Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21/21.0GAMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA ILEGAL
ARMA BRANCA
Nº do Documento: RP2022021621/21.0GAMTS.P1
Data do Acordão: 02/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA (RECURSO DA ARGUIDA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No regime legal em vigor as facas borboletas, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objetos destinados a laçar lâminas, flechas ou virotões são sempre consideradas armas proibidas independentemente da extensão da respetiva lâmina.
II - Se a perigosidade de outro tipo de facas se encontra na lâmina e respetiva capacidade perfurante, sendo por isso relevante o seu comprimento, no caso da faca borboleta, instrumento que aqui nos ocupa, a perigosidade está nas suas características específicas e facilidade de manuseamento. Como se refere na al. av) do nº 1 do artº 2º da Lei nº 5/2006, faca borboleta é "a arma branca, ou instrumento com configuração de arma branca, composta por uma lâmina articulada num cabo ou empunhadura dividido longitudinalmente em duas partes também articuladas entre si, de tal forma que a abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão".
III - A faca borboleta apreendida à recorrente, sendo inequivocamente uma "arma branca" - expressão que abrange todo um vasto conjunto de objetos ou instrumentos cortantes ou perfurantes, normalmente de aço - não é – pelo menos não foi alegado nem resultou provado que o seja – uma arma com disfarce.
IV - A Lei n.º 5/2006 de 23.02, no seu esforço de apresentação de definições legais, veio clarificar (e ajudar na compreensão de conceitos que já eram utilizados pela jurisprudência, no domínio do regime legal anterior) que uma navalha de ponta e mola ou uma faca borboleta, não são, necessariamente e por definição, armas com disfarce. Com efeito, no art. 86.º, n.º 1, alínea d), daquele diploma legal, faz-se a distinção entre “arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto” - que corresponde, a nosso ver, à anteriormente designada de “arma branca com disfarce” -, a “faca de abertura automática” - que é a ponta e mola de acordo com a definição do artigo 2.º nº 1 alínea ax) da mesma Lei - e a “faca de borboleta”, definida na sua al. av) criminalizando-se, nos termos aí descritos, a detenção de todas elas, o que parece inculcar que o legislador nunca terá considerado que a ponta e mola ou a faca de borboleta fossem, por mera definição e sem necessidade de mais indicações, armas dissimuladas, ou seja, com disfarce.
V - Também o artigo 3.º n.º2 da mesma Lei, ao indicar as armas, munições e acessórios da classe A, distingue, na alínea d), as “armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objeto”, das “facas de abertura automática” – que são as ponta e mola -, que surgem indicadas, tal como as facas de borboleta, entre outras, na alínea e) do mesmo normativo. A dissimulação sob a forma de outro objeto corresponde (numa definição descritiva) ao que antes se designava de “disfarce”, quando a alínea f) do artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 207-A/75 se referia a “armas brancas ou de fogo com disfarce”.
VI - Para que a arma branca em questão pudesse ser considerada uma arma com disfarce seria necessário que da matéria de facto provada resultasse que a faca em causa estava apetrechada com qualquer artifício ou mecanismo que a dissimulasse sob a forma de objeto distinto ou com diferente utilização.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 21/21.0GAMTS.P1

1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Abreviado que correm termos no Juízo Local Criminal ... - Juiz 1, da Comarca do Porto, com o nº 21/21.0GAMTS, foi submetida a julgamento a arguida AA, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 13.09.2021, que condenou a arguida, como autora material de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23.02, por referência ao artº 2º nº 1 als. m) e av) e 3º nº 2 al. e) da mesma Lei, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
Inconformada, veio a arguida interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. A arguida não cometeu o crime de detenção de arma proibida;
2. Só por lapso o acórdão recorrido remete para o pelo artº 86º, nº1, al. d) da Lei nº 5/2006, de 23.02, por referência ao artigo 2º, nº1, alíneas m) e av) e 3º, nº 2, al. e) da indicada Lei,
3. A navalha que transportava consigo, com 12 cm de comprimento total e 8.5 cm de lâmina, não cabe na definição do artº 86º, nº1, al. d) da Lei nº 5/2006, de 23.02, por referência ao artigo 2º, nº1, alíneas m) e av) e 3º, nº 2, al. e) da indicada Lei;
4. A recorrente não utilizou a navalha para nenhum ato ilícito.
5. A navalha não possui qualquer disfarce;
6. A recorrente explicou que usava a navalha para descascar fruta ao pé da cama, à noite – consta dos factos dados como provados. 7. A simples detenção de uma navalha sem disfarce não é crime e a recorrente deve ser absolvido nessa parte.
8. Sem prescindir e caso assim não se entenda, na aplicação da concreta pena, aplicada pelo Tribunal a quo ao ora Recorrente é excessiva e desproporcional.
9. A Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 69.º, 40.º e 71.º, n.º 1, todos do Código Penal.
10. Pelo que não podia o Tribunal a quo ter fixado a medida da pena numa multa de 120 dias à taxa de 5,00 € com vista a prevenir a perigosidade da Recorrente;
11. Ao decidir assim, a Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 69.º, n.º 1, alínea a) e 40.º, n.ºs 1 e 2, 71.º, n.º 1, todos do Código Penal;
12. O Tribunal a quo ao determinar essa medida da não salvaguardou a reintegração do Recorrente na sociedade, como determinam os artigos 71.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, ambos do Código Penal;
13. O Tribunal a quo não avaliou de forma equitativa que o Recorrente não sofreu qualquer condenação por crime de igual natureza;
14. A recorrente reconheceu os factos praticados e produziu em julgamento uma confissão livre e sem reservas quanto aos factos constantes do auto de notícia do crime.
15. Ainda se provou que a Recorrente encontra-se atualmente numa situação socioeconómica.
16. Assim, considera a Recorrente que é possível cumprir as finalidades das penas através da aplicação da pena de 75 dias à taxa de 5,00 €.
17. Pelo que deve, a douta Sentença recorrida na parte em que fixou a aplicação a medida da pena de 120 (cento e vinte dias) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), ser revogada e substituída por outra que fixe a medida da pena em de 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), atendendo às condições da aqui arguido que não foram devidamente avaliadas.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que a sentença recorrida deverá ser mantida.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da absolvição da arguida do crime pelo qual foi condenada.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: transcrição após audição do suporte audio
«Da prova produzida em audiência de julgamento resultaram provados todos os factos vertidos na acusação pública de fls. 73.
Mais resultou provado que a arguida não tem antecedentes criminais e que é doméstica, não exercendo qualquer atividade profissional, diz sofrer de doença autoimune denominada lupus.
Reside com o seu filho de 27 anos que não tem qualquer ocupação, recebe um subsídio de reinserção social no valor de €150 por mês, paga a renda camarária no valor de €5,00 mensais. Tem o 1º ano de escolaridade.
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Os factos provados resultaram da confissão integral e sem reservas da arguida relativamente aos mesmos, tendo em concreto referido que guardava na sua mesinha de cabeceira uma arma há cerca de sete ou oito anos a referida faca, sendo que era apenas ela quem tinha acesso àquela mesinha. Referiu que a tinha sempre guardada naquele local para cortar fruta e sempre no interior do seu quarto.
No que se refere à ausência de antecedentes criminais, louvou-se no certificado de registo criminal da arguida e no que concerne às suas condições socioeconómicas, louvámo-nos positivamente nas declarações prestadas pela arguida e tanto mais que nos autos não há qualquer elemento que as infirme.
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Passando-se à subsunção jurídica dos factos em causa, a arguida vem acusada do crime de detenção de arma proibida p. e p. artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 03.02, por referência ao artº 2º nº 1 al. av) e 3º nº 2.
Analisando os factos provados, concretamente as características da arma encontrada na posse da arguida, inexistem dúvidas de que a mesma configura uma arma proibida e, como tal, estaria vedada à arguida a sua posse.
Também resultou provado que a arguida tinha conhecimento que não podia ter aquela arma consigo.
Posto isto, resulta provado que cometeu o crime de detenção de arma ilegal. Trata-se de um crime de perigo comum abstracto e bastará para a consumação do mesmo a detenção da arma proibida. Basta que o agente tenha consigo, mesmo que não utilize a arma, para que se tenha por consumado o crime em causa.
O crime de detenção de arma proibida p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei das Armas, pune com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias quem o cometer. Prevendo o legislador a aplicação de duas penas em alternativa, cumpre logo aferir se deve optar pela aplicação de uma pena detentiva ou não detentiva da liberdade, sendo certo que o legislador dá sempre preferência à última.
No caso em concreto nada nos leva a concluir que deve ser aplicada uma pena de prisão, detentiva à arguida. A arguida confessou os factos, é primária e, no caso em concreto, não revela qualquer tendência criminosa e, como tal, não restam dúvidas de que deve ser à mesma aplicada uma pena de multa.
Para a determinação da medida concreta da pena de multa, que vai desde 10 a 480 dias, o tribunal deve ter em consideração todas as circunstâncias desfavoráveis e favoráveis à arguida. E aqui chegados, temos que desfavoravelmente, se trata de um crime com muito elevadas exigências de prevenção geral porque é com alguma leviandade que a população em geral encara ter consigo armas sem cuidar, muitas vezes, de as ter legalizadas, sem saber sequer se as podem ter e, como tal, essas exigências de prevenção geral são muito elevadas. Também desfavoravelmente, a circunstância de os factos terem sido cometidos com dolo, na modalidade de dolo direto, e o elevado grau de culpa relativamente ao já elevado número de tempo em que a arguida tinha consigo a aludida arma.
Favoravelmente, temos todo um percurso de vida da arguida em conformidade com o direito, tanto que da análise do seu certificado do registo criminal e da própria explicação da arguida para ter consigo esta arma, leva-nos a crer que foi um caso isolado, único na sua vida e, como tal, não demonstre qualquer apetência para a prática de crimes. Também favoravelmente, a circunstância de ter confessado a prática do facto de que vinha acusada e a sua humilde condição socio-económica e o facto de a arguida ter tão só o 1º ano.
Posto isto e considerando a moldura abstrata aplicável ao caso, o tribunal considera que a pena de 120 dias se revela adequada.
Na determinação do montante diário da multa a aplicar o tribunal deve considerar as condições socio-económicas do arguido e, num montante entre €5,00 e €500,00, analisar, dentro dessas condições, um montante diário que constitua um verdadeiro sacrifício para o arguido. No caso em análise, resulta que a arguida tem uma débil condição socio-económica, não tem qualquer profissão, subsiste com um rendimento mínimo no montante de €150,00 e, como tal, afigura-se que, nestes casos de debilidade económica acentuada, deverá ser fixado o montante de € 5,00, correspondente ao montante mínimo legal.
(...)»
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respetivo objeto à questão de saber:
- se a matéria de facto provada integra todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23.02, por referência ao artº 2º nº 1 als. m) e av) e 3º nº 2 al. e) do mesmo diploma;
- se a pena concreta aplicada se mostra desproporcional e excessiva.
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Alega a recorrente que a navalha que lhe foi apreendida, com 12 cm de comprimento total e 8,5 cm de lâmina, não cabe na definição do artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23.02, por referência ao artº 2º nº 1 als. m) e av) e 3º nº 2 al. e) do mesmo diploma. Alega ainda que a navalha em causa não possui qualquer disfarce e que a não utilizou para qualquer facto ilícito.
"Só por mero lapso" pode a recorrente atribuir ao objeto que lhe foi apreendido as dimensões referidas nas suas conclusões de recurso.
Com efeito, como resulta da simples leitura do auto de exame direto de fls. 13 (cfr. ponto 1 do resultado do exame/conclusões), o OPC que procedeu ao referido exame conclui: "Trata-se instrumento com configuração de arma branca, composta por uma lâmina com cerca de 10 cm, articulada num cabo ou empunhadura dividido longitudinalmente em duas partes também articuladas entre si, com cerca de 12 cm, de tal forma que a abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão".
Ou seja, nem o comprimento total da arma é de 12 cm - sendo esse apenas o comprimento da empunhadura -, nem o comprimento da lâmina é de 8,5 cm, mas antes de 10 cm. Embora não seja relevante para a respetiva qualificação jurídico-penal, dir-se-á que a arma em causa, quando completamente aberta, tem um comprimento total superior a 20,5 cm.
Relativamente a toda a argumentação jurídica da recorrente, designadamente a referência à jurisprudência citada, apenas se dirá que a mesma teve por base legislação em vigor à data em que foi proferida, mas que se encontra já desenquadrada face ao regime legal vigente à data da prática dos factos em apreço nos presentes autos.
Com efeito, no período de vigência da primitiva redação da Lei 5/2006 de 23.02, e mesmo depois das alterações introduzidas pela Lei nº 59/2007 de 04.09, entendia-se que "não constituía arma proibida uma faca borboleta cuja lâmina tivesse comprimento inferior a 10 cm".
Esta conclusão era extraída do artº 2º nº 1 al. l) da Lei nº 5/2006 de 23.02, segundo o qual se considerava "arma branca todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante, de comprimento igual ou superior a 10 cm, ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas ou virotões, independentemente das suas dimensões”.
Tal caracterização manteve-se com a redação introduzida na Lei nº 5/2006 pela Lei nº 59/2007 de 04.09.
O referido preceito veio porém a ser alterado pela Lei nº 17/2009 de 06.05, que na sua al. m) passou a ter a seguinte redação: "
“Arma branca, todo o objeto ou instrumento portátil dotado de lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboletas, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objetos destinados a laçar lâminas, flechas ou virotões”.
Ou seja, enquanto as restantes armas brancas não específica e individualmente previstas na al. m) só são consideradas armas proibidas se a respetiva lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou coro-contundente tiver um comprimento igual ou superior a 10 cm, as facas borboletas, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objetos destinados a laçar lâminas, flechas ou virotões são sempre consideradas armas proibidas independentemente da extensão da respetiva lâmina.
E compreende-se que assim seja.
Se a perigosidade de outro tipo de facas se encontra na lâmina e respetiva capacidade perfurante, sendo por isso relevante o seu comprimento, no caso da faca borboleta, instrumento que aqui nos ocupa, a perigosidade está nas suas características específicas e facilidade de manuseamento. Como se refere na al. av) do nº 1 do artº 2º da Lei nº 5/2006, faca borboleta é "a arma branca, ou instrumento com configuração de arma branca, composta por uma lâmina articulada num cabo ou empunhadura dividido longitudinalmente em duas partes também articuladas entre si, de tal forma que a abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão".
Contrariamente ao defendido pela recorrente a arma que lhe foi apreendida não constitui uma arma com disfarce, nem sequer lhe foi imputada a detenção de uma arma com tais características.
O artº 2º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 dispõe que se integram na classe A "as armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objeto".
No que respeita às armas brancas dissimuladas, a dissimulação encobre a sua verdadeira natureza ou disfarça o seu real poder vulnerante. Ao ocultar a perigosidade, também a aumenta e torna mais agressiva quando utilizada, quer pela surpresa causada, quer pela diminuição ou mesmo impossibilidade de defesa por parte da vítima. Apresenta-se como dissimulada sob a forma de outro objeto a arma branca ocultada num guarda-chuva ou numa bengala, numa caneta ou escondida na biqueira de uma bota.
Como se referiu no AFJ nº 4/2004, citado pela recorrente, «disfarce é uma dissimulação da arma a tal ponto que até poderá confundir-se com qualquer outro objeto ou instrumento de todo inócuo em termos de perigosidade! E é dissimulação que, por regra, se leva a cabo de forma deliberada e com a exclusiva finalidade de aumentar a perigosidade e agressividade da arma (branca)».
No caso em apreço, a faca borboleta apreendida à recorrente, sendo inequivocamente uma "arma branca" - expressão que abrange todo um vasto conjunto de objetos ou instrumentos cortantes ou perfurantes, normalmente de aço - não é – pelo menos não foi alegado nem resultou provado que o seja – uma arma com disfarce.
Não se ignora que a ideia geral que se tem quando se fala de uma navalha de ponta e mola ou de uma faca borboleta é que se trata de uma arma que tem uma lâmina dissimulada que se faz saltar por ação de uma mola ou do movimento rápido da empunhadura articulada. Seriam, para alguns, o exemplo mais flagrante de arma branca com disfarce.
Porém, afigura-se-nos que a mera caracterização de uma faca borboleta não determina, de modo automático, que se considere arma branca com disfarce.
A este propósito a Lei n.º 5/2006 de 23.02, no seu esforço de apresentação de definições legais, veio clarificar (e ajudar na compreensão de conceitos que já eram utilizados pela jurisprudência, no domínio do regime legal anterior) que uma navalha de ponta e mola ou uma faca borboleta, não são, necessariamente e por definição, armas com disfarce.
Com efeito, no art. 86.º, n.º 1, alínea d), daquele diploma legal, faz-se a distinção entre “arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto” - que corresponde, a nosso ver, à anteriormente designada de “arma branca com disfarce” -, a “faca de abertura automática” - que é a ponta e mola de acordo com a definição do artigo 2.º nº 1 alínea ax) da mesma Lei - e a “faca de borboleta”, definida na sua al. av) criminalizando-se, nos termos aí descritos, a detenção de todas elas, o que parece inculcar que o legislador nunca terá considerado que a ponta e mola ou a faca de borboleta fossem, por mera definição e sem necessidade de mais indicações, armas dissimuladas, ou seja, com disfarce.
Também o artigo 3.º n.º2 da mesma Lei, ao indicar as armas, munições e acessórios da classe A, distingue, na alínea d), as “armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objeto”, das “facas de abertura automática” – que são as ponta e mola -, que surgem indicadas, tal como as facas de borboleta, entre outras, na alínea e) do mesmo normativo.
A nosso ver, a dissimulação sob a forma de outro objeto corresponde (numa definição descritiva) ao que antes se designava de “disfarce”, quando a alínea f) do artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 207-A/75 se referia a “armas brancas ou de fogo com disfarce”. Para que a arma branca em questão pudesse ser considerada uma arma com disfarce seria necessário que da matéria de facto provada resultasse que a faca em causa estava apetrechada com qualquer artifício ou mecanismo que a dissimulasse sob a forma de objeto distinto ou com diferente utilização. O mero facto de se dizer que se trata de uma faca borboleta é, por conseguinte, insuficiente para esse efeito, sendo certo que, nem da acusação, nem dos factos provados consta a descrição de quaisquer características aparentes da arma em questão, para além da indicação de se tratar de uma "faca borboleta" e do comprimento da respetiva lâmina.
No parecer que emitiu neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto entende que este processo nunca deveria ter sido instaurado e que, face à matéria dada como provada, a recorrente deverá ser absolvida do crime pelo qual foi condenada.
Sustenta que não foi alegado na acusação, devendo tê-lo sido, por se tratar de um pressuposto típico negativo, que a recorrente não justificou a posse da arma.
Ressalvado o devido respeito por tal opinião, não podemos concordar com aquele parecer.
Com efeito, dispõe o artº 86º nº 1 al. d) da Lei nº 5/2006 de 23.02, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05: «Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: al. d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias».
O artº 2º nº 1 al. m) da Lei nº 5/2006 dá-nos o conceito de «Arma branca», como todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões.»
Ou seja, para além dos instrumentos que o legislador especialmente concretiza no preceito - entre os quais, a faca borboleta -, considera igualmente como arma branca "todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm". Ora, é apenas relativamente a estas últimas - "outras armas brancas" - que o legislador exige a verificação dos três requisitos cumulativos enunciados:
a) não ter aplicação definida
b) possa ser usada como arma de agressão
c) o seu portador não justifique a posse[3].
Não se incluindo a faca borboleta na categoria de "outras armas brancas", não era necessário que tais factos (como elementos objetivos do tipo), constassem da acusação e, muito menos, da matéria de facto provada da sentença recorrida.
A sentença recorrida integrou juridico-penalmente de forma correta os factos provados, não merecendo qualquer censura, pelo que improcede o recurso nessa parte.
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Alega a arguida/recorrente que a medida da pena é excessiva e desproporcional, pugnando pela sua fixação em 75 dias de multa.
No que respeita à decisão sobre a pena, mormente à sua medida, começa por lembrar-se que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”[4].
Dentro desta margem de atuação, e analisando a sentença recorrida, constata-se que cumpre todas as exigências de fundamentação em matéria de pena, quer de facto, quer de direito, não só oferecendo resposta adequada ao problema colocado em recurso, como auto-sustentando-se amplamente.
Tendo sempre por base os factos provados na sentença e após correto enunciado do quadro legal de referência, o ilícito perpetrado pela arguida recorrente mostra-se individualmente valorado e sopesado, bem como o grau de culpa com que atuou. Constata-se o integral acerto no processo aplicativo da pena desenvolvido na sentença. Aliás, numa moldura abstrata de prisão de um mês a 4 anos ou, em alternativa, multa de 10 a 480 dias, a pena concreta aplicada à recorrente situa-se abaixo de um quarto da pena não detentiva prevista na lei.
Em suma, não se mostram indevidamente sopesadas as necessidades de reintegração social da recorrente, a primariedade penal da mesma, bem como a confissão que prestou em audiência, embora esta não assuma especial relevo, uma vez que a apreensão da arma detida pela arguida ocorreu no âmbito de busca efetuada à sua residência. As razões de prevenção, geral e especial, aludidas na sentença recorrida justificam plenamente a pena aplicada à arguida/recorrente. Justificam-na pelas razões expostas e, também, pela constatação da inexistência de concretas circunstâncias de forte relevo, que pudessem intervir significativamente em sentido contrário, atenuando em concreto essas exigências.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, confirmando integralmente a sentença recorrida.

Custas pela arguida/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC - artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 16 de fevereiro de 2022
Eduarda Lobo
Castela Rio
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
____________________________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Neste sentido, cfr. Artur Vargues in Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. I, pág. 242; e, entre outros, Ac. R.Lisboa de 07.07.2015, Proc. nº 596/13.7PZLSB.L1; Ac. R.Porto de 11.09.2019, Proc. nº 4255/17.3JAPRT.P1 (citado pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto, mas em que estava em causa uma "catana") e Ac. R. Lisboa de 15.12.2015, Proc. nº 560/13.6TASCR.L1-5.
[4] Cfr. Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197.