Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1566/17.1T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: RECONHECIMENTO JUDICIAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
TITULARIDADE DOS RECURSOS HÍDRICOS
MEIOS DE PROVA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
AMPLIAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP202206271566/17.1T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Pretendendo obter o reconhecimento da propriedade, por título legítimo, sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, o interessado apenas pode fazer a prova de tais factos por documentos que comprovem que tais terrenos eram por título legítimo objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas (art. 15º/2 Lei 54/2005 de 15 de novembro, a qual foi objeto de alterações pela Lei 78/2013 de 21 de novembro, Lei 34/2014 de 19 de junho e por último, pela Lei 31/2016 de 23 de agosto.).
II - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do nº 2 , deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ( art. 15º/3 ).
III - Neste caso são admitidos todos os meios de prova, com exceção da confissão, podendo, por isso, o tribunal socorrer-se da prova testemunhal, pericial, inspeção ao local, por presunções judiciais e usando um critério de menor exigibilidade.
IV - O legislador apenas fez exigências específicas de prova nos casos do nº2 do art. 15, ao exigir que o autor faça prova documental que tais terrenos eram por título legítimo objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas.
V - Quanto à prova de que depois daquelas datas ou atos, mediante reconstituição dos atos transmissivos subsequentes os terrenos permaneceram ininterruptamente na propriedade privada, ou, na posse, em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa, será admissível qualquer meio de prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Domínio Público Hídrico-RMF-1566/17.1T8AVR.P1
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SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTORA: A... B.V. – Sociedade em Liquidação, representada pelo seu Administrador de Insolvência AA, com escritório na Rua ..., ..., ... Guimarães; e
- RÉU: Estado Português,
pede a autora que seja declarado e o réu condenado a reconhecer a propriedade privada dos doze prédios (três urbanos e nove rústicos) que identifica da seguinte forma:
i. Prédio Urbano – Armazém de apoio às salinas, convertido em viveiro de piscicultura, sito na Rua ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
ii. Prédio Urbano – Edifício de rés-do-chão, destinado a ensino e exploração piscícola e no logradouro tanques de criação de peixes, sito no lugar .... - ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz urbana com o n.º ...;
iii. Prédio Urbano – Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
iv. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 12.300 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
v. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 450 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
vi. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 450 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
vii. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 450 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
viii. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 450 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
ix. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 450 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
x. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 670 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
xi. Prédio Rustico – Terrenos alagadiços, com a área de 820 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...;
xii. ½ Prédio Rústico – ..., com a área de 1.800 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ....
Alegou para o efeito que a sociedade comercial A... B.V., NIPC ..., foi declarada insolvência do decurso dos autos de processo n.º 271/13.2T2AVR, que corre seus termos no Juízo de Comércio de Aveiro, no passado dia 31 (trinta e um) de Maio de 2013, tendo sido nomeado Administrador de Insolvência, o Exmo. Sr. Dr. AA.
No decurso dos sobreditos autos de insolvência, foram apreendidos a favor da massa insolvente os bens imóveis acima descritos.
Alegou, ainda, que no decurso dos sobreditos autos de insolvência, foi aduzido através da Agência Portuguesa do Ambiente que os supra referidos imoveis se consideram públicos, porquanto integram o Domínio Público Hídrico do Estado, mas sem fundamento porque os supracitados terrenos/imóveis encontram-se, desde tempos imemoriais, na propriedade e posse de privados, que os exploram, porquanto há mais de 5, 10, 20, 40, 80, 100 ou 150 anos, que tais terrenos encontram-se na posse e propriedade de privados/particulares, que exploram os sobreditos terrenos, designadamente, para os fins de piscicultura e aquacultura.
Mais alegou que em relação aos citados prédios verifica-se o registo de propriedade a favor de particulares, desde meados do ano 1800, havendo, inclusive, registo de propriedade e posse, por parte dos particulares, daqueles mesmos prédios.
Considera, ainda, que a Autora é dona e legítima proprietária dos acima melhor identificados imoveis, seja por si, seja através dos seus ante possuidores, desde pelo menos o ano de 1850, que os usam, fruem sempre à vista de toda a gente, com a convicção de estar a exercer um direito seu, próprio, em exclusivo, sem intervalos de não posse, de forma ininterrupta, sem exercer qualquer tipo de violência, quer física quer moral e com a convicção de não estar a prejudicar/lesar direitos alheios, mormente interesses públicos.
Conclui que a presente ação assenta os seus fundamentos no regime previsto no art. 15.º da Lei 54/2005, de 15 de Novembro.
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Citado o Estado Português, veio o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, apresentar contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Alega, em síntese, que não resulta demonstrado que os prédios se encontram em área correspondente ao domínio público hídrico e ainda, que se admita estarem integrados nessa área, verifica-se que não foi apresentada prova documental que demonstre que as águas interiores sujeitas à influência das marés são, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum, ou apenas de posse em data anterior a 31 de dezembro de 1864 ou a 22 de março de 1868, caso se trate de arribas alcantiladas.
Conclui pela absolvição da instância ou improcedência da pretensão da Autora.
Suscita o incidente do valor da causa, por considerar ser superior, requerendo a realização de perícia.
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Na resposta a autora manteve a posição inicial, considerando que o valor atribuído corresponde ao valor patrimonial dos imóveis.
Juntou o auto de apreensão de bens em processo de insolvência e várias certidões de registo predial.
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Em 11 de outubro de 2017 (ref. Citius 99075946 - inserido a página 1855 do processo eletrónico) proferiu-se o seguinte despacho:
“ A petição inicial da presente ação apresenta insuficiências que podem comprometer que podem levar à sua improcedência se não fossem supridas.
Entre essas deficiências estão as de a petição inicial:
a) não estabelecer a cadeia de sucessores na propriedade, ou seja o caminho que trouxe os 12 prédios identificados na petição inicial do primitivos proprietários – que nem sequer são identificados, embora se alegue que os prédios já eram objeto de propriedade particular no ano de 1850 – à titularidade da Autora - nºs. 2 e 3 do art. 15.º da Lei nº 54/2005, de 15/11;
b) não terem sido juntos documentos ou plantas topográficas que permitam apurar a posição dos prédios em relação ao domínio hídrico, como bem se refere na contestação.
A A., notificada da contestação, veio juntar alguns documentos a 07/07/2017.
Porém, os documentos servem para provar os factos alegados na petição inicial e não para substituir a exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir.
Convida-se, pelo exposto, a A., nos termos da alínea a) do art. 590.º do C. de Processo Civil, a aperfeiçoar a petição por forma a que fique claro o “caminho” feito pelos 12 prédios em causa desde 1850 até ela, com a junção dos respetivos documentos.
Adverte-se que deverão ser juntos também os documentos/suporte dos factos registados. As inscrições do registo predial não têm por finalidade demonstrar quem sucede a quem e a que título, mas apenas “dar publicidade à situação jurídica dos prédios” – art. 1.º do C. Registo Predial. De resto, vê-se do n.º 2 do art. 93.º do C. Registo Predial a simplicidade e (digamos) a ligeireza, a brevidade com que são nomeados os sujeitos passivos das inscrições.
Prazo para apresentação da nova petição: 30 dias.
Notifique às partes”.
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Em 29 de janeiro de 2018 (ref. Citius 6716914 – inserida a página 1719 do processo eletrónico) a autora veio apresentar petição aperfeiçoada, na qual renovou os factos alegados na petição e em relação ao prédio urbano que referencia sob o art. ...º iii) - Prédio Urbano denominado Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ... – que o mesmo, há mais de 160 anos que esta na posse e propriedade, dado que:
I. 14/07/1849 (DOC. 3), ESCRITURA DE VENDA, SENDO INTERVENIENTES BB E SUA MULHER DONA CC (VENDEDORES) DA CIDADE DE AVEIRO E DD E EE (COMPRADORES), A SUA MARINHA E PRAIA ... NA RIA DE AVEIRO, AS QUAIS SÃO FOREIRAS AOS HERDEIROS DO FALECIDO FF E SUA MULHER E À FILHA DE GG O NOVO DO LUGAR DE VALE DE ÍLHAVO DE CIMA PELO FORO DE 5 000 RÉIS EM DINHEIRO EM CADA ANO. A PROPRIEDADE CONFRONTA A NORTE COM O POÇO ..., A SUL COM A PRAIA ... E A POENTE COM O LUGAR ....
II. 21/04/... (DOC. 4), ESCRITURA QUE DÁ ORIGEM À DESCRIÇÃO PREDIAL DO Nº... E TRATA-SE DE UMA HIPOTECA QUE EE DÁ COMO FIADOR DE UM EMPRÉSTIMO, DA SUA METADE DA MARINHA QUE LHE PERTENCE DENOMINADA MARINHA ... – SITA NA ... QUE PARTE DO NORTE, NASCENTE E POENTE COM PRAIAS DESTE FIADOR E SUL HH.
III. 31/01/... (DOC. 5), ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DO VENDEDOR, II PELO COMPRADOR, EE, DE UMA MARINHA
DENOMINADA A ..., SITA NA RIA, LIMITE DESTA VILA DE ÍLHAVO, QUE PARTE DO NORTE COM O POÇO ... E DO SUL COM VÁRIOS CONSORTES.
IV. 08/05/... (DOC. 6), ESCRITURA DE COMPRA E FIRME VENDA, SENDO INTERVENIENTES JJ (COMPRADOR) E EE (VENDEDOR), UMA MARINHA ..., DENOMINADA A ..., QUE CONFRONTA A NORTE COM A ..., A SUL COM HH E OUTROS CONSORTES, A NASCENTE COM A ... E A POENTE COM SERVIDÃO DE CONSORTES, PELA QUANTIA DE 650 000 REIS. O VENDEDOR DISSE AINDA QUE A MARINHA É SUJEITA A FORO ANUAL DE 5 000 REIS E 1 LAUDEMIO A KK E IRMÃO LL DO VALE DE ÍLHAVO E QUE COM ESTE ENCARGO A VENDE.
V. 4/06/1892 (INFORMAÇÃO PRESTADA PELA CDI) COMPARECERAM, DE UMA PARTE COMO PRIMEIRO OUTORGANTE MM COMO SEGUNDOS OUTORGANTES NN, COM SEU MARIDO OO, NEGOCIANTES; PP E QQ, VIÚVA DE RR, COSTUREIRA, TODOS RESIDENTES NA VILA DE ÍLHAVO, E NA QUALIDADE DE ÚNICOS HERDEIROS E REPRESENTANTES DO FALECIDO CREDOR EE E DE OUTRA PARTE COMO TERCEIROS OUTORGANTES SS, CASADA, POR SI E COMO PROCURADORA DE SEU MARIDO TT, MAIOR. PELO PRIMEIRO OUTORGANTE MM FOI DITO QUE, O FALECIDO JJ, REPRESENTADO PELA TERCEIRA OUTORGANTE, SUA MÃE E SEU MARIDO, SEUS ÚNICOS HERDEIROS, SE HAVIA CONSTITUÍDO DEVEDOR DA QUANTIA DE TREZENTOS E CINQUENTA MIL REIS, AO FALECIDO EE, PAI E SOGRO DOS SEGUNDOS OUTORGANTES NN E MARIDO PP, E QQ, VIÚVA, DE QUEM ERAM ÚNICOS HERDEIROS. DISSERAM MAIS ELES OUTORGANTES QUE O FALECIDO DEVEDOR, PARA SEGURANÇA DO PAGAMENTO DA DITA QUANTIA, JUROS E DESPESAS, TINHA HIPOTECADO UMA MARINHA DE FAZER SAL DENOMINADA “A ...”, SITA NO LOCAL DA ... LIMITE DA FREGUESIA, E QUE POR BEM CONHECIDA SE NÃO CONFRONTOU, MARINHA ESTA QUE PERTENCIA À TERCEIRA OUTORGANTE E SEU MARIDO, OS QUAIS DISSERAM JÁ TEREM PAGO O RESPECTIVO CAPITAL, PELO QUE OS PRIMEIROS E SEGUNDOS OUTORGANTES DERAM À TERCEIRA OUTORGANTE PLENA PAGA E QUITAÇÃO DO CAPITAL, DECLARANDO QUE PARA TODO OS EFEITOS A DITA MARINHA DE SAL DENOMINADA “A ...”, DESDE AQUELA DATA FICARIA LIVRE E DESEMBARGADA DA DITA HIPOTECA A FAVOR DOS SEUS POSSUIDORES.
VI. 18/07/1898 (INFORMAÇÃO CDI) - ESCRITURA DE EMPRÉSTIMO DE DINHEIRO A JURO COM HIPOTECA, SENDO INTERVENIENTES, UU, COMO CREDORA, GOVERNANTA DE CASA, MORADORA NESTA VILA, MULHER DE VV, CAPITÃO DA MARINHA MERCANTE, ATUALMENTE AUSENTE PARA O BRASIL A BORDO DA BARCA “TENTADORA” E, COMO DEVEDORA, WW, SOLTEIRA, PADEIRA, MORADORA TAMBÉM NESTA VILA. E LOGO PELA DEVEDORA FOI DITO QUE RECEBEU DE EMPRÉSTIMO, DA MÃO DA CREDORA, A QUANTIA DE 150 MIL REIS, E DELA SE CONSTITUI COMO DEVEDORA.
ESTA FICAVA OBRIGADA A RESTITUIR TODA A QUANTIA À CREDORA E, ENQUANTO NÃO O FIZESSE, FICAVA AINDA OBRIGADA AO PAGAMENTO DE JUROS ANUAIS À RAZÃO DE 6 POR CENTO. DAVA COMO SEGURANÇA DE PAGAMENTO A SUA MARINHA DE FAZER SAL E RESPETIVOS PERTENCES, QUE SE CHAMA A “...”, SITUADA NA RIA DE ÍLHAVO, LIMITE DA GAFANHA, DESTA FREGUESIA, QUE CONFRONTAVA A NORTE E NASCENTE COM A CALE DA RIA, A SUL COM HERDEIROS DE [ILEGÍVEL] HH,
DESTA VILA E A POENTE COM VÁRIOS CONSORTES. A PROPRIEDADE É FOREIRA EM 5 MIL REIS ANUAIS A XX, DESTA VILA. A PROPRIEDADE PODE RENDER ANUALMENTE 30 MIL REIS E O SEU VALOR É DE 1 CONTO DE REIS. FORAM TESTEMUNHAS PRESENTES, YY, CASADO, ARTISTA NA FÁBRICA DA VISTA ALEGRE, MORADOR NESTA VILA, ZZ, CASADO, ARTISTA NA MESMA FÁBRICA, MORADOR NESTA VILA E AAA, SOLTEIRO, JORNALEIRO, MORADOR NA ..., DESTA FREGUESIA.
VII. 02/03/1905 (DOC.7) – WW VENDE A BBB
VIII. 05/05/1905 (DOC. 8) – CCC ADQUIRIU PROPRIEDADE POIS WW NÃO TERIA NOTIFICADO O MESMO, SENDO QUE TINHA DIREITO DE PREFERÊNCIA ENQUANTO SENHORIO POR ISSO COLOCOU AÇÃO CONTRA BBB E TEVE PROCEDÊNCIA E TRÂNSITO EM 05/05/1905.
IX. 25/04/1907 (DOC. 9) – BBB COMPRA A CCC;
X. 10/05/1909 (DOC. 10) – BBB VENDE A DDD:
“instaurado por óbito de DDD residente que foi na ..., verificase que adjunto ao mesmo se encontra a Participação extraída do Inventário Orfanológico de EEE e marido DDD, falecidos respetivamente em .../.../1932 e .../.../1944 que correu no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, na qual consta na verba 17 da respetiva relação de bens, a marinha de sal sita na ramalha inscrita na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo .... Aquele artigo deu origem ao prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... (...) com o artigo ... (atual artigo do prédio – informação nossa). Este artigo foi inscrito antes de 30.06.1965, não tendo este Serviço de Finanças elementos que possam indicar o dia e o mês da respetiva inscrição. O artigo ... estava inscrito em nome de FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK e foi averbado na respetiva matriz em nome de A... B.V com base na sisa nº262 de 26.05.1988. Na referida sisa está averbado que foi efetuada a escritura no Cartório Notarial de Ílhavo em 03.06.1988. Consultada a referida sisa, verificase que são vendedores do prédio LLL e esposa MMM, não havendo elementos relativos a aquisição por estes do prédio alienado. Não existem também elementos referentes a venda do prédio em causa pelos titulares da matriz ao tempo, FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK.
XI. 22/08/1988 (ESTÁ NA CRP ATUAL) – LLL E MULHER VENDEM A A..., AQUI AUTORA;
Mais alegou que este prédio apresenta a sua posição face ao domínio hídrico aqui sub judice que melhor pode ser aquilatado com a Planta de Localização que junta.
Conclui que a Autora é dona e legítima proprietária dos acima melhor identificados imoveis, mormente do Prédio Urbano denominado Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ..., seja por si, seja através dos seus antepossuidores.
Mais alegou que desde pelo menos o ano de 1849, que os usam, fruem sempre à vista de toda a gente, com a convicção de estar a exercer um direito seu, próprio, em exclusivo, sem intervalos de não posse, de forma ininterrupta, sem exercer qualquer tipo de violência, quer física quer moral e com a convicção de não estar a prejudicar/lesar direitos alheios, mormente interesses públicos.
Termina por pedir que seja declarado e o Réu condenado a reconhecer a propriedade privada da Autora sobre o prédio Urbano – Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ...,
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Pelo despacho de 07 de março de 2018 determinou-se a notificação da autora para esclarecer se desistia do pedido quanto aos prédios (onze) restantes.
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A autora veio dizer que só com a concordância da comissão de credores poderia desistir do pedido quanto aos onze prédios – art. 55.º, nº 8, do CIRE.
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Notificados os membros da comissão de credores, apenas a Autoridade Tributária se pronunciou no sentido de nada ter a opor à desistência.
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O Ministério Público manifestou-se no sentido de nada ter a opor à desistência.
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Consignou-se no relatório da sentença que ”[…]não pode dar-se como válida a desistência do pedido quanto aos onze prédios não incluídos no pedido da petição aperfeiçoada, a qual (desistência) nem sequer é expressa”.
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Proferiu-se despacho que convidou as partes a apresentarem alegações de direito, por se entender apenas ser admissível prova documental (despacho de 09 de setembro de 2021, ref. Citius 117609188- inserido a página 172 do processo eletrónico).
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Autora e réu apresentaram alegações de direito.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“ Julgo, nos termos e pelos fundamentos expostos, a ação totalmente improcedente e, em resultado disso, absolvo o Estado Português do pedido.
Custas pelo A.”.
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A Autora veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1. Após uma aturada leitura da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo verifica-se que a mesma, para além de não valorar convenientemente a prova produzida, não faz igualmente uma escorreita subsunção ao direito que lhe é aplicável.
2. Nos presentes autos, veio a Apelante, após convite para o efeito promovido pelo Tribunal a quem, apresentar Petição Inicial Aperfeiçoada – a 29.01.2019 – Ref. 6716914 – onde sustenta, alega e prova documentalmente o seguinte:
10) Com efeito, no que concerne ao Prédio Urbano denominado Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ..., melhor descrito supra em 3.º, III), o mesmo, há mais de 160 anos que esta na posse e propriedade de provados, dado que:
XXIII. 14/07/1849 (DOC. 3), ESCRITURA DE VENDA, SENDO INTERVENIENTES BB E SUA MULHER DONA CC (VENDEDORES) DA CIDADE DE AVEIRO E DD E EE (COMPRADORES), A SUA MARINHA E PRAIA ... NA RIA DE AVEIRO, AS QUAIS SÃO FOREIRAS AOS HERDEIROS DO FALECIDO FF E SUA MULHER E À FILHA DE GG O NOVO DO LUGAR DE VALE DE ÍLHAVO DE CIMA PELO FORO DE 5 000 RÉIS EM DINHEIRO EM CADA ANO. A PROPRIEDADE CONFRONTA A NORTE COM O POÇO ..., A SUL COM A PRAIA ... E A POENTE COM O LUGAR ....
XXIV. 21/04/... (DOC. 4), ESCRITURA QUE DÁ ORIGEM À DESCRIÇÃO PREDIAL DO Nº... E TRATA-SE DE UMA HIPOTECA QUE EE DÁ COMO FIADOR DE UM EMPRÉSTIMO, DA SUA METADE DA MARINHA QUE LHE PERTENCE DENOMINADA MARINHA ... – SITA NA ... QUE PARTE DO NORTE, NASCENTE E POENTE COM PRAIAS DESTE FIADOR E SUL HH.
XXV. 31/01/... (DOC. 5), ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DO VENDEDOR, II PELO COMPRADOR, EE, DE UMA MARINHA DENOMINADA A ..., SITA NA RIA, LIMITE DESTA VILA DE ÍLHAVO, QUE PARTE DO NORTE COM O POÇO ... E DO SUL COM VÁRIOS CONSORTES.
XXVI. 08/05/... (DOC. 6), ESCRITURA DE COMPRA E FIRME VENDA, SENDO INTERVENIENTES JJ (COMPRADOR) E EE (VENDEDOR), UMA MARINHA DE SAL SITA NA ..., DENOMINADA A ..., QUE CONFRONTA A NORTE COM A ..., A SUL COM HH E OUTROS CONSORTES, A NASCENTE COM A ... E A POENTE COM SERVIDÃO DE CONSORTES, PELA QUANTIA DE 650 000 REIS. O VENDEDOR DISSE AINDA QUE A MARINHA É SUJEITA A FORO ANUAL DE 5 000 REIS E 1 LAUDEMIO A KK E IRMÃO LL DO VALE DE ÍLHAVO E QUE COM ESTE ENCARGO A VENDE.
XXVII. 4/06/1892 (INFORMAÇÃO PRESTADA PELA CDI) COMPARECERAM, DE UMA PARTE COMO PRIMEIRO OUTORGANTE MM COMO SEGUNDOS OUTORGANTES NN, COM SEU MARIDO OO, NEGOCIANTES; PP E QQ, VIÚVA DE RR, COSTUREIRA, TODOS RESIDENTES NA VILA DE ÍLHAVO, E NA QUALIDADE DE ÚNICOS HERDEIROS E REPRESENTANTES DO FALECIDO CREDOR EE E DE OUTRA PARTE COMO TERCEIROS OUTORGANTES SS, CASADA, POR SI E COMO PROCURADORA DE SEU MARIDO TT, MAIOR. PELO PRIMEIRO OUTORGANTE MM FOI DITO QUE, O FALECIDO JJ, REPRESENTADO PELA TERCEIRA OUTORGANTE, SUA MÃE E SEU MARIDO, SEUS ÚNICOS HERDEIROS, SE HAVIA CONSTITUÍDO DEVEDOR DA QUANTIA DE TREZENTOS E CINQUENTA MIL REIS, AO FALECIDO EE, PAI E SOGRO DOS SEGUNDOS OUTORGANTES NN E MARIDO PP, E QQ, VIÚVA, DE QUEM ERAM ÚNICOS HERDEIROS. DISSERAM MAIS ELES OUTORGANTES QUE O FALECIDO DEVEDOR, PARA SEGURANÇA DO PAGAMENTO DA DITA QUANTIA, JUROS E DESPESAS, TINHA HIPOTECADO UMA MARINHA DE FAZER SAL DENOMINADA “A ...”, SITA NO LOCAL DA ... LIMITE DA FREGUESIA, E QUE POR BEM CONHECIDA SE NÃO CONFRONTOU, MARINHA ESTA QUE PERTENCIA À TERCEIRA OUTORGANTE E SEU MARIDO, OS QUAIS DISSERAM JÁ TEREM PAGO O RESPECTIVO CAPITAL, PELO QUE OS PRIMEIROS E SEGUNDOS OUTORGANTES DERAM À TERCEIRA OUTORGANTE PLENA PAGA E QUITAÇÃO DO CAPITAL, DECLARANDO QUE PARA TODO OS EFEITOS A DITA MARINHA DE SAL DENOMINADA “A ...”, DESDE AQUELA DATA FICARIA LIVRE E DESEMBARGADA DA DITA HIPOTECA A FAVOR DOS SEUS POSSUIDORES.
XXVIII. 18/07/1898 (INFORMAÇÃO CDI) - ESCRITURA DE EMPRÉSTIMO DE DINHEIRO A JURO COM HIPOTECA, SENDO INTERVENIENTES, UU, COMO CREDORA, GOVERNANTA DE CASA, MORADORA NESTA VILA, MULHER DE VV, CAPITÃO DA MARINHA MERCANTE, ATUALMENTE AUSENTE PARA O BRASIL A BORDO DA BARCA “TENTADORA” E, COMO DEVEDORA, WW, SOLTEIRA, PADEIRA, MORADORA TAMBÉM NESTA VILA. E LOGO PELA DEVEDORA FOI DITO QUE RECEBEU DE EMPRÉSTIMO, DA MÃO DA CREDORA, A QUANTIA DE 150 MIL REIS, E DELA SE CONSTITUI COMO DEVEDORA. ESTA FICAVA OBRIGADA A RESTITUIR TODA A QUANTIA À CREDORA E, ENQUANTO NÃO O FIZESSE, FICAVA AINDA OBRIGADA AO PAGAMENTO DE JUROS ANUAIS À RAZÃO DE 6 POR CENTO. DAVA COMO SEGURANÇA DE PAGAMENTO A SUA MARINHA DE FAZER SAL E RESPETIVOS PERTENCES, QUE SE CHAMA A “...”, SITUADA NA RIA DE ÍLHAVO, LIMITE DA GAFANHA, DESTA FREGUESIA, QUE CONFRONTAVA A NORTE E NASCENTE COM A CALE DA RIA, A SUL COM HERDEIROS DE [ILEGÍVEL] HH, DESTA VILA E A POENTE COM VÁRIOS CONSORTES. A PROPRIEDADE É FOREIRA EM 5 MIL REIS ANUAIS A XX, DESTA VILA. A PROPRIEDADE PODE RENDER ANUALMENTE 30 MIL REIS E O SEU VALOR É DE 1 CONTO DE REIS. FORAM TESTEMUNHAS PRESENTES, YY, CASADO, ARTISTA NA FÁBRICA DA VISTA ALEGRE, MORADOR NESTA VILA, ZZ, CASADO, ARTISTA NA MESMA FÁBRICA, MORADOR NESTA VILA E AAA, SOLTEIRO, JORNALEIRO, MORADOR NA ..., DESTA FREGUESIA.
XXIX. 02/03/1905 (DOC.7) – WW VENDE A BBB
XXX. 05/05/1905 (DOC. 8) – CCC ADQUIRIU PROPRIEDADE POIS WW NÃO TERIA NOTIFICADO O MESMO, SENDO QUE TINHA DIREITO DE PREFERÊNCIA ENQUANTO SENHORIO POR ISSO COLOCOU AÇÃO CONTRA BBB E TEVE PROCEDÊNCIA E TRÂNSITO EM 05/05/1905.
XXXI. 25/04/1907 (DOC. 9) – BBB COMPRA A CCC; XXXII. 10/05/1909 (DOC. 10) – BBB VENDE A DDD; “instaurado por óbito de DDD residente que foi na ..., verificase que adjunto ao mesmo se encontra a Participação extraída do Inventário Orfanológico de EEE e marido DDD, falecidos respetivamente em .../.../1932 e .../.../1944 que correu no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, na qual consta na verba 17 da respetiva relação de bens, a marinha de sal sita na ramalha inscrita na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo .... Aquele artigo deu origem ao prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... (...) com o artigo ... (atual artigo do prédio – informação nossa). Este artigo foi inscrito antes de 30.06.1965, não tendo este Serviço de Finanças elementos que possam indicar o dia e o mês da respetiva inscrição. O artigo ... estava inscrito em nome de FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK e foi averbado na respetiva matriz em nome de A... B.V com base na sisa nº262 de 26.05.1988. Na referida sisa está averbado que foi efetuada a escritura no Cartório Notarial de Ílhavo em 100 de 03.06.1988. Consultada a referida sisa, verificase que são vendedores do prédio LLL e esposa MMM, não havendo elementos relativos a aquisição por estes do prédio alienado. Não existem também elementos referentes a venda do prédio em causa pelos titulares da matriz ao tempo, FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK.”
XXXIII. 22/08/1988 (ESTÁ NA CRP ATUAL) – LLL E MULHER VENDEM A A..., AQUI AUTORA;
3.Para prova do supra aludido e ao contrário do que aduz a decisão a quo, com a PI aperfeiçoada, procedeu a Apelante à junção aos autos do comprovativo de inscrição daquele imóvel a favor dos sucessivos possuidores/proprietários, veja-se, para o efeito, as descrições juntas sob doc. n.º 7, doc. n.º 8, doc. n.º 9 e doc. n.º 10.
4. Mais tendo junto, por requesto de 29.11.2018, a respetiva certidão predial e caderneta predial do supracitado prédio e, bem assim, certidão da escritura de venda do citado prédio realizada a 08.05.... e as certidões do registo (com a averbamento da aquisição) do referido imóvel.
5. E, ainda, através do requesto de 15.12.2017, procedeu à junção aos autos de escrituras do prédio aqui sub judice, nomeadamente, de ..., de 1849, de ..., de ... ou de ... e a consequente descrição predial do mesmo.
6. Como tal, da prova documental junto exsuda que, o Prédio Urbano denominado Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ..., encontra-se, desde tempos imemoriais, na posse e propriedade de privados, pelo menos desde 14.07.1849.
7. Sendo certo que, notificado o MP para, querendo, exercer o contraditório – conforme notificação de 31.01.2018, com a ref. 100707396 – o mesmo nada disse, contestou ou contraditou, conformando-se com a factualidade alegada na PI Aperfeiçoada e, bem assim, quanto aos documentos juntos, mormente as certidões de teor dos vários título de transmissão de propriedade do Prédio Urbano denominado Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ....
8.Pelo que, quanto ao mesmo, ao abrigo da Verdade, do Direito e da Justiça deve ser dado provado que:
11) O Prédio Urbano denominado Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ..., melhor descrito supra em 3.º, III), o mesmo, há mais de 160 anos que esta na posse e propriedade de provados, dado que:
XXXIV. 14/07/1849 – POR ESCRITURA DE VENDA, SENDO INTERVENIENTES BB E SUA MULHER DONA CC (VENDEDORES) DA CIDADE DE AVEIRO E DD E EE (COMPRADORES), A SUA MARINHA E PRAIA ... NA RIA DE AVEIRO, AS QUAIS SÃO FOREIRAS AOS HERDEIROS DO FALECIDO FF E SUA MULHER E À FILHA DE GG O NOVO DO LUGAR DE VALE DE ÍLHAVO DE CIMA PELO FORO DE 5 000 RÉIS EM DINHEIRO EM CADA ANO. A PROPRIEDADE CONFRONTA A NORTE COM O POÇO ..., A SUL COM A PRAIA ... E A POENTE COM O LUGAR ....
XXXV. 21/04/... – POR ESCRITURA QUE DÁ ORIGEM À DESCRIÇÃO PREDIAL DO Nº... E TRATA-SE DE UMA HIPOTECA QUE EE DÁ COMO FIADOR DE UM EMPRÉSTIMO, DA SUA METADE DA MARINHA QUE LHE PERTENCE DENOMINADA MARINHA ... – SITA NA ... QUE PARTE DO NORTE, NASCENTE E POENTE COM PRAIAS DESTE FIADOR E SUL HH.
XXXVI. 31/01/... – POR ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DO VENDEDOR, II PELO COMPRADOR, EE, DE UMA MARINHA DENOMINADA A ..., SITA NA RIA, LIMITE DESTA VILA DE ÍLHAVO, QUE PARTE DO NORTE COM O POÇO ... E DO SUL COM VÁRIOS CONSORTES.
XXXVII. 08/05/... – POR ESCRITURA DE COMPRA E FIRME VENDA, SENDO INTERVENIENTES JJ (COMPRADOR) E EE (VENDEDOR), UMA MARINHA DE SAL SITA NA ..., DENOMINADA A ..., QUE CONFRONTA A NORTE COM A ..., A SUL COM HH E OUTROS CONSORTES, A NASCENTE COM A ... E A POENTE COM SERVIDÃO DE CONSORTES, PELA QUANTIA DE 650 000 REIS. O VENDEDOR DISSE AINDA QUE A MARINHA É SUJEITA A FORO ANUAL DE 5 000 REIS E 1 LAUDEMIO A KK E IRMÃO LL DO VALE DE ÍLHAVO E QUE COM ESTE ENCARGO A VENDE.
XXXVIII. 4/06/1892 - COMPARECERAM, DE UMA PARTE COMO PRIMEIRO OUTORGANTE MM COMO SEGUNDOS OUTORGANTES NN, COM SEU MARIDO OO, NEGOCIANTES; PP E QQ, VIÚVA DE RR, COSTUREIRA, TODOS RESIDENTES NA VILA DE ÍLHAVO, E NA QUALIDADE DE ÚNICOS HERDEIROS E REPRESENTANTES DO FALECIDO CREDOR EE E DE OUTRA PARTE COMO TERCEIROS OUTORGANTES SS, CASADA, POR SI E COMO PROCURADORA DE SEU MARIDO TT, MAIOR. PELO PRIMEIRO OUTORGANTE MM FOI DITO QUE, O FALECIDO JJ, REPRESENTADO PELA TERCEIRA OUTORGANTE, SUA MÃE E SEU MARIDO, SEUS ÚNICOS HERDEIROS, SE HAVIA CONSTITUÍDO DEVEDOR DA QUANTIA DE TREZENTOS E CINQUENTA MIL REIS, AO FALECIDO EE, PAI E SOGRO DOS SEGUNDOS OUTORGANTES NN E MARIDO PP, E QQ, VIÚVA, DE QUEM ERAM ÚNICOS HERDEIROS. DISSERAM MAIS ELES OUTORGANTES QUE O FALECIDO DEVEDOR, PARA SEGURANÇA DO PAGAMENTO DA DITA QUANTIA, JUROS E DESPESAS, TINHA HIPOTECADO UMA MARINHA DE FAZER SAL DENOMINADA “A ...”, SITA NO LOCAL DA ... LIMITE DA FREGUESIA, E QUE POR BEM CONHECIDA SE NÃO CONFRONTOU, MARINHA ESTA QUE PERTENCIA À TERCEIRA OUTORGANTE E SEU MARIDO, OS QUAIS DISSERAM JÁ TEREM PAGO O RESPECTIVO CAPITAL, PELO QUE OS PRIMEIROS E SEGUNDOS OUTORGANTES DERAM À TERCEIRA OUTORGANTE PLENA PAGA E QUITAÇÃO DO CAPITAL, DECLARANDO QUE PARA TODO OS EFEITOS A DITA MARINHA DE SAL DENOMINADA “A ...”, DESDE AQUELA DATA FICARIA LIVRE E DESEMBARGADA DA DITA HIPOTECA A FAVOR DOS SEUS POSSUIDORES.
XXXIX. 18/07/1898 - ESCRITURA DE EMPRÉSTIMO DE DINHEIRO A JURO COM HIPOTECA, SENDO INTERVENIENTES, UU, COMO CREDORA, GOVERNANTA DE CASA, MORADORA NESTA VILA, MULHER DE VV, CAPITÃO DA MARINHA MERCANTE, ATUALMENTE AUSENTE PARA O BRASIL A BORDO DA BARCA “TENTADORA” E, COMO DEVEDORA, WW, SOLTEIRA, PADEIRA, MORADORA TAMBÉM NESTA VILA. E LOGO PELA DEVEDORA FOI DITO QUE RECEBEU DE EMPRÉSTIMO, DA MÃO DA CREDORA, A QUANTIA DE 150 MIL REIS, E DELA SE CONSTITUI COMO DEVEDORA. ESTA FICAVA OBRIGADA A RESTITUIR TODA A QUANTIA À CREDORA E, ENQUANTO NÃO O FIZESSE, FICAVA AINDA OBRIGADA AO PAGAMENTO DE JUROS ANUAIS À RAZÃO DE 6 POR CENTO. DAVA COMO SEGURANÇA DE PAGAMENTO A SUA MARINHA DE FAZER SAL E RESPETIVOS PERTENCES, QUE SE CHAMA A “...”, SITUADA NA RIA DE ÍLHAVO, LIMITE DA GAFANHA, DESTA FREGUESIA, QUE CONFRONTAVA A NORTE E NASCENTE COM A CALE DA RIA, A SUL COM HERDEIROS DE [ILEGÍVEL] HH, DESTA VILA E A POENTE COM VÁRIOS CONSORTES. A PROPRIEDADE É FOREIRA EM 5 MIL REIS ANUAIS A XX, DESTA VILA. A PROPRIEDADE PODE RENDER ANUALMENTE 30 MIL REIS E O SEU VALOR É DE 1 CONTO DE REIS. FORAM TESTEMUNHAS PRESENTES, YY, CASADO, ARTISTA NA FÁBRICA DA VISTA ALEGRE, MORADOR NESTA VILA, ZZ, CASADO, ARTISTA NA MESMA FÁBRICA, MORADOR NESTA VILA E AAA, SOLTEIRO, JORNALEIRO, MORADOR NA ..., DESTA FREGUESIA.
XL. 02/03/1905 – POR ESCRITURA WW VENDE A BBB.
XLI. 05/05/1905 – POR ESCRITURA CCC ADQUIRIU PROPRIEDADE POIS WW NÃO TERIA NOTIFICADO O MESMO, SENDO QUE TINHA DIREITO DE PREFERÊNCIA ENQUANTO SENHORIO POR ISSO COLOCOU AÇÃO CONTRA BBB E TEVE PROCEDÊNCIA E TRÂNSITO EM 05/05/1905.
XLII. 25/04/1907 POR ESCRITURA, BBB COMPRA A CCC;
XLIII. 10/05/1909 - POR ESCRITURA, BBB VENDE A DDD;
- “instaurado por óbito de DDD residente que foi na ..., verificase que adjunto ao mesmo se encontra a Participação extraída do Inventário Orfanológico de EEE e marido DDD, falecidos respetivamente em .../.../1932 e .../.../1944 que correu no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, na qual consta na verba 17 da respetiva relação de bens, a marinha de sal sita na ramalha inscrita na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo .... Aquele artigo deu origem ao prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... (...) com o artigo ... (atual artigo do prédio - informação nossa). Este artigo foi inscrito antes de 30.06.1965, não tendo este Serviço de Finanças elementos que possam indicar o dia e o mês da respetiva inscrição. O artigo ... estava inscrito em nome de FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK e foi averbado na respetiva matriz em nome de A... B.V com base na sisa nº262 de 26.05.1988. Na referida sisa está averbado que foi efetuada a escritura no Cartório Notarial de Ílhavo em 03.06.1988. Consultada a referida sisa, verificase que são vendedores do prédio LLL e esposa MMM, não havendo elementos relativos a aquisição por estes do prédio alienado. Não existem também elementos referentes a venda do prédio em causa pelos titulares da matriz ao tempo, FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK.”
XLIV. 22/08/1988 (ESTÁ NA CRP ATUAL) – LLL E MULHER VENDEM A A..., AQUI AUTORA;
9. É inelutável que o Prédio Urbano denominado Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ..., encontra-se, desde tempos imemoriais, na posse e propriedade de privados, pelo menos desde 14.07.1849.
10. Aliás, o próprio tribunal a quo dá por assente tal factualidade em 5.º, 6.º, 7.º e 8.º dos factos provados.
11. Sendo certo que, conforme acima se deixou claro, tal posse e propriedade entre privados deste prédio, verifica-se desde então até aos dias de hoje.
12. Neste sentido, está documentalmente demonstrado o seu trato sucessivo, entre privados, desde 14.07.1849 até ao.
13. Ora, prescreve o n.º 2 do art. 15 da Lei 54/2005 de 15 de Novembro que, “Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868”.
14. Assim, estando provado documentalmente que o prédio urbano – Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ... está na posse e propriedade de privados, desde 14.07.1849 e mostrando-se hoje, a sua propriedade averbada em nome da Apelante, deve tal ser declarado e reconhecido, nos termos do n.º 2 do art. 15 da Lei 54/2005 de 15 de Novembro para todos os legais efeitos.
15. Porém, caso assim não se entenda, o que não se concebe, nem concede, mas cujo raciocínio se expõe por mero dever de patrocínio, impõe-se vincar que, é inelutável, à luz dos factos que ressumam da prova produzida, que o imóvel aqui em questão está na posse e propriedade de privados desde 14.07.1849.
16. Foi transacionado/vendido/onerada a sua propriedade, por negócio entre privados em ..., ... ou ..., conforme certidões das escrituras juntas.
17. Mais tendo sido objeto de registo de aquisição por terceiros nos anos posteriores,
18. Exsudando, dessa forma, inquestionável que desde 14.07.1849 até à presente data está na posse de privados.
19. Pelo que, na hipótese de não se considerar que o trato sucessivo se encontre documentalmente provado – nos termos da n.º 2 do art. 15.º do Lei 54/2005 de 15 de Novembro – tem a propriedade privada do mesmo ser reconhecida, ao abrigo do n.º 3 do citado normativo legal.
20. Termos em que, em prol da Verdade, da Justiça e do Direito deve a decisão a quo ser revogada e substituída por uma outra que declare e reconheça a propriedade privada da Apelante sobre o prédio urbano – Marinha ..., com área de 48.000 m2, sito no lugar da ..., ... da ..., freguesia ... (...), descrito na C.R.P. de Ílhavo, sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º...;
21. Tanto mais que, as presentes alegações de recurso encontram conforto legal nos artigos, no art. 15º da Lei 54/2005 de 05/11, e ainda em todas as demais disposições legais que se considerem aplicáveis in casu.
Termina por pedir que se julguem procedentes por provadas as alegações alterando-se a decisão nos termos das conclusões de recurso.
-
O Ministério Público veio responder ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida não merece censura, pois que dela consta adequada leitura da prova produzida e integração correta e objetiva dos factos apurados, com o detalhe e rigor que se impunha, tal como recolhe as normas relevantes que lhe servem como fundamento jurídico e que aplica em coerência.
2. Um particular que pretenda ver reconhecida judicialmente a propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, terá de proceder a uma reconstituição de todo o historial relativo à situação dos bens, fazendo prova de que os mesmos já eram privados antes de 31 de dezembro de 1864.
3. Só quatro documentos juntos pela Recorrente são relevantes para a pretensão que se arroga, por terem força probatória plena, e destes apenas um é datado anteriormente a 31-12-1864.
4. Os restantes documentos que foram juntos pela Recorrente não possuem força probatória plena, o que se exige para demonstração do direito que se arroga, ou têm data posterior.
5. Os documentos juntos pela ora recorrente não permitem assim comprovar que ocorre o trato sucessivo que alegam na petição inicial.
6. Não sendo admissível, no caso presente, a prova por confissão, face à natureza indisponível dos direitos relativos ao domínio público hídrico em análise, não se pode concluir que se mostra descrito todo o trato sucessivo do referido imóvel desde 14.07.1849, por não sido deduzida oposição pelo Ministério Público com a junção da petição aperfeiçoada.
7. A sentença recorrida não merece qualquer reparo.
Termina por considerar que a sentença recorrida não merece censura.
-
O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão de facto, com fundamento na omissão de factos relevantes para a apreciação do mérito:
- mérito da causa.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1 – Por sentença, proferida a 31/05/2013, foi declarada a insolvência de A... B.V. – fls. 200/204.
2 – Na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo está descrito, sob o nº ... da freguesia ... (...), um prédio urbano denominado “..., Marinha da ... ou da ...”, inscrito na matriz sob o artigo urbano nº ..., com a área de 48.000 m2, que confronta, do norte e nascente, com Ria, do sul, com Praia de EEE e outros, e, do poente, com prédio de vários consortes.
Teve origem na descrição nº ..., Livro ... – fls. 247/250.
3 – Está inscrito, pela Ap. ..., a favor de A... B.V. por compra a LLL e mulher MMM – fls. 247.
4 – Sob o nº 4326 está inscrito na matriz urbana da freguesia ... (...) o seguinte prédio dito na ... – Ílhavo, com a área de 48.000 m2, que confronta, do norte, com Ria, do sul, com praia de EEE e proprietários, do nascente, com Ria, e, do poente, o mesmo. Foi inscrito na matriz em 1969. Tem como titular inscrito A... B.V. – fls. 252.
5 – Por escritura de 14 de julho de 1849, lavrada no tabelião NNN, OOO e mulher D. CC, declararam vender a DD e EE, o Novo, que aceitaram comprar, por 100.000 réis em moeda sonante, a marinha e praia chamadas as ..., sita na Ria de Aveiro nos termos da Vila de Ílhavo, que confrontam, do norte, com o ..., do sul, com PRAIA ..., e POENTE COM O LUGAR ..., as quais são foreiras aos herdeiros do falecido FF e, hoje, sua mulher e filhos e à filha de GG, o Novo – fls. 211/214, transcrita datilografada a fls. 264/266.
6 – Por escritura de 31 de janeiro de ..., II vendeu a EE, por 140.000 réis pagos em ouro e prata, a marinha denominada ... sita na ria limite de Ílhavo, a confrontar, do norte, com o poço de ... e do sul com vários consortes – fls. 221/223, datilografada a fls. 268/270.
7 - Por escritura de 21 de abril de ..., lavrada no tabelião PPP, o Dr. QQQ emprestou, a juros de 6% ao ano, a RRR, o ..., 100.000 réis em bom dinheiro de ouro e prata, que aquele contou e entregou a este, mediante hipoteca de um aido de terra de dois alqueires de semeadura (vinte e oito litros e dois decilitros) e uma terra de semeadura de cinco alqueires e uma terra lavradia de dois alqueires e meio. Deu, ainda, como fiador e principal pagador a EE, o qual hipotecou em garantia a metade da sua marinha denominada ..., sita na ..., que parte, do norte, nascente e poente com praias dele fiador, do sul, com HH – fls. 216/219, datilografada a fls. 271/273.
8 – Por escritura de 08/05/..., lavrada pelo tabelião PPP, EE vendeu a JJ, por 650.000 réis em bom dinheiro de metal sonante, que o vendedor recebeu de contado, a marinha de sal sita na ..., denominada ..., que parte, do norte, com ..., do sul, com HH, e outros consortes, do nascente com a ..., e, do poente, com servidão de consortes. O vendedor transferiu todo o dom, direito, ação e posse que tinha na mencionada marinha e declarou que a dita marinha é sujeita ao foro anual de 5.000 réis e um laudémio a KK e irmão LL, de V... – fls. 225/228, datilografada a fls. 274/276.
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3. O direito
- Ampliação da decisão de facto -
Na presente ação, concluída a fase dos articulados, em sede de saneador, proferiu-se sentença que julgou improcedente o pedido formulado pela autora, que visava o reconhecimento da propriedade de vários prédios.
A apelante insurge-se, apenas, contra o segmento da sentença que julgou improcedente a sua pretensão em relação ao prédio descrito sob o ponto 2, 3 e 4 dos factos provados, com a seguinte descrição:
- ”um prédio urbano denominado “..., Marinha da ... ou da ...”, inscrito na matriz sob o artigo urbano nº ..., da freguesia ... (...), com a área de 48.000 m2, que confronta, do norte e nascente, com Ria, do sul, com Praia de EEE e outros, e, do poente, com prédio de vários consortes, com a inscrição na CRP 2456/19... ”.
A reapreciação da decisão apenas terá por objeto a decisão proferido a respeito da propriedade de tal prédio.
A ação foi instaurada ao abrigo do art. 15º/1/2/3 da Lei 54/2005 de 15 de novembro, que veio definir a titularidade dos recursos hídricos, a qual foi objeto de alterações pela Lei 78/2013 de 21 de novembro, Lei 34/2014 de 19 de junho e por último, pela Lei 31/2016 de 23 de agosto.
Nesta ação está em causa apurar se o referido prédio, cuja propriedade a autora visa reconhecer, foi objeto de propriedade particular ou posse em nome próprio de particulares ou esteve na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
Adiantando soluções somos levados a considerar que o processo não reúne os elementos de facto necessários para a decisão da questão em litígio em sede de saneador.
Dispõe o art. 595º CPC que o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Enquadram-se na previsão da norma as situações em que não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo[2], nomeadamente quando:
- toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento;
- quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos – inconcludência do pedido - para apreciar a pretensão do Autor ou a exceção deduzida pelo Réu;
- quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental[3].
Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos, deve fazer prosseguir a ação, ponderando as diversas soluções plausíveis da questão de direito.
O conhecimento do mérito da causa, em sede de saneador, deve reservar-se para as situações em que o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa e que não seja apenas aquela que o juiz da causa perfilha, devendo assim atender-se às diferentes soluções plausíveis de direito, facultando sempre a ampla discussão da matéria de facto controvertida.
Como refere ABRANTES GERALDES, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça: “[a]pesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas“[4].
Parece-nos ser esta a situação que se verifica na presente ação, por permanecer controvertida matéria de facto relevante para a decisão do mérito, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.
Considerou-se na sentença que:“ [n]ão está feita prova documental aceitável e bastante de que os prédios eram, por título legítimo, desde antes de 31/12/1864, propriedade particular e como propriedade particular se mantiveram até ao presente. A ação tem, pois, de improceder”.
Na posição defendida na sentença a matéria em litígio está sujeita ao regime de prova documental e porque a autora não logrou estabelecer toda a cadeia de atos reveladores da propriedade até à data da instauração da ação, tal circunstância determina a improcedência da ação.
Não perfilhamos tal entendimento, por se considerar que quando está em causa a prova que os terrenos permaneceram ininterruptamente na propriedade privada depois da data de 31 de dezembro de 1864, ou, ainda, a prova da propriedade atual do prédio, não se verificam quaisquer restrições de prova, exceto quanto à confissão, pelos motivos que se vão expor e justificam a anulação da decisão.
Resta salientar antes de entrar na análise da concreta questão, que o despacho[5] proferido no qual o juiz do tribunal “a quo” toma posição sobre a necessidade de apresentar prova documental para prova dos factos e convida os apelantes a apresentar as alegações, não constitui caso julgado em relação à questão que agora se aprecia, porque o tribunal de recurso, pode mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa ( art. 662º CPC ).
Cumpre ter presente desde logo as particularidade do regime jurídico.
A autora visa com a presente ação o reconhecimento de propriedade privada sobre uma parcela de terreno que se situa na margem da ria de Aveiro, a qual se integra de acordo com o regime da Lei 54/2005 de 15 de novembro na área do domínio público hídrico ( art. 2º, 3º/e) “As margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés”).
Como determina o art. 84º/1 a) da CRP pertencem ao domínio público as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos.
Por sua vez o art. 84º/2 CRP prevê que a lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites.
É neste contexto que se enquadra a Lei 54/2005 de 15 de novembro, que veio definir a titularidade dos recursos hídricos, a qual foi objeto de alterações pela Lei 78/2013 de 21 de novembro, Lei 34/2014 de 19 de junho e por último, pela Lei 31/2016 de 23 de agosto.
Atendendo à data da instauração da presente ação - 2017 - aplicam-se, no caso dos autos, as alterações introduzidas ao art. 15º, pela Lei 34/ 2014 de 19 de junho, pois a alteração introduzida pela Lei 31/2016 de 23 de agosto não tem reflexo no caso presente por ter como destinatário as Regiões Autónomas.
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 2º da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro, o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas, incluindo-se, além do mais, no domínio público marítimo as águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas (alínea b) do artigo 3º da Lei nº 54/2005).
O domínio público lacustre e fluvial pertence ao Estado ou, nas regiões autónomas, à respetiva região (artigo 6º, nº 1, da Lei nº 54/2005).
Entende-se por leito o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades, compreendendo-se no leito os mouchões, os lodeiros e os areais nele formados por deposição aluvial (artigo 10º, nº 1, da Lei nº 54/2005).
O leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais, sendo essa linha definida, em cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no caso do mar e em condições de cheias médias, no caso das demais águas sujeitas à influência das marés (artigo 10º, nº 2, da Lei nº 54/2005).
A margem é uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas (artigo 11º, nº 1, da Lei nº 54/2005), tendo a largura de cinquenta metros no caso das águas do mar, bem como das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias (artigo 11º, nº 2, da Lei nº 54/2005).
São particulares, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens de águas do mar e de águas navegáveis e flutuáveis que forem objeto de desafetação e ulterior alienação, ou que tenham sido, ou venham a ser, reconhecidos como privados por força de direitos adquiridos anteriormente, ao abrigo de disposições expressas desta lei, presumindo-se públicos em todos os demais casos (alínea a) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 54/2005).
O art. 15º do citado diploma passou a prever o modo como os particulares podem obter o reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos, nos seguintes termos:
“1.Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio.
2.Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
3. Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
4. Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir -se -ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas.
5. O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que:
a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei;
b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção -Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias;
c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
6. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, compete às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira regulamentar, por diploma das respetivas Assembleias Legislativas o processo de reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, nos respetivos territórios.
Como se tem entendido na doutrina[6] e jurisprudência[7] o regime assim previsto visa reconhecer os direitos adquiridos sobre esses terrenos – parcelas de leitos e margens públicos - por sujeitos privados, antes da entrada em vigor do Decreto de 31 de dezembro de 1864 e do Código Civil de 1867, diplomas que os declararam bens do domínio público e assim se mantiveram.
De igual forma se tem considerado que o regime previsto no art. 15º da Lei 54/2015 de 15 de novembro (com as alterações introduzidas) mantém no essencial a disciplina do art. 8º do DL 468/71 de 05 de novembro, que regia sobre tal matéria.
No caso concreto, cumpre analisar as hipóteses em que se pretende o reconhecimento da propriedade com fundamento no nº2, ou, com base no nº3º, do citado preceito, por ser com tais fundamentos que vem proposta a ação.
O nº2 do preceito prevê as situações em que o interessado dispõe de documentos que lhe permitam provar que os terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade privada antes de 31 de dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
No nº 3 o interessado no reconhecimento não dispõe dos documentos suscetíveis de comprovar a propriedade mas ainda assim encontra-se em condições de demonstrar que nas datas referidas no nº1 os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
Na primeira situação, os atos ou factos a invocar são anteriores àquele período temporal e podem fundamentar o reconhecimento da propriedade privada, porque nesse período a propriedade privada era admitida[8].
Na segunda hipótese, não se exige a demonstração da propriedade, mas da simples prova da posse privada ou fruição conjunta sobre os terrenos, no referido período temporal (antes de 31 de dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868).
Daqui resulta que o reconhecimento da titularidade pode ser alcançado mediante a alegação e prova da propriedade ( nº2 ) ou da posse ( nº3 ).
Contudo, a jurisprudência não tem assumido uma posição uniforme quanto aos requisitos de que depende o reconhecimento do direito.
Segundo um segmento da jurisprudência, alicerçado na posição de JOSÉ MIGUEL JUDICE: defende-se que “o autor tem que provar não apenas que o imóvel em causa estava na propriedade particular quando em 1864 e 1868, se estabeleceram as presunções de dominialidade, como também que nessa condição (propriedade privada) se manteve até à data atual, só assim podendo afastar a mencionada presunção de dominialidade que ensombra a parcela de terreno em causa”.
Esclarece o referido autor que: “compete ao autor demonstrar e provar a originária propriedade privada do bem e a posterior manutenção do bem nessa condição.[…] a presunção de dominialidade terá que ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público”[9].
Tal entendimento justifica-se pelo facto do ónus da prova recair de forma absoluta, sobre o autor e por isso terá o autor que demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada.
Igual interpretação se defende quando em vez do autor alegar a propriedade invoca a posse ou fruição conjunta.
Como observa JOSÉ MIGUEL JUDICE: ”o autor continua a ter que demonstrar e provar, para além da posse ou da fruição conjunta anteriores a 1864 ou a 1868, que a propriedade privada se manteve ininterruptamente depois daquelas datas até à atualidade”[10].
Em qualquer das duas situações – propriedade ou posse – o autor tem de alegar e provar, ainda, que é o atual legitimo proprietário do prédio ou parcela que reclama.
Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os Ac. Rel. Evóra 23 de março de 2017, Proc. 473/13.1TBTVR.E1, Ac. Rel. Porto 04 de outubro de 2021, Proc. 183/19.6T8PVZ.P1, Ac. Rel. Porto 23 de março 2017, Proc. 2634/11.9TBVCD.P1, Ac. Rel. Porto 10 de setembro de 2018, Proc. 25717/16.4T8PRT.P1, Ac. Rel. Porto 09 de março de 2020, Proc. 1925/13.9T2AVR.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Contudo, num outro sentido se tem manifestado a jurisprudência, quando partindo do elemento literal e teleológico na interpretação da norma, considera que para se reconhecer a propriedade privada se mostra suficiente que o autor faça prova da propriedade ou posse no período anterior a 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas, por título legítimo (à luz do Código Civil de Seabra) e ainda, a prova da propriedade atual da parcela que visa reconhecer como fora do domínio público hídrico, não sendo necessária a prova de toda a história de transmissões do bem e do reatamento do trato sucessivo até ao momento presente.
Defende-se, ainda, que se o bem ingressou, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público tais factos constituem um ónus de alegação e prova do réu, nos termos do art. 342º/2 CC, por se tratar de um facto impeditivo do direito do autor. Sendo o réu o Estado, não pode deixar de se entender que é a parte que em melhores condições se encontra para alegar o ingresso no domínio público durante esse período temporal e dispor dos instrumentos aptos a fazer essa prova.
Considera-se que “o entendimento amplo do preceito, segundo o qual o particular interessado deve fazer prova que o terreno permaneceu na condição de “propriedade privada” desde 1864 até ao momento atual, para além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9º, nº 2, do Código Civil), não está de acordo com a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), nem é exigido pela razão de ser do regime jurídico em causa, que teve por objetivo a proteção de direitos adquiridos”[11].
Nesse sentido podem consultar-se, entre outros, os Ac. Rel. Évora 08 de novembro de 2018, Proc. 1675/17.7T8PTM.E1, Ac. Rel. Lisboa 20 de outubro de 2016, Proc. 411/13.1TBPTS.L1-2, Ac. Rel. Lisboa 14 de julho de 2020, Proc. 6948/18.9T8SNT.L1-6, Ac. Rel. Lisboa 15 de dezembro de 2020, Proc. 2960/14.5TBSXL.L1-7 e ainda, o Ac. STJ 30 de novembro de 2021, Proc. 2960/14.5TBSXL.L1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
A apelante nos pontos 13 e 14 das conclusões de recurso defende que os factos apurados são suficientes para se considerar reconhecido o direito. Seguindo a posição da jurisprudência que se acabou de expor, os factos apurados seriam suficientes para tomar uma posição sobre a pretensão da autora.
Porém, invocando a apelante a posse por privados do referido prédio, como aliás admite nos pontos 15 a 19 das conclusões de recurso e omitindo a sentença a apreciação de tais factos controvertidos, considerando a posição defendida na jurisprudência no sentido de recair sobre o autor o ónus de ilidir a presunção de dominialidade, estabelecendo o trato sucessivo do prédio até ao momento presente, não se pode considerar que os factos apurados são suficientes para julgar a pretensão da autora.
A sentença sem abordar tal problemática, considerou não estar provada documentalmente a cadeia ininterrupta de transmissões da propriedade até à data da instauração da ação, considerações que se filiam na posição da jurisprudência que se enunciou em primeiro lugar. Contudo, ignorou que para além da propriedade a autora invocou como fundamento do seu direito a posse do prédio, o que fez na petição e na petição aperfeiçoada e neste caso não existe qualquer limitação a um meio de prova específico (com exceção da confissão). Acresce que a autora invocou a posse por não dispor de documentos que titulam os atos de uso e fruição que foram dados à parcela de terreno[12].
Nos termos do art. 15º/2 do diploma em análise, quem invoque um título legítimo para a aquisição da titularidade tem que apresentar prova documental. A demonstração far-se-á mediante prova de que a propriedade privada em causa foi adquirida por título legítimo antes daqueles marcos temporais (31 de dezembro de 1864 ou se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868).
Para a prova da posse a lei não prevê qualquer modalidade específica, podendo por isso a prova da titularidade fazer-se por qualquer meio de prova legalmente admitida, com exceção da confissão, por se tratar de direitos indisponíveis (art. 354º/b) conjugado com o art. 202º/2 CC).
Pode afirmar-se que fora dos casos previstos no nº5, o particular ou interessado pode exercer o seu direito invocando a propriedade da parcela ou a posse privada.
O legislador distingue os meios de prova a utilizar, consoante se invoca a propriedade ou a posse privada, sendo certo que recai sobre o interessado o ónus da prova dos pressupostos que a lei prevê para o reconhecimento da titularidade.
Portanto, pretendendo obter o reconhecimento da propriedade, por título legítimo, sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, o interessado apenas pode fazer a prova de tais factos por documentos que comprovem que tais terrenos eram por título legítimo objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas ( art. 15º/2 ).
Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ( art. 15º/3 ).
Neste caso são admitidos todos os meios de prova[13], com exceção da confissão, como já se observou, podendo, por isso, o tribunal socorrer-se da prova testemunhal, pericial, inspeção ao local, por presunções judiciais (Ac. Rel. Guimarães de 30 de junho de 2016, Proc. 1564/14.7T8VCT.G1 (www.dgsi.pt) ) e usando um critério de menor exigibilidade ( como se observa no Ac. Rel. Lisboa 20 de outubro de 2016, Proc. 11950-15.0T8SNT.L1-8 ( www.dgsi.pt )[14]).
O legislador apenas fez exigências específicas de prova nos casos do nº 2 do art. 15, ao exigir que o autor faça prova documental que tais terrenos eram por título legítimo objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas.
Quanto à prova de que os terrenos permaneceram ininterruptamente na propriedade privada, ou, na posse, em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa, depois daquelas datas ou atos, mediante reconstituição dos atos transmissivos subsequentes será admissível qualquer meio de prova[15].
A lei não exige um meio específico de prova e a certeza e a segurança que exigem a prova por documentos de factos tão longínquos (anteriores a 1864 ou 1868) não se justificam em relação a factos mais recentes, que se podem demonstrar por recurso a outros meios de prova.
A autora pretende o reconhecimento da titularidade de um prédio, cujas margens confrontam com a ria de Aveiro.
Pretende obter o reconhecimento da propriedade do prédio e invocou a presunção do registo para prova do direito de propriedade, cuja inscrição foi lavrada em 1988 (art. 9º/ X, art. 11º da petição-aperfeiçoada).
De igual forma, alegou factos no sentido de proceder à reconstituição de todo o historial relativo à situação do prédio em causa, para provar que sempre foi objeto de propriedade particular desde data anterior a 31 de dezembro de 1864 (a autora situa em 1849 o primeiro título legitimo de aquisição), o que faz nos art. 5º a 14º da petição e art.5º a 9º, 12º a 15º da petição aperfeiçoada, tentando desta forma provar a posse privada até ao momento presente.
A prova dos factos alegados não depende apenas de prova documental, podendo a autora socorrer-se de outros meios de prova, desde que não seja a confissão.
A decisão recorrida apreciou do direito, sem permitir a produção de prova sobre matéria controvertida: a prova da propriedade privada ou da posse privada ininterrupta desde data posterior a 31 de dezembro de 1864 e até à data da instauração da ação. Os factos não estavam sujeitos apenas a prova documental e por isso, o processo não reunia desde já os elementos de facto necessários para a decisão do litígio em sede de saneador, devendo prosseguir os seus termos com produção de prova.
Conclui-se que se omitiram na apreciação da questão em litígio factos essenciais, sendo certo que a prova produzida se mostra insuficiente para o tribunal de recurso apreciar tal matéria em substituição do tribunal de 1ª instância, o que justifica, em parte, a anulação da sentença, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos com apreciação da matéria controvertida relacionada com a posse privada do prédio, sopesando as várias soluções plausíveis de direito.
Em face do exposto, julgam-se procedentes as conclusões de recurso, anulando-se, em parte, a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos com a produção de prova, sobre os factos enunciados nos art. 5º a 14º da petição e art.5º a 9º, 12º a 15º da petição aperfeiçoada, quanto ao seguinte prédio:
- ”um prédio urbano denominado “..., Marinha da ... ou da ...”, inscrito na matriz sob o artigo urbano nº ..., da freguesia ... (...), com a área de 48.000 m2, que confronta, do norte e nascente, com Ria, do sul, com Praia de EEE e outros, e, do poente, com prédio de vários consortes e inscrito na CRP sob o nº ...”.
-
Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela parte vencida a final, sem prejuízo da isenção de que goza o Ministério Público (art. 4º/1 a) Regulamento das Custas Processuais).
-
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e anular, em parte, a sentença e nessa conformidade devem os autos prosseguir os ulteriores termos com a produção de prova, sobre os factos enunciados nos art. 5º a 14º da petição e art.5º a 9º, 12º a 15º da petição aperfeiçoada, quanto ao seguinte prédio:
- ”um prédio urbano denominado “..., Marinha da ... ou da ...”, inscrito na matriz sob o artigo urbano nº ..., da freguesia ... (...), com a área de 48.000 m2, que confronta, do norte e nascente, com Ria, do sul, com Praia de EEE e outros, e, do poente, com prédio de vários consortes, inscrito na CRP de Ílhavo sob o nº ...”.
-
Custas a suportar pela parte vencida a final, sem prejuízo da isenção de que goza o Ministério Público (art. 4º/1 a) Regulamento das Custas Processuais)
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Porto, 27 de junho de 2022
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
____________________________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum-Á luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013pag. 183
[3] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil , vol. II, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2000, pag. 138.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 402.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum –À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pag.183 a 186.
[4] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, ob. cit., pag. 138. Na jurisprudência, entre outros, seguindo esta orientação pode consultar-se o Ac. Rel. Coimbra 23.02.2010, Proc. 254/09.7TBTMR-A.C1 – endereço eletrónico: www.dgsi.pt.
[5] Cfr.Despacho de 09 de setembro de 2021, ref. Citius 117609188- inserido a página 172 do processo electrónico.
[6] JOÃO MIRANDA “ A titularidade e a Administração do Domínio Público Hídrico Por Entidades Públicas” in RUI GUERRA DA FONSECA e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, coord. Direito Administrativo do Mar, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2016, pag. 169
[7] Cfr. Ac. STJ 04 de junho de 2013, Proc. 6584/06.2TBVNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Cfr. JOSÉ MIGUEL JUDICE. JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, 2ª edição, Almedina, Coimbra, outubro 2015, pag. 95.
[9] JOSÉ MIGUEL JUDICE JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, ob. cit., pag. 97
[10] JOSÉ MIGUEL JUDICE. JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, ob. cit., pag. 101
[11] Cfr. Ac. STJ 30 de novembro de 2021, Proc. 2960/14.5TBSXL.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[12] Cfr. art. 9º da Petição-Aperfeiçoada: “instaurado por óbito de DDD residente que foi na ..., verificase que adjunto ao mesmo se encontra a Participação extraída do Inventário Orfanológico de EEE e marido DDD, falecidos respetivamente em .../.../1932 e .../.../1944 que correu no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, na qual consta na verba 17 da respetiva relação de bens, a marinha de sal sita na ramalha inscrita na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo .... Aquele artigo deu origem ao prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... (...) com o artigo ... (atual artigo do prédio – informação nossa). Este artigo foi inscrito antes de 30.06.1965, não tendo este Serviço de Finanças elementos que possam indicar o dia e o mês da respetiva inscrição. O artigo ... estava inscrito em nome de FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK e foi averbado na respetiva matriz em nome de A... B.V com base na sisa nº262 de 26.05.1988. Na referida sisa está averbado que foi efetuada a escritura no Cartório Notarial de Ílhavo em 03.06.1988. Consultada a referida sisa, verificase que são vendedores do prédio LLL e esposa MMM, não havendo elementos relativos a aquisição por estes do prédio alienado. Não existem também elementos referentes a venda do prédio em causa pelos titulares da matriz ao tempo, FFF, GGG, HHH, III, JJJ e KKK”.
[13] Cfr. JOSÉ MIGUEL JUDICE . JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, ob. cit., pag. 126.
[14] Transcreve-se o excerto da fundamentação para ilustrar a forma como podem ser apreciados os vários meios de prova, fazendo funcionar as presunções judiciais:” No caso dos autos não há dúvida que estamos perante terrenos que se inserem na previsão dos artigos 3º alª e) e 11º da referida Lei 54/2005.
“Assim sendo sempre teria a autora de provar, em primeiro lugar, que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular antes de 22 de Março de 1868, uma vez que se tratam de arribas alcantiladas – cf. art. 15º nº 2, da Lei 54/2005, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 78/2013, de 21-11, e 34/2014, de 19-06.
Nos presentes autos temos provada, de forma directa, a propriedade privada desde 13-05-..., data em que os referidos prédios foram alvo de partilhas amigáveis por banda de J... e J..., por óbito de F... e M..., pais daqueles.
Mas se as partilhas são feitas por óbito dos seus pais – que faleceram respectivamente em 1870 e 1873 – teremos necessariamente que afirmar que, pelo menos a essa data já eram os referidos terrenos objecto de propriedade privada.
Mas nem uma propriedade privada que remonte a 1873 nem a 1870 é suficiente para o ónus que se exige para a procedência da presente acção.
Mas sabemos mais: sabemos que M..., mãe de J... e J..., era natural das ... e filha de M..., o qual já em 1833 pagava contribuições pelas suas vinhas e hortas no lugar de .... E mais ainda: que casou em 1835 e para ali foi residir com F
Entendemos que tal é suficiente para fazer a prova que a Lei 54/2005 exige e que atenta a sua dificuldade terá de, necessariamente, ser objecto de um critério de menor exigibilidade, sob pena de a mesma se assemelhar a uma diabólica probatio, que torne quase impossível, na prática, a sua demonstração. Isto porque não existe documentação das Conservatórias de Registo Predial para todo o território nacional, datada de 1864 e 1868 – a este respeito ver “Guia de Apoio sobre a Titularidade dos Recursos Hídricos”, Setembro 2014, Agência Portuguesa do Ambiente, Governo de Portugal –, não obstante a lei exigir, para prova desta propriedade prova documental.
Mas, ainda assim, poder-se-á dizer que nada nos autos indica que essas vinhas, pelas quais eram pagos impostos já em 1833, eram do terreno que aqui e agora se discute.
Mas o facto é que existem nos documentos registais elementos que à data nos mostram que a propriedade que aqui se discute teria necessariamente uma vinha que era explorada em data anterior a 1868.
Vejamos:
A descrição inicial do prédio sob o nº 4..., feita em 1878, fala já «vinha pegada», sendo do conhecimento comum que semeada uma videira a mesma sempre demora a dar fruto – a pegar – cerca de 5 a 6 anos.
Ora, em Janeiro de 1870 ou Janeiro de 1873 quando morreram F... e M... os mesmos já deixaram vinhas – conforme consta da escritura amigável de partilhas efectuada pelos seus filhos – razão pela qual no limite, recuando 5 anos, já em 1865 ou 1868 as mesmas se encontravam na posse de particulares, no caso F... e M..., tudo levando a crer que os mesmos tivessem iniciado a sua exploração quando foram para lá viver em 1835, quando casaram, ou na pior das hipóteses quando a tivessem herdado de M..., que já em 1833 pagava impostos sobre as mesmas.
Por tudo o exposto somos do entendimento que logrou a autora fazer a prova que tais terrenos eram objecto de propriedade particular antes de 22 de Março de 1868, cumprindo assim o ónus que lhe impunha o nº 2 e 3 do artº 15º da Lei 54/2005”.
[15] Cfr. JOSÉ MIGUEL JUDICE. JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, ob. cit., pag. 128