Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1408/16.5PEGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO
SANEAMENTO DO PROCESSO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RP201801241408/16.5PEGDM.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 2/2018, FLS 131-137)
Área Temática: .
Sumário: Se o juiz divergir da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º C P Penal, deve proceder ao enquadramento jurídico que tenha por correcto daqueles factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1408/16.5PEGDM.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1. No âmbito dos presentes autos Processo Comum (Singular) 1408/16.5PEGDM (do Juízo Local Criminal de Gondomar, Juiz 1, Comarca do Porto) - depois de realizada a instrução que culminou com a não pronúncia dos arguidos B... e C... dos crimes de violência doméstica e ameaça, respectivamente, por que a assistente D...o pretendia que viessem a ser pronunciados na sequência do RAI (requerimento de abertura de instrução) que havia apresentado – foram os autos remetidos à distribuição, e ali distribuídos como Processo Comum (Singular), tendo a Sra. Juíza proferido despacho a rejeitar a acusação que antes havia sido deduzida pela assistente contra o arguido B... e, nessa decorrência, também a não admitir o pedido de indemnização civil que, por esta mesma assistente, igualmente tinha sido deduzido contra este mesmo arguido.

2. Inconformada, a assistente interpôs recurso (constante de fls. 217 a 229), finalizando a respectiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“I- Decidiu o Tribunal a quo rejeitar a acusação particular, determinando o arquivamento dos autos sendo que a recorrente não pode conformar-se com tal decisão por entender que foram violados os artigos 20.º da Constituição da República Portuguesa, artigos 50.º, 285.º, 283.º, n.ºs 3 e 7 311.º, n.º 2 e 312.º, todos do Código de Processo Penal e artigo 181.º do Código Penal.
II- Notificada para o efeito, a aqui recorrente apresentou acusação particular nos termos da qual descreveu que: “No dia 20 de Novembro de 2016, pelas 19horas, a recorrente foi buscar a filha a casa do denunciado tendo este proferido as seguintes expressões “Filha da puta! Mentirosa! Não vales nada! Não prestas!” sendo que, com o referido comportamento, o denunciado ofendeu a recorrente, imputando-lhe factos que não correspondiam à verdade.”
III- Ora, considerando que o artigo 152.º do Código Penal prevê que quem, de um modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos é punido com pena de prisão de um a cinco anos, sendo que, é pacificamente aceite na nossa jurisprudência e doutrina que o crime de violência doméstica consome o crime de injúria.
IV- De qualquer forma, a aqui recorrente identificou o arguido, narrou os factos suficientemente indiciados e indicou as disposições legais aplicáveis.
V- Sucede que o Digníssimo Procurador do Ministério Público não concordou com as disposições legais aplicáveis, não acompanhando a acusação particular deduzida.
VI- Em face de tal, a recorrente requereu abertura de instrução justificando a qualificação jurídica indicada na acusação particular.
VII- Entendeu a recorrente que os factos descritos consubstanciavam um crime de injúria mas que, considerando a especial relação havida entre os intervenientes, que deveria a mesma ser considerada como crime de violência doméstica.
VIII- E, caso assim não entendesse o Digníssimo Magistrado, ao menos, fosse o denunciado pronunciado pela autoria de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal.
IX- Ainda assim, manteve o Digníssimo Procurador do Ministério Público a versão de que os factos descritos pela aqui recorrente, por não se tratar de uma situação reiterada, não é susceptível de preencher o tipo de crime em causa.
X- Ou seja, ainda que baste que se dê de uma só vez, pois o que verdadeiramente distingue o crime de violência doméstica de um crime de injúria é a natureza da relação mantida entre o agressor e a vítima (por existir ou ter existido um carácter íntimo e familiar que faz impender sobre o agressor um especial dever de respeito e cuidado pela vítima, que ao ser violado por aquele, torna a sua conduta bem mais censurável),
XI- E ainda que o Tribunal tenha entendido que “a factualidade apurada faz concluir pela insuficiência de indícios quanto à prática deste ilícito criminal, tanto mais que assistente e arguido já não viviam juntos, evidenciando factos denunciados uma situação familiar tensa, com aspectos por resolver, em que infelizmente os progenitores não têm o bom sendo de proteger os filhos, não os expondo a situações de conflito.”, concluiu que a situação descrita não integra a previsão do crime em causa, remetendo os autos para julgamento.
XII- Ainda que a recorrente tenha qualificado juridicamente o crime de forma com a qual não concorda o MM.º Magistrado do Ministério Púbico, facto é que a “incorrecta” qualificação jurídica dos factos descritos na acusação não conduz necessariamente à sua nulidade, ainda que dessa incorrecção resulte a ilegitimidade do assistente para acusar.
XIII- Ao invés, aquando do saneamento do processo, efectuado com a prolação do despacho previsto no artigo 311.º de que agora se recorre, o juiz poderia e deveria ter corrigido a qualificação.
XIV- Ainda para mais quando da própria abertura de instrução resulta que, não se entendendo estar verificada a indiciação de um crime de violência doméstica, sempre fosse o arguido acusado pelo crime de injúria.
XV- Entende a recorrente, s.m.o, que o MM.º Juiz deveria ter aceite a alteração requerida, recebendo a acusação particular pelo crime de injúria uma vez que a qualificação jurídica descrita na acusação não vincula o Tribunal a quo.
XVI- Assim, e uma vez que os factos descritos na acusação particular consubstanciariam sempre e no limite a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal, deveria o Tribunal a quo ter considerado o acto praticado e, consequentemente deveria conhecer do seu mérito.
XVII- Indubitavelmente os factos mencionados na acusação particular consubstanciam a prática de um crime, que o douto Tribunal a quo não podia, nem devia ter ignorado.
XVIII- A considerar-se existir um vício na acusação particular não seria este invalidador da funcionalidade material desta acusação e face ao ali vertido era possível ao Tribunal recorrido admitir o prosseguimento dos autos, determinando a produção de prova em julgamento e conhecendo, a final do mérito.
Sem prescindir,
XIX- Prevê o n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal que: “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido...”.
XX- Conforme supra descrito, o processo foi remetido para julgamento tendo havido instrução.
XXI- Nos presentes autos, entendemos que a acusação já não podia ser rejeitada, ainda que desacompanhada pelo Digníssimo Procurador do Ministério Público, ao abrigo do disposto no n.º 2, do artigo 311.º do Código de Processo Penal.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V.ª EXª. DOUTAMENTE SUPRIRÁ, DEVERÁ SER REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO NOS TERMOS SUPRA DESCRITOS NAS ALEGAÇÕES E CONCLUSÕES, POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 20.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, ARTIGOS 50.º, 285.º, 283.º, N.ºS 3 E 7 311.º, N.º 2 E 312.º, TODOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E ARTIGO 181.º DO CÓDIGO PENAL, SUBSTITUINDO-O POR OUTRO QUE PROSSIGA PARA JULGAMENTO,
COM AS ULTERIORES CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!

3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 229.
4. O magistrado do Ministério Público, junto da primeira instância, a fls. 233 a 235, respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto (a fls. 245 a 248), emitiu parecer no sentido de que deve ser concedido provimento ao recurso da assistente e revogada a douta decisão recorrida.
6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.
7. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso, a questão a decidir consiste em saber se a acusação da assistente deveria, ou não, ter sido rejeitada, tal como o foi.

2. Apreciando
Definida a questão a tratar, e por forma a sobre ela tomarmos posição, importa fazer, ainda que de forma sintética, uma resenha da evolução/tramitação dos autos desde a parte final da fase de inquérito até ao despacho recorrido.
Ora da análise dos autos, extrai-se o seguinte:
a) Quando os mesmos se encontravam ainda na fase de inquérito, previamente a proferir o despacho final nessa fase processual, o magistrado do Ministério Público titular, no dia 14.03.2017, proferiu despacho com o seguinte teor:
“Notifique a assistente nos termos e para os efeitos do disposto no artº 285°, nº 1, do Código de Processo Penal, informando que apenas foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime de injúria pelo arguido B....
*
Gondomar, d.s.” (cfr. fls. 108)
b) Na sequência de tal notificação, a assistente (a fls. 112 a 115, fax – o original consta a fls. 117 a 120), deduziu acusação particular e pedido de indemnização civil contra o referido arguido B..., constando dessa acusação particular expressamente o seguinte:
I– Da Acusação Particular:
1. Assistente e arguido foram casados durante 9 anos, tendo o matrimónio sido dissolvido em 5 de Julho de 2017.
2. Da constância do matrimónio nasceu a menor E....
3. A menor ficou a residir com a assistente sendo que esta permitia que o pai, aqui arguido, a visitasse livremente, desde que previamente combinado.
4. No dia 20 de Novembro de 2016, pelas 19horas, a assistente foi buscar a menor a casa do pai, conforme combinado, quando o arguido proferiu as seguintes expressões, dirigindo-se à assistente: “Filha da puta! Mentirosa! Não vales nada! Não prestas!”.
5. As referidas expressões foram tidas na presença da menor, filha de ambos.
6. Como se tal não bastasse, o arguido tentou ofender a integridade física da arguida, o que apenas não concretizou por intervenção de outros familiares que se encontravam no local.
7. Facto é que, pese embora a assistente não tenha formalizado qualquer outra queixa contra o arguido, eram frequentes os episódios de violência doméstica enquanto casados.
8. Com o descrito comportamento, o arguido ofendeu a assistente, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe palavras que atentaram contra a sua honra e consideração.
9. Por outro lado, o arguido sabia que estava a imputar factos à assistente que não correspondiam à verdade.
10. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11. Pelo exposto, o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime de violência doméstica, p. e p. pelo n.º 1 e 2 do artigo 152.° do Código Penal.
II- Do Pedido de Indemnização Civil:
(…)”
c) No dia 31.03.2017, em sede de despacho final do inquérito (despacho esse constante de fls. 122 a 127), o magistrado do Ministério Público, manifestando o entendimento que os autos não reuniam indícios suficientes do crime de violência doméstica por parte do arguido B..., nem do crime de ameaça por parte do arguido C..., determinou o arquivamento quanto a tais crimes, nos termos do art. 277º nºs 1 e 2 do CPP.
E quanto àquela acusação particular que a assistente tinha apresentado, o mesmo magistrado ali disse o seguinte:
Não acompanho a acusação particular de fls. 117 e segs., deduzida pela assistente D... contra o arguido B... imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, dado que a mesma carece de legitimidade para o efeito.
Comunique o presente despacho.
E mais mencionou naquele despacho:
Cumpra-se o artº 283°, nº 5, do Código do Processo Penal relativamente à acusação particular que antecede e comunique-se ao arguido o direito conferido pelo artº 287°, n° 1, al. a). do mesmo código.
d) Discordando daquele despacho de arquivamento do inquérito, a assistente (a fls. 144 a 151, fax - o original consta a fls. 155 a 162) apresentou RAI, com ele visando a pronúncia do arguido B..., pelo crime de violência doméstica, e do arguido C..., pelo crime de ameaça.
E terminou o mencionado RAI, concluindo do seguinte modo:
“Nestes termos, e nos demais de Direito que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deverá admitir a abertura de instrução e, consequentemente, proferir despacho de pronúncia quanto ao arguido B..., pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.° do Código Penal e contra C... pela prática de um crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º do Código Penal
Assim não se entendendo, deverá o arguido B... ser pronunciado pelo crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal, alterando-se assim a qualificação jurídica constante da acusação particular (…).
Tudo com as devidas consequências legais.
e) Aberta a instrução, e depois de terem sido indeferidas as diligências de prova que haviam sido requeridas, teve lugar debate instrutório, após o que veio a ser proferida decisão instrutória (constante de fls. 186 a 194), decisão que, depois de mencionar inexistirem indícios suficientes dos invocados crimes de violência doméstica e de ameaça, culminou do seguinte modo:
“Assim, pelas razões enunciadas mantenho o despacho sindicado, cujas razões aqui dou como reproduzidas e determino o oportuno arquivamento dos autos, concordando-se inteiramente com o despacho de arquivamento sindicado.
Considerando que a acusação particular não foi sindicada, apesar de não se encontrar acompanhada pelo MºPº, remeta os autos para julgamento, oportunamente (art.º 307º, 4, do CPP).”
f) Remetidos que foram os autos à distribuição, e distribuídos como processo comum singular, na conclusão que lhe foi aberta, logo a Sra. Juíza proferiu o seguinte despacho que constitui o objecto do presente recurso (transcrição):
“Nos termos do artigo 48º e 53º, n.º 2, b) e c) do Código de Processo Penal, compete ao Ministério Público promover o processo penal, designadamente dirigir o inquérito e deduzir acusação.
Apenas quando o procedimento criminal depender de acusação particular do ofendido ou de outras pessoas, será a acusação deduzida por estes – artigos 50º, n.º 1 e 285º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Quando não dependa, pode o assistente também deduzir acusação desde que seja pelos factos já acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles – artigo 284º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Ora, nos presentes autos, a assistente deduziu acusação quanto ao crime de natureza pública de violência doméstica pelo qual apenas o Ministério Público tem legitimidade para acusar, sendo que veio este posteriormente a determinar o arquivamento dos autos quanto a esse crime, posição confirmada em sede de instrução.
Assim, nunca a assistente teria legitimidade para deduzir, por si só, acusação quanto ao referido crime.
E atente-se que, pese embora tenha pretendido, aquando da apresentação de requerimento para abertura de instrução, alterar a qualificação jurídica dos factos que acusou para um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal (conforme se extrai do seu pedido subsidiário de fls. 162), fê-lo, salvo melhor opinião, extemporaneamente, pois essa eventual alteração teria que ser requerida no decurso do prazo preclusivo de que dispunha para dedução da acusação particular previsto no artigo 285º CPP, o que não sucedeu no caso.
Por outro lado, não pode este tribunal neste momento em que é proferido o despacho determinado pelo artigo 311º CPP proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação particular, quer porque o preceito o não prevê, quer porque essa faculdade é reservada à fase de julgamento (artigo 358º, n.º 3 CPP), cabendo-lhe apenas verificar se o processo reúne as condições necessárias para prosseguir para a fase de julgamento, o que, no caso em apreço, há-de concluir-se de modo negativo por falta de legitimidade da assistente para deduzir a acusação particular, delimitadora do objecto processual (em termos factuais e jurídicos), nos termos em que o fez.
Pelo exposto, e nos termos dos artigos 48º, 53º, n.º 2, c) e 311º, n.ºs 1 e 2, a) do CPP, não tendo esta matéria sido objecto de apreciação em sede de instrução, rejeito a acusação particular, determinando o arquivamento dos autos.
*
Quanto ao pedido de indemnização civil, não sendo admitida a acusação particular cujos factos o sustentavam, mostra-se prejudicado o princípio da adesão que permitia o conhecimento conjunto das matérias cível e criminal, pelo que não será conhecido.
(…)”

Feita esta resenha do evoluir dos autos até ao despacho recorrido, salvo o muito devido respeito pela Sra. Juíza a quo e pelo magistrado do Ministério Público da 1ª instância, somos do entendimento que a razão está do lado da assistente/recorrente e do Exmo. PGA junto desta Relação quando propugnam que, em face dos factos nela narrados e perante o subsidiário pedido de alteração da qualificação jurídica que havia sido efectuado aquando do RAI, a acusação particular deveria ter sido recebida com a correcção da respectiva qualificação jurídica para o crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º nº 1 do Código Penal.
É certo que a assistente não tinha legitimidade para acusar um crime de violência doméstica, uma vez que este tipo de crime reveste natureza semi-pública.
Também é por demais consabido que um assistente apenas, e tão só, pode acusar por crimes de natureza particular, contanto que tenha apresentado a respectiva queixa em tempo oportuno e sido admitido a intervir nos autos nessa posição de assistente.
Porém, se bem analisarmos aquela acusação particular, apesar de terem sido qualificados pela assistente como integradores do crime de violência doméstica, os factos nela constantes apenas e tão só são susceptíveis de integrar a prática pelo arguido B... de um crime de injúria p. e p. pelo art. 181º nº 1 do Código Penal, pois nela estão tão somente perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos de tal tipo legal de crime (e jamais de um crime de violência doméstica).
Poder-se-á dizer que a assistente (ou melhor a sua ilustre mandatária), no mínimo foi imprevidente (senão mesmo até errática), ao qualificar os factos da forma como o fez.
Não haverá grandes dúvidas disso, tanto mais que até veio a apresentar a sua acusação na sequência daquele isolado despacho-convite de fls. 108, emitido pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito, no qual este determina a notificação da assistente “nos termos e para os efeitos do disposto no artº 285°, nº 1, do Código de Processo Penal, informando que apenas foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime de injúria pelo arguido B....”
Porém, quando surpreendida com o despacho final do inquérito, no qual o Ministério Público determina o arquivamento dos autos quanto aos crimes de violência doméstica e de ameaça (este relacionado com outro arguido), ao requerer a abertura de instrução por forma a que os dois arguidos fossem pronunciados (um pelo crime de violência doméstica e outro pelo crime de ameaça) no final do RAI, a assistente teve o cuidado de pedir, caso o arguido B... não fosse pronunciado pelo crime de violência doméstica, que o mesmo fosse pronunciado “pelo crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, alterando-se a qualificação jurídica constante da acusação particular”.
E nem uma palavra foi dito pela Sra. JIC, quando é por demais consabido que o crime de violência doméstica, como crime complexo que se trata é capaz de aglutinar uma multiplicidade de comportamentos que individualmente considerados poderão atingir uma diversidade de bens jurídicos como, por exemplo, a integridade física, a honra, a liberdade individual, a liberdade de autodeterminação, etc, sendo que o não preenchimento do crime de violência doméstica não afasta a possibilidade do agente poder ser punido pelo tipo legal de crime (ou de crimes) residual(ais) que autonomamente proteja um destes últimos bens jurídicos que se possam mostrar violados.
Com efeito, tal como tem sido considerado por uma grande parte da nossa jurisprudência defensora de que se na fase de julgamento, em que um arguido tinha sido acusado por violência doméstica (acusação onde, por exemplo, também eram incluídas agressões físicas), apenas se vêm a provar factos (correspondentes àquelas agressões físicas) que apenas integram o crime de ofensas à integridade física simples, isso representa um minus relativamente aos factos que constavam da acusação, motivo pelo não se torna necessário fazer apelo ao disposto no art. 358º do Código de Processo Penal, uma vez que já sobre eles o arguido tinha, em sede de audiência de julgamento, exercido plenamente o seu direito de defesa.[1]
Por outro lado, diversamente do plasmado na decisão recorrida, somos do entendimento que no momento da prolação do despacho a que alude o artigo 311º do CPP o juiz é livre de alterar a qualificação jurídica que tinha sido dada na acusação, pois a lei nada prevê expressamente.
Com efeito, se por um lado aquele preceito relativo ao conteúdo do despacho de saneamento não alude à possibilidade de uma alteração pelo juiz da qualificação jurídica constante da acusação, por outro lado, inexiste norma legal que preveja um procedimento específico nesta fase com vista a acautelar o contraditório e os direitos de defesa do arguido.
Por isso, a jurisprudência se vem dividindo, havendo uma corrente que defende que a alteração da qualificação jurídica não é consentida pelo artigo 311º do CPP (cfr. entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 29.04.2004 (in CJ, Ano XXIX, tomo II, pág. 141 e 142), de 08.06.2006 (in CJ, XXXI, tomo I, pag. 135 a 137) e de 11.11.2004 (in CJ, XXIX, tomo V, pag. 131 e 132), os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 05.01.2000 (in CJ, Ano XXV, Tomo I, pag. 42 a 44) e de 12.13.2006 (Proc. nº 288/05.0TAAGD.C1); Acórdãos desta Relação do Porto, de 30.05.2012 (Proc. nº 130/10.0PEPRT.P1, rel. Moisés Silva), de 21.11.2001 (Proc. nº 0140532, rel. Agostinho Freitas), e o Acórdão da Relação de Guimarães, de 22.05.2015 (Proc. 541/13.0GBGMR-A.P, rel. João Lee Ferreira), todos in www.dgsi.pt.
e outra que defende que, aquando do saneamento do processo a que se reporta o art. 311º do CPP, o juiz pode (e deve) proceder ao enquadramento jurídico-penal que tenha por mais adequado se divergir da qualificação jurídica dos factos da acusação (cfr., entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 02.06.2009 (Proc. 85/08.1PEPDL-A.L1 5ª Secção, in www.pgdlisboa.pt) e de 04.11.2009 (Proc. nº 130/08.0PALSB-B.L1, rel. Maria José Costa Pinto, in www.dgsi.pt); os Acórdãos desta Relação do Porto, de 03.19.2013 (Proc. n.º 0713707, rel. Francisco Marcolino), de 22.05.2013 (Proc. nº 573/12.5JAPRT-A.P1, rel Vitor Morgado), de 20.11.2013 (proc. 438/12.0SLPRT.P12, rel. Eduarda Lobo), todos in www.dgsi.pt; o Acórdão da Relação de Coimbra de 30.06.2010 (Proc. nº 149/08.1TAVGS.C1, rel. Paulo Guerra, in www.dgsi.pt); os Acórdãos da Relação de Évora, de 20.01.2009 (Proc. nº 3003/08, rel. Ribeiro Cardoso), de 24.03.2009 (Proc. nº 2608/08-1, rel. Gilberto Cunha) e de 23.02.2016 (Proc. nº 987/09.8PASLGS.E1, rel José Martins Simão), todos in www.dgsi.pt; e o Acórdão da Relação de Guimarães, de 03.07.2006 (in CJ, XXXI, Tomo 3, pags. 305 a 307).
Cientes da divergência dos argumentos expendidos em prol de uma ou outra posição, entendemos ser de sufragar a tese que está em consonância com a liberdade de qualificação jurídica que ao tribunal deve ser reconhecida e assegura, simultaneamente, os direitos de defesa do arguido e o princípio do contraditório.
Não consta, na verdade, do artigo 311.º do Código de Processo Penal que incumba ao juiz, neste momento de saneamento, verificar o acerto da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nem nele se prevê qualquer mecanismo para assegurar o contraditório, caso o juiz proceda a uma alteração dessa qualificação.
Porém, tal não significa que haja obstáculos a que o possa fazer, sendo nosso entendimento que, se divergir da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º do CPP, o juiz deve proceder ao enquadramento jurídico que tenha por correcto daqueles factos.
Por eloquentes e esclarecedoras, transcrevem-se as considerações constantes do Acórdão da Relação de Lisboa de 04.11.2009, citado no Ac. Rel. Coimbra de 30.06.2010, sendo este também citado no Acórdão desta Relação do Porto de 20.11.2013 (todos já supra elencados no sentido de assistir ao Juiz liberdade na qualificação jurídica dos factos que são trazidos à lide pela acusação): «O Código de Processo Penal não prevê expressamente esta hipótese, porque não era necessário fazê-lo. A determinação do direito, nunca é demais salientar, constitui o cerne da função judicial e incumbe ao julgador efetuá-la livremente, em obediência aos artigos 202.º a 205.º da Constituição, em cada momento em que é chamado a interpretar e aplicar a lei aos factos de que lhe é lícito conhecer (cfr. ainda as disposições estatutárias dos artigos 3.º e 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho).
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2009.09.17 (Processo n.º 169/07.3GCBNV.S1 in www.dgsi.pt), “se ao Ministério Público compete fazer a acusação, ao tribunal (e só a ele) compete constitucionalmente aplicar a lei e dizer o direito, decidindo os casos que lhe são apresentados e sendo independente nessa função (art. 203.º da CRP). Estando vinculado à lei e sendo independente, o tribunal tem liberdade para qualificar juridicamente de maneira diversa os factos descritos na acusação, apenas devendo prevenir o arguido de qualquer alteração de qualificação, nos termos sobreditos. Não há invasão de esferas de atividade ou atropelamento do princípio do acusatório. Havê-lo-ia no caso contrário, ou seja, se se impusesse ao juiz de julgamento a qualificação jurídica efetuada pela entidade acusadora (Cf. Frederico Isasca, ob. cit., p. 102).”
É por isso que o artigo 311.º (o preceito primeiro do Livro VII do Código de Processo Penal, dedicado ao “Julgamento”) não estabelece quaisquer constrangimentos em termos de qualificação jurídica.
E por isso, também, o n.º 4 do artigo 339.º estabelece expressivamente que: «Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º»
Este mecanismo previsto no n.º 1 do artigo 358.º de comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (ex vi do n.º 3 do mesmo preceito), justifica-se quando o tribunal entenda dever alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia no decurso da audiência.
Mas se entende dever fazê-lo antes, vg. no momento do saneamento do processo, nada obsta a que qualifique livremente e em sua consciência os factos que o Ministério Público imputa ao arguido.
E a salvaguarda do contraditório e do exercício do direito de defesa aconselha a que o faça desde logo. Na verdade, conhecedor de uma perspetiva jurídica do juiz do julgamento apta a agravar a sua responsabilidade, o arguido melhor poderá exercer o direito de defesa: quer desenhando a sua contestação em termos de responder já à qualificação jurídica dos factos da acusação – que são os mesmos – que corresponde à perspetiva do juiz do julgamento; quer organizando globalmente a prova que vai oferecer contando com a nova qualificação; quer, também - para responder a uma preocupação expressa pelo Tribunal Constitucional -, escolhendo mais lucidamente o advogado que entende melhor o defender perante a nova perspetiva jurídica dos factos que lhe são imputados.
Ou seja, pode desde logo fazer todas as opções básicas da sua estratégia de defesa face a um enquadramento jurídico-penal preciso que, em princípio, corresponde ao entendimento do juiz que o vai julgar.
Tem, deste modo, maiores garantias do que as que teria caso se vedasse ao juiz do julgamento o poder de expressar a sua perspetiva jurídica dos factos constantes da acusação, por se considerar que apenas o poderia fazer no decurso da audiência e no condicionalismo estabelecido nos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, em que ao arguido é concedido, apenas, o “tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.
Como se refere no citado Acórdão da Relação de Lisboa de 2005.10.12 se (até) em sede de audiência o tribunal pode dar aos factos o tratamento jurídico mais conveniente (desde que seja facultada ao arguido oportunidade de defesa, nos termos do art. 359.º, n.º 3, do CPP), não se descortina qualquer valor ou princípio jurídico que obste a que tal seja efetuado no momento processual do saneamento do processo, nomeadamente os princípios do acusatório e da vinculação temática do tribunal ao objeto do processo: se a convolação não viola estes princípios quando é efetuada no julgamento, por maioria de razão os não pode violar quando tem lugar em momento processual anterior à própria contestação do arguido».
Daqui decorre que a qualificação jurídica dos factos imputados – que é exclusivamente a aplicação do direito ao caso – é livre para o tribunal e pode ser alterada quando profere o despacho de saneamento a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal. E nem sequer se terá de mandar cumprir expressa e obrigatoriamente, por analogia, o artigo 358º do CPP, na medida em que só agora é que se vai iniciar a fase do julgamento, tendo o arguido o prazo da contestação para tomar posição sobre a nova fisionomia jurídica dos autos.
E como referido no Acórdão desta Relação do Porto, de 20.11.2013, “sabemos que é mister do juiz, ao receber a acusação, nos termos do artigo 313º do CPP, indicar as disposições legais aplicáveis – se quanto aos factos, poderá sempre remeter para a letra da acusação, já quanto a qualificação jurídica de tais factos terá ele que indicar expressamente o novo crime que guiará os autos a partir desse momento e relativamente ao qual se terá agora de defender o arguido.
Sendo esse despacho notificado ao arguido, está feita a comunicação do novo rumo dos autos”
Poder-se-ia ainda objectar, como fazem alguns, com o facto de tendo havido instrução, estaria vedada ao juiz do julgamento a possibilidade de alterar a qualificação jurídica que tinha sido considerada pelo juiz de instrução.
Todavia, no nosso caso, pese embora tenha havido instrução, a mesma culminou no sentido da manutenção do arquivamento dos autos quanto aos crimes de violência doméstica e de ameaça (sendo que com a realização de tal fase processual a assistente pretendia a pronúncia dos arguidos), sem que a Sra. JIC tivesse tomado qualquer posição concreta quer quanto aos factos e incriminação que constavam da acusação particular quer quanto à pretendida alteração da qualificação jurídica para o crime de injúria, limitando-se apenas a remeter os autos para julgamento com o simples argumento de que tal acusação particular “não foi sindicada”!
Assim, e na decorrência de tudo o que vimos dizendo, considerando que os factos insertos na acusação particular de fls. 112 e segs. integram os elementos objectivos e subjectivos do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º nº 1 do Código Penal, e bem assim que ao juiz do julgamento não estava vedada a possibilidade de alterar a qualificação jurídica dos factos naquela constantes, impõe-se que, no âmbito dos arts 311º e segs. do CPP, e se nenhum outro motivo de rejeição existir, seja proferido despacho a receber a acusação deduzida pela assistente contra o arguido B..., alterando a qualificação jurídica para o mencionado crime de injúria p. e p. pelo art. 181º nº 1 do CP e seja liminarmente admitido o correspondente pedido de indemnização civil, designando-se data para a realização de audiência de julgamento e, assim, prosseguindo o processo os demais trâmites legais.
Impõe-se, pois, dar provimento ao recurso interposto pela assistente.

III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo provimento ao recurso interposto pela assistente, revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, se nenhum outro motivo de rejeição existir, receba a acusação deduzida pela assistente contra o arguido B..., alterando a qualificação jurídica que dela constava para o crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º nº 1 do Código Penal, e admita liminarmente o correspondente pedido de indemnização civil, designando data para a realização de audiência de julgamento, assim prosseguindo o processo os demais trâmites legais.
Sem tributação.
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(Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos signatários)
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Porto, 24 de Janeiro de 2018
Luís Coimbra
Maria Manuela Paupério
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[1] “Não há alteração, substancial ou não, dos factos da acusação, quando os factos provados representam um minus relativamente àqueles, não sendo sequer necessária, nestes casos, a comunicação a que alude o artigo 358º do Código de Processo Penal” (Ac STJ de 12/11/2003, proc. 1216/03.-3ª SASTJ, nº 75, 93). E neste mesmo sentido também se pronunciam, entre outros, o Prof. Pinto de Albuquerque, no "Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 4ª Edição, 2011, a páginas 930 e o Cons. Maia Gonçalves, no “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 17ª Edição, 2009, pág. 815.