Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1654/09.8TBAMT-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO
MÚTUO COM HIPOTECA
PROVA
CONFISSÃO
Nº do Documento: RP201709271654/09.8TBAMT-E.P1
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 659, FLS.349-363)
Área Temática: .
Sumário: I - Uma escritura pública de mútuo com hipoteca não produz, para além do círculo constituído pelo declarante e pelo declaratário que nela outorgaram (ou respectivos representantes), prova plena da entrega da quantia alegadamente mutuada, enquanto elemento constitutivo do contrato de mútuo (contrato real «quoad constitutionem»).
II - A confissão extrajudicial escrita feita perante terceiro – que não interveio na escritura pública de mútuo com hipoteca – não produz, também, face ao preceituado nos arts. 371º, n.º 1 e 358º, n.ºs 2 e 4 do Código Civil, prova plena da entrega da quantia alegadamente mutuada, antes valendo como meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal.
III - Na verificação de créditos em processo de insolvência, desde que o crédito reclamado se mostre impugnado (por outro credor ou pelo Administrador da Insolvência), recai sobre o credor reclamante o ónus de prova da existência do crédito.
IV - Destarte, impugnado o crédito, não tendo sido produzida prova plena da sua existência, nem produzido qualquer outro meio de prova complementar por parte do credor reclamante, na dúvida, a decisão sobre a sua realidade deve ser proferida contra o onerado com o ónus de prova, ou seja o credor reclamante (art. 346º do Cód. Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1654/09.8T8AMT-E.P1 - Apelação
Origem: Porto Este – Amarante – Juízo de Comércio - J1.
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto Des. Oliveira Abreu
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Sumário:
I. Uma escritura pública de mútuo com hipoteca não produz, para além do círculo constituído pelo declarante e pelo declaratário que nela outorgaram (ou respectivos representantes), prova plena da entrega da quantia alegadamente mutuada, enquanto elemento constitutivo do contrato de mútuo (contrato real «quoad constitutionem»).
II. A confissão extrajudicial escrita feita perante terceiro – que não interveio na escritura pública de mútuo com hipoteca – não produz, também, face ao preceituado nos arts. 371º, n.º 1 e 358º, n.ºs 2 e 4 do Código Civil, prova plena da entrega da quantia alegadamente mutuada, antes valendo como meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal.
III. Na verificação de créditos em processo de insolvência, desde que o crédito reclamado se mostre impugnado (por outro credor ou pelo Administrador da Insolvência), recai sobre o credor reclamante o ónus de prova da existência do crédito.
IV. Destarte, impugnado o crédito, não tendo sido produzida prova plena da sua existência, nem produzido qualquer outro meio de prova complementar por parte do credor reclamante, na dúvida, a decisão sobre a sua realidade deve ser proferida contra o onerado com o ónus de prova, ou seja o credor reclamante (art. 346º do Cód. Civil).
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
1. No processo de insolvência de B… (cuja insolvência foi decretada por sentença proferida a 16.11.2010), foi reclamado por C… e D…, além do mais, um crédito no montante de €202.424,66 (capital e juros), com origem em contrato de mútuo celebrado com a insolvente e garantido por hipoteca, ambos celebrados mediante escritura pública de mútuo com hipoteca datada de 25.01.2007 e conforme documento a fls. 154-158 dos autos.

2. O aludido crédito não foi reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência, que o fez constar da lista prevista no art. 129º, n.º 3 do CIRE, invocando, ainda, das razões ou fundamentos do seu não reconhecimento.

3. Nesta sequência, vieram os aludidos reclamantes C… e D… impugnar a lista de credores reconhecidos, pugnando, a final, no sentido de o seu crédito (acima referido) ser reconhecido nos termos peticionados com todas as legais consequências.

4. O Sr. Administrador respondeu à impugnação, mantendo a sua posição inicial no sentido do não reconhecimento do citado crédito.
5. Frustrada tentativa de conciliação (fls. 109-110), e oferecido parecer pelo Sr. Administrador – mantendo a sua posição inicial -, foi proferido despacho a dispensar a elaboração de base instrutória, sendo os credores impugnantes notificados para, querendo, renovarem os meios de prova oferecidos, o que vieram a fazer com consta a fls. 217-223 dos autos.

6. Após vicissitudes várias, veio a ter lugar audiência de julgamento, apenas com alegações orais dos Ils. Mandatários, em face da ausência de qualquer dos depoentes e das testemunhas antes arroladas.

7. Veio a ser proferida sentença que, a final, no que releva à presente apelação, concluiu nos seguintes termos:
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(…)
b) Julgar procedente a impugnação apresentada pelos Impugnantes C… e D… quanto ao crédito reclamado no montante de €175.000,00 e, em consequência, julgar tal crédito aprovado e, em consequência também, reconhecido e verificado, devendo ser incluído na Lista de Créditos Reconhecidos;
(…)
e) Graduar tais créditos, para serem pagos da seguinte forma:
– quanto ao produto da venda do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 1248/19890201 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 7085 (verba n.º1 do auto de apreensão), deverá pagar-se:
1. (…)
2. o crédito cabido aos credores hipotecários C… e D… no valor de €175.000,00, montante garantido pela hipoteca voluntária;»
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8. Inconformado com a sentença proferida, veio o Sr. Administrador interpor recurso de apelação, em cujo âmbito ofereceu as seguintes
CONCLUSÕES
1. Não se encontra minimamente sustentado, nem no referido contrato de mútuo nem em qualquer outro documento, a realização de qualquer transferência bancária que justifique a real existência de tal contrato de mútuo.
2. Dispõe o artigo 1142.º do CC que “ Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”, daqui resultando que o contrato de mútuo só se completa com a entrega da coisa. Assim, são dois os elementos que caracterizam o contrato de mútuo: i) a prévia entrega, temporária e por uma das partes à outra, de uma quantia monetária ou outra coisa fungível; ii) a posterior prestação correspondente da contraparte em devolver outro tanto do mesmo género e qualidade.

3. Refere o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 25/11/2013, no âmbito do processo n.º 4316/11.2TBVFR-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, que “ Sendo o contrato de mútuo, um contrato real, determinando, neste sentido, que só se completa pela entrega da coisa, temos de admitir que na falta de entrega desta, ocorrerá, necessariamente, a nulidade do contrato de mútuo por falta de objecto nos termos do art. 280º, do Código Civil, pois, apesar do que foi escrito na respectiva escritura, não ocorreu, nem na data da sua celebração, nem antes nem depois, a entrega de qualquer quantia pecuniária, devendo reconhecer-se, outrossim, que por tal motivo, ocorrerá a extinção da prestada garantia hipotecária.”.
4. Não estando demonstrada, nos presentes autos, a entrega, por parte dos Reclamantes – saliente-se que a Credora Reclamante D… é irmã da insolvente e que os Recorridos não reclamaram o seu crédito no processo onde foi declarada a insolvência do comproprietário do imóvel -, de quaisquer verbas à Insolvente, na sequência da celebração do contrato de mútuo, não se pode inferir que este se encontra completo, não se encontra perfeito, não obstante este consubstanciar um documento autêntico, com força probatória plena, nos termos do disposto no artigo 371.º do Código Civil
5. No entanto, e como dispõe o n.º 1 desse mesmo preceito, tal documento autêntico apenas faz prova plena dos factos atestados pela entidade documentadora, com base nas suas percepções, e já não o conteúdo desses mesmos factos.
6. Como refere o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 7/04/2016, no âmbito do processo n.º 11063/12.6TBVNG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt “A escritura pública de mútuo com hipoteca constitui um documento autêntico cujo valor probatório é fixado pelo artigo. 371º do C.C, fazendo prova plena de que foi declarado pelas partes que os exequentes fizeram um empréstimo aos executados no valor de dez milhões de escudos, pelo prazo de três anos, de que se confessam solidariamente devedores. Mas já não faz força probatória plena a veracidade da aludida declaração.” Ou seja, “O documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções, mas não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20/01/2015, processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt seguindo o mesmo entendimento o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26/06/2014, no âmbito do processo n.º 1040/12.2TBLSD-C.P1, disponível em www.dgsi.pt.
7. A força probatória a que alude o artigo 371.º do CPC apenas cobre (i) os factos praticados pela entidade documentadora, ou seja, a parte em que se refere, na escritura, que o notário a leu e explicou e (ii) os factos atestados pela entidade documentadora com base nas suas percepções, isto é, a parte em que, na escritura, se refere que uma parte declarou, perante o notário, conceder o empréstimo nos precisos termos que dela constam, e a outra parte declara aceitar tal empréstimo.
8. No entanto, no que concerne aos factos referidos em (ii), a força probatória só vai até onde se alcancem as percepções do notário, não podendo ficar plenamente provado que o montante acordado foi, efectivamente, entregue por uma parte à outra, o que significa que “as declarações negociais – de empréstimo, de aceitação, de entrega e de recebimento do capital – constantes da escritura, na sua sinceridade e veracidade, não ficam, com a mera apresentação das escrituras, “automaticamente” plenamente provadas.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/03/2015, processo n.º 78/13.7TBNLS-D.C1, disponível em www.dgsi.pt.
9. Até porque o montante referido e a respectiva entrega do mesmo apenas estarão cobertos pela força probatória plena do documento autêntico se o próprio notário tiver atestado esse facto através da sua percepção directa ou se a entrega tiver sido feita na sua presença. Como tal, entende o Recorrente que não têm os Credores Reclamantes qualquer crédito que mereça ser reconhecido.
10. Acresce que a verba n.º 1 constante do auto de apreensão realizado pelo aqui Recorrente, verba sobre a qual foi reconhecida garantia hipotecária aos Credores Reclamantes, não consubstancia um imóvel, no seu todo, mas antes a metade indivisa do imóvel ali descrito.
11. Ora, tendo sido apreendida somente a metade indivisa de tal imóvel, não poderão os créditos aqui em causa – que, repita-se, o Recorrente entende não serem reconhecidos – gozar de garantia hipotecária, pois que o imóvel, em si, não foi apreendido para a Massa Insolvente.
12. Aliás, é vasta a jurisprudência que assim entende, destacando-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/02/2012, proferido no âmbito do processo n.º 88/11.9TBMGL-E.C1, disponível em www.dgsi.pt referindo que “A credora hipotecária titular de hipoteca constituída sobre imóvel integrante da meação conjugal do insolvente, não goza da preferência conferida pela hipoteca no pagamento pelo produto da venda da meação conjugal do insolvente.”.
13. No mesmo sentido o Acórdão do mesmo Tribunal, de 07/02/2017, no âmbito do processo n.º 1230/14.3T8ACB-B.C1, disponível em www.dgsi.pt “Embora certos credores estejam garantidos por hipoteca sobre imóveis determinados integrantes daquele património comum, tal garantia não incide sobre o apreendido direito à meação, com a consequência de os créditos desses credores haverem, neste plano, de ser tidos como comuns e como tal objeto de graduação.”.
14. Sempre será forçoso concluir que, reconhecendo-se o crédito reclamado pelos Credores Reclamantes C… e esposa D…, o que se concebe sem conceder, terá este que ser graduado como crédito comum, e nunca como crédito garantido por hipoteca. Isto porque sempre que, no âmbito de um processo de insolvência seja apreendida a meação do insolvente no património comum do casal, o crédito reclamado garantido sempre será comum, pois o que está em causa, ou seja, o que está efectivamente apreendido, não é o bem hipotecado, mas antes o direito à meação.
15. Pelo que, não obstante o aqui Recorrente entender, como foi já amplamente referido, que não assiste aos Credores Reclamantes qualquer crédito sobre a Insolvente, a ser reconhecida a existência de tal crédito, terá este que ser, sempre, comum, e nunca garantido por hipoteca.
16. Ademais, considerando o dado como provado quanto ao apreendido nestes autos – ou seja, a metade indivisa já referida, reconhecida expressamente na sentença sob o recurso, jamais poderia ser decidido o reconhecimento do crédito em questão e com o privilégio que lhe foi conferido - hipoteca – sobre a totalidade do imóvel.
17. Por razões obviamente apodíticas, pois que a reclamação feita nos autos foi, tão só e apenas, relativamente à metade indivisa.
18. Nesta exacta medida – e pelos fundamentos invocados neste recurso – não pode manter-se a Sentença recorrida, que deve ser revogada, decidindo pela não prova e improcedência da reclamação de créditos em questão, com todas as legais consequências.
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Foram cumpridos os vistos legais.
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II- FUNDAMENTOS.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2, 1ª parte e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
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No seguimento desta orientação, em face das conclusões do apelante, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
a) - saber se os credores impugnantes fizeram prova do alegado mútuo – garantido por hipoteca - por si celebrado com a insolvente, o que importa a aprovação/reconhecimento do mesmo ou, na perspectiva do recorrente, se não lograram os mesmos fazer essa prova, que lhes incumbia, devendo, pois, o dito crédito ter-se, ao invés do decidido, como não reconhecido e não aprovado;
b) - a título subsidiário, saber se, admitindo-se o reconhecimento do crédito reclamado -, o mesmo não beneficia de garantia hipotecária, devendo, pois, ser graduado como crédito comum.
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II.I. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos provados são os seguintes:
1. Em 28/08/2009, o “Banco E…, S.A.” veio requerer a insolvência de F… e de C…;
2. Por sentença proferida nos autos principais em 16/12/2010, foi decretada a insolvência de B…, fixando-se em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.
3. No apenso de apreensão de bens mostram-se apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens:
a. ½ indivisa do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 1248/19890201 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 7085;
b. ½ indivisa do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o n.º 540/20000525 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 519;
c. ½ indivisa da fração autónoma designada pela letra “U”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1857/19970220-U e inscrita na matriz sob o artigo 5808;
d. ½ indivisa do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 918/19980605 e inscrito na matriz sob o artigo 2177;
e. ½ indivisa da fracção autónoma designada pelas letras “BR”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o n.º 201/19880422-BR e inscrito na matriz sob o artigo 1114-BR.
4. Com data de 5/04/2007, entre F… e mulher B…, como primeiros outorgantes, e G…, como segunda outorgante, foi assinado um escrito particular denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, mediante o qual os primeiros declararam prometer vender à segunda, que declarou prometer comprar, o prédio urbano situado na Rua …, n.ºs …, … e …, freguesia de …, concelho de Matosinhos, inscrito na matriz sob o artigo 5808 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 1857/19970220, pelo preço de €150.000,00, que a segundo se comprometeu a pagar nos seguintes termos: a quantia de €20.000,00 com a assinatura do referido acordo escrito; a quantia de €10.000,00 no dia 9 de Junho de 2007; a quantia de €15.000,00, no dia 25 de Julho de 2007; a quantia de €5.000,00, no dia 30 de Agosto de 2007; a quantia de €15.000,00, no dia 10 de Outubro de 2007; a quantia de €7.500,00, no dia 7 de Novembro de 2007; a quantia de €2.500,00, no dia 2 de Dezembro de 2007; a quantia de €5.000,00, no dia 10 de Fevereiro de 2008; a quantia de € 10.000,00, no dia 1 de Março de 2008; a quantia de €5.000,00, no dia 2 de Março de 2008; a quantia de €15.000,00, no dia 9 de Junho de 2008; o restante pagamento, no montante de €40.000,00 seria entregue em numerário na data da celebração da escritura pública, que deverá ser realizada até ao final do mês de Janeiro de 2009, devendo, para o efeito, os primeiros outorgantes avisar a segunda outorgante, mediante carta registada com aviso de recepção, a data, hora e local escolhidos para a sua realização, com pelo menos 8 dias de antecedência. O prédio urbano aqui prometido vender é entregue pelos primeiros outorgantes à segunda outorgante, com a assinatura do contrato - promessa, a qual fica, desde essa data, investida na posse do prédio urbano prometido vender e fica desde já titular de todos os direitos inerentes ao prédio;
5. Por escritura pública denominada “Mútuo com Hipoteca”, outorgada no dia 25/01/2007, no Cartório Notarial sito na Avenida …, número …, segundo andar, na freguesia e concelho de Penafiel, perante a Notária H…, F… e B…, na qualidade de primeiros outorgantes e C… e D…, na qualidade de segundos outorgantes, declararam que “pela presente escritura, os primeiros outorgantes constituem-se e confessam-se solidariamente devedores aos segundos outorgantes da importância de cento e setenta e cinco mil euros, que já receberam na totalidade, em moeda corrente, por empréstimo. (…) Que este contrato é realizado pelo prazo de onze meses, ficando os primeiros outorgantes com a obrigação de proceder ao pagamento da quantia mutuada em onze prestações mensais e sucessivas, sendo as dez primeiras no valor de quinze mil novecentos e nove euros e nove cêntimos e a última no valor de quinze mil novecentos e nove euros e dez cêntimos. A primeira prestação vence-se no próximo dia quinze de Fevereiro de dois mil e sete e as restantes prestações vencem-se no dia quinze dos meses subsequentes, até pagamento integral da quantia mutuada. Para garantia da quantia mutuada e do bom e efectivo pagamento, os primeiros outorgantes dão de hipoteca aos segundos outorgantes o seguinte bem imóvel: Prédio urbano composto por habitação, constituída por três pisos, sito em …, freguesia de …, concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o número mil duzentos e quarenta e oito, da mencionada freguesia de …, aí registada a aquisição a favor dos primeiros outorgantes pela inscrição G-dois, e inscrito na matriz sob o artigo 7.085.” [sublinhados nossos]
6. Pela ap. n.º 21 de 2/2/2007, foi registada a favor de C… e D… hipoteca voluntária sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 1248/19890201, até ao capital garantido de €175.000,00;
7. Com data de 5/03/2006, entre F… e mulher B…, como primeiros outorgantes, e I…, como segunda outorgante, foi assinado um escrito particular denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, mediante o qual os primeiros declararam prometer vender à segunda, que declarou prometer comprar, o prédio urbano lote 16, situado em … ou Igreja, sito na freguesia de …, concelho de Amarante, inscrito na matriz sob o artigo 322 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o n.º 540/20000525, pelo preço de €200.000,00, que a segundo se comprometeu a pagar nos seguintes termos: a quantia de €30.000,00 com a assinatura do referido acordo escrito; a quantia de €25.000,00 no dia 10 de Maio de 2006; a quantia de €20.000,00, no dia 25 de Junho de 2006; a quantia de €15.000,00, no dia 30 de Setembro de 2006; a quantia de €10.000,00, no dia 15 de Outubro de 2006; a quantia de €5.000,00, no dia 10 de Dezembro de 2006; a quantia de €15.000,00, no dia 5 de Janeiro de 2007; a quantia de €10.000,00, no dia 20 de Fevereiro de 2007; o restante pagamento, no montante de €70.000,00 será entregue em numerário na data da celebração da escritura pública, que deverá ser realizada até ao final do mês de Dezembro de 2007, devendo, para o efeito, os primeiros outorgantes avisar a segunda outorgante, mediante carta registada com aviso de recepção, a data, hora e local escolhidos para a sua realização, com pelo menos 8 dias de antecedência. O prédio urbano aqui prometido vender é entregue pelos primeiros outorgantes à segunda outorgante, com a assinatura do contrato-promessa, a qual fica, desde essa data, investida na posse do prédio urbano prometido vender e fica desde já titular de todos os direitos inerentes ao prédio;
8. Por sentença proferida no apenso A foi reconhecido o crédito de J…, no montante de €69.393,84, proveniente de um empréstimo titulado por escritura pública, garantido por hipoteca registada sobre a fração “U”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1857-U e inscrita na matriz sob o artigo 5808 (tendo-se mencionado, por mero lapso, que o mesmo tinha natureza privilegiada), a graduar no lugar que lhe competir.
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III - O DIREITO:
Mútuo – Ónus da Prova – Documento Autêntico – Prova Plena – Confissão.
Como resulta das conclusões do recorrente, a questão principal refere-se à prova da entrega da quantia mutuada pelos credores impugnantes C… e D… à insolvente B… e, logicamente, à prova do crédito invocado por estes últimos e que decorrerá do alegado contrato de mútuo corporizado na escritura pública de mútuo e hipoteca datada de 25.01.2007 e constante de fls. 32 a 35 dos autos, prova esta que, segundo a sentença recorrida, se mostra efectuada à luz da confissão emitida pelos mutuários [e, entretanto, declarados insolventes, F… e B…] perante os mutuantes [ora credores impugnantes], confissão extra judicial esta que se mostra dotada de força probatória plena pois que consta da citada escritura pública (art. 358º, n.º 2 do Cód. Civil).

Com efeito, a este propósito, louvando-se em douto Acórdão da Relação de Coimbra de 26.01.2016 [1], escreveu-se na sentença recorrida o seguinte: «Já no que tange ao contrato de mútuo com hipoteca, tal como foi dito, ponderamos o teor do documento de fls. 154 a 158 que, por se tratar de um documento autêntico (escritura pública), “faz prova plena das declarações emitidas pelas partes e nele atestadas, bem como dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, prova esta que se impõe quer aos outorgantes quer a terceiros.” Assim, e ainda seguindo de perto o citado aresto, “ o terceiro que pretenda ver destruídos os efeitos do negócio e da declaração confessória nele exarado terá, pelo menos, de alegar e provar que os factos por si impugnados, e que se mostram plenamente provados pelo documento autêntico ou pela confissão nele exarada, não são verdadeiros.
A declaração confessória proferida pelo insolvente e constante de tal documento, de que, na sequência do empréstimo, se considera devedor da quantia mutuada, é oponível aos demais credores do insolvente, dispensando o credor reclamante de apresentar qualquer prova complementar da entrega das quantias mutuadas, pelo menos enquanto não for posta em causa a eficácia de tal confissão.
Encontrando-se o credor reclamante munido de um documento autêntico a formalizar o mútuo com hipoteca, o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu crédito fica satisfeito com a simples apresentação de tal documento, sendo ao credor impugnante que incumbe a alegação e prova de que não houve entrega efetiva da quantia mutuada.” [sublinhados nossos]
Decidindo.
Segundo o art. 1142º do Cód. Civil, o mútuo «é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade.»
É pacífico o entendimento doutrinal de que o contrato de mútuo constitui um contrato real quoad constitutionem [por contraposição aos contratos reais quoad effectum], pois que o mesmo apenas se mostra completo ou perfeito pela entrega da coisa, ou seja, o efeito real do contrato, ao contrário do que sucede por via de regra (art. 408º, n.º 1 do Cód. Civil), apenas ocorre com a entrega da coisa, independentemente do acordo das partes.
Neste sentido, para que o contrato de mútuo se tenha por validamente constituído não é suficiente a prova do mero acordo das partes (o consenso contratual), sendo mister, ainda, a prova da tradição ou entrega da coisa ou quantias mutuadas. [2]
Como assim, a primeira conclusão é a de que reveste a natureza de elemento constitutivo do contrato de mútuo não só ou apenas o consenso ou acordo das partes, mas, ainda, a entrega da coisa ou da quantia mutuada, pois que sem esta o contrato de mútuo não se mostra integralmente concluído.
Por outro lado, se assim é, em consonância com a regra geral prevista no art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil, incumbirá ao credor (mutuante) a prova da entrega da coisa ou das quantias mutuadas ao mutuário (devedor), enquanto elemento constitutivo da norma que o mesmo tem de invocar (art. 1142º do Cód. Civil) em seu proveito para efeitos de demonstração e procedência do seu arrogado direito de crédito, pois que, como se viu, sem entrega das quantias mutuadas não se pode ter, ao menos de forma perfeita, como concluído o contrato de mútuo.

Aliás, diga-se que, ao contrário do que parece sustentar a apelante nas suas alegações e conclusões (vide conclusões 1ª a 4ª do recurso), a nosso ver, a sentença recorrida não parte de pressuposto diverso do que antes se considerou, pois que o que ali se consignou foi precisamente que, incumbindo o aludido ónus de prova do mútuo (e da entrega da quantia mutuada, como seu elemento constitutivo) aos credores impugnantes (isto é, aos mutuantes, C… e D…), estes teriam, no entendimento perfilhado na mesma sentença recorrida, dado cumprimento cabal a esse ónus de prova por via da junção do citado documento autêntico (escritura pública de mútuo com hipoteca) e da confissão extrajudicial que na mesma se mostra inserida por parte dos devedores (mutuários), nele incluindo a ora insolvente B…, discordando o apelante, não da repartição, nos termos sobreditos, do ónus de prova, mas da consideração/conclusão firmada na sentença recorrida quanto ao cumprimento desse ónus de prova por parte dos credores impugnantes e mutuantes.
O que vale, pois por dizer, que a questão não se nos coloca, estritamente, no âmbito do ónus de prova ou da sua repartição, que cremos, com o sentido exposto, ser indiscutido, mas antes ao nível da prova produzida pelos credores impugnantes e sua suficiência (ou não) quanto à efectiva celebração do mútuo e entrega da quantia mutuada, como seu elemento constitutivo essencial, que suporta a reclamação, verificação e graduação do seu crédito (garantido por hipoteca) ou, ainda, na perspectiva inversa, ao nível da prova que será suposto ser efectuada pelo terceiro (credor ou Administrador da Insolvência) para colocar em crise, de forma fundada e suficiente, a existência e consequente verificação/aprovação do crédito invocado pelo credor impugnante.

Dito isto, em termos de enquadramento inicial da questão suscitada na presente apelação, releva que, no caso concreto dos autos, como se evidencia dos autos, não foi produzida qualquer prova, para além da prova documental junta aos autos, e, em particular, no que contende com o crédito em causa, a escritura pública a fls. 154-158 e a certidão do registo predial atinente ao prédio a que se refere a verba n.º 1 do auto de apreensão e constante de fls. 29-31 dos autos.
Como assim, a questão terá de ser decidida com recurso à prova documental produzida, pois que é a única prova disponível.
Como se sabe, no nosso sistema processual, com excepção das situações da chamada prova legal, isto é, das situações em que para a prova de um determinado facto a lei exige um específico meio de prova ou impede que o mesmo possa ser provado mediante certos meios de prova – que o legislador presume serem mais falíveis e inseguros –, vigora o sistema da prova livre.
Neste último sistema, o tribunal aprecia livremente os meios de prova, atribuindo, pois, a cada um o valor probatório que julgue conforme a uma apreciação crítica do mesmo (à luz das regras da experiência, da lógica e da ciência), não estando esse valor probatório prévia e legalmente fixado; Como refere Miguel Teixeira de Sousa, «o valor a conceder à prova realizada através dos meios de prova não está legalmente prefixado, antes depende da convicção que o julgador formar sobre a actividade probatória.» [3]

A maior parte das excepções a este sistema da prova livre ou livre convicção do juiz, situa-se precisamente em sede de prova documental. Entendeu o legislador que a incorporação de declarações num documento escrito – que supõe alguma preparação prévia e reflexão dos que nele outorgam - permite com razoável segurança deduzir do documento determinadas ilações quanto à ocorrência dos factos revelados nessas declarações e, por isso, estabeleceu regras legais sobre aquilo que se pode ter como provado pelos documentos, tendo sempre presente que mesmo a prova plena pode ser afastada mediante a prova de que o facto não é verdadeiro (artigo 347º do Cód. Civil).
No tocante aos documentos autênticos, como é o caso da escritura notarial de mútuo com hipoteca, como é consabido, o documento só faz prova plena dos factos que nele são referidos como tendo sido praticados ou percebidos pela autoridade ou oficial público respectivo (art. 371º, n.º 1 do Cód. Civil).
Por conseguinte, uma escritura pública faz prova plena (apenas) de que na data nela designada compareceram perante o notário as pessoas indicadas e aí emitiram as declarações de vontade reduzidas a escrito na própria escritura, na medida em que tais factos são directamente percepcionados pelo respectivo oficial público, o notário. Ao invés, o dito documento não constitui prova plena de que tais declarações correspondem à verdade, de que os factos contidos nas declarações são verdadeiros. [4]
Dito de outro modo, no que ora importa, se a escritura pública de mútuo com hipoteca a fls. 154-158 faz prova plena de que no dia 25.01.2007, pelos insolventes foi dito «que, pela presente escritura, os primeiros outorgantes constituem-se e confessam-se solidariamente devedores aos segundos outorgantes [os mutuantes e credores impugnantes C… e D…] da importância de CENTO E SETENTA ML EUROS, que já receberam na totalidade, em moeda corrente, por empréstimo» ou, ainda, que pelos mesmos foi dito que «para garantia da quantia mutuada e do bom e efectivo pagamento, os primeiros outorgantes [mutuários e ora insolventes] dão de hipoteca aos segundos outorgantes o seguinte imóvel …», a mesma escritura já não faz prova plena de que tais declarações sejam verdadeiras, ou seja não faz prova plena da celebração de um contrato de empréstimo entre os mesmos e da consequente entrega pelos mutuantes aos mutuários da citada quantia de €175.000,00.
De facto, à luz da regra prevista no citado art. 371º do Cód. Civil, cremos ser segura a afirmação de que a escritura em apreço não faz prova plena de que os credores impugnantes emprestaram ou entregaram aos mutuários (insolventes) a quantia de €175.000,00, na estrita medida em que tal facto (entrega do montante em causa), segundo o teor da escritura junta aos autos, não foi praticado ou constatado pelo próprio notário que nela interveio.
Todavia, não obstante esta indiscutida regra quanto à prova plena que emerge de documento autêntico, não pode deixar de ser levado em consideração o regime da confissão extrajudicial que se mostre reduzida a documento.
Com efeito, podendo o documento autêntico conter declarações de vontade relativas a factos desfavoráveis ao declarante e que beneficiam ou favorecem a parte contrária e constituindo uma declaração desse tipo uma verdadeira confissão (art. 352.º do Cód. Civil) coloca-se a questão de saber qual o valor probatório a atribuir a uma tal confissão; Aliás, no caso dos autos, como bem se vê da sentença recorrida e do douto acórdão da Relação de Coimbra que lhe subjaz, foi precisamente o valor probatório extraído a partir da confissão extrajudicial dos mutuários (afirmado contra o Administrador que não reconheceu e impugnou tal crédito invocado pelos credores C… e D…) e constante da sobredita escritura pública que acabou por se revelar – na ausência de qualquer outra prova produzida nos autos, seja pelos credores impugnantes, seja pelo Sr. Administrador – decisivo para o decretado reconhecimento do crédito invocado pelos credores impugnantes C… e D…, em oposição à impugnação de tal crédito deduzida pelo Administrador na fase declarativa dos presentes autos e, ainda, em oposição à pretensão mantida pelo mesmo na presente apelação.
Importa, pois, conhecer desta questão.
No que respeita à confissão, preceitua o art. 355º, n.ºs 1, 2 e 4 do Cód. Civil que a mesma pode ser judicial ou extrajudicial, consoante seja feita ou não em juízo, seja este competente ou não, e perante tribunal arbitral ou ainda que em processo de jurisdição voluntária.
No caso dos autos, não sobram dúvidas de que a confissão por parte dos mutuários F… e B… (insolventes) assume-se como extrajudicial, pois que não foi feita em juízo, mas antes na escritura pública de mútuo com hipoteca a que antes se fez referência.
Relativamente ao valor probatório da confissão esta distinção assume particular relevo.
Assim, quanto à confissão judicial escrita tem ela «força probatória plena contra o confitente.» (art. 358º, n.º 1 do Cód. Civil)
Por seu turno, quanto à confissão extrajudicial – de que ora curamos – releva o n.º 2 do mesmo normativo, em que se consigna que «a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.» [sublinhado nosso]
Em consonância, ainda, com a parte final do citado n.º 2 do art. 358º, preceitua o n.º 4 do mesmo normativo que «… a confissão extrajudicial feita a terceiro ou contida em testamento são apreciadas livremente pelo tribunal.» [sublinhados nossos]
Resulta, assim, do n.º 2 do citado art. 358º que a confissão extrajudicial escrita tem o valor probatório da natureza do documento em que a mesma se mostra contida. Assim, se a confissão extrajudicial consta de documento autêntico a sua força probatória é a que resulta do próprio documento (autêntico) e que antes se expôs.
Dito de outra forma, a força probatória da confissão será plena na parte em que o documento autêntico forma ou constitui prova plena e na parte remanescente (isto é, não abrangida pela força probatória plena emergente do documento) a confissão estará sujeita à livre apreciação do tribunal. Com uma particularidade ou especialidade: se a confissão for feita à parte contrária (no documento) ou a quem a represente, a força probatória que lhe corresponde é plena, ou seja, só é afastada mediante prova da sua falsidade ou mediante a prova de algum vício da vontade juridicamente relevante. [5]
Neste mesmo e preciso sentido refere Miguel Teixeira de Sousa, op. cit., pág. 243 que «a confissão extrajudicial tem um valor probatório dependente do meio pelo qual é comunicada ao tribunal: - a confissão extrajudicial exarada em documento autêntico ou particular considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos (cfr. arts. 369º a 372º e 373º a 379º CC) e tem força probatória plena se dirigida à contraparte ou a seu representante (art. 358º, n.º 2 CC) e força probatória livre se for feita a terceiros ou estiver contida em testamento (art. 358º, n.º 4 CC;» [sublinhados nossos] [6]
Ora, tendo por pressuposto este enquadramento normativo, que se perfilha, e considerando que, como exposto, à luz da regra do n.º 1 do art. 371º do Cód. Civil, se tem por indiscutido que o documento autêntico em causa (escritura pública de mútuo e hipoteca a fls. 154-157 dos autos) não constitui prova plena da realidade do mútuo e da entrega da quantia de €175.000, 00 por parte dos mutuantes (credores impugnantes) aos mutuários (insolventes), segue-se que essa prova plena – ao contrário do decidido e da douta opinião em contrário que se perfilha no já citado Acórdão da Relação de Coimbra - não decorre também da confissão constante de tal documento autêntico pois que, como resulta do comando normativo do n.º 2 do art. 358º do Cód. Civil, a força probatória plena da confissão é apenas e só a que é possível extrair do tipo de documento em que se mostra inserida (e o documento autêntico em causa – escritura pública - não faz, como já antes demonstrado, prova plena da entrega da quantia em apreço) sendo certo, ademais, que a declaração confessória dos ali mutuários não se mostra oposta à parte contrária, mas antes a um terceiro, qual seja o Sr. Administrador da Insolvência, que não é representante dos interesses dos mutuantes/credores impugnantes, mas antes representante dos interesses de todos os credores dos insolventes, interesses que se podem mostrar conflituantes com os interesses daqueles credores impugnantes, maxime quando o seu crédito se mostra garantido por hipoteca, garantia esta que, como é consabido, pode pôr, em larga medida, em crise, a satisfação dos interesses dos demais credores comuns.
De facto, como se acentua no citado acórdão desta Relação de 26.06.2014 e é reiteradamente afirmado pela doutrina a que fizemos referência, não pode deixar de se considerar que a declaração confessória tem um declarante (quem se declara devedor) e um declaratário (quem se indica como credor), pelo que o seu valor probatório se encontra delimitado ao círculo de pessoas que interessam ao documento; De facto, como ali se escreve: «É esse o sentido da restrição contida no n.º 4 do art. 357º do Código Civil segundo o qual a confissão extrajudicial feita a terceiro é apreciada livremente pelo tribunal. Assim, da mesma forma que a confissão extrajudicial constante de documento escrito não pode valer como prova plena a favor de quem não esteja envolvido no documento, de quem seja terceiro em relação a este, também não pode ser-lhe oposta como prova plena por qualquer dos interessados no documento, valendo em qualquer dos casos como meio de prova sujeito à livre apreciação do tribunal.» [sublinhados nossos]
E, ainda, como se aduz no mesmo aresto desta Relação, «compreende-se que isso seja assim porque o que justifica a atribuição aos documentos de valor probatório tarifado é a constatação de que entre os interessados directos num determinado facto as partes são normalmente cuidadosas na elaboração dos documentos que o revelam, sendo mais provável que quando estiverem em causa factos desfavoráveis ao declarante o conteúdo dos documentos, por resultar do confronto dos interesses divergentes, corresponda à verdade.»
Aliás, por ser assim, isto é por o legislador ter a noção de que entre os interessados directos no conteúdo do documento (que nele intervieram como declarante e declaratário) existe uma forte probabilidade de o facto ser verdadeiro, é que, em tais circunstâncias, lhe é atribuída a força de prova plena, prova esta que apenas pode ser contrariada por meio de prova do contrário, onde se mostre não ser verdadeiro o facto que dela foi objecto (art. 347º do Cód. Civil) [7], ou seja a confissão da dívida, sem prejuízo, ainda, naturalmente, da arguição da nulidade ou anulação da declaração confessória por vícios da vontade (art. 359º, n.º 1 do Cód. Civil). [8]
Todavia, como resulta do já exposto, aquela força probatória plena do documento autêntico (ou particular) e da confissão nele contida, apenas é aplicável no círculo dos interessados directos no documento (declarante e declaratário, ou os respectivos representantes), mas já não, como resulta do n.º 4 do art. 358º do Cód. Civil, perante terceiro alheio ao mesmo, cujo interesse seja paralelo, concorrente e, por maioria de razão, independente e incompatível com os interesses do declarante e/ou do declaratário.
Com efeito, como ensina J. Lebre de Freitas [9] a confissão deve ser tida como ineficaz em face de terceiros com um interesse paralelo ao do confitente, em face de terceiros titulares de interesses concorrentes com o confitente ou, ainda, logicamente, por maioria de razão, em face de terceiros com interesse independente e incompatível com o interesse do confitente.
Neste mesmo sentido, em situação em que perante terceiro (credor do mutuário que tinha obtido em execução a penhora de determinado bem imóvel, cujo crédito se veria afectado pela outorga de escritura de mútuo com hipoteca celebrada pelo executado, onde este último se confessava devedor de determinada quantia e constituía em garantia de tal crédito hipoteca sobre o imóvel penhorado) é invocado documento autêntico, contendo declaração confessória de dívida – tal como ora sucede -, escreveu-se no AC STJ de 12.01.2012 [10], que «… temos por seguro que a eventual força probatória plena da declaração de confissão contida na escritura de mútuo celebrada entre A e B nunca poderia vincular irremediavelmente C, impedindo-lhe a demonstração de que, na base de tal escritura e da confissão nela contida, se não encontraria, afinal, uma válida relação obrigacional, garantida pela hipoteca: o que a força probatória plena impede é que – sem invocação, nomeadamente, de um vício da declaração negocial que inquine irremediavelmente a própria declaração confessória – não é possível ao confitente exonerar -se, perante o seu credor, a quem fez a confissão de dívida, do facto desfavorável nela contido – mas já não obviamente que terceiros, cujos direitos são abalados pelo reconhecimento confessório, possam pôr em causa, mediante a utilização de quaisquer meios probatórios, a validade e a veracidade de declaração confessória a que são inteiramente estranhos e cuja subsistência prejudica a consistência dos seus direitos
Na verdade, prossegue o douto aresto do STJ, «o art. 358º, n.º 2, do CC, apenas confere força probatória plena à confissão extrajudicial que – constando, designadamente, de documento autêntico - foi feita à parte contrária; prescrevendo, porém, o n.º 4 deste preceito legal que a confissão judicial feita a terceiro é livremente apreciada pelo tribunal.»
Ora, parafraseando o mesmo aresto do STJ, na concreta situação litigiosa – de confronto entre os interesses dos credores impugnantes C… e D… e os interesses globais dos demais credores da insolvente, por cuja satisfação deve providenciar o Administrador da Insolvência -, a declaração confessória não foi feita naturalmente ao mesmo Administrador (que é um terceiro estranho à mesma), mas aos mutuantes/credores impugnantes, «não podendo, consequentemente, este[s] prevalecere[m]-se da referida força probatória plena» no confronto com aquele terceiro, sendo certo que, através da hipoteca que garante esse crédito, irão, inelutavelmente, colocar em cheque ou em risco a satisfação dos credores comuns da insolvente. Aliás, com todo o respeito por opinião em adverso, a admitir-se posição contrária, como a que se sufraga na decisão recorrida, um qualquer putativo credor munido de um documento autêntico (ou particular) confessório de dívida por parte do insolvente poderia ter-se, sem mais, isto é sem qualquer prova complementar ou adjuvante de tal declaração, como credor do insolvente, com a agravante, no caso ora em apreço, de não se tratar de um puro e simples crédito, mas de um crédito dotado de uma especial garantia real: – hipoteca.
O que, à luz do exposto, nos conduz à convicta afirmação de que, não existindo a prova plena invocada pelo Tribunal recorrido para ter por demonstrada a entrega da quantia por parte dos credores impugnantes C… e D… à insolvente B…, de que incumbindo, a nosso ver, indiscutivelmente, à luz da regra geral do art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil, aos mesmos credores (mutuantes) o ónus de prova de entrega de tal quantia à insolvente, enquanto elemento constitutivo do contrato de mútuo (negócio real quoad constitutionem) e não tendo estes, para efeitos do cumprimento de tal ónus, logrado aportar aos autos, para além do citado documento autêntico (escritura pública de «mútuo com hipoteca» de fls. 154 -157 dos autos), um qualquer outro meio probatório (pessoal ou, sobretudo, documental – v.g. cheque; transferência bancária ou outro de igual natureza ou tipo, pois que não é razoável ou verosímel que uma quantia tão avultada como €175 mil euros possa ter sido paga em numerário), será de concluir que os credores impugnantes, ao contrário do sentenciado, não lograram demonstrar o preenchimento dos requisitos do direito de crédito por si invocado e que foi validamente impugnado pelo Sr. Administrador da Insolvência.
Na verdade, no que concerne aos possíveis fundamentos de impugnação dos créditos a lei não contém qualquer limite ou obstáculo, quando, como é o caso, não foi produzida prova tarifada ou legal. Com efeito, como se refere no citado acórdão desta Relação de 26.06.2014, «O que é necessário é que o fundamento alegado tenha valor jurídico para viabilizar o efeito pretendido, ou seja, conduza à demonstração de que o crédito não reconhecido (ou na medida em que o foi) sempre existe (e tem as características reclamadas), ou que o crédito reconhecido (ou na medida em que o foi) não existe (ou não tem as características reclamadas).»
Ora, neste contexto, não tendo sido produzida prova plena da entrega da quantia em apreço pelos credores impugnantes à insolvente e seu marido, mas antes prova sujeita à livre apreciação do tribunal, à contraparte (Administrador ou outro credor) bastaria opor a contraprova a respeito de tal facto, tornando-o, como ora sucede, duvidoso, pois que, em tal circunstancialismo, a questão terá de ser decidida «contra a parte onerada com a prova», ou seja, no caso dos autos, contra os aludidos credores impugnantes (art. 346º do Cód. Civil).
Por conseguinte, impõe-se a procedência da apelação e consequente revogação da sentença recorrida, na parte que constitui o objecto da mesma, ou seja na parte em que aprovou, reconheceu e deu por verificado o crédito reclamado pelos impugnantes C… e D… no montante de €175.000,00 [alínea b) do segmento decisório final da sentença recorrida] e, ainda, que o graduou para ser pago nestes autos e em 2º lugar à custa do produto da venda da verba n.º 1 do auto de apreensão [alínea e), n.º 2 do mesmo segmento decisório], passando, ao invés, tal crédito a ter-se como não provado e não reconhecido e excluída a sua graduação.
Procede, pois, em face do exposto, a apelação.
Relativamente à pretensão subsidiária invocada pelo apelante, atenta a antes decretada procedência da apelação, fica prejudicado o seu conhecimento, em conformidade com o preceituado no art. 554º, n.º 1 do CPC e aqui aplicável.
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IV - DECISÃO:
Pelos fundamentos antes expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação, julgando não provado e não reconhecido o crédito dos credores impugnantes C… e D…, no valor de €175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros), assim o excluindo da lista de créditos reconhecidos e da consequente graduação decretada na sentença recorrida.
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Custas em 1ª instância pelos credores impugnantes C… e D…, na proporção do respectivo decaimento e em função do crédito ali reclamado - art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Custas da apelação pelos mesmos credores impugnantes, que, nesta instância, ficaram integralmente vencidos – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC -, em conformidade com o previsto na tabela I-B.
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Porto, 27.09.2017
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
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[1] AC RC de 26.01.2016, Processo n.º 4240/12.1TBLRA-C.C1, relatado por Maria João Areias, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Vide, neste sentido, por todos, MANUEL de ANDRADE, “ Teoria Geral da Relação Jurídica ”, II volume, 1987, pág. 50-51, P. PAIS de VASCONCELOS, “ Teoria Geral do Direito Civil ”, 7ª edição, 2014, pág. 380-381 ou, ainda, L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações – Contratos em Especial ”, III volume, 5ª edição, pág. 388-389.
[3] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa ”, Lex, 1995, pág. 238. No mesmo sentido, vide, ainda, A. VARELA, M. BEZERRA, SAMPAIO e NORA, “ Manual de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 660-661 e J. LEBRE de FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO, R. PINTO, “ CPC anotado ”, II volume, pág. 635-636.
[4] Vide, neste sentido, por todos, LUIS FILIPE PIRES de SOUSA, “ Prova Por Presunção no Direito Civil ”, 3ª edição, 2017, pág. 212 e MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 246-247.
[5] Vide, neste sentido, AC RP de 26.06.2014, Processo n.º 1040/12.2TBLSD-C.P1, relator ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA, disponível in www.dgsi.pt [que aqui se segue de perto].
[6] Vide, ainda, no mesmo sentido, A. VARELA, “ Manual … ”, cit., pág. 553.
[7] Para o que não pode, todavia, recorrer à prova por testemunhas ou por presunções, salvo nas excepções previstas na lei (arts. 393º, n.º 2 e 351º, ambos do Cód. Civil)
[8] Vide, neste sentido, por todos, L. FILIPE PIRES de SOUSA, op. cit., pág. 212-213.
[9] JOSÉ LEBRE de FREITAS, “ A confissão no Direito Probatório ”, Coimbra Editora, pág. 332-335.
[10] AC STJ de 12.01.2012, Processo n.º 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1, relator LOPES do REGO, disponível in www.dgsi.pt.