Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0446954
Nº Convencional: JTRP00038046
Relator: DIAS CABRAL
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
Nº do Documento: RP200505180446954
Data do Acordão: 05/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Para que se verifique o crime do artigo 220 do Código Penal de 1995, em relação à utilização de meio de transporte é necessário que a intenção de não pagar exista antes da utilização do meio de transporte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto.

O Mº. Pº. interpôs recurso do despacho do Srº Juiz do Tribunal Judicial de Matosinhos que, nos termos do artº 311º, nºs 2, al. a) e 3 do CPP, rejeitou a acusação deduzida contra B.........., a quem imputava a prática de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. no artº 220º, nº 1, al. c) do CP, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:
1º O crime de burla para obtenção de serviços, p e p pelo art. 220º, nº 1, do Cód. Penal está numa relação de concurso aparente com a transgressão p e p pelo art. 3º do DL nº 108/78, de 24 de Maio;
2º Isto porque o referido diploma legal se encontra em vigor, dado nunca ter sido expressamente revogado por legislação penal posterior, nem se encontra tacitamente revogado, por ter um campo de aplicação distinto do crime em apreço;
3º Assim, segundo o princípio do concurso de normas lex specialis derrogat lex generalis, deve prevalecer a lei penal;
4º Encontram-se na acusação pública todos os pressupostos - elementos típicos - do crime de burla de serviços (a utilização pelo agente de um meio de transporte; o conhecimento que essa utilização supõe o pagamento de um preço; a intenção de não pagar tal preço; a recusa de solver a divida), pelo que o Mmo Juiz a quo deveria havê-la recebido e designado data para julgamento;
5º Ao rejeitar a acusação pública, por a considerar manifestamente infundada, o douto despacho recorrido violou o disposto nos arts. 311º, nº 2, al. a) e 312º, ambos do CPP e o disposto no artº 220º, nº 1, c) do Cód. Penal.
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Sem resposta subiram os autos a esta Relação onde o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido do não provimento do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Em face das conclusões da motivação, que delimitam o âmbito do recurso, a única questão a decidir é a de saber se os factos constantes da acusação integram o crime de burla p. e p. no artº. 220º, nº 1, al. c) do CP.
A acusação é a seguinte:
«O Ministério Público acusa, para julgamento em processo comum e em audiência de Tribunal Singular,
B.........., solteiro, nascido em 24 de Junho de 1976, na freguesia e concelho de ....., filho de C.......... e de D.........., titular do B.I. nº 10...., residente na Rua ....., ..., ....., Matosinhos,
porquanto,

No dia 28 de Julho de 2003, cerca das 16H35, o arguido fazia-se transportar no autocarro da "S.T.C.P., SA", com o nº 3028 da carreira 76, turno 6º, com sistema de obliteração de Agente único, que efectuava o trajecto entre Cordoaria e Leça da Palmeira.

Na Rua ....., em Leça da Palmeira, foi abordado pela equipa de fiscalização da "S.T.C.P.", tendo esta constatado que o arguido não possuía título de transporte válido, uma vez que apenas possuía um BBM tipo T1 marcado em zona 2 e a zona onde viajava é a zona 7.

Foi, por isso, emitido e entregue ao arguido aviso de multa, no montante de 24€, acrescido do montante de 1 €, correspondente a tarifa de Agente único.

O arguido foi advertido de que o pagamento da referida importância deveria ser efectuado no prazo de dez dias.

Não fez, porém, tal pagamento, quer dentro do aludido prazo, quer posteriormente.

Agiu livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que não podia viajar, como viajava, naquele autocarro sem possuir título de transporte válido.
Cometeu, pelo exposto, em autoria material, um crime de burla para obtenção de serviços p. e p. pelo artº 220º, nº 1, al. c), do Cód. Penal.
………».

O Srº Juiz rejeitou a acusação por ter considerado que “Os factos, tal qual descritos na acusação, não constituem crime”.
A jurisprudência sobre a questão em apreço está muito dividida.
O STJ, em Ac. de 21/10/87, BMJ 370, 312, considera que «A conduta do passageiro que se faz transportar de comboio sem estar munido do respectivo título de transporte válido pode integrar a previsão das normas contravencionais dos artºs. 39º e 43º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro aprovado pelo Dec.-Lei nº 39780, em caso de negligência, ou da norma criminal da al. c) do nº 1 do artº 316º (actual 220º) do CP, em caso de dolo».
Por sua vez o Ac. da Relação de Évora de 4/4/2000, in CJ XXV, t II, 283, considera que «o passageiro que utilize o transporte ferroviário sem possuir título de transporte válido, comete a contravenção prevista e punida pelos artigos 39º e 43º do Regulamento.... e não o crime de burla», mantendo-se em vigor o Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro.
Já o Ac. dessa mesma Relação, de 11/4/00, a fls. 287 da mesma CJ, entende que «A utilização de transporte público, sem título válido, sabendo e tendo consciência de que deve pagar um preço por essa utilização recusando-se, no entanto, a pagá-lo, constitui o crime de burla, previsto e punido na alínea c) do nº 1 do artigo 220º do CP).
Neste último Aresto considerou-se que o elemento integrador do crime de burla p. e p. no artº 220º do CP, “se negar a solver a dívida contraída”, era o não pagamento do preço do bilhete, sem qualquer acréscimo, nomeadamente uma sobretaxa por não se ser possuidor de bilhete.
Como já decidimos no ac. proferido no processo nº5630/03 parece-nos ser de acolher esta última solução.
O crime de burla para a obtenção de alimentos, bebidas ou serviços está previsto no citado artº 220º, onde estão previstas várias situações que o integram. Não se compreendendo que, por ex., para o caso de não pagamento de uma refeição a dívida fosse apenas o preço do almoço e para a viagem de transporte público já fosse o preço de bilhete acrescido de acréscimos por falta desse bilhete.
Entendemos que o DL nº 108/78, de 24/78, se encontra em vigor, pelo facto de não ter sido expressamente revogado pelo artº 6º, nº 2 do DL nº 400/82, de 23/9, o nº 1 do mesmo preceito excepcionar as normas relativas às contravenções e pelo facto de o âmbito de aplicação daquele DL e do artº 220º, nº 1, al. c) do CP, não ser coincidente.
Como refere Maia Gonçalves, in CP /16ª ed., pág. 751, “se a factualidade concreta não for subsumível a este artigo do CP, v.g. porque não há intenção mas só negligência ou porque não há recusa de pagamento da dívida contraída, aplicar-se-ão os aludidos dispositivos das leis extravagantes que, nos termos e com o entendimento exposto, não terão sido revogados pelo CP”.
Como refere o Exmº Procurador Geral Adjunto, para que se verifique a consumação do crime torna-se necessário que se verifiquem os seguintes requisitos: intenção de não pagar; utilização de meio de transporte; saber que tal pressupõe o pagamento de um preço; recusa de solver a dívida contraída. Para a existência da contravenção basta a existência do 2º e 3º requisitos.
De igual modo não pode falar-se em ilícito contra-ordenacional, como se fez no despacho recorrido, a propósito das infracções previstas no citado DL., pois, conforme o disposto no artº 2º do DL nº 433/82, de 27/10, “só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”, o que não acontece.
Na acusação deduzida não constam factos que integrem os requisitos acima referidos de intenção de não pagar e solver a dívida contraída (preço do bilhete sem acréscimo, a não ser o que resulta da sua aquisição dentro do veículo).
A intenção de não pagar, conforme se escreveu no Ac. da RE, de 11/4/00, acima citado, «…essa intenção deverá ocorrer antes da autuação, isto é, imediatamente antes da viagem ou no decorrer desta, e, assim, da acusação deveria constar que a arguida utilizou o transporte com o antecedente propósito de não pagar… a assim não se entender, estaríamos a confundir essa prévia intenção de não pagar com o dito quarto requisito, ou seja, “o negar-se a solver a dívida contraída”».
Faltando dois dos elementos constitutivos do crime de burla, p. e p. no artº 220º, nº 1, al. c) do CP, é evidente que outra solução não há que não seja a rejeição da acusação.
Da acusação constam factos integradores da contravenção p. e p. nos artºs 2º e 3º, nº 1 do citado DL nº 108/78, não tendo prescrito o procedimento criminal e tendo o transgressor sido notificado para o pagamento voluntário da multa.
Assim sendo, o processo deverá ser distribuído como processo sumaríssimo e proceder-se a julgamento em conformidade com o disposto no artº 11º do DL nº 17/91, de 10/1.

DECISÃO
Em conformidade, decidem os juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, manter a decisão recorrida, devendo, no entanto, ser ordenada a distribuição como processo sumaríssimo.

Sem tributação.

Porto, 18 de Maio de 2005.
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro