Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1840/22.5T8PRD-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA VIEIRA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
DIREITO À RESERVA DA VIDA PRIVADA
REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA
INTERESSE PÚBLICO
Nº do Documento: RP202211101840/22.5T8PRD-H.P1
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os processos de promoção e proteção obedecem ao princípio do interesse superior da criança e do jovem.
II - As crianças têm direito à protecção constitucional da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, e esta imposição constitucional em confronto com o direito à reserva privada justifica a prevalência do interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1840/22.5T8PRD-H-P.1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Porto Oeste – Juízo de Família e Menores de Paredes - Juiz 2

Relatora: Ana Vieira
1º Adjunto Desembargadora Dr. António Carneiro da Silva
2º Adjunto Desembargadora Dra. Isabel Rebelo Ferreira
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO
Nos presentes autos de Promoção e Protecção, relativos á menor AA, filha BB e de CC, por despacho exarado a 13 de Setembro de 2022 no decurso do debate judicial realizado nos presentes autos, após o progenitor ter sido notificado para esclarecer a pertinência do seu pedido respeitante às informações médicas da progenitora e, em síntese, ter indicado que as informações requeridas têm como objetivo saber se, efetivamente a mãe esteve de baixa durante 4 meses em 2017, conforme diz que esteve e a razão para as baixas psiquiátricas, uma vez que o pai entende que não terá sido por problemas relacionados com o sono, tendo o pedido mais relevância pela recusa da progenitora em realizar as perícias solicitadas e em ser acompanhada no âmbito da psicologia, foi determinado: “O Tribunal para decidir esta questão tem presente a fundamentação já aduzida no despacho de 05/05/2022 e de 16/07/2022 que decidiu a prorrogação da medida aplicada nos autos, a qual ora se reproduz. Tem-se ainda presente que está em curso debate judicial que visa decidir projeto de vida desta criança, que o Tribunal não pode, nem está, alheio ao sofrimento da criança, tendo perfeita consciência que a criança está afastada dos seus familiares, que é necessário, pertinente e que se impõe decidir o projeto de vida desta criança, por essa razão e porque é necessário apurar se realmente a progenitora sofre de alguma anomalia que a impeça de ter consigo a criança, dado que a mãe se recusou a submeter a perícia psiquiátrica, tendo presente as suspeições levantadas pelo pai e perante o facto de a mãe se recusar a ser seguida por psicólogos isentos da Faculdade de Psicologia do Porto, as informações ora pretendidas pelo pai mostram-se importantes para o Tribunal melhor definir o projeto de vida da AA, assegurando o seu superior interesse.
Donde, há que ponderar se o direito à reserva privada da vida da progenitora admite restrição constitucional e se cede perante o superior interesse da criança, da AA, sua filha, que se encontra acolhida numa família de acolhimento, privada de ter uma vida normal, junto da sua família, como qualquer outra criança.
De acordo com o preceituado no artigo 100.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e proteção, é um processo de jurisdição voluntária, significando que o tribunal, nos termos do artigo 986º, n.º 2 do CPC, pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias. Acresce que qualquer um dos interessados tem o dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC, salvo se essa recusa for legítima.
Como se referiu neste caso, existe uma colisão entre o direito da mãe e da filha e confronto de normas de natureza constitucional, que este Tribunal não pode ignorar.
Repercute-se que é importante apurar da capacidade parental de cada um dos progenitores, de modo a, finalmente, ser definido o projeto de vida da criança.
A progenitora já reconheceu nos autos que, de facto, esteve de baixa médica, no entanto, recusa quer a realização de avaliação psiquiátrica, quer que o Tribunal tenha acesso às informações médicas.
Tal informação, como é manifesto, é importante para a decisão a proferir designadamente a dos autos, devendo prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança em detrimento do direito à reserva da vida privada da progenitora.
Face ao exposto e ponderando os valores e interesses em presença, determina-se que, num critério de proporcionalidade e necessidade, as pretendidas informações clínicas se afiguram essenciais para a decisão a proferir.
Considerando os valores e interesses em causa, dado que as informações se afiguram essenciais, determina-se que sejam juntas aos autos.
Assim, proceda-se conforme o requerido, com cópia do presente despacho, informando que o Tribunal entendeu que o interesse da criança é superior ao direito de recusa da progenitora em ver juntas aos autos tais informações. Notifique.”
Nesse debate antes de ser proferido o despacho recorrido consta da acta o seguinte:«… DESPACHO
“Notifique o progenitor para esclarecer a pertinência do seu pedido respeitante às informações médicas da progenitora. “
Seguidamente, dada a palavra à Ilustre Mandatária do Progenitor, Dr.ª DD, para se pronunciar conforme o ordenado no despacho que antecede, encontrando-se a sua intervenção gravada em formato digital no sistema H@bilus Média Studio de 14h47m40s (início) a 14h48m18s (fim), tendo ainda sido reduzida a escrito, em síntese disse que: As informações requeridas têm como objetivo saber se, efetivamente a mãe esteve de baixa durante 4 meses em 2017, conforme diz que esteve e a razão para as baixas psiquiátricas uma vez que o pai entende que não terá sido por problemas relacionados com o sono. Este pedido tem ainda mais relevância pela recusa da progenitora em realizar as perícias solicitadas e em ser acompanhada no âmbito da psicologia.
Após, iniciada a prolação do despacho que se segue, foi pedida a palavra pela Ilustre Mandatária da Progenitora, Dr.ª EE, encontrando-se a sua intervenção gravada em formato digital no sistema H@bilus Média Studio, tendo ainda sido reduzida a escrito, tendo em síntese dito que: Opõe-se ao pedido de informações médicas, sendo que não se pode pedir aos médicos, sem mais, que deem os registos clínicos. Tendo a mãe já informado o Sistema Nacional de Saúde que não pode dar essa informação.».
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Inconformada com tal decisão, veio a recorrente interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir de imediato, nos autos e com efeito meramente devolutivo.
A recorrente com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões:« Assim, salvando sempre o respeito devido, extrai as seguintes: CONCLUSÕES:
1 – A progenitora perdeu a confiança na Psicóloga da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto que a acompanhava, porquanto, depois de lhe ter comunicado que era vítima de violência doméstica desferida pelo progenitor, a mesma Psicóloga informou-a de que assim não podia haver mediação familiar, o acompanhamento teria de ser diferente;
2 - Não obstante, aquela Psicóloga apresentou relatório em contexto de mediação familiar e em Tribunal, em sede de conferência, fez revelações sobre a progenitora e caracterizou-a integrando-a num perfil no qual esta não se revê, fazendo-o sob uma argumentação que, no entendimento da recorrente, contorna a questão que lhe confiou, violência doméstica desferida pelo progenitor, para fazer persistir a mediação familiar como condição de acesso à guarda da AA.
3 - Pelo que não lhe pode ser exigido esse acompanhamento que acima de tudo prejudica a própria criança, na medida em que a sacrifica em compasso de espera por algo que por natural impossibilidade jamais acontecerá, contudo e independentemente disto, a recorrente demonstrou nestes autos estar a ser assistida por outra Psicóloga fora daquela Instituição.
4 – Ao ordenar que se proceda conforme o requerido pelo progenitor e assim que seja solicitado ao Agrupamento de Escolas ... certificados de incapacidade temporária para o trabalho com os respectivos relatórios médicos de suporte e ao “Centro de Saúde ...” na pessoa da Drª FF, os registos do acompanhamento que terá determinado as baixas médicas da progenitora; o Tribunal recorrido decidiu a favor de uma pretensão que sendo uma ofensa à personalidade física e moral da progenitora, consubstancia uma intromissão arbitrária na sua vida privada;
5 – Sem que exista, no caso sub judice, colisão entre os direitos relativos à segurança, estabilidade, equilíbrio emocional e psicológico e projecto de vida da AA e os direitos da sua mãe à personalidade moral e física e à reserva da vida privada; sendo que estes direitos naturais ou direitos absolutos da mãe indirectamente também aproveitam à criança.
6 – Na decisão recorrida verifica-se desde logo violação do princípio da actualidade, visto que foram dois os episódios de baixa médica da progenitora, tendo o primeiro ocorrido durante quatro meses a seguir aos nove meses de idade da criança, enquanto o segundo ocorreu durante cerca de dez meses entre os três e os quatro anos de idade da AA que completará seis anos em Janeiro próximo.
7 – Acresce existirem no processo elementos que comprovam fielmente as competências da mãe para o exercício das responsabilidades parentais relativas à AA, em termos de lhe proporcionar segurança, bem-estar, equilíbrio emocional e psicológico e, consequentemente, garantir-lhe o desenvolvimento harmónico de um projecto de vida a realizar em contexto de afecto, de boa educação e de respeito tanto na sua vivência individual e familiar como nas relações sociais e humanas - conforme vai narrado supra, em I da motivação, que por brevidade dá aqui por integralmente reproduzido.
8 – Por outro lado, a matéria atrás transcrita em II - para onde por brevidade também aqui remete – retirada dos relatórios ali identificados e existentes nos autos, mostra à saciedade o flagrante perigo em que a AA foi colocada enquanto entregue à guarda do pai e, por via disso, o clamoroso erro nas sucessivas avaliações no âmbito destes autos nunca baseadas nesta realidade que por isso de risco se transmutou em perigo.
9 - O risco e depois o perigo para a criança junto do progenitor (e da família paterna), consecutivamente, encoberto pelas versões subversivas do pai (e a dada altura também da tia paterna que ilegitimamente se atravessou nestes autos) sempre objectivadas em processo de promoção e protecção da criança, em vez da regulação das responsabilidades dos pais, são efeitos do sobredito erro de avaliação.
10 - A relatada actuação do pai demonstra que o mesmo se foi arrogando de poderes acima e contra as normas, nessas circunstâncias, escandalosamente, não se coibiu de impor desobediência à determinação do Tribunal e de ofender os valores do ordenamento jurídico do Estado, além de atentar contra a segurança e equilíbrio psicológico e emocional da própria filha mantendo e aumentando o perigo em que a mesma se encontra.
11 – Perante tais elementos impunha-se ao Tribunal considerar que o requerido pelo progenitor é demonstrativo do seu único propósito de tomar para si, com exclusividade, a guarda da filha à custa de ataques à personalidade moral, reputação, saúde mental e reserva da vida privada da progenitora, a quem vilipendia exponencialmente desde a origem deste processo e com isso, simultaneamente, encobre o perigo da sua actuação para a filha de ambos.
12 – Por consequência, ao decidir pelo deferimento da pretensão do progenitor e ordenar conforme o requerido, como vai alegado acima em 4, injustamente e afastado da silogística judiciária, o Tribunal recorrido julgou com desconsideração pelos princípios da actualidade e da adequação que, sendo orientadores da intervenção, convergem para o superior interesse da criança, infringindo por essa via as regras das alíneas a) e e) da LPCJP.
13 – Ademais, o despacho recorrido infringiu o preceituado do artigo 70º, nº 1 do Cód. Civil e violou as regras do nº 1 dos artigos 25º e 26º, bem como a norma do artigo 16º da Constituição e, por via desta infringiu o artigo 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
14 – O despacho recorrido é ainda inconstitucional por desrespeitar o fundamental direito da progenitora (e da criança) a um processo justo, garantido no artigo 20º, nºs 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto,
Deve o despacho recorrido ser substituído por ACÓRDÃO que na procedência deste recurso reponha todos os supra invocados direitos da progenitora (e da criança).
Assim decidindo farão V.ªs EX.ªs JUSTIÇA.!»
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O Ministério Público juntou contra-alegações nas quais pugnaram, em resumo, pela manutenção do despacho recorrido, tendo apresentado as seguintes conclusões:«… CONCLUSÕES
1- Estando em causa a protecção da criança AA, de cinco anos de idade e, tendo em vista esse fim, urge determinar se os progenitores padecem de doença do foro psicológico/psiquiátrico que demande tratamento e acompanhamento, para aferir da sua competência parental e da possibilidade de regresso da mesma para junto dos seus pais.
2- Admitindo o direito à reserva da vida privada da progenitora restrição constitucional, o que não é sequer afectado no seu núcleo essencial, porquanto o processo de promoção e protecção reveste natureza sigilosa e reservada, nos termos definidos no artigo 88.º da LPCJP, a mesma justifica-se pelo interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança.
3- O n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», em estrito cumprimento do princípio da proporcionalidade.
4- No caso sub judice, ao invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, e conjugado com o disposto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, onde naturalmente se incluem os dados respeitantes à saúde da recorrente, contrapõe-se o direito à proteção efectiva da sua filha, ainda menor de idade, consagrado no artigo 69.º da CRP, cujo n.º 2 estabelece que «as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições».
5- Pelo exposto, impõe-se permitir o acesso aos registos clínicos da progenitora, a qual se recusou a sujeitar-se a exame médico-legal, mas considera que, por seu turno, a sua filha pode, nos presentes autos, ser sujeita a múltiplos exames físicos e médico-legais.
6- Pois, em última instância, está o direito da criança ver devidamente equacionado se é possível, e seguro, o seu retorno ao meio natural de vida, junto dos seus pais, ainda que separados.
7- Mas para tal será necessário averiguar das competências parentais dos progenitores e até da eventual necessidade de recurso a terapia familiar ou outro tipo de tratamentos/acompanhamentos psicológicos e/ou psiquiátricos.
Impõe-se, por isso, julgar improcedente o recurso interposto por BB, mantendo-se a decisão recorrida que ordenou que fosse solicitado ao agrupamento de escolas o envio dos certificados de incapacidade temporária para o trabalho com os respetivos relatórios médicos de suporte e ao Centro de Saúde ..., na pessoa da Dra. FF, o envio dos registos do acompanhamento que terá determinado as baixas médicas da progenitora.».(sic).

O recurso foi admitido nos seguites termos:« Alegações de recurso de 22.09.2022: A progenitora recorre da decisão de 13.09.2022 que determinou a junção aos autos das informações clínicas referentes à progenitora, designadamente que o agrupamento de escolas juntasse aos autos os certificados de incapacidade temporária para o trabalho, com os respetivos relatórios médicos de suporte e que Centro de Saúde ..., juntasse os registos do acompanhamento que terá determinado as baixas médicas da progenitora.
Face à fundamentação vertida nesse despacho inexiste qualquer inconstitucionalidade, porquanto deve prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança em detrimento do direito à reserva privada da progenitora.
Assim, Não se verifica qualquer nulidade, irregularidade ou inconstitucionalidade.
V. Excelências, contudo, apreciando e decidindo, farão, como sempre, a habitual -Justiça. Pelo exposto,
Quanto ao recurso
Por estar em tempo e ter legitimidade decide-se admitir o recurso interposto pela progenitora, o qual é de apelação, a subir de imediato e em separado.
Fixa-se ao mesmo efeito meramente devolutivo, porquanto em causa está o superior interesse da criança, não tendo sido requerido ou invocado qualquer facto para fundamentar o inverso – artigos 123º e 124º da LPCJP e (artigos 644º, n.º 1, al. h), 631º, n.º 1, 637º, n.º 2, 645º, n.º 2 e 647º, n.º 1, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 126º da LPP).
Extraia as alegações, as respostas do Ministério Público, bem como certidão integral dos autos e passe quanto ao mais a pretendida certidão e remeta ao Tribunal Superior. DN.».
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Após os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.

II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo á estrutura das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, resulta que o ponto a analisar consiste em determinar a manutenção ou não do despacho que ordenou que seja solicitado ao Agrupamento de Escolas ... certificados de incapacidade temporária para o trabalho com os respectivos relatórios médicos de suporte e ao “Centro de Saúde ...” na pessoa da Drª FF, os registos do acompanhamento que terá determinado as baixas médicas da progenitora.
O objecto do recurso é determinar se o acesso aos certificados de incapacidade temporária para o trabalho, com os respetivos relatórios médicos e aos registos do acompanhamento clínico que determinou as baixas médicas da progenitora constitui uma intromissão arbitrária na sua vida privada e se existe conflito entre os direitos relativos a segurança, estabilidade, equilíbrio emocional e psicológico e projecto de vida da AA e os direitos da mãe à personalidade moral e física e à reserva da vida privada.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A tramitação processual relevante para a decisão do presente recurso é a constante do relatório acima referido e ainda a decorrente do Processo de Promoção e Proteção da Criança que se enuncia:
- A menor AA nasceu a .../.../2017 e foi aplicada à criança a medida de acolhimento familiar a título cautelar, a executar na família de acolhimento de ..., e tem visitas semanais, alternadas com os progenitores.
- Por requerimento de 22.06.2021 o Ministério Público instaurou o presente processo de promoção e proteção a favor da menor, requerendo seja aberta a fase da instrução, alegando que a criança AA se encontra a residir com a sua progenitora, na Rua ..., ..., ..., que a situação desta criança foi sinalizada à CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens) de ..., em maio de 2021, por pessoa que não se identificou, por a sua progenitora apresentar dificuldades em assegurar os cuidados básicos desta sua filha, privando-a de relações afetivas e de contactos sociais próprios do seu estado de desenvolvimento e que a progenitora desta criança não prestou o consentimento necessário à intervenção da CPCJ ....
- No dia 13 de julho de 2021 foi aplicada a esta menor a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, a executar de forma semanal e alternada, com cada um dos pais, nos termos dos artºs 35º, nº 1, al. a) e 39º da LPCJP, a vigorar até ao dia 7 de setembro de 2021, tendo sido nessa data determinada a prorrogação da medida aplicada, pelo período de seis meses, nos termos dos artigos 35º, nº 1, al. a), 39º e 62º da LPCJP, devendo a mesma ser revista no prazo de seis meses ou logo que se justifique.
- Corre termos o processo de inquérito nº 418/21.5T9FLG, a correr termos no DIAP de Felgueiras, pelos alegados abusos sofridos pela criança pelos tios maternos.
- Face ao grau de conflitualidade existente entre os progenitores, estes estão a ser acompanhados pelo GEAV/FPCEUP
- Antes da data de 05.04.2022 chegou aos autos a notícia de que a mãe agredia a filha.
- A mãe nega quer as alegadas agressões à filha quer o favorecimento dos convívios desta com os denunciados no processo-crime.
- O tribunal determinou que se oficiasse ao INML, solicitando a realização de uma perícia médico-legal de psiquiatria forense aos progenitores, no sentido de serem avaliadas as capacidades parentais de cada um, designadamente para exercerem com sentido de responsabilidade a parentalidade, apurar quaisquer anomalias de que padeçam e que interfiram no exercício dessa parentalidade, os laços que efetivamente os ligam à filha, a capacidade para protegerem e assegurarem o necessário bem-estar à mesma sem o auxílio permanente de terceiros e bem assim para lhes impor regras e limites, devendo ainda pronunciar-se quanto aos factos imputados pelo pai à mãe.
- Entretanto veio a progenitora recusar submeter-se à realização de tal perícia.
- Foi feita uma perícia psicológica á recorrente a 22-10-2021 na qual consta nomeadamente o seguinte: «… Da análise da história de saúde mental, foi possível perceber que esta procurou ajuda junto de um Psiquiatra após o nascimento da filha devido a dificuldades em dormir (ex., “Quando a minha filha estava a dormir muito pouco fiz uma consulta, mas foi para restaurar o sono. Estava a começar a sofrer de insónia”; “Ela nasceu em 2017 e foi por aí, mais ou menos. Não comecei logo a tomar [medicação], passado uns meses é que eu estava mesmo a ter insónias”). Nesta sequência menciona ter sido medicada, referindo melhorias ao nível do sono (ex., “Ele na altura receitou-me uma medicação à base de melatonina e comecei a dormir melhor”). Rejeita, todavia, o diagnóstico de perturbação depressiva, asseverando que apenas padeceu de dificuldades em dormir devido à filha recém-nascida na altura ser uma bebé difícil (ex., “Precisava de descansar porque eu sozinha também não era fácil. (…) Eu nunca tive depressão nenhuma, não sei onde é que ele [ex-companheiro] foi buscar isso. Eu sofri de privação do sono, o que é completamente diferente”). Esta acrescentou ainda ter estado 4 meses de baixa por volta do ano de 2017/2018, mas, segundo a própria, tal não esteve relacionado com o seu problema de sono, mas antes com outras questões que esta preferiu não mencionar (ex., “Eu estive 4 meses de baixa, foi por causa de situações que nada têm a ver com isto e tem a ver com a minha privacidade”)…».

IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

A recorrente invoca que o tribunal ao ordenar que seja solicitado ao Agrupamento de Escolas ... certificados de incapacidade temporária para o trabalho com os respectivos relatórios médicos de suporte e ao “Centro de Saúde ...” na pessoa da Drª FF, os registos do acompanhamento que terá determinado as baixas médicas da progenitora; que infrige o disposto no artigo 4º, alíneas a) e e), da LPCJP, no artigo 70º, nº 1 do Cód. Civil e viola o preceituado no nº1 dos artigos 25º e 26º, bem como a previsão da norma do artigo 16º da Constituição e, por via desta regra viola ainda o artigo 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. E refere que o despacho recorrido ignora os princípios da actualidade e da adequação e invoca que não há colisão entre os direitos relativos à segurança, ao equilíbrio emocional e psicológico e ao projecto de vida da AA e os direitos da sua mãe à personalidade moral, à honra, à reputação e à reserva da sua vida privada.
Refere que os episódios de baixa médica da progenitora ocorreram um durante quatro meses e depois dos nove meses de idade da criança, e outro ocorreu entre os três e os quatro anos de idade da AA e que existem elementos que reconhecem à progenitora capacidade para o exercício das suas responsabilidades parentais, designadamente:
- o relatório pericial de psicologia forense que atesta que esta mãe possui competências parentais e que foi possível constatar a “ausência de sinais” ou sintomas de perturbação emocional.
- Relatório/informação da Segurança Social de 31.01.2022, refere que “A criança ao longo dos convívios teve sempre uma boa interação com a progenitora, tendo demonstrado satisfação por estar com a mãe, sendo afetuosa e a progenitora também tem uma postura adequada, na comunicação e interação com a criança, denotando-se muito afeto ente ambas».
- Relatórios da Associação... de acompanhamento da execução da medida de acolhimento familiar da criança, onde se pode ler que:«..A progenitora tem-se mostrado proactiva na manutenção de uma relação cordial e de proximidade com a família de acolhimento, o que tem permitido desconstruir algumas preocupações ou receios relativamente ao bem estar da AA. ... De uma forma geral, as visitas decorrem de uma forma estruturada …, com a mãe a dinamizar os diferentes momentos, adotando um discurso ponderado, procurando manter rotinas e regras adequadas ao contexto da visita..»
Inversamente invoca que resulta dos autos que o progenitor demonstra pretender tomar para si, com exclusividade, a guarda da filha à custa de ataques à honra, reputação, saúde mental e reserva da vida privada da progenitora.
Refere que o requerido pelo progenitor e deferido pelo Tribunal consubstancia, além do mais, uma intromissão arbitrária na vida privada da progenitora e os correspondentes direitos da progenitora aqui em causa, não colidem com os legítimos direitos e interesses da AA na medida em que estes não são prejudicados por aqueles que até lhe aproveitam.
O objecto do recuso traduz-se em saber se o acesso aos certificados de incapacidade temporária para o trabalho, com os respetivos relatórios médicos e aos registos do acompanhamento clínico que determinaram as baixas médicas da progenitora constituiem uma intromissão arbitrária na sua vida privada e se existe conflito entre os direitos relativos a segurança, estabilidade, equilíbrio emocional e psicológico e projecto de vida da menor.
Nos termos do artigo 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção é um processo de jurisdição voluntária, e nessa medida o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias.
Invoca a recorrente que existem nos autos meios de prova que enuncia que comprovam a sua capacidade para o exercício das responsabilidades parentais, sendo que todavia, esses meios de prova não implicam o indeferimento de outras diligências probatórias atinentes á demonstração dessas invocadas capacidades e nessa medida improcede neste segmento os fundamentos do recuso. Igualmente carecem de relevância para a determinação das diligências o invocado pela recorrente quanto ao descrito nos meios de prova invocados quanto ao progenitor da menor no contexto das visitas, dado não serem objecto do recurso.
Acresce que a questão da localização temporal dos meios de prova solicitados não contendem com o princípio da actualidade, desde logo porque se referem a datas próximas e a condições de saúde que se poderão desenvolver ao longo do tempo.
No caso dos autos teremos de concluir que o invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, (estabelece garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas) e o principio da proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros (que abrangem a saúde), previsto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, contrapõe-se o direito à proteção efectiva da menor consagrado no artigo 69.º da CRP, cujo n.º 2 estabelece que «as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições». Acresce que o princípio da reserva da intimidade da vida provada sempre ficará assegurado dado que este processo reveste natureza sigilosa e reservada, nos termos definidos no artigo 88.º da LPCJP e nessa medida está garantida a confidencialidade dos elementos clínicos a juntar.
Nestes autos está em causa a protecção da menor que se encontra numa família de acolhimento, e naturalmente que a situação de saúde da mãe é essencial para apurar da sua capacidade parental e, nessa medida, entende-se dever deferir a realização da peticionada diligência de prova dado o princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva vertido no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP (o direito de acesso à justiça comporta o direito das partes à produção de prova sobre os factos carecidos de demonstração).
Assim, verifica-se que o direito á reserva da intimidade da vida provada da recorrente não é um direito absoluto e deverá ceder perante o direito do superior interesse da criança (artigo 1 e 4º alínea a) da LPJCP).
Nestes autos foi alegado pela recorrente a existência dessas baixas médicas e havendo alegações atinentes ao recurso a tratamentos psiquiátricos, será relevante ter acesso a esses meios de prova, a fim de se fundamentar as medidas a aplicar.
Neste sentido, vide o Ac da RE, 4375/12.0TBPTM-B.E1, Relator: ALBERTINA PEDROSO, 28-02-2019, disponível na base de dados da DGSI: «Sumário:
I - De acordo com o preceituado no artigo 100.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, o processo de promoção e protecção, é um processo de jurisdição voluntária, significando que «o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admissíveis as provas que o juiz considere necessárias».
II - Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, respaldado por uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.
III - Mas não é assim, bastando para tanto atentar na expressa ressalva que o n.º 3, alíneas b) e c) deste preceito efectua relativamente aos casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, sendo-o designadamente quando a obediência importar a intromissão na vida privada ou familiar ou violação do sigilo profissional.
IV - No caso vertente, ao invocado princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, e conjugado com o disposto no artigo 35.º, n.º 4, da CRP, de proibição de acesso a dados pessoais por parte de terceiros, onde naturalmente se incluem os dados respeitantes à saúde da Apelante, contrapõe-se o direito à proteção efectiva do seu filho, ainda menor de idade, consagrado no artigo 69.º da CRP.
V - Estando em causa a protecção da criança que foi provisoriamente entregue à avó materna por existirem indícios de que a saúde psicológica da mãe coloca em perigo a saúde daquela, obviamente que a situação de saúde da sua progenitora é essencial para apurar da capacidade parental desta e, nessa medida, da possibilidade de o filho lhe ser novamente entregue.
VI - À semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
VII - No confronto dos direitos constitucionalmente protegidos em presença, afigura-se-nos, que no caso concreto, deverá prevalecer o interesse público da realização da justiça e da defesa do superior interesse da criança, porquanto não só o direito à reserva privada da progenitora admite restrição constitucional, como a mesma visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, sendo apta e adequada para o efeito pretendido porque se destina apenas a proteger o superior interesse da criança e nem sequer põe em causa o conteúdo essencial de direito à reserva da vida privada da progenitora, que continuará salvaguardado, tanto mais que estamos perante um processo de promoção e proteção de natureza sigilosa e carácter reservado, nos termos definidos no artigo 88.º, da LPCJP.
VIII - Assim, a documentação clínica em apreço, que se reputa essencial a possibilitar uma completa avaliação médico-legal do estado de saúde da Apelante, determinante para apurar da sua capacidade para o pleno exercício, por si só, das responsabilidades parentais relativamente à criança que este processo visa proteger, deve permanecer nos autos para aquele indicado fim que, em concreto, prevalece sobre o direito à reserva da vida privada da progenitora.».
Assim, ponderando ambos os princípios, entende-se dever prevalecer o princípio do superior interesse da criança e o interesse na realização da justiça.
Pelo exposto, não se mostram, assim, violados os preceitos legais indicados pela recorrente.

Assim, e quanto á fundamentação jurídica, conclui-se que o presente recurso de apelação terá, por conseguinte, de improceder.
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III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo dos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 10.11.2022
Ana Vieira
António Carneiro da Silva
Isabel Ferreira
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.