Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1740/18.3T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
CREDIBILIDADE DO DEPOIMENTO
TESTEMUNHAS
Nº do Documento: RP202004271740/18.3T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE, CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Prova livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei.
II - A questão da credibilidade ou não da testemunha insere-se no âmbito da livre apreciação das provas pelo julgador, caindo a sua sindicabilidade fora das competências do tribunal de recurso, excepto se existirem outras provas que imponham decisão diversa.
III - O mesmo sendo de dizer quanto às declarações de parte, posto que o n.º 3 do art.º 466.º admite a livre valoração pelo juiz (art.º 607.º, n.º5) de todo o conteúdo das declarações que não se reconduza à figura da confissão, sendo esta valorada em sede própria.
IV - A menos que existissem fundamentos sérios, devidamente sustentados em dados concretos, que tornassem evidente que a valoração da prova foi incorrecta, não pode a recorrente pretender sobrepor a sua “convicção” à do julgador, no pressuposto que é mais acertada, pretendendo, no rigor das coisas, um segundo julgamento da causa por este Tribunal ad quem, no essencial sustentado naquela sua convicção.
V - Para por em causa a convicção formada pelo Tribunal recorrido, é necessário demonstrar que a mesma assenta em pressupostos que são logicamente inaceitáveis ou impossíveis, designadamente, por contrariarem regras de experiência comum.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1740/18.3T8VNG.P1
SECÇÃO SOCIAL
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO
I.1 No Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia, B…, intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra C…, S.A, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €1.325,70 a título de indemnização pela ITA bem como a pensão anual e vitalícia de €136,94 a ser remida no capital de €1.734,52.
Para sustentar os pedidos alega, no essencial, que foi vítima de um sinistro quando se encontrava a executar o seu trabalho ao serviço da sua entidade patronal, o que lhe causou lesões com um período de incapacidade temporária bem como uma IPP.
O acidente ocorreu quando se encontrava a enrolar uma chapa de inox polido (235 cm x 30 cm), função designada por “calandragem de chapa”. A chapa é introduzida numa máquina com 3 rolos, um atrás e dois à frente, no meio daqueles, sobre a qual é exercida enorme pressão. Depois de ter limpo muito bem a chapa começou a introduzi-la na máquina, quando sem que nada o fizesse prever, caiu um objecto sobre ela. Visto tratar-se de material dispendioso e que o tal objecto danificaria a chapa de inox polido, teve um impulso de sacudir o corpo estranho com a mão direita a uns 20 centímetros dos rolos. Sem saber como, de seguida a luva ficou engatada no rolo, acabando por ser puxada juntamente com a sua mão, esfacelando-lhe as pontas dos dedos mindinho e anelar.
A Ré seguradora contestou, sustentando que evento dos autos ocorreu exclusivamente em resultado de acto do próprio Autor que importa violação das condições de segurança previstas na lei e estabelecidas pela entidade empregadora e bem assim negligência grosseira, verificando-se, pois, a descaracterização do acidente nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, alíneas a) e b) da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
Sustenta que a máquina tem funcionamento automatizado, laborando através do accionamento de dois pedais, sendo que um faz mover os rolos para dentro e outro para os rolos para fora. Os pedais estão localizados no solo e são móveis, tendo uma protecção em U invertido, apenas podendo ser accionados por acção intencional do trabalhador.
Ao ver os detritos na chapa, o Autor decidiu limpar a chapa com a sua mão direita, próximo dos rolos, m fê-lo continuando a accionar o pedal que fazia movimentar os rolos. Quando colocou a sua mão direita na chapa, os rolos puxaram a luva e consequentemente a mão do Autor, por essa razão ficando parcialmente entalada entre os rolos de ferro da máquina, tendo ocorrido o esfacelamento de dois dedos.
Encontrava-se estabelecido como regra de segurança da empresa que a limpeza das chapas apenas pode ser realizada antes de estas serem colocadas na máquina e com esta desligada, dela tendo o autor conhecimento.
Para além disso, a máquina tinha uma placa de aviso e o autor labora com ela desde o ano de 2001, conhecendo o modo de funcionamento e os riscos inerentes a operar a mesma. Sabia que se colocasse a mão junto aos rolos estando simultaneamente a pressionar com o pé os pedais que os fazem movimentar, a sua mão seria, como foi, puxada e esmagada. Caso o Autor não tivesse mantido os rolos em funcionamento, nunca a sua mão teria sido puxada e esmagada.
Foi proferido despacho saneador, seguido de selecção da matéria de facto assente e controvertida.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo, finda a qual foi dada resposta à base instrutória.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
«Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção procedente e determinar que o A. ficou afectado de uma IPP de 1,5% por força do acidente e, em consequência, condenar a Ré C…, S.A. a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual e vitalícia de €133,23, com início de vencimento em 23.02.2018, e a quantia de €987,99 a título de indemnização por IT, e juros de mora sobre as quantias em dívida desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida.
Valor da acção: €2.684,27.
(..)».
I.3 Inconformada com a sentença a Ré Seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
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I.4 O recorrido apresentou contra alegações, mas sem que se mostrem finalizadas com conclusões. No essencial, defende que da prova produzida, resultou demonstrado que o gesto do Recorrido foi instintivo, incontrolável e mesmo altruísta, para evitar que a chapa ficasse danificada, resultando num prejuízo para a empresa.
Pugna pela improcedência do recurso.
I.5 O Ministério Público junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido da improcedência da impugnação sobre a matéria de facto e, em consequência do recurso, por não resultarem factos que permitam concluir quer pela descaracterização por violação de regras de segurança quer pela perda do direito à reparação por não existir negligência grosseira.
I.6 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas pela recorrente para apreciação consistem em saber o seguinte se o Tribunal a quo errou o julgamento quanto ao seguinte:
- Na apreciação da prova e resposta dada aos quesitos 1.º, 2.º e 3.º da base instrutória (que deram origem aos factos provados 10, 11 e 12), bem assim aos quesitos 7.º e 8.º (aos quais foi dada resposta restritiva, considerando somente provado o que constava do quesito 3.º e que veio a ser o facto provado 12).
- No pressuposto de ver alterada a decisão sobre a matéria de facto, defende impor-se que se conclua pela descaracterização do acidente de trabalho ou pela actuação em negligência grosseira do sinistrado.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo tribunal a quo consiste no que passa a transcrever:
1. O sinistrado nasceu em 16.01.1964 [alínea A) dos factos assentes].
2. O sinistrado tem um contrato de trabalho celebrado com a empresa Ferro e Latão desde 1999, exercendo a profissão de serralheiro [alínea B) dos factos assentes].
3. No dia 13/12/2017, pelas 10h40m, o sinistrado, no exercício da sua actividade, encontrava-se a enrolar uma chapa de inox polido (235cmx30cm), sendo o termo técnico desta função “calandragem de chapa” que permite dar forma a laminados de metal [alínea C) dos factos assentes].
4. A chapa é introduzida numa máquina com três rolos, um atrás e dois à frente, no meio dos quais é introduzida a chapa, sobre a qual é exercida enorme pressão [alínea D) dos factos assentes].
5. O A, operando com luvas, começou a introduzir a chapa na máquina atrás referida [alínea E) dos factos assentes].
6. No decorrer dessa tarefa, o Autor colocou a mão direita na chapa, tendo os rolos puxado a luva e consequentemente a sua mão, entalando-a entre os rolos de ferro da máquina, esfacelando os 4º e 5º dedos da mão direita [alínea F) dos factos assentes].
7. À data do acidente, a Entidade Patronal do sinistrado havia transferido para a Ré seguradora a sua responsabilidade por acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº ………., pelo salário anual auferido pelo sinistrado de €12.688,94 [€625 x14 meses+€99,54 x 11 meses (sub.alim) + €237 x12m] [alínea G) dos factos assentes].
8. Na tentativa de conciliação, a Ré Seguradora aceitou o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões constantes do boletim da alta e a transferência da responsabilidade pelo salário que o sinistrado declarou auferir à data do acidente [alínea H) dos factos assentes].
9. Não aceitou, contudo, responsabilizar-se pelo pagamento por qualquer indemnização por entender que houve violação das normas de segurança [alínea I) dos factos assentes].
10. Antes de introduzir a chapa na máquina, o A. limpou-a muito bem (artigo 1º da base instrutória)
11. Depois de ter introduzido a chapa na máquina, sem que nada o fizesse prever, caiu um objecto sobre a chapa (artigo 2º da base instrutória).
12. Visto que se tratava de material dispendioso e tal objecto danificaria a chapa de inox polido, o A. teve o impulso de sacudir o corpo estranho com a mão direita a uns 20 cms dos rolos (artigo 3º da base instrutória).
13. A máquina operada pelo sinistrado, na data do acidente, é uma máquina de funcionamento automatizado que labora através do accionamento de dois pedais, sendo que um faz mover os rolos para dentro e outro para os rolos para fora (artigo 4º da base instrutória).
14. Os pedais estão localizados no solo e são móveis, tendo um protecção em U invertido (artigo 5º da base instrutória).
15. Os pedais apenas podem ser accionados por acção intencional do trabalhador (artigo 6º da base instrutória).
16. A mão permaneceu entalada até que um colega que auxiliava o Autor na tarefa, desligou a máquina num botão posicionado no lado esquerdo da mesma (artigo 9º da base instrutória).
17. Encontrava-se estabelecido como regra de segurança da empresa que a limpeza das chapas apenas pode ser realizada antes de estas serem colocadas na máquina e com esta desligada (artigo 10º da base instrutória).
18. A máquina tinha uma placa de aviso com os seguintes dizeres:
“WARNING
TO PREVENT SERIOUS BODILY INJURY NEVER-PLACEANY PART OF OUR BODY AT THE POINT OF OPERATION (…) (artigo 11º da base instrutória)
19. O A. sabia que o significado da referida placa de aviso era:
“AVISO
PARA PREVINIR SÉRIA LESÃO CORPORAL NUNCA-COLOQUE NENHUMA PARTE DO CORPO NO PONTO DE FUNCIONAMENTO (…) (artigo 12º da base instrutória)
20. O Autor exerce a profissão de serralheiro desde 1978 e labora com a máquina em questão desde 2001, tendo perfeito conhecimento do seu funcionamento (artigo 13º da base instrutória).
II.2 IMPUGNAÇÃO da DECISÃO SOBRE a MATÉRIA de FACTO
Insurge-se a recorrente contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, defendendo que o Tribunal a quo errou o julgamento na resposta dada aos quesitos 1.º, 2.º e 3.º da base instrutória, a que correspondem os factos provados 10, 11 e 12 da sentença, bem assim aos quesitos 7.º e 8.º, aos quais foi dada resposta restritiva, considerando somente provado o que constava do quesito 3.º, levado ao facto provado 12 da sentença.
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Atentos estes princípios, como primeiro passo, impõe-se verificar se algo obsta à apreciação da impugnação.
As conclusões cumprem o que se entende necessário, constando a indicação precisa dos pontos da matéria de facto impugnados e as respostas alternativas. O mesmo é de dizer quanto às alegações, encontrando-se a indicação dos meios de prova, pontos da gravação em que se encontram os extractos invocados para sustentar a impugnação, a síntese do que foi declarado pelo autor no seu depoimento e pelas testemunhas, bem assim argumentação para justificar a pretendida alteração.
Nada obsta, pois, à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
II.2.1 Os quesitos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º e 8.º da base da base instrutória, têm o conteúdo seguinte:
1º - Antes de introduzir a chapa na máquina, o A. limpou-a muito bem?
2º - Depois de ter introduzido a chapa na máquina, sem que nada o fizesse prever, caiu um objecto
sobre a chapa?
3º - Visto que se tratava de material dispendioso e tal objecto danificaria a chapa de inox polido, o A. teve o impulso de sacudir o corpo estranho com a mão direita a uns 20 cms dos rolos?
7º - No decorrer da sua tarefa, o Autor apercebeu-se que a chapa tinha resíduos/limalhas e decidiu limpar a chapa com a sua mão direita, próxima dos rolos?
8º - E fê-lo continuando a accionar o pedal que fazia o movimento dos rolos?
O Tribunal a quo considerou provados os quesitos 1, 2 e 3; e, quanto aos 7 e 8 respondeu “Provado o que consta do facto 3º”.
Os quesitos 1, 2 e 3 - considerados provados – constam na sentença sob os n.ºs 10, 11 e 12.
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto o Tribunal a quo justificou a sua convicção nos termos seguintes:
-« A convicção do Tribunal formou-se no depoimento de D…, colega de trabalho que assistiu ao acidente ocorrido com o sinistrado porquanto estava a trabalhar com ele na altura. Referiu que a chapa foi devidamente limpa antes de ser introduzida na máquina, descreveu a mesma e explicou o seu modo de funcionamento. Para tal foi ainda importante o depoimento de E… que fez a averiguação do sinistro bem como o conteúdo das fotos por si tiradas à máquina e que se mostram juntas a fls. 83 a 86 v.
A primeira testemunha esclareceu ainda os termos em que terá ocorrido o acidente, referindo ter sido muito rápido resultando de uma reação instintiva do trabalhador perante a queda de um corpo estranho não identificado na chapa quando a mesma já estava a ser cortada pela máquina e que, na altura, a mão do sinistrado estava a cerca de 20 cm de distância dos rolos. Mais referiu que retirando os pés dos pedais, a máquina demora ainda uns segundos a parar em definitivo.
A testemunha F…, patrão do sinistrado socorreu-o após o acidente, tendo aberto os rolos para libertar a mão do sinistrado, declarando que o mesmo estava de luvas.
O próprio sinistrado esclareceu que a luva era maior do que a mão e quando tentou sacudir o corpo estranho da chapa a mesma ficou engatada e puxou-lhe os dedos.
Ambas as testemunhas inquiridas esclareceram que o trabalhador é bastante experiente, labora há muito anos com a máquina sendo perfeito conhecedor do seu funcionamento».
Na perspectiva da recorrente, da prova que indica não resulta que o Autor tenha limpado muito bem a chapa antes do processo de calandragem e que apenas depois de a máquina ter sido introduzida na máquina é que apareceu a limalha, nem que o que estava sobre a chapa e que o Autor tentou limpar era um objecto, nem tão pouco que teve impulso de sacudir a mão a uns 20 cms dos rolos e que o gesto executado foi gesto instintivo. Resulta, pelo contrário, que a chapa tinha resíduos/limalhas, que o Autor decidiu limpá-la com a mão direita junto aos rolos e que continuou sempre a pressionar o pedal enquanto tentava fazer a respectiva limpeza.
Sustenta entender que “analisada a prova produzida de forma crítica, procurando destrinçar nos depoimentos o que neles pareceu sincero e espontâneo daquilo que mais não foi do que uma mera reprodução da versão dos factos alegada pelo Autor e buscando desvalorizar o que, na descrição da factualidade, não é materialmente possível ou não faz qualquer sentido (de acordo com as regras comum), [….] seria forçoso considerar provados os quesitos 7.º e 8.º da base instrutória, tal qual constavam da mesma, e não provados os quesitos 1.º a 3.º».
Para estribar essa posição invoca o depoimento de parte do autor e os testemunhos de D…, F… e E…, sintetizando os extractos que entende relevantes.
Diremos, desde já, que após a audição a que procedemos, verifica-se que os extractos invocados correspondem praticamente às partes relevantes do que referiram sobre o modo como ocorreu o acidente e características da máquina operada pelo sinistrado. Esta nota assume relevância não só para aferir da correspondência entre o que foi declarado e a síntese realizada pela recorrente, mas também para assinalar que esta não vem afirmar que o Tribunal a quo descurou alguma declaração ou interpretou-a mal, seja quanto ao que foi referido pelo autor nas declarações de parte ou pelas testemunhas nos seus depoimentos.
De resto, para que fique esclarecido, face à audição a que se procedeu da prova indicada, também não vislumbramos que tivesse fundamento para isso. Mas para além disso, como adiante assinalaremos, deve referir-se que das declarações de parte do autor e do testemunho de D… resulta algo mais do que é referido pela recorrente.
Como se percebe pela afirmação inicial das alegações -acima transcrita -, mas também pelos exemplos que de seguida referiremos, a estratégia da recorrente é essencialmente dirigida a por em causa a convicção que o tribunal a quo formulou quanto à isenção e objectividade da prova que refere na fundamentação. Melhor explicando, no essencial, a recorrente questiona a credibilidade das declarações de parte do autor e do depoimento de D…, a única das testemunhas que assistiu ao acidente em razão de estar a trabalhar conjuntamente com aquele, auxiliando-o a segurar a chapa que estava a ser trabalhada na calhandra.
Relativamente ao autor, diz a recorrente o seguinte:
- “(..) revelou-se totalmente comprometido com a versão dos factos que alegara no seu articulado, remetendo por diversas vezes para o escrevera no processo, repetindo algumas fórmulas sacramentais pouco próprias do discurso oral como “corpo estranho” ou então o conveniente conceito de “gesto instintivo”.
O depoimento do Autor não foi espontâneo nem credível.
Note-se, aliás, a precisão da referência à colocação da mão a 20 cms dos rolos – precisão essa que, como adiante se verá, foi repetida por outra testemunha.
Ora, salvo o devido respeito, esta afirmação não faz qualquer sentido. Pois se a mão tivesse sido colocada a 20 cms dos rolos, nunca teria sido puxada pelos mesmos».
Quanto ao testemunho de D…, no essencial, faz as considerações seguintes:
- «(..)
No início do depoimento da testemunha continuou a ser perceptível o uso da fórmula sacramental “corpo estranho” mas, à medida que o depoimento foi fluindo, foi-se tornando mais espontâneo e a testemunha já referiu de forma clara e peremptória que se tratava de uma limalha que deve ter saltado da chapa, enquanto esta passava pela máquina e ficava mais fina.
(..)
Aliás, a testemunha acabou por referir expressamente que é normal aparecerem limalhas na máquina e que não costumam retirá-las com a máquina em funcionamento – de facto, a esse propósito estão estabelecidas duas regras de segurança, que o Tribunal a quo julgou (e bem) provadas como factos 17 e 18 (resposta aos quesitos 10.º e 11.º da base instrutória).
Só quando confrontada, uma vez mais pelo Mandatário do Autor, é que a testemunha veio dizer que afinal o aparecimento da limalha não era normal e só aconteceu daquela vez. Mas a contradição em que incorreu, a pouca espontaneidade e o pouco à-vontade que revelou nesse concreto momento do depoimento fazem perceber que foi sincero na primeira versão que apresentou e não na segunda.
A testemunha também foi clara – e nesse aspecto o seu depoimento foi coincidente com o do Autor – a explicar que, para os rolos girarem, tem de se estar a carregar no pedal e que quando o sinistrado estava a colocar a mão para limpar a limalha estava simultaneamente a carregar no pedal. Diga-se que só assim poderia ser, se não a sua mão nunca teria sido puxada e ficado presa nos rolos.»
É essencialmente com base no que se transcreveu que a recorrente depois formula um conjunto de conclusões. Em suma, como começa por dizer, entende que quer o depoimento do autor quer o da testemunha D…, contiveram partes que “notoriamente, ou não foi espontâneo (parecendo, de algum modo, ensaiado) ou foi incoerente ou não faz sentido em face das regras da normalidade do acontecer”. Reportando-se à testemunha, dá enfase a uma alegada “(..) contradição em que incorreu, a pouca espontaneidade e o pouco à-vontade que revelou nesse concreto momento do depoimento fazem perceber que foi sincero na primeira versão que apresentou e não na segunda”.
Com o devido respeito, começaremos por dizer que a recorrente está a pretender contrapor a sua convicção na apreciação da prova àquela que foi formada pelo julgador, quando o tribunal a quo não aponta qualquer falta de credibilidade à prova produzida, seja por falta de espontaneidade, seja por qualquer contradição ou incoerência na sua conjugação e valoração conjunta.
Importa ter presente, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art.º 607º n.º5, do CPC, dispondo este último que ““[o] juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (..)”.
Nas palavras de Alberto dos Reis, que mantém plena actualidade, “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Reimpressão, Coimbra, 1987, p. 569].
A questão da credibilidade ou não da testemunha insere-se no âmbito da livre apreciação das provas pelo julgador, caindo a sua sindicabilidade fora das competências do tribunal de recurso, excepto se existirem outras provas que imponham decisão diversa. O mesmo sendo de dizer quanto às declarações de parte, posto que o n.º 3 do art.º 466.º admite a livre valoração pelo juiz (art.º 607.º, n.º5) de todo o conteúdo das declarações que não se reconduza à figura da confissão, sendo esta valorada em sede própria.
Ora, a menos que existissem fundamentos sérios, devidamente sustentados em dados concretos, que tornassem evidente que a valoração da prova foi incorrecta, o que de resto já se enquadraria na vertente do erro de julgamento, não pode a recorrente pretender sobrepor a sua “convicção” à do julgador, no pressuposto que é mais acertada, pretendendo, no rigor das coisas, um segundo julgamento da causa por este Tribunal ad quem, no essencial sustentado naquela sua convicção. Para por em causa a convicção formada pelo Tribunal recorrido, é necessário demonstrar que a mesma assenta em pressupostos que são logicamente inaceitáveis ou impossíveis, designadamente, por contrariarem regras de experiência comum.
A recorrente procura fazer esse percurso, mas como passamos a explicar, debruçando-nos agora sobre as afirmações conclusivas feitas pela recorrente, as bases de que se socorre não lhe dão o necessário sustento. Vejamos então.
A recorrente afirma que “não se mostra demonstrado que o Autor tivesse limpado muito bem a chapa antes do processo de calandragem, pois que não se sabendo ao certo qual a respectiva origem, a verdade é que, no momento em que este estava a ser introduzida nos rolos, constataram que a mesma tinha uma limalha”.
Pois bem, quer o autor quer a testemunha D… referiram que procederam previamente à limpeza da chapa de aço inox, tendo igualmente explicado que esse procedimento é habitual e necessário, dado que se houver algum resíduo na chapa, limalha ou outro corpo estranho, ao realizarem a calandragem, isto é, conformar a chapa para que fique enrolada - resultado que se obtém pela passagem da mesma entre os três rolos que vão fazendo uma pressão elevada sobre ela (factos 3 e 4) -, a chapa fica marcada e inutilizada.
Por outro lado, a testemunha D… explicou que as limalhas, que consistem em rebarbas nos bordos da chapa provocadas pelo corte da mesma, podem surgir durante a calandragem, por se soltarem pelo efeito da pressão exercida pelos rolos enquanto aquela desliza entre eles. Nas palavras da testemunha: “(..) o girar da calandra faz com que as rebarbas fiquem de fora”.
Por conseguinte, se limpar a chapa é um acto normal, necessário e prévio à calandragem, não vimos qual a razão para duvidar que o autor tenha limpo a chapa muito bem ou, na expressão que usou, “com todo o cuidado”. É certo que o corpo estranho ou limalha foi detectado durante a calandragem, mas como resulta da explicação que foi dada que, refira-se, nos parece lógica, isso pode acontecer durante aquele processo.
Prossegue a recorrente afirmando: “não houve prova cabal de que apenas depois de a máquina ter sido introduzida na chapa é que apareceu a limalha, dado que, por se tratar de algo de tamanho tão diminuto (um “ciscozito”, como referiu uma das testemunhas), poderia muito bem já lá estar anteriormente e ter passado despercebido”.
Serve aqui o que acabámos de deixar explicado. Para que fique claro, quer o autor quer a testemunha afirmam que a chapa foi limpa devidamente e que só detectaram, o “corpo estranho” ou limalha quando já estavam em pleno procedimento de calandragem.
Mais, não é despiciendo fazer notar que este ponto, em boa verdade, nem tão pouco tem qualquer relevância para a tese da recorrente. Mas seja como for, não lhe reconhecemos razão.
Na afirmação seguinte, mas mais uma vez em torno do mesmo tema, diz a recorrente: “o que estava sobre a chapa e que o Autor veio a tentar limpar, não era um objecto, mas um mero resíduo, um cisco, uma limalha”.
Com o devido respeito, é uma questão de linguagem e, repete-se, sem qualquer relevância. Muito provavelmente poderia ser uma limalha, mas também poderia ser qualquer outro resíduo, dai não ser inapropriado o sinistrado referir-se-lhe como objecto ou corpo estranho e a testemunha corpo estranho, cisco ou limalha. Para além disso, como a recorrente bem percebeu face à prova produzida, depois do acidente ninguém foi apurar o que se encontrava exactamente na chapa.
Seguem-se três outras afirmações, que por se reportarem à mesma questão, analisaremos conjuntamente, nomeadamente as seguintes:
-“ é impossível que o Autor tenha tido o impulso de sacudir a mão a uns 20 cms dos rolos, pois se assim fosse nunca a mesma teria ficado entalada no seu interior;
- o gesto de afastar uma limalha de uma chapa de inox que ia ser prensada por rolos cilíndricos que fazem uma enorme pressão não é um gesto instintivo; gesto instintivo é um gesto que não é controlado pela actividade cerebral, sendo mera resposta da espinal medula (que, por definição, produz estímulos simples que permitem à pessoa reagir com rapidez em situações de emergência em momento anterior ao da chegada da informação ao cérebro e da tomada de consciência do que está a suceder, como é o caso de retirar a mão de um objecto muito quente ou cortante); no caso, houve necessariamente um processo de mental de ponderar que se que se tratava de material dispendioso que poderia vir a ser danificado;
- pelo contrário, o que resulta da prova é que a chapa tinha resíduos/limalhas e que o Autor decidiu limpá-la com a mão direita junto aos rolos, o que levou a que a mão ali ficasse entalada».
Sobre o primeiro parágrafo, diremos que a recorrente não está a ter na devida conta a dinâmica do facto e o tempo de reação do sinistrado. Melhor explicando, a máquina estava em movimento e, logo, pela acção giratória dos rolos também a chapa, acrescendo que entre o sinistrado visualizar o objecto ou corpo sobre a chapa e reagir há um tempo de reacção, a que acresce, num momento seguinte e distinto, ainda o tempo na execução do gesto. Vale isto por dizer que entre o momento da percepção de que algo estava na chapa e a finalização do gesto, a chapa continuou a sua marcha, pelo que quando o sinistrado completou o gesto e chegou lá com a mão já a distância ao rolo seria menor que os 20 cm que avaliou no momento inicial.
Acresce, ainda, como foi explicado pelo sinistrado e pela testemunha, que a máquina não para imediatamente quando o operador deixa de acionar o pedal, só se imobilizando cerca de 2 segundos depois, percorrendo a chapa mais uns centímetros, pois, como também descreveu “o rolo não para no momento”. De resto, atendendo a essa prova, bem refere o Tribunal a quo na fundamentação que “Mais referiu que retirando os pés dos pedais, a máquina demora ainda uns segundos a parar em definitivo”.
Quanto ao “gesto instintivo”, expressão usada pelo sinistrado, com o devido respeito, a recorrente está mais uma vez a abordar o acidente como se estivéssemos perante uma realidade estática, quando pelo contrário há uma dinâmica que, na expressão da testemunha, se traduz numa “fracção de segundo”. Por outro lado, está a predender fazer prevalecer o sentido rigoroso da palavra, descurando em linguagem mais corrente, que foi a usada pelo sinistrado, por vezes é empregue com o sentido de acção impulsiva e imediata.
Nesse contexto, cremos ser perfeitamente plausível e conforme às regras da experiência que o sinistrado tenha reagido por impulso, num gesto impensado, motivado pela consciência de que chapa iria ficar irremediavelmente danificada. De resto, como a própria recorrente invoca, a testemunha D… referiu “aparecerem limalhas na máquina e que não costumam retirá-las com a máquina em funcionamento” e o sinistrado “labora com a máquina em questão desde 2001”, quadro que torna plausível estar-se perante um gesto irreflectido, inabitual, por isso sendo ajustada a expressão usada no facto provado 12, isto é, que “teve o impulso de sacudir o corpo estranho com a mão direita”.
Por fim, afirma a recorrente que “é forço concluir da prova produzida que o Autor continuou sempre a pressionar o pedal ou, no caso contrário, os rolos não estariam em movimento e não entalariam a sua mão».
Não podemos concordar com este raciocínio. Por um lado, o sinistrado referiu que na execução do gesto levantou o pé, mas que a máquina só se imobiliza depois “à volta de dois segundos”; por outro, a expressão da testemunha, referindo que tudo se passou numa “fracção de segundo” é elucidativa, acrescendo que igualmente confirmou que a imobilização da máquina não é imediata, demorando cerca de dois segundos, nesse tempo mantendo-se os rolos em funcionamento.
Mais, se como diz a recorrente, o sinistrado tivesse mantido sempre o pedal pressionado até os rolos terem [facto 6]“puxado a luva e consequentemente a sua mão, entalando-a entre os rolos de ferro da máquina, esfacelando os 4º e 5º dedos da mão direita”, como a máquina só se imobiliza cerca de 2 segundos depois, certamente que as lesões sofridas teriam sido bem mais graves.
Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida” [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436].
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
No caso, cremos que o Tribunal a quo formou correctamente a sua convicção, dando credibilidade aos meios de prova que refere, valorando-os e conjugando-os para chegar aos factos que fixou, em decisão que não merece reparo.
Concluímos, pois, pela improcedência da impugnação da matéria de facto.
II.3 MOTIVAÇÃO de DIREITO
A recorrente seguradora insurge-se contra a sentença por alegado erro na aplicação do direito aos factos, mas no pressuposto de ver alterada a matéria de facto nos termos pretendidos (cfr. conclusões 9.ª, 13.ª e 14.ª).
Assim, não tendo sido acolhida a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, necessariamente fica prejudicada a apreciação do recurso na vertente de erro na aplicação do direito aos factos, em consequência improcedendo o recurso e devendo ser confirmada a sentença recorrida.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
i) Improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
ii) Improcedente o recurso na vertente de erro na aplicação do direito aos factos.
iii) Em consequência, confirmando a sentença recorrida.

Custas do recurso a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC)

Porto, 27 de Abril de 2020
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira