conscientemente e em conjugação de esforços e intenções, com o propósito conjunto de obterem informação e confissão por parte do ofendido JJ sobre o crime de furto do veículo automóvel pertencente ao arguido FF que lhe imputaram, utilizando contra o ofendido e para alcançarem tal objetivo, a privação da sua liberdade de locomoção e de determinação, as agressões físicas continuadas e a intimidação psicológica, intensificadas na sua gravidade e impossibilidade de defesa, pelo local onde foram executadas, pelo número de horas em que decorreram, pela natureza das funções de todos os arguidos, pelo número de arguidos que o atingiram, violando todos eles de modo flagrante os seus deveres funcionais de militares da GNR, também estatutariamente aplicáveis ao arguido FF na situação de reforma, pondo ainda em causa os mais elementares direitos constitucionais de respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, próprios de um Estado de Direito.
- actuaram ainda todos os arguidos sabendo que privavam o ofendido JJ da sua liberdade de locomoção por um período de tempo de cerca de 9 horas, mantendo-o detido, sem qualquer fundamento legal, com grave abuso de autoridade;
- sabiam ainda todos os arguidos que as suas condutas lhes eram vedadas por lei.
*
Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIAM os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II, pelos factos e imputação jurídica constantes da acusação pública de fl.s 700/706.”

II.2. Do recurso
Vejamos se a decisão recorrida fez uma correcta apreciação da prova indiciária recolhida à luz dos pressupostos dos ilícitos criminais em causa e, consequentemente, concluir pela sua suficiência ou insuficiência para sujeitar os arguidos a julgamento pelos crimes de sequestro e tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes e desumanos, p.p. pelos artigos 158° nº 1, g) e 243° nº 1, a) e nº 3, todos do CP.
De acordo com o artigo 286º, nº1, do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
No caso concreto, após o debate instrutório, foi proferido despacho de não pronuncia dos arguidos que requereram a abertura de instrução e que se estendeu ao co-arguido II, considerando o disposto no art.º 307.º, n.º 4 do CPP.
Sustenta o recorrente que os factos que o tribunal a quo deu como suficientemente indiciados relativos à conduta dos arguidos CC, II, DD e EE que conduziram o ofendido para o Posto ..., no dia 25.AGO.19, onde este permaneceu, contra a sua vontade, desde as 13h00 e até cerca das 22h00, salvo o período de tempo em que o fizeram deslocar ao Porto e a locais do município ..., e ainda ao admitir-se na decisão recorrida que, no interior desse local, o ofendido foi agredido por militares dessa força policial, e também pelo arguido FF, e que na sequência dessas condutas o ofendido sofreu as lesões descritas a fls. 1220 a 1221, tais condutas que se resumem à privação do ofendido da sua liberdade, perpetrada pelos arguidos CC, II, EE e DD por acção, e, por omissão, pelos restantes, não têm qualquer justificação legal, nem mesmo no artigo 250° do CPP, que afaste a sua subsunção ao artigo 158º do CP.
Por outro lado, alega o recorrente que os factos relativos ás ofensas à integridade são subsumíveis ao crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143º nº1, e 145º, nº1, a) e b), este por referência ao artigo 132º, nº2, m) do CP, praticado por acção pelo arguido FF, e por omissão pelos restantes arguidos, os quais deviam ter ido comunicados ao Mº Pº, por respeito ao disposto no artigo 303º do CPP.
Conclui que o despacho sob censura deve ser substituído por outro, que pronuncie os arguidos nos precisos termos em que foram acusados.
Vejamos.
A instrução não visa a demonstração dos factos integradores do crime, mas apenas a comprovação judicial da decisão proferida pelo Mº. Pº., no final do inquérito, de deduzir acusação ou de arquivar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286º n° 1 do CPP) não se impondo a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.
«Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação» (Germano Marques, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, vol. III, páginas 179 a 182).
Preceitua o artigo 286º, n.º 1, do CPP, ao cuidar da finalidade e âmbito da instrução, que esta fase do processo se destina, exclusivamente, à comprovação judicial das decisões de acusação ou de arquivamento formuladas pelo MP, no fim do inquérito. Trata-se de uma fase jurisdicional (facultativa) em que o juiz de instrução investiga autonomamente o caso que lhe é submetido, praticando os actos necessários a fundar a convicção que lhe permita proferir a decisão final de submeter ou não a causa a julgamento, ou seja, de pronunciar ou não pronunciar o arguido (artigo 308º, do CPP).
Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, (e consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – artigo 283º, nº2, do CPP), o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos – artigo 308º, n º1 do CPP.
Da expressão “razoável” usada na lei, parece resultar que se deva considerar como suficiência dos indícios, o entendimento que perfilhamos, e que vem sendo adoptado pela jurisprudência e pela doutrina, no sentido de ser necessário que resulte de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução, a valorar na decisão instrutória, uma forte, ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
Não sendo o grau de certeza emergente de prova e da correspondente convicção probatória que é exigida para a decisão de pronúncia (ou para a acusação), equiparável ao que é exigido para a fase da discussão e julgamento da causa, considerando a natureza e efeitos jurídicos visados por cada uma destas fases do processo, a «probabilidade razoável de condenação» enunciada no nº 2 do art. 283º do CPP, não pode ser interpretada como certeza, para além de toda a dúvida razoável, como sucede no julgamento.
As provas obtidas nas fases do inquérito e da instrução não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual quanto à prossecução da causa para a fase de julgamento.
Neste contexto, o grau de «possibilidade razoável» de condenação mencionado nos artigos 283º nº 2 e 308º nº 2 do CPP, tem de ser interpretado como «uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime, de que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (Ac. da Relação de Coimbra de 28.06.2017, proc. 1772/10.3T9LRA.C1 e de 23.05.2018, proc. 80/16.7GBFVN.C1 e de 26.06.2019, proc. 303/18.8JALRA.C1. No mesmo sentido, Ac. da Relação do Porto de 07.12.2016, proc. 866/14.7PDVNG.P1; Ac. da Relação de Guimarães de 27.00.2019, processo 134/17.2T9TMC.G1; Ac. da Relação de Lisboa de 04.07.2019, proc. 324/17.8PASNT.L1, in http://www.dgsi.pt).
O Prof. Figueiredo Dias, In “Direito Processual Penal”, I, 1984, p. 133, refere que «os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição».
Essa é também a orientação do Conselheiro Santos Cabral no Acórdão do STJ de 28 de setembro de 2011, quando refere que «a suficiência dos indícios (…) pressupõe a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade: Indícios suficientes são assim, os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que (o arguido) virá a ser condenado. Eles constituem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado».
Após esta incursão pelas normas que regem a fase da instrução, quanto ao que deve ser entendido por indícios suficientes e com o enquadramento que daí colhemos, e atendo-nos, apenas, ao núcleo central da questão de saber se foram, ou não, recolhidos indícios suficientes da matéria de facto controvertida, afinal, o pressuposto fundamental da prolação do despacho de pronúncia.
Na verdade, a impugnação de uma decisão instrutória não pode, pois, deixar de impor o seu confronto com os indícios probatórios recolhidos durante as fases preliminares do processo, tudo redundando na aferição do acerto do juízo de indiciação realizado pelo Juiz de instrução criminal, o que importa a reavaliação das provas carreadas ao processo durante o inquérito e a instrução e a sua comparação com o conteúdo da decisão do juiz de instrução criminal.
Volvendo ao caso em apreço, é manifesto que o ofendido permaneceu no interior do Posto da GNR ..., no dia 25.AGO.19, entre as 13.00 e as 22.00 horas, local para onde tinha sido levado pelos arguidos CC, II, DD e EE, envergando todos eles a farda da GNR, para ser identificado como suspeito do furto da viatura do arguido FF, e que dentro desse Posto foi agredido por vários elementos daquele corpo policial, que não consegue identificar, e pelo arguido FF, agressões que, lhe causaram como consequência necessária e adequada, lesões físicas.
Alega o recorrente que os factos indiciados estão em contradição com a não pronuncia dos arguidos. E que todos os outros que dela constam, como não indiciados, se mostram indiciados pelos factos instrumentais que o senhor juiz a quo não teve em consideração.
Efectivamente, da análise dos factos indiciados e que constam da decisão recorrida resulta, ao contrário da conclusão retirada pelo senhor juiz de instrução, que os autos contêm indícios suficientes da prática dos crimes que vinham imputados aos arguidos e pelos quais devem ser pronunciados, julgando procedente o recurso e revogando a decisão recorrida.
Vejamos os factos indiciados que constam da decisão recorrida:
- no dia 21.AGO.19, o arguido FF deslocou-se ao Posto da GNR ... para formalizar queixa-crime contra desconhecidos pela prática de crime de furto do seu veículo automóvel;
- o arguido FF, é ..., na situação de reforma, tendo prestado serviço, enquanto no activo, no Posto ...;
- no dia 25.AGO.19 o referido arguido deslocou-se novamente àquele Posto, para dar conta que o suspeito do furto era o aqui ofendido JJ;
- por isso, entre as 12.30 horas e as 13.00 horas desse mesmo dia, os arguidos CC, II, DD e EE, envergando todos eles a farda da GNR, deslocaram-se à Praceta ..., ..., concelho ..., fazendo-se transportar em dois veículos da GNR, dirigindo-se depois os arguidos CC e II à residência da avó do ofendido, onde o mesmo se encontrava e também morava, e ficando os arguidos DD e EE no interior da viatura da GNR onde ambos viajaram;
- entretanto chegou ao local o arguido FF que também chegou a abordar o ofendido JJ, seu vizinho, responsabilizando-o pelo desaparecimento do seu veículo automóvel;
- o ofendido JJ foi então transportado por aqueles militares da GNR ao Posto ... no dia 25.AGO.19;
- no interior desse local foi agredido, física e verbalmente por militares dessa força policial;
- não logrou o ofendido identificar quem foram os agressores;
- o ofendido foi transportado a vários locais desta cidade ... e de V. ..., por indicação sua, para tentar lograr a recuperação da referida viatura furtada;
- permaneceu o ofendido naquele Posto da GNR entre cerca das 13h.00 até cerca das 22h.00 do dia 25.AGO.19, salvo durante os períodos de tempo em que o fizeram deslocar ao Porto e a locais do município ...;
- enquanto se encontrava nas instalações do referido Posto ..., o ofendido foi agredido fisicamente pelo arguido FF, que ali se dirigiu por diversas vezes ao longo desse dia 25.AGO.19;
- como consequência necessária a adequada das agressões de que foi vítima, sofreu o ofendido JJ as seguintes lesões físicas:
* cabeça e face: hematoma na órbita esquerda. Edema e rubor de ambos os pavilhões auriculares, com ferida contusa no pavilhão auricular direito. Equimose arroxeada periorbitária esquerda;
* tórax: três escoriações avermelhadas e irregulares, com crosta hemática, de dimensões infracentimétricas, situadas na região supra-clavicular direita. Equimose situada na face lateral do hemitórax esquerdo, com 16cm por 9cm de maiores dimensões; área de pontuado avermelhado situado na metade esquerda da região dorsal, com 6cm por 3cm de maiores dimensões. Tumefação mole, não aderente a planos subjacentes, situada na linha média da região lombar;
* membro superior direito: equimose arroxeada ocupando situada nos terços médio e proximal das faces lateral e posterior do braço, com 12cm por 11 cm de maiores dimensões, sobre a qual se observam duas áreas equimóticas avermelhas "em carril", com o centro poupado (cuja produção terá sido feito por objeto cilíndrico), a maior com 13cm de comprimento e a menor com 5 cm de comprimento;
* equimose arroxeada com centro poupado, situada no terço médio da face medial do antebraço, com 6cm de diâmetro;
* membro superior esquerdo: duas equimoses arroxeadas situadas no terço médio da face posterior do braço, cada uma com 3cm de diâmetro; duas equimoses arroxeadas com centro rosado, situadas no terço médio da face antero-medial do braço, a maior com 4,5cm por 3cm de maiores dimensões e a menor com 3cm de diâmetro;
* membro inferior direito: equimose arroxeada situada no terço médio da face lateral da coxa, com 8cm de diâmetro. Abrasão ténue e acastanhada, situada no quadrante inferolateral da face anterior do joelho direito, com 3cm de diâmetro;
* membro inferior esquerdo: equimose arroxeada "em carril", com o centro poupado (cuja produção terá sido feita por objeto cilíndrico), situada na face lateral da perna. Abrasão ténue com pontuado hemorrágico, situada no quadrante infere-medial da face anterior do joelho direito, com 3cm de diâmetro múltiplas escoriações superficiais no tronco, e membros inferiores, com edema da coxa direita face externa;
- essas lesões determinaram para cura 12 dias de doença para a consolidação médico-legal: com afectação parcial da capacidade de trabalho geral (12 dias).
- em nexo causal com as lesões sofridas e acima descritas, sofreu o ofendido JJ uma cicatriz, com 2 cm de comprimento, na face posterior da orelha direita, junto à sua implantação de pequenas dimensões ao nível da orelha direita;
- no dia 25 de Agosto de 2019, estavam ao serviço no Posto da GNR ... e no Núcleo de Investigação Criminal que funcionava no mesmo local, para além do arguido CC, o arguido II, Guarda da GNR em funções de patrulha com o arguido CC no horário indicado, os arguidos DD e EE, Guardas da GNR, ambos em funções de patrulha entre as 8 horas e as 14 horas; o arguido BB, Guarda da GNR em funções de atendimento ao público entre as 15 horas e as 23 horas; os arguidos GG e HH, Guardas da GNR em funções de piquete 24 horas no Núcleo de Investigação Criminal e o arguido AA, Guarda da GNR em funções de serviço de patrulha entre as 14 horas e as 20 horas.
A indiciação destes factos é incontestável e resulta das declarações do ofendido JJ (a fls. 3/4, 48/50, 421/425 e 686/690 dos autos), do relatório de clinica forense de fls. 9 a 11, e do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em processo penal, realizada pelo INMLCF a fls. 435 a 438, do relatório de urgência de fls. 44 a 46 verso, do centro hospitalar de .../..., onde o arguido se deslocou no mesmo dia e onde deu entrada pelas 23.45 horas, momento em que também refere ter sido agredido pela GNR. Declarações do arguido CC a fls. 31 a 33 das quais se infere que acompanhou toda a situação.
Face a tais indícios a decisão recorrida conclui que “apenas é licito afirmar que o ofendido JJ foi agredido e retido nas instalações do Posto da GNR ... contra a sua vontade por militares dessa força militarizada".
Pergunta o recorrente, e perguntamos nós: “Mas então, os militares da GNR têm a prorrogativa de poder transportar cidadãos suspeitos da prática de crime aos respetivos Postos?”
A resposta é negativa, estipulando o artigo 250.º, do CPP, as condições em que se pode proceder à “Identificação de suspeito e pedido de informações”, ao referir que:
1 - Os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção.
2 - Antes de procederem à identificação, os órgãos de polícia criminal devem provar a sua qualidade, comunicar ao suspeito as circunstâncias que fundamentam a obrigação de identificação e indicar os meios por que este se pode identificar.
3 - O suspeito pode identificar-se mediante a apresentação de um dos seguintes documentos:
a) Bilhete de identidade ou passaporte, no caso de ser cidadão português;
b) Título de residência, bilhete de identidade, passaporte ou documento que substitua o passaporte, no caso de ser cidadão estrangeiro.
4 - Na impossibilidade de apresentação de um dos documentos referidos no número anterior, o suspeito pode identificar-se mediante a apresentação de documento original, ou cópia autenticada, que contenha o seu nome completo, a sua assinatura e a sua fotografia.
5 - Se não for portador de nenhum documento de identificação, o suspeito pode identificar-se por um dos seguintes meios:
a) Comunicação com uma pessoa que apresente os seus documentos de identificação;
b) Deslocação, acompanhado pelos órgãos de polícia criminal, ao lugar onde se encontram os seus documentos de identificação;
c) Reconhecimento da sua identidade por uma pessoa identificada nos termos do n.º 3 ou do n.º 4 que garanta a veracidade dos dados pessoais indicados pelo identificando.
6 - Na impossibilidade de identificação nos termos dos n.os 3, 4 e 5, os órgãos de polícia criminal podem conduzir o suspeito ao Posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas, realizando, em caso de necessidade, provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga e convidando o identificando a indicar residência onde possa ser encontrado e receber comunicações. (sublinhado nosso)
7 - Os actos de identificação levados a cabo nos termos do número anterior são sempre reduzidos a auto e as provas de identificação dele constantes são destruídas na presença do identificando, a seu pedido, se a suspeita não se confirmar.
8 - Os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artigo 59.º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária.
9 - Será sempre facultada ao identificando a possibilidade de contactar com pessoa da sua confiança.”
Da análise desta disposição legal há várias conclusões que podemos retirar relativamente à conduta dos militares da GNR. A primeira é a de que a deslocação à casa do ofendido, e sua posterior condução ao Posto da GNR, para identificação por suspeita de crime, e onde permaneceu por mais de seis horas, é ilegal.
Na verdade, a possibilidade de a policia levar um suspeito para as suas instalações para proceder à sua identificação, só é possível quando o suspeito se encontre em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, por ser necessário identificar alguém, desconhecido do ofendido, mas por este indicado como autor de um crime, e que é necessário identificar, por este não ter consigo qualquer documento de identificação.
Ora, in casu o ofendido não se encontrava em lugar público, aberto ao público ou sob vigilância policial, nem era desconhecido do ofendido FF a quem havia sido furtado o veículo.
Aliás estes são vizinhos, e o próprio arguido FF quando os arguidos se encontravam à porta da casa do ofendido refere “já sei que foste tu que me roubaste a carrinha, diz onde a meteste e eu retiro a queixa".
Por outro lado, porque, para a alegada colaboração para a recuperação do veículo furtado, não seria necessário que o JJ estivesse entre as 13h e as 22h nas instalações policiais, bastaria que acompanhasse os militares da GNR ao local onde teria deixado o veículo.
A norma supra transcrita estipula os termos em que os órgãos de policia criminal podem identificar um sujeito e pedir informações, normas que não foram respeitadas. Na verdade, o ofendido permaneceu no Posto da GNR por mais de seis horas, e, apesar de o senhor juiz na decisão recorrida ter concluído que “o ofendido JJ foi agredido e retido nas instalações do Posto da GNR ... contra a sua vontade por militares dessa força militarizada", proferiu decisão de não pronuncia.
Repare-se que as declarações do ofendido convergem com as dos arguidos, CC, II, DD e EE, guardas da GNR no que respeita à abordagem que lhe fizeram em casa da avó, bem como relativamente ao transporte dele até ao Posto da GNR ....
Ora, nos termos do artigo 158º, nº1 e nº2, g), do CP, comete o crime de sequestro “Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade (…)” “(…) mediante simulação de autoridade pública ou por funcionário com grave abuso de autoridade.
A retenção contra a vontade é, sem qualquer dúvida, uma privação da liberdade. O ofendido permaneceu no Posto da GNR ... por mais de seis horas, sob o pretexto de ter de ser identificado como suspeito do furto da viatura do militar da GNR reformado, FF, local de onde não podia sair e para onde foi levado, de forma ilegal, por militares da GNR, com grave abuso de autoridade, sem sequer o deixarem contactar com pessoa de família, impedindo-o de se deslocar em liberdade. Acresce que, a impossibilidade de a pessoa se libertar não precisa de ser absoluta, não precisa de ser invencível, bastando que o meio utilizado seja um impedimento sério, isto é adequado, como é o caso em que o ofendido foi colocado numa sala dentro do Posto da GNR, o que constitui, sem dúvida, um impedimento sério e adequado a impossibilitar o ofendido de se libertar. Na verdade, é do senso comum que se o ofendido foi levado para o Posto da GNR pelos arguidos militares da GNR só com autorização destes, ou dos outros guardas que aí se encontravam, poderia sair do Posto, como saiu pelas 22.00 horas, ou seja cerca de 9 horas depois de ali ter sido conduzido para alegada identificação.
Repare-se que a própria avó do ofendido (depoimento de fls. 54), telefonou por várias vezes para aquele Posto a saber do neto e a resposta era que ainda ali se encontrava em interrogatório e que não podia sair. Referindo ainda que perto das 20.00 horas, recebeu chamada do neto para o ir buscar, e quando chegou ao Posto com o genro e a filha e, não o vendo, foi informada que tinham mudado de ideias e que o interrogatório ia continuar. Adianta ainda que, por volta das 22.00 horas recebeu um telefonema do Posto a dizer que o neto tinha ido para casa a pé…
Na verdade, e no que ao crime de sequestro respeita, e considerando a prova supra mencionada, conjugada entre si e analisada segundo a inteligência do homem médio, é incontroverso que o ofendido JJ foi privado da sua liberdade por um período superior ao legalmente permitido para a realização de diligências policiais (no máximo seis horas, nos termos do artigo 250º, do CPP supra transcrito), diretamente consumado pelos arguidos CC, II, DD e EE, que o foram buscar a casa e o levaram para as instalações policiais, sem qualquer fundamento legal, e o encerraram numa sala da qual só saiu para ir fumar e para se deslocar, com a patrulha, ao Porto e a locais do município ..., o que permite concluir que o ofendido não se encontrava livre e nos reconduz à violação do direito constitucional, de ninguém poder ser privado da sua liberdade (artigo 27º, da CRP), excepto nas situações previstas nos nº 2 e 3, daquela norma constitucional, concretamente e para o caso a alínea g) do nº3 do artigo 27º da CRP, que nos remete para a previsão de artigo 250º, nº 1 e nº6 do CPP.
O direito à liberdade pessoal é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados, como sejam nos artigos 3º, 9º e 29º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 9.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais). E, O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) reconhece que as alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção.
Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal. E a Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante do direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos, direito à liberdade pessoal que, à semelhança da CEDH, a Constituição da República, no artigo 27º n.º 2, admite, expressamente, que possa sofrer restrições nas situações previstas nos nº 2 e 3, daquela norma constitucional concretamente, e para o caso, tem aplicação a alínea g) do nº3 do artigo 27º da CRP, que nos remete para a previsão de artigo 250º, nº 1 e nº6 do CPP.
Concluindo, os autos indiciam suficientemente que os arguidos CC, II, DD e EE, foram buscar o ofendido a casa e levaram-no para as instalações policiais, sem qualquer fundamento legal, e encerraram-no numa sala da qual só saiu para ir fumar e para se deslocar, com a patrulha, ao Porto e a locais do município ..., preencheram com a sua conduta o crime p.p. pelo artigo 158º, nº 1 e nº 2, g) do CP, por acção e por omissão, porquanto detiveram o ofendido e mantiveram-no detido por mais de seis horas. Na verdade, a omissão da acção de libertação configurara uma conduta de sequestro dado que os omitentes assumem uma posição de garante. Trata-se daquilo a que no artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal se chama a omissão da acção adequada a evitar o resultado.
Efectivamente, os arguidos militares da GNR têm o dever de garantia o qual assenta num dever especial – dever pessoal, como refere o n.º 2 do mencionado artigo 10.º – de evitar o resultado, dever esse que resulta da CRP no seu artigo 272º, uma vez que é dever da policia garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos. Em suma, a ordem jurídica tem que fornecer a fundamentação para relacionar o omitente com um certo resultado.
No caso sub judice, resulta manifestamente indiciado que os arguidos CC, II, DD e EE, detiveram o ofendido e levaram-no para o Posto da GNR, impossibilitando-o de se locomover, enquanto os restantes arguidos, todos militares da GNR e que se encontravam naquele Posto, tinham o domínio da situação e com ele um dever de actuar, gerador de uma comissão por omissão. Todavia, não intervieram no sentido de impedir que os arguidos CC, II, DD e EE, cerceassem e retirasse a liberdade ao ofendido e, sendo-lhes juridicamente exigível o dever ou obrigação de intervenção, pois que estes, enquanto militares da GNR, nos termos do artigo 272º, da CRP, impende o especial dever de garantir a segurança das pessoas. Não tendo intervindo, como deviam, tendo conhecimento da actuação daqueles arguidos, incorreram todos os outros arguidos em responsabilidade criminal, sendo-lhes imputável o resultado que a sua inacção ou omissão deixou que se verificasse: a privação da liberdade do ofendido que perdurou por mais de seis horas e os arguidos, bem o sabendo, decidiram conscientemente nada fazer, aceitando voluntariamente tal situação, daí que tal conduta omissiva, integre a previsão criminal do artigo 158º, nº1 e nº2, g), do CP..
De facto, estes arguidos tinham o dever de não abandonar o ofendido naquela sala impedindo-o de sair. Deste modo, os arguidos, com a sua conduta activa e omissiva, suficientemente indiciada nos autos, determinaram a privação da liberdade daquele por um período de tempo jurídico-penalmente relevante, preenchendo, por isso, todos elementos do tipo legal objectivo do crime de sequestro.
De tudo o que fica exposto forçoso é concluir que se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução os arguidos sejam submetidos a julgamento para serem julgado pelos factos da acusação e relativos ao crime de sequestro por terem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena pela pratica do crime de sequestro que lhes vem imputado, porquanto deles resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena– artigo 283º, nº2, do CPP), devendo os arguidos ser pronunciados pelos factos respectivos relativos a este crime – artigo 308º, n º1 do CPP – sendo mais provável que os arguidos tenham cometido o crime, de que o não tenham cometido existindo uma alta probabilidade de futura condenação dos arguidos, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Continuando na apreciação do recurso e no que concerne aos restantes factos que foram considerados não indiciados, como seja os relativos à sala para onde o ofendido foi conduzido e ao crime de tortura e outros tratamentos cruéis degradantes ou desumanos, p.p. pelos artigos 243° n°1, a) e n°3 e 244° n°1 b) do CP, cumpre referir que assiste razão ao recorrente. O senhor juiz do tribunal de instrução criminal não tomou em conta factos instrumentais que levam à indiciação também desse crime e dos factos relativos ao local para onde o ofendido foi conduzido e às especiais relações do arguido FF, militar da GNR na reforma e que actuou como mandante, onde foi agredido pelos arguidos II, EE e DD e também pelo arguido FF.
Como refere o recorrente: “o M°P° refere que o primeiro arguido sendo militar da GNR aposentado conhecia e/ou tinha mesmo proximidade com os restantes arguidos e por via disso, convencendo-se que teria sido um seu vizinho que lhe furtou o seu veículo automóvel, com a ajuda dos arguidos CC, II, EE e DD "transportaram" o tal vizinho, JJ para as instalações da GNR ..., onde o colocaram num quarto sem luz, sem local para se sentar, amontoado de mobiliário e caixotes, onde os arguidos II, EE e DD violentamente o agrediram, com vista à confissão da autoria do furto do veículo e sua localização, por um período de 9 horas, tudo isto "à vista" dos restantes militares da GNR que no Posto se encontravam de serviço, e que violando grosseiramente o disposto no artigo 272° da CRP deixaram que se concretizassem as imputadas ações, susceptíveis de integrarem os referidos crimes, que estes praticaram por omissão, nos termos do art° 10° do CP.
Este processo teve origem na queixa de fls. 3 a 3/v, na qual JJ denuncia que entre as 12h30m e as 22h do dia 25/08/2019, elementos da GNR ..., o levaram à força para o referido Posto, com o intuito de ser identificado e prestar declarações como suspeito de furto de uma viatura pertencente a um ex-militar daquele Posto, um tal FF, mantendo-se este sempre presente na referida diligência e no interior do Posto foi agredido por elementos fardados da GNR, com bastões e uma mangueira, atingindo-o em diversas parte do corpo, nomeadamente partindo-lhe um dente e rasgando-lhe as orelhas.”
Como refere o recorrente “esta denuncia é de primordial importância, como prova indiciária, pois como resulta das escutas telefónicas juntas aos autos, verificamos que a partir do momento em que o denunciado FF (devidamente identificado como FF) tem conhecimento da existência deste processo inicia uma campanha de influência do ofendido com vista à descredibilização dos factos por este denunciados, e neste sentido vejam-se as conversas telefónicas transcrita a fls. 107 e 164: "fui levá-la e trouxe o filho, ainda lhe paguei uma bifana pelo caminho, sabes como é, ele disse que não vai ao posto da guarda ser ouvido...ele não é obrigado a lá ir, nem ao tribunal e disse-lhe que se for lá, que dizia que não tem nada para dizer..."; "disse que não sabe identificar quem é que lhe bateu, eram muitos guardas, o pá que é que querias que eu fizesse? Paguei-lhe o almoço...".
E continua o recorrente referindo com toda a propriedade que “para além desta queixa, existem os vários relatórios de perícia médico-legal, constantes de fls. 9 a 11, 40 a 46 e 435 a 438, que descrevem as lesões que foram observadas no ofendido e o seu nexo de causalidade adequada entre a descrição do evento e as suas consequências.
E existe o auto de noticia de fls. 31 a 33 subscrito pelo militar da GNR CC, que em síntese diz o seguinte: No dia 25 de Agosto de 2019 pelas 12h e 15m, quando me encontrava de serviço designado por patrulha às ocorrências no horário compreendido entre as 07/15h deslocou-se ao Posto da GNR ..., o lesado FF dando conhecimento que tinha obtido informações junto de populares que quem lhe tinha furtado a sua viatura fora o seu vizinho, JJ.”
Ora, como refere o recorrente e é do senso comum “o facto de 4 militares, divididos em dois carros patrulhas irem a casa de um suspeito para procederem à sua identificação é manifestamente excessivo, e também revelador que a intenção desses militares não era procederem a tal identificação, mas antes, levar o suspeito da prática do furto para as instalações da GNR, para aí obterem a confissão do referido furto (…)”, para o que o conduzira à referida sala onde foi agredido com vista à confissão da autoria do furto do veículo e sua localização. Tanto assim é que, em determinada altura do interrogatório e depois de muita agressão o ofendido disse que tinha furtado o veiculo e apontou outra localização para onde os guardas da GNR II, EE e DD o levaram para verificar a veracidade destes factos (o que terá ocorrido ao final da tarde). Ora, se não fosse para dele obter a confissão através da privação da liberdade e das agressões bastaria tomar nota das suas declarações e deslocarem-se aos locais indicados…
Tal conclusão também resulta indiciariamente do teor das declarações prestadas pelo ofendido perante o MP, a fls. 48 a 50, onde este refere que “pretende fazer estes esclarecimentos porque na verdade devido às agressões físicas de que foi vitima, chegou a admiti-lo (o furto) e a inventar pretensas localizações da carrinha, tudo para tentar por termo às agressões e conseguir sair do Posto policial acompanhado por aqueles militares, pois assim as agressões pelo menos acabavam.”
Também a indiciação destes factos e da proximidade do arguido FF (GNR aposentado e que exerceu funções naquele Posto ...), aos restantes arguidos militares da GNR que exercem funções neste Posto ..., resulta da análise das escutas telefónicas, transcritas a fls. 241 a 249, onde o arguido FF diz ser muito amigo dos guardas e que vai ao Posto onde é o guarda reformado mais bem visto em todo o Posto da GNR. Também de fls. 543 resulta que este arguido tem por hábito dirigir-se a este posto da GNR, sendo do senso comum que este aí se dirige porque aí tinha, e continua a ter amigos (fls. 244 e 245). Tal amizade resulta de fls. 223 onde ele refere ser amigo do guarda EE e também das escutas de fls. 131 onde o arguido FF em conversa telefónica diz “menti… disse que não conheço guarda nenhum…”, relatando o seu depoimento perante as autoridades. Mostra-se, pois, indiciado que o arguido FF prestou serviço, enquanto no ativo, no Posto ..., e continuando mesmo após a sua reforma a deslocar-se àquele Posto com regularidade, conhece os militares da GNR que em 2019 lá prestavam funções, mantendo uma relação de amizade e de maior proximidade com os arguidos EE e DD, o que leva a presumir que os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH e II praticam os factos que lhes são imputados (uns por acção e outros por omissão) a mando e no interesse do arguido FF.
E, é manifesto que todos os arguidos sabiam que o ofendido tinha sido levado para o Posto por suspeitas de ter furtado o veiculo do arguido FF, GNR reformado, e que dias antes se havia dirigido ao Posto para fazer queixa do furto e que no dia dos factos também se lá dirigiu informando que as suas suspeições recaiam sobre o ofendido seu vizinho, dai que seja normal e expectável que todos os arguidos soubessem que o ofendido estava naquelas instalações.
Por outro lado, os factos relativos ao local onde o ofendido foi agredido e quem perpetrou tais agressões, mostram-se indiciados e resultam da prova indirecta e da reconstituição que foi efectuada a fls. 285, onde é feito o reconhecimento do edifício em função do depoimento prestado pelo ofendido no que concerne à sua permanência neste local à data dos factos (v. fls 49), sendo certo que era a primeira vez que este entrou no Posto ... (e apesar disso a descrição que faz é de tal forma pormenorizada que é encontrada a sala onde o colocaram e agrediram).
Quanto aos autores das agressões também existem indícios nos autos que apontam para que estas tenham sido perpetradas pelos guardas da GNR II, EE e DD, apesar de o ofendido não os ter conseguido identificar por o terem colocado numa sala sem janelas ou com janelas fechadas, e não se conseguia ver com nitidez quem entrava e saia. A única luz aí existente eram as frinchas da porta, ou quando esta se abria para alguém entrar ou sair, o que lhe impossibilitou identificar quem o agrediu. Como bem refere o recorrente “O ofendido não consegue reconhecer os seus agressores porque as agressões ocorreram na sala de reduzidas dimensões, tendo um armário em altura encostado à parede do lado direito de quem entrava e com uma secretaria encostada à parede do lado esquerdo, sem cadeiras ou sofá, sem luz natural, por não ter janelas, sem luz elétrica e com alguns caixotes no chão.”
Quanto à identificação dos arguidos que o agrediram, por diversas vezes com estalos, socos, pontapés e sentiu agressões com bastões e com um tipo de mangueira, e parafraseando o recorrente na análise que faz da prova indiciaria e sem necessidade de outras considerações, “Quanto à identificação dos arguidos que por ação praticaram o crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, e pese embora o arguido não tenha possibilidade de fazer o seu reconhecimento, resulta igualmente das circunstâncias em que o crime ocorreu que os militares que estavam encarregues da "diligência" eram os arguidos CC, II, DD e EE. Se em relação ao arguido CC o ofendido diz que foi o único que falou consigo à "luz do dia" e que não reconhece a sua voz como sendo algum daqueles que o insultaram e o agrediram na tal "sala de interrogatório" e se os seus agressores eram 3, então, restam os arguidos II, DD e EE como os autores da ação que lhes é imputada como integradora do referido crime. Sendo certo, que dando por inteiramente reproduzido o alegado para a comissão do crime de sequestro por omissão, também os restantes arguidos praticaram o crime agora em causa, por força do art° 10° do CP, sendo certo que o art° 272° da CRP os obrigava a pararem essa conduta. (sublinhado nosso)
Por outro lado, o ofendido JJ acusou o arguido FF de o ter agredido, sendo que os co-arguidos AA e BB também referiram ter presenciado tal agressão, a qual ocorreu dentro das instalações da GNR.
Também das transcrições das escutas das conversas telefónicas que se encontram junto aos autos (fl.s 87/89, 105/107, 120/156, 178/187, 214/226, 241/261, 288/294, 377/329 e 351/358), sendo particularmente esclarecedoras aquelas relativas às sessões e em que o referido arguido foi interveniente, resulta que o requerente FF não só agrediu o ofendido JJ como, posteriormente, diligenciou para que este não o implicasse no sucedido nas instalações do Posto ...
Ou seja: existem nos autos indícios suficientes em como o arguido FF agrediu fisicamente o queixoso JJ no dia 25.AGO.19; n.º 74 (de 16.DEZ.19), 220 (de 22.DEZ.19), 226 (de 23.DEZ.19) e 821 (de 23.JAN.20…
Concluindo, resulta suficientemente indiciado que, enquanto se encontrava nas instalações do referido Posto ..., o ofendido foi agredido fisicamente pelo arguido FF, que ali se dirigiu por diversas vezes ao longo desse dia 25.AGO.19., sem que nenhum dos guardas (aqui arguidos) o tenha impedido. Ora, tendo estes militares da GNR presenciado o ofendido a ser agredido dentro do Posto, local onde era suposto que o ofendido se sentisse protegido e que as forças policiais o impedissem (artigo 272º, do CRP), conforme refere o MP, tal conduta subsume-se à pratica do crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143° nº 1 e 145° nº 1, a) e b), este por referência ao artigo 132° nº 2, m), do CP
Face ao exposto e de acordo com os artigos 303º e 308º, do CPP, importa determinar a extração de certidão para o MP para que tome conhecimento destes "novos" factos indiciados e que são susceptíveis de integrar a pratica de crime de natureza pública.

Resta pois concluir que, fazendo um juízo de prognose condenatória reportado à discussão e julgamento do processo, se conclui que o mesmo se encontra em condições de prosseguir para essa fase, por se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena, dado que, da análise das provas carreadas para o inquérito, existem indícios suficientes quanto às condutas atribuídas aos arguidos pelo que é de revogar a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que pronuncie os arguidos nos exactos termos da acusação.

III. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª Secção Criminal, em julgar procedente o recurso e em revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que pronuncie os arguidos nos exactos termos que constam da acusação, e que, de acordo com os artigos 303º e 308º, do CPP, determine a extração, e entrega ao MP, de certidão para que tome conhecimento destes "novos" factos indiciados e que são susceptíveis de integrar a pratica de crime de natureza pública.

Sem custas.

Porto, 21 de dezembro de 2022
Amélia Catarino
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, n.º 2, do CPP)