Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
399/21.5PASTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO M. MENEZES
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
OBRIGATORIEDADE DE PRESENÇA DE DEFENSOR
NULIDADE
Nº do Documento: RP20230111399/21.5PASTS-A.P1
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Constituindo o arguido mandatário no processo, a sua defesa passa, a partir desse momento, a ser integralmente assegurada pelo defensor por ele escolhido, só a este cabendo, designadamente, estar presente nos atos que venham a ter lugar e em que a lei obriga à presença de defensor.
II - Sendo a tomada de declarações para memória futura ato no qual é obrigatória a presença do defensor do arguido (artigo 271.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, segunda parte), a ausência no mesmo do defensor escolhido pelo arguido, por falta de notificação para o efeito devida a erro dos serviços, determina a nulidade da diligência entretanto efetuada (artigo 119.º, alínea c), do mesmo corpo de normas).
III - A invalidade em apreço afeta a totalidade do ato (artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), não bastando, para a remediar, que ao arguido seja proporcionada a possibilidade de «complementar» o interrogatório efetuado, se assim o desejar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º: 399-21.5PASTS-A.P1
Origem: Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos (Juiz 3)
Recorrente: Ministério Público
Referência do documento: 16445829



I
1. O Ministério Público impugna, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos (Juiz 3), que, reconhecendo a existência de nulidade insanável por ausência do defensor do arguido a diligência de tomada de declarações para memória futura realizada no âmbito de inquérito a que respeita o recurso, declarou a mesma (integralmente) inválida.

2. Este é o texto da decisão recorrida, que se reproduz verbatim:
«Veio a Ilustre Mandatária do ofendido, por requerimento a fls. 365 a 366, requerer que seja declarada a nulidade das declarações para memória futura do menor […], por violação do disposto nos artigos 119.º, alínea c), 271.º, 58.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e artigo 32.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Para tanto, e em síntese, alegou que juntou procuração aos presentes autos em 11 de maio de 2022, tendo requerido a consulta do processo e só, em 26 de julho de 2022, foi deferida a consulta.
Mais referiu que com a consulta do processo teve conhecimento da diligência das declarações para memória futura do menor AA, não tendo sido notificada para o efeito.
Termina pugnando a nulidade das declarações de memória futura do menor, porquanto a não presença da mandatária constituída consubstancia uma nulidade insanável.
A digna Magistrada do Ministério Público pugnou pela improcedência da alegada nulidade, uma vez que o denunciado esteve representado por defensora oficiosa.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Ora, nos termos conjugados dos artigos 271.º, n.ºs 3 e 5 e 64.º n.º 1 al. f), ambos do Código de Processo Penal, artigo 24.º, n.º 5 do Estatuto da Vítima, e artigo 33.º, n.ºs 2 e 4 da Lei 122/2009, de 16 de Setembro, na diligência de tomada de declarações para memória futura terá sempre de estar presente o defensor do arguido que, por intermédio do Magistrado Judicial que preside, pode formular perguntas à testemunha e, dessa forma, exercer o seu direito de defesa ou de contraditório.
Com efeito, e como é sabido, o que se pretende com a tomada de declarações para memória futura é proteger a vítima da indesejada revitimização, que ocorrerá necessariamente caso a mesma tenha de prestar declarações perante diversas entidades.
Contudo, se se proceder a tal diligência, que, no caso, foi deferida, em que se pretende tomar declarações para memória futura sobre factos relevantes para a incriminação, antes da constituição como arguido e sem que se propicie o cabal exercício do contraditório ao denunciado/suspeito, com a nomeação de defensor e a sua notificação para comparência no ato, de forma a exercer os direitos que a lei reconhece à pessoa que pode vir a assumir a qualidade de arguido, tal implica, que, caso seja deduzida acusação, necessariamente, a testemunha/vítima tenha de ir a julgamento prestar novamente declarações, não se prevenindo, assim, a vitimização da mesma, que se pretende evitar - cf. neste sentido ver o Acórdão da Relação de Lisboa de 28-06-2022, disponível em www.dgsi.pt.
Para além disso, a ausência do defensor no ato de tomada de declarações para memória futura constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, al. c), do Código de Processo Penal.
Neste sentido veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 23 de novembro de 2016, proferido no processo 382/15.0T9MTS, em que se pode ler: «É obrigatória a notificação do arguido já constituído no processo e do seu defensor para comparecerem à tomada de declarações para memória futura (artº 271º CPP). II - A presença do defensor nesse ato é obrigatória e a do arguido facultativo. III - Quer a falta de notificação quer a falta do defensor no ato constitui nulidade insanável do artº 119º ai.e) CPP, tornando nula a decisão nos termos do artº 122º1 CPP. IV - Antes da constituição de arguido, podem ser tomadas declarações para memória futura, nos casos em que o mesmo ainda não está identificado ou em casos excecionais, mas sendo sempre obrigatória a nomeação de defensor e a sua presença no ato podendo ali exercer os direitos que a lei reconhece ao arguido».
Ora, no presente caso, a diligência de declarações para memória futura não foi notificada ao denunciado e, apesar de ter sido nomeado defensor ao denunciado na diligência ( cf. se alcança do auto de declarações para memória futura, de 29 de junho de 2022, com referência Citius 438237634 ), a verdade é que este já tinha constituído mandatário em data anterior à diligência ( por falha do serviço não se atentou que já estaria junto aos autos procuração a favor da Ilustre mandatária).
Deste modo, sufragando a jurisprudência explanada que equipara o denunciado ao arguido, consideramos que no presente caso era absolutamente necessária a notificação do denunciado para comparência no ato e a notificação da Ilustre mandatária, já que neste caso o denunciado já a tinha constituído (cf. artigo 32.º, n. º3, da Constituição da República Portuguesa), assim se respeitando os direitos constitucionalmente consagrados de escolha de defensor, da assistência de defensor e da defesa efetiva num processo equitativo, para cabal direito ao contraditório, evitando que tal ato seja declarado nulo, nos termos do artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal.
Face ao exposto, ao abrigo dos artigos 119.º, n. 0 2, alínea c) e 121.º, n. º1, do Código de Processo Penal, declara-se inválido o ato de prestação de declarações para memória futura de AA, em 29 de junho de 2022.»

3. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«1. O instituto processual das declarações para memória futura encontra-se regulamentado no artigo 271.º do Código de Processo Penal; no artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e no artigo 24.º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, que dispõem, entre o mais, que é obrigatória a comparência do defensor; e que, a inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
2. Nos termos das disposições conjugadas do artigo 1.º, alínea j), do Código de Processo Penal, do artigo 2.º, alíneas a) e b), da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, do artigo 67.º-A, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do Código de Processo Penal, a vítima de crime de violência doméstica é sempre considerada, ope legis, vítima especialmente vulnerável.
3. Nos termos do artigo 24.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima, só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
4. Sendo obrigatória a presença de Defensor na diligência de tomada de declarações para memória futura, estando o denunciado representado por Defensor oficioso, em momento em que ainda não se encontrava junta aos autos a procuração forense (pese embora já tivesse sido remetida ao processo), conclui-se que o arguido se encontrava regularmente representado por Defensor/Advogado, não se podendo afirmar que ocorra “ausência do Defensor”; pelo que tal não afeta a validade do ato praticado.
5. Ainda que assim não se entenda, afigura-se que a presença na diligência de Defensor nomeado em vez de Defensor constituído constitui uma mera irregularidade (já que, estando presente Defensor, não se pode afirmar que ocorra “ausência de Defensor”), havendo lugar à repetição não da totalidade da diligência (e do depoimento), mas apenas à colocação de perguntas pela Defesa e resposta às mesmas pela vítima, após audição inicial na diligência de declarações para memória futura da gravação das declarações para memória futura já prestadas.
6. Essa é a solução que salvaguardando os direitos de defesa do arguido, melhor permite concatená-los com o direito da vítima a não ter que repetir a integralidade do depoimento, mas apenas a prestar esclarecimentos/responder a questões colocadas pela Defesa, assim se evitando ou pelo menos minorando a vitimização secundária.
7. A solução estipulada no despacho recorrido é desproporcional, conduzindo a uma desnecessária vitimização secundária do ofendido, ao ver-se constrangido a repetir o seu depoimento, por sinal extenso e sobre matéria do foro íntimo, doméstico e sexual.
8. Não há qualquer necessidade processual que o imponha ou justifique, nem qualquer direito de defesa que com essa solução seja acautelado.
9. A solução propugnada pela signatária é a que aliás resulta do disposto nos artigos 122.º, n.º 3 (“Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”) e 123.º, n.º 2 (“Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado”), ambos do Código de Processo Penal articulando os direitos da vítima e do arguido.
10. Pois, a repetição de todo o depoimento em nada beneficia a Defesa nem os direitos do arguido e apenas prejudica a vítima, que se vê perante o constrangimento de ter que repetir o seu depoimento em Tribunal – num claríssimo exercício de vitimização secundária, ou seja, vitimização por efeito do sistema de Justiça/instâncias formais de controlo.
11. Assim, iniciada a diligência, reproduzir-se-iam em audiência (leia-se, na diligência de declarações para memória futura) as declarações para memória futura prestadas e depois a Defesa colocaria as perguntas que entendesse por necessárias, assim se acautelando os direitos de defesa do arguido.
12. O artigo 24.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima estabelece como regra a não repetição do depoimento, pelo que também por analogia há que concluir pela não repetição da totalidade do depoimento, devendo a vítima ser chamada apenas a prestar esclarecimentos/responder às perguntas da Defesa.
13. Pelo exposto, entendemos que deve o despacho proferido ser revogado e substituído por outro que declare improcedente a nulidade/irregularidade invocada; caso assim não se entenda, declare a invalidade/irregularidade do ato, ordenando a repetição apenas da fase da colocação de questões pela Defesa, mediante prévia reprodução na diligência de declarações para memória futura da gravação das declarações para memória futura já prestadas pela testemunha/vítima, de modo a evitar a vitimização secundária da mesma.
14. Foram violados os artigos 271.º, n.ºs 3 e 5; 67.º-A, n.º 3; 118.º, n.ºs 1 e 2; 122.º, n.ºs 2 e 3; 123.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Penal; 33.º, n.º 4, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro; 24.º, n.ºs 2, 5 e 6, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro.

Termos em que se conclui dever ser a douta decisão recorrida substituída por outra que declare improcedente a nulidade/invalidade arguida; caso assim não se entenda, determine a designação de data para declarações para memória futura, apenas para repetição da fase de colocação de perguntas pela Defesa à testemunha, mediante prévia reprodução áudio das declarações para memória futura prestadas pela vítima […]».


4. O recorrido, arguido nos autos principais, manifesta-se, em «conclusões-alegações» contra a procedência do recurso.

5. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos a seguir reproduzidos:
«[…]
Com a tomada de declarações para memória futura visa-se essencialmente proteger a vítima da indesejada revitimização, que ocorrerá e caso a mesma tenha de prestar sucessivamente declarações perante diversas entidades.
No que ao suspeito, denunciado ou arguido concerne, a ausência do defensor no acto de tomada de declarações para memória futura constitui nulidade insanável, nos termos do art. 119º al. c) do CPP. A questão aqui trazida parece consistir em determinar se a falta de notificação do denunciado, ou do arguido já constituído como tal e da advogada constituída para comparecer no ato de tomada de declarações para memória futura, consubstancia uma nulidade insanável ou uma mera irregularidade.
Para o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de Novembro de 2016, proferido no processo 382/15.0T9MTS, “É obrigatória a notificação do arguido já constituído no processo e do seu defensor para comparecerem à tomada de declarações para memória futura (artº 271º CPP). II - A presença do defensor nesse acto é obrigatória e a do arguido facultativo. III – Quer a falta de notificação quer a falta do defensor no acto constitui nulidade insanável do artº 119º al. c) CPP, tornando nula a decisão nos termos do artº 122º1 CPP. IV – Antes da constituição de arguido, podem ser tomadas declarações para memória futura, nos casos em que o mesmo ainda não esta identificado ou em casos excepcionais, mas sendo sempre obrigatória a nomeação de defensor e a sua presença no acto podendo ali exercer os direitos que a lei reconhece ao arguido”[…].
Já para o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04-05-2017 (Processo nº 12/15.0JDLSB.L1-9) “II – A falta de notificação do arguido ou do suspeito para tal diligência constitui mera irregularidade, que, não sendo atempadamente arguida, se considera sanada” […].
Tal aresto cita, em abono da posição assumida, o Acórdão do TC n.º 429/2004, relatado por Benjamim Rodrigues, “… No que respeita à não notificação pessoal dos arguidos - cfr. art.º 271º, n.º 2 do CPP - ela ocorreu sem dúvida, mas também entendemos que se trata de uma mera irregularidade processual, porquanto aqui vigora o princípio da legalidade - cfr. art.º 118º do CPP; sendo que: - «Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.» - cfr. n.º 2 desse art.º 118º do CPP.
Tanto assim é que no citado n.º 2 do art.º 271º do CPP não se exige a presença pessoal dos arguidos. Só se assim fosse é que se estaria perante uma nulidade, aliás insanável - cfr. art.º 119º, al. c), do CPP. Mas não é o caso!
Daí que, tratando-se de uma mera irregularidade (a não notificação pessoal dos arguidos) e, como vimos, porque não afecta o valor do acto - este foi efectuado pelo juiz de instrução, que garantiu a legalidade e imparcialidade dessa tomada de declarações - e por não ter sido suscitada a sua arguição no acto nem no prazo do n.º 1 do art.º 123º do CPP. Por tudo isto, mostra-se sanado tal vício. ….”.
Já antes, também o Acórdão da RP de 13/07/20051 [1 Citado no Ac. da RL de 04.05.2017.], relatado pelo Exmº Conselheiro António Gama (proc. 0540595), decidira “… Aliás, e numa argumentação subsidiária, vem entendendo a jurisprudência que a não comunicação ao arguido do dia, hora e local da prestação do depoimento ao abrigo do disposto no art.º 271º do Código Processo Penal, no caso de inquérito que já corra contra pessoa determinada, porque não constitui uma nulidade taxativamente prevista como insanável, art.º 119º do Código Processo Penal, antes configurando mera irregularidade, deve ser arguida, nos termos do art.º 123º do Código Processo Penal, sob pena de se dever considerar sanada. E este entendimento dominante tem o respaldo do Tribunal Constitucional [Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/2004 de 16.6.2004, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.97, Acórdão da RP de 24.11.04, disponíveis no sítio na internet destes tribunais.]
O que configura nulidade, insanável, é “A decisão de indeferir a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito, e a sua notificação para estar presente no acto de tomada de declarações para memória futura”, por violação do disposto nos citados artigos 64.°, n.° 1, alínea f), 119º c) e 271º, do Código de Processo Penal, 33° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, 24° da Lei n.° 130/2015, de 4 de Setembro e 20.º n.º 1 e 2 e 32º, nº 1, 3 e 5 da Constituição da República Portuguesa- Ac. da RL de 28-06-2022 (proc. nº 123/22.5PGLRS-A.L1-5)
*

Aqui chegados: no que tange ao mérito do recurso, na esteira da jurisprudência que aporta à verificação do vício da mera irregularidade, subscrevendo a argumentação aduzida nas Conclusões 4 a 13, que encelam a motivação e que aqui damos como reproduzidas, sem necessidade de repetição, emitimos parecer no sentido da procedência do recurso interposto pela ilustre Colega, nos moldes nele propugnados.»


6. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.

II
7. O presente recurso não merece provimento.
8. 1. Em resumo, o arguido nos autos a que respeita o presente recurso, ora recorrido, por requerimento remetido ao processo em 11/05/2022 (e incluído no «histórico» informático do mesmo processo com data de 12/05/2022), constituiu como defensor, no respetivo âmbito, mandatário por si escolhido, a quem confiou, a partir desse momento, a sua defesa. Na ocasião, o processo encontrava-se formalmente no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos para tomada de declarações ao alegado ofendido, menor de idade, diligência que, nessa mesma data de 11/05/2022, foi designada para o dia 30/05/2022, e que após vicissitudes para aqui irrelevantes, acabou por decorrer no dia 29/06/2022.
9. Por inércia dos serviços, porém, o expediente atrás aludido não foi materialmente incorporado nos autos, nem se atentou, por qualquer outra forma, no facto de que o arguido havia constituído mandatário nos autos, razão pela qual não foi este notificado, em nenhum momento, para comparecer na referida diligência de tomada de declarações, tendo o arguido acabado por ser representado, no decurso da mesma, por defensor nomeado de ofício (também no despacho de 11/05/2022).
10. Só após consulta dos autos, ocorrida no dia 26/07/2022, tomou a defensora constituída pelo arguido no processo, entretanto, conhecimento da realização da diligência aludida, tendo nessa altura invocado a nulidade da mesma, por para ela não ter sido convocada e, consequentemente, nela não ter tido intervenção, como, em seu entender, devia ter ocorrido.
11. A decisão ora recorrida, proferida em 20/09/2022, contra a posição assumida pelo Ministério Público nos autos, reconheceu a existência da nulidade invocada e, consequentemente, declarou «inválido o ato de prestação de declarações para memória futura de […], em 29 de junho de 2022». O presente recurso visa modificar o sentido desta decisão, ou, ao menos, limitar os seus efeitos práticos.
12. 2. O ato de tomada de declarações para memória futura realizado no âmbito dos autos a que respeita o presente recurso é nulo, não sendo possível «aproveitá-lo» nos moldes impetrados pelo digno recorrente.

13. a) Da conjugação das disposições constantes dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), e 271.º, n.º 3, in fine, do Código de Processo Penal, resulta que a presença do defensor do arguido no ato de tomada de declarações para memória futura é obrigatória; por isso, a sua ausência no mesmo, por força do preceituado no artigo 119.º, alínea c), do referido corpo de normas, constitui nulidade insanável, que «dev[e] ser oficiosamente declarad[a] em qualquer fase do procedimento» (como dispõe a mencionada norma) e tem como efeito a «inv[a]lid[ade] [d]o ato em que se verifi[que], bem como os que dele dependerem e aquel[a] pude[r] afetar» (artigo 122.º, n.º 1, do citado diploma legal).
14. Ora, tendo o arguido optado por ser representado no processo por mandatário por si designado, a sua defesa passou, a partir do momento em que fez juntar aos autos a procuração por si outorgada a favor do causídico que escolheu para o efeito, a ser por este assegurada; e o arguido «fez juntar aos autos» a aludida procuração no momento em que a submeteu eletronicamente, nos termos legalmente previstos, não representando a (eventual) junção material da documentação em questão ao processo físico respetivo mais do que um ato material que em nada pode alterar a eficácia jurídica do requerimento assim regularmente apresentado.
15. Destarte, se, por inépcia, os serviços não se aperceberam da constituição de mandatário nos autos por parte do arguido – o que não se teve em consideração, como podia e devia ter-se tido, logo na notificação do despacho que designou data para a realização da tomada de declarações para memória futura, mas também no que respeita à concessão do requerido acesso ao processo, tanto informática como fisicamente –, tal não pode, de todo, prejudicá-lo, pois que a partir desse momento era ao mandatário por ele constituído que tinham de ser feitas todas as notificações necessárias e permitidas ou impostas por lei para que ele pudesse, como lhe foi encomendado, acautelar, com toda a amplitude, os interesses do seu mandante.
16. Como assim, era só ao mandatário constituído no processo que cabia participar em todas as diligências em que a presença de defensor fosse imposta por lei, como é o caso da tomada de declarações para memória futura, incluída a aqui em questão, não podendo a sua ausência à mesma considerar-se validamente colmatada pelo facto de, na diligência em causa, o arguido ter «beneficiado» da presença de um defensor nomeado de ofício, pois que não se tratava do defensor por si escolhido para atender à sua defesa, no livre exercício de faculdade que lhe é reconhecida no âmbito do nosso ordenamento jusprocessual penal (artigos 61.º, n.º 1, alínea e), e 62.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) e de cuja escolha havia, oportuna e adequadamente, dado notícia nos autos.
17. Tal não tendo sucedido, e como se referiu, supra, o ato em que ele, tendo de estar presente por imposição legal, não participou, não pode deixar de ser considerado nulo, precisamente por motivo da sua ausência.

18. b) Verificando-se, como se disse, uma nulidade insanável, ela não pode deixar de abranger todo o ato de tomada de declarações realizado sem a presença do defensor constituído pelo arguido, cuja presença é obviamente obrigatória no decurso de toda a diligência, não sendo por isso possível limitar os efeitos da invalidade em presença nos moldes pretendidos pelo recorrente (cf. artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal: «[a]s nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar»).
19. Aliás, a entender-se de outro modo, e parafraseando o acórdão deste mesmo Tribunal de 13/07/2005, tirado no processo n.º 0540595, citado no «Parecer» do Ministério Público nesta instância, estar-se-ia a impedir o defensor de garantir:
«[d]esde logo [a defesa] da legalidade, fiscalizando e garantindo o cumprimento da lei, de que a lei é integral e escrupulosamente cumprida, de que se verificam os pressupostos da inquirição, que se respeitam os procedimentos legalmente estabelecidos, que o depoimento decorre de acordo com as regras legais, sem constrangimentos, podendo e devendo [o defensor] verificar se o depoimento é coerente, formulando as perguntas adicionais que entender em seu critério necessárias; defensor da autenticidade do auto que reproduz o depoimento, etc., etc. Depois, defensor do […] arguido e sempre do arguido»

(o primeiro aditamento é nosso).

20. Tudo isto, e naturalmente o mais que o defensor entender pertinente para a defesa do arguido cujos interesses representa, visa, a obrigatoriedade da presença de defensor na diligência para tomada de declarações para memória futura, salvaguardar; a solução sugerida pelo recorrente – de aproveitar o ato praticado, «acrescentando-lhe» apenas o que agora fosse requerido pelo defensor do arguido – traria consigo uma compressão inadmissível ao completo exercício dos direitos da defesa constitucional e legalmente garantidos ao arguido, que aqui não se pode coonestar.

21. c) É certo que, para a (nesta fase, alegada) vítima, a solução a que na presente decisão se chega não será a ideal, e seguramente que lhe causará transtornos que de todo em todo lhe seria de poupar (nomeadamente, pelo cumprimento mais denodado, por parte de todos os responsáveis pela tramitação dos autos, das suas respetivas obrigações funcionais). Ela é, porém, inexorável face ao regime legal que aqui cumpre aplicar e aos interesses que aqui cumpre promover, de forma equilibrada, de sorte que não haja dúvidas quanto ao caráter equitativo do processo.

22. 3. No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

III
23. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

24. Sem custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).


Porto, 11 de janeiro de 2023.
Pedro M. Menezes
Pedro Donas Botto
Paula Guerreiro

(acórdão assinado digitalmente)