Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
64/16.5GBAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
PERDA DE VEÍCULO
Nº do Documento: RP2016110964/16.5GBAMT.P1
Data do Acordão: 11/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1030, FLS.233-237)
Área Temática: .
Sumário: A circunstância de a viatura ter sido utilizada na condução na via publica sem habilitação legal não permite concluir só por si haver sério risco de que o venha ser novamente, porque esse risco é inerente a qualquer viatura de que o arguido possa ser proprietário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 64/16.5 GBAMT.P1
Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo sumário nº 64/16.5GBAMT.P1, da Instância Local Criminal de Amarante Comarca do Porto Este, o arguido B… foi submetido a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Assim, e pelo exposto, julgo a acusação pública procedente por provada, e em consequência decido condenar o arguido B…:
a) como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.0, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3/1, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
b) nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em 1 U, já reduzida a metade atenta a confissão do arguido.
A pena de 6 (seis) meses de prisão, nos termos do artigo 50.°, n.º 1 e 5, do código penal, é suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, com a obrigação de entregar a quantia de € 250 (duzentos e cinquenta euros) à instituição "C…", de Amarante, no prazo de 90 dias, devendo comprovar tal entrega no mesmo período.
***
Após trânsito em julgado, remeta boletim ao registo criminal.
***
Nos termos do disposto no artigo 109.°, do código penal, por entender que o arguido tem um veículo à sua livre e inteira disposição, o que facilita a prática de novos ilícitos como o ora em apreço, bem como o facto de o arguido ter utilizado este mesmo veículo na condução na via pública sem habilitação legal, é por demais certo que o arguido vai continuar a utilizar este veículo automóvel, mesmo não tendo carta de condução que o habilite a conduzir este veículo na via pública. Por conseguinte, o arguido não pode continuar a dispor livremente do referido veículo.
Assim sendo, declaro perdido a favor do Estado o veículo automóvel, de matrícula RD-..-...
(…)
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, no qual e em síntese coloca as seguintes questões:
(…)
a)Vem o presente recurso interposto, porque o arguido/ recorrente não se conforma com a douta sentença.
b)O recorrente nada tem a opor à pena de 06 (seis) meses de prisão, nos termos do artigo 50°, n" 1 e 5 do Código Penal, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano.
c) Contudo, entende que declarar a perda a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula RD-..-.. é manifestamente exagerado.
d)Está provado que o arguido sofreu duas condenações pelo crime de condução sem habilitação legal.
e)O Tribunal "a quo" entende que ""o arguido tem um veículo à sua livre e inteira disposição, o que facilita a prática de novos ilícitos como o ora em apreço, bem como o facto de o arguido ter utilizado este mesmo veículo na condução na via pública sem habilitação legal, é demais certo que o arguido vai continuar a utilizar este veículo automóvel, mesmo não tendo carta de condução que o habilite a conduzir este veículo na via pública. Por conseguinte, o arguido não pode continuar a dispor livremente do referido veículo".
f) O automóvel que o Requerente conduzia não é o instrumento do crime.
g) A perigosidade que se pretende combater com a perda do veículo é a do agente/ Recorrente e não a do objeto, finalidade que não é tutelada pelo artigo 109° do Código Penal.
h) Um veículo automóvel não é, na generalidade das situações em que os mesmos são utilizados na prática de factos ilícitos típicos, um objeto que, pela sua natureza, ponha em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública ou seja especialmente vocacionado para ser utilizado no cometimento de crimes.
i) Não obstante as condenações já registadas pelo Recorrente a título de condução ilegal, não existe risco de este utilizar o veículo automóvel de matrícula RD-..-.. para o cometimento de outro crime de condução sem habilitação legal durante o período de suspensão da pena, o levará a cumpri-­la, sendo bastante para o afastara da prática de novos crimes.
j) É manifesto que o Recorrente pode praticar o crime de condução sem habilitação legal com o veículo dos autos ou com qualquer outro, sendo que é claro, mais sério o risco do Recorrente utilizar o veículo de matrícula RD-..-.., por estar à mão, mas tal não constitui argumento decisivo de reutilização do veículo propriedade do Recorrente em novas infrações.
k) Não obstante o extenso registo criminal do Recorrente por condução ilegal, se o Meritíssimo Juiz "a quo" entendeu que a suspensão da pena era adequada por considerar que a simples censura do facto e a ameaça da pena eram suficientes para prevenirem a prática de futuras infrações, afastando o arguido da criminalidade, então não faz sentido impor urna medida complementar preventiva, a da perda do veículo, desnecessária e desproporcionada, tanto mais que ainda considera que o Recorrente tem hipóteses de recuperação e corno tal deu-lhe uma última oportunidade.
l) Na verdade, o tribunal entendeu, mesmo sendo a terceira vez, que a suspensão era adequada por se considerar que a simples censura do facto e a ameaça da pena seriam suficientes para prevenirem a prática de futuras infrações, afastando o arguido da prática da criminalidade.
m) Então se considerou tal regime o adequado e suficiente para a prevenção de novas infrações, porquê impor uma medida complementar preventiva, a da perda do veículo, se ainda considera que o arguido tem hipóteses de recuperação e lhe deu uma última oportunidade?
n) A douta sentença recorrida violou o disposto no n° I do artigo 109° do Código Penal e deve ser revogada na parte que declarou o veículo apreendido nos autos como perdido a favor do Estado, ordenando-se a sua restituição ao seu proprietário.
Disposições legais violadas:
Artigo 374° n" 2 do Código de Processo Penal; Artigo 410° n" 2, alínea b) do Código Processo Penal; Artigo 109° do Código Penal.
(…)

O Magistrado do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer assertivo no sentido do provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
1°) No dia 27 de janeiro de 2016, pelas 19 horas e 10 minutos, o arguido B… conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula RD-..-.., de sua propriedade, na avenida 1 ° de maio, em Amarante, sem que fosse possuidor de carta de condução ou titular de outro documento com força legal equivalente que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo a motor ou outro.
2°) O arguido agiu livre e deliberadamente, com intenção de conduzir, sem causa justificativa, aquele veículo, não obstante saber que era imprescindível e necessário ser titular de documento que o habilitasse a conduzir veículos motorizados na via pública, emitido e passado pela entidade oficial competente, o qual não possuía.
3°) Bem sabia o arguido que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei. Mais se provou que:
4°) O arguido é casado.
5°) Trabalha como ferrageiro, auferindo €505 por mês. A esposa trabalha como ajudante de cozinha, em part-time, recebendo em média cerca de €200 mensais.
6°) Tem dois filhos, de 19 e 18 anos de idade, encontrando-se o mais novo a estudar. 7°) Vive em casa arrendada, pagando €300 por mês de renda.
8°) Tem o 6° ano de escolaridade.
9°) Nas outras duas condenações anteriores de condução sem habilitação legal, foi utilizado este mesmo veículo.
10°) O arguido foi condenado no processo sumário n.º 1238/09.0 GBAMT, do extinto 1 ° juízo do tribunal judicial da comarca de Amarante, por factos praticados no dia 25 de setembro de 2009, que integram um crime de condução sem habilitação legal, por sentença proferida no dia 28 de setembro de 2009, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €6.
11°) O arguido foi condenado no processo sumário n.º 469/14.6 GBAMT, do agora extinto 2° juízo do tribunal judicial da comarca de Amarante, por factos praticados no dia 2 de junho de 2014, que integram um crime de condução sem habilitação legal, por sentença proferida no dia 3 de junho de 2014, na pena de 190 dias de multa à taxa diária de €5.

(…)
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir é saber se o veículo automóvel utilizado na prática do crime deve ser declarado perdido a favor do Estado, como decidiu a decisão recorrida.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
Dispõe o artº 109º nº1 do CP «.São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso puserem em risco a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto
A decisão recorrida fundamentou a declaração de perdimento do veículo nos seguintes termos:
Nos termos do disposto no artigo 109.°, do código penal, por entender que o arguido tem um veículo à sua livre e inteira disposição, o que facilita a prática de novos ilícitos como o ora em apreço, bem como o facto de o arguido ter utilizado este mesmo veículo na condução na via pública sem habilitação legal, é por demais certo que o arguido vai continuar a utilizar este veículo automóvel, mesmo não tendo carta de condução que o habilite a conduzir este veículo na via pública. Por conseguinte, o arguido não pode continuar a dispor livremente do referido veículo.
Assim sendo, declaro perdido a favor do Estado o veículo automóvel, de matrícula RD-..-….”
Como resulta do art. 109º nº1 do CP, pressuposto da perda dos objectos é que os mesmos tenham sido utilizados na prática de uma actividade criminosa ainda que tentada, bastando que “estivessem destinados” a tal utilização.
Para além disso é necessário, que se possa construir um juízo de perigosidade em relação ao próprio objecto, quer pela sua natureza quer pelas circunstâncias do caso, coloque em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou ofereça sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Foi neste último fundamento que a decisão recorrida alicerçou, a decisão de perdimento, ao considerar que ao ter o veículo à sua disposição, ter já utilizado o mesmo na via pública sem habilitação legal, vai continuar a utilizar o mesmo.
Com o devido respeito, esquece a decisão recorrida que o instituto da perda de instrumentos do crime, não é uma pena acessória, porque é alheia a considerações de culpa, nem é uma medida de segurança, porque o seu pressuposto é a perigosidade do objecto e não a perigosidade do agente.
Ora, em a viatura só por si não oferece um risco específico da sua natureza, de ser utilizado na prática de um crime. Não obstante haver nos termos do artº 109º de ponderara as circunstâncias do caso, a circunstância da viatura ter sido utilizado na condução na via pública sem habilitação legal, não permite concluir só por si haver sério risco que o venha a ser novamente, porque esse risco é inerente a qualquer viatura, de que o arguido possa vir a ser proprietário.
Como se escreveu no ac. desta Relação de 14/5/2014, em que foi relator o Srº Juiz Desembargador ora adjunto [1] “..Como requisito primeiro da medida, têm a doutrina e a jurisprudência salientado a necessidade de existência de um nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime, ou seja, é indispensável que dos factos provados resulte que, entre a utilização do objecto e a prática do crime, em si próprio ou na modalidade, com relevância penal, de que se revestiu, exista uma relação de causalidade adequada, por forma a que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada, ou não o teria na forma, com significação penal relevante, verificada.
Nas palavras do acórdão do STJ, de 27.09.2006 (Cons. Henriques Gaspar), acessível em www.dgsi.pt, a perda há-de ter como fundamento “a existência ou a preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objecto e a infracção, de sorte que a prática da infracção tenha sido especificamente conformada pela utilização do objecto; este há-de ter sido elemento integrante da concepção material externa e da execução do facto, de modo que a execução não teria sido possível, ou teria sido essencialmente diferente, na modalidade executiva que esteja em causa, sem a utilização ou a intervenção o objecto”.
Ora, no caso do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal não existe essa ligação funcional e instrumental conformadora da prática da infracção porque o agente não emprega o veículo para praticar o crime, a sua utilização integra a própria descrição típica, ou seja, o crime consiste na utilização do veículo para o fim a que se destina, mas por quem não está, para tanto, legalmente habilitado.
É isso mesmo que se pode ler no acórdão da Relação de Lisboa, de 31.03.2004 (Des. Carlos Almeida), que, em abono, cita Jescheck:“De facto, como refere Jescheck tendo por base o Código Penal alemão que, nesta matéria, é semelhante ao nosso, «os objectos utilizados para a execução do facto distinguem-se daqueles que apenas se referem à própria execução; o § 74 só abrange os objectos que o autor emprega como instrumento para favorecer o seu comportamento e não aqueles cuja utilização ou presença já é pressuposta pelo tipo penal correspondente». Exemplificando, este autor menciona que não pode ser declarado perdido, nomeadamente, o veículo que o agente conduz sem licença adequada ou em situação de incapacidade”[6].
Nesta situação, não pode considerar-se o veículo automóvel instrumentum sceleris e por isso não está verificado este primeiro requisito da medida.
Acresce que como também salienta o Exmº Procurador Geral Adjunto nesta Relação, após duas condenações por crime de condução sem habilitação legal, a sentença recorrida aplicou ao arguido uma pena de prisão suspensa na sua execução, por concluir “que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão ainda realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se aplica o regime da suspensão.” pelo que e como também salienta o acórdão desta relação supra citado revela a incongruência da solução de perdimento.
Procede pois o recurso.
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III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em no provimento do recurso alterar a decisão recorrida, revogando a mesma na parte em que declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel de matrícula RD-..-...
No mais manter a decisão recorrida.
Sem tributação

Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 9/11/2016
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
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[1] Ac. de 14/5/2014, proc. 50/13.9PAOVR.P1, relator desembargador Neto de Moura.