Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
210/10.2IDAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: CRIME DE FRAUDE FISCAL
CO-AUTORIA
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RP20180509210/10.2IDAVR.P1
Data do Acordão: 05/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 758, FLS 264-276)
Área Temática: .
Sumário: O teor da declaração que serve de parâmetro à condição objectiva de punibilidade prevista no artº 103º nº2 RGIT tem de ser aferido, no tocante aos diversos emitentes dos documentos que a suportam, de harmonia com a caracterização da sua comparticipação criminosa, sendo a punibilidade estabelecida por referencia à vantagem ilegítima para a qual contribuíram directamente ou aceitaram no âmbito de plano estabelecido entre si e o utilizador daqueles, não podendo aceitar-se a extensão da punibilidade com base na argumentação de que o agente contribuiu para que o valor previsto na lei fosse atingido quando a existência de outros perpetradores lhe era desconhecida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 210/10.2IDAVR.P1
Secção Criminal
Conferência

Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

a) No âmbito do processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, n.º 210/10.2IDAVR, do Juízo de Competência Genérica de Arouca, da Comarca de Aveiro, por sentença proferida a 15 de Maio de 2017, foram absolvidos os arguidos B... e C..., ambos com os demais sinais dos autos, da prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos arts. 103º, n.º 1, al. a), e 104º, n.º 2, do Regime Geral da Infracções Tributárias [doravante RGIT], e condenados, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos arts. 103º, n.º 1, al. a), e 104º, n.º 2, do mesmo diploma legal, os arguidos:
1- D..., com os demais sinais dos autos, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante a condição das sociedades de que o arguido seja gerente, de facto ou de direito, se manterem, em tal lapso temporal, com a situação fiscal e da segurança social regularizadas, devendo comprová-lo, semestralmente, nos autos;
2 - “E..., L.da”, sociedade comercial por quotas, com os demais sinais dos autos, na pena de 700 (setecentos) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros);
3 – F..., também com os demais sinais dos autos, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante a condição de entregar mensalmente ao G..., a importância de € 100,00 (cem euros), até perfazer o total de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros)[1].
b) Inconformados, os arguidos “E..., L.da” e D... interpuseram recurso que, todavia, por intempestivo – apresentado no 3º dia útil após o termo do prazo legal sem que fosse paga a multa devida - não veio a ser admitido.
c) Também discordando, interpôs recurso o Ministério Público cuja motivação concluiu nos termos seguintes: (transcrição)
1. Foram os arguidos B... e C... absolvidos da prática, cada um deles, em co-autoria, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º n.º 1, alínea a) e 104° n.º 2, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias [RGI1].
2. Entendeu o Mm.º Juiz a quo que o facto de os arguidos B... e C... apenas terem contribuído com valores que não foram superiores a €15.000, em cada período, e individualmente considerados, tal impõe que se mobilize no caso a condição objectiva de punibilidade prevista no art. 103.º, n.º 2 do RGIT.
3. Entendeu o Mm.º Juiz que a condição objectiva de punibilidade funciona quer para o arguido utilizador das facturas, quer para o emitente das facturas, sendo que se este tiver emitido facturas correspondentes a negócios ou serviços não existentes e se a contribuição de cada emitente em cada período for inferior a €15000, então quanto a este emitente o facto não é punível, pese embora o seja para o utilizador das facturas que tenha utilizado facturas deste e doutros emitentes e que com as mesmas tenha obtido quantias ilegítimas e indevidas, causando prejuízo ao Estado.
4. Entendemos que tal entendimento deverá ser revogado e que deverão os arguidos B... e C... ser condenados pela prática dos crimes pelos quais foram absolvidos.
5. Em primeiro lugar, concordamos com o entendimento do Mm.º Juiz a quo de que o disposto no artigo 103º, n.º 2 do RGIT consubstancia condição objectiva de punibilidade.
6. Em nosso entendimento, o valor da vantagem patrimonial ilegítima constante do artigo 103º, n.º 2 do RGIT afere-se pelo valor que deva constar de cada declaração por efeito do disposto no artigo 103º, n.º 3 do RGIT.
7. Obtida vantagem patrimonial ilegítima superior a € 15.000 em determinado período tributário, todos os agentes criminosos que, nos termos do n.º 1 do artigo 103º do RGIT, contribuíram para tal montante deverão, ao abrigo do prescrito pelo n.º 2 do referido artigo, ser punidos.
8. O facto de os emitentes, singularmente considerados, contribuírem, cada um, para uma vantagem inferior a €15.000 não obsta a que sejam punidos pela prática do crime de fraude fiscal qualificada que cometeram, desde que a vantagem patrimonial ilegítima da correspondente declaração periódica seja superior àquele valor, o que sucede no caso nos períodos de Março, Junho e Dezembro de 2006.
9. Em face do exposto, deverão os arguidos B... e C... serem condenados pela prática, cada um, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo art. 103º e 104º, n.º 2, al. a) do RGIT.
10. Estando em causa o cometimento do crime previsto no art. 103º e 104º, n.º 2, al. a) do RGIT, é aplicável a moldura abstracta de um a cinco anos.
11. No caso em apreço, tendo em conta que os arguidos não têm averbada qualquer condenação nos seus certificados de registo criminal, considerando que os mesmos estão inseridos profissional e socialmente, entendo que deverão os mesmos ser condenado na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinado à entrega de uma quantia a uma instituição de solidariedade social de Arouca.
d) Admitido este recurso, por despacho de fls. 1819, não houve resposta.
e) Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o legal parecer – art. 416º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal – pronunciando-se no sentido do provimento do recurso, cujos fundamentos acompanhou.
f) Cumpriu-se o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais tendo sido aduzido.
g) Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência, que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica [cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt, e de 3/2/1999 e 25/6/1998, in B.M.J. 484 e 478, págs. 271 e 242, respectivamente], as conclusões do recurso delimitam o respectivo objecto e âmbito do seu conhecimento, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
In casu, a questão suscitada reconduz-se aos moldes da aplicação do disposto no art. 103º, n.º 2, do RGIT, aos emitentes das facturas que suportam a fraude tributária.
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2. A fundamentação de facto da decisão recorrida, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
A - Factos Provados
A.1 – Da acusação/pronúncia:
1º - A sociedade arguida "E..., Lda.", com número de identificação de pessoa coletiva ......... e sede em ..., ..., Arouca, tem como objeto social a construção civil, pavimentos, calcetamentos e fornecimentos de materiais de construção para obras públicas e particulares.
2º - Foi constituída no dia 10 de fevereiro de 2000 e encontra-se enquadrada no regime mensal de IV A.
3º - O arguido D... é sócio e único gerente da referida sociedade, sendo que este é o responsável pela determinação da atividade que a dita sociedade comercial desenvolve, bem como pela celebração de negócios, realização de pagamentos e entrega das declarações de rendimentos para efeitos fiscais.
4º - A sociedade H..., Lda. era uma sociedade comercial por quotas, com número de pessoa coletiva n.º ......... e sede em ..., ..., Marco de Canazes, constituída em 07-01-2007 e dissolvida em 28-03-2014.
5º - I... e F... foram sempre os gerentes desta sociedade, cabendo a eles tomar, em conjunto, todas as decisões relativas à gestão da sociedade, celebrando negócios em seu nome e realizando pagamentos.
6º - Em data não determinada, mas seguramente em data anterior ao início de 2005, o arguido D..., na qualidade de gerente da E..., Lda., acordou com cada um dos arguidos B..., C... e F... [este em representação da sociedade H..., Lda., de que era gerente conforme resulta dos factos referidos em 5º] a emissão de faturas e vendas a dinheiro respeitantes a fornecimentos e serviços que não prestariam de facto, entregando os mesmos ao arguido D... que, por sua vez, as integrava na sua contabilidade e apresentá-las à Administração Fiscal nas declarações periódicas de IV A, o que fez, bem sabendo que as mesmas não correspondiam a operações reais, procurando obter, desta forma, uma vantagem patrimonial resultante da dedução do IV A apresentado como tendo sido suportado pela referida sociedade.
7º - Deste modo, o arguido D... fez integrar na contabilidade da sociedade arguida E..., Lda. as seguintes faturas emitidas por J..., as quais não correspondiam a operações efetivamente realizadas, o que aquele arguido bem sabia, como bem sabia J... quando as emitiu, a saber:
- fatura n.º 88, de 27-10-2005, no valor de 40.656,00€;
- fatura n.º 89, de 03-11-2005, no valor de 5.662,80€;
- fatura n.º 96, de 30-11-2005, no valor de 45.931,60€;
- fatura n.º 128, de 04-09-2006, no valor de 31.218,00€;
- fatura n.º 134, de 18-09-2006 no valor de 23.207,80€;
- fatura n.º 135, de 20-09-2006, no valor de 45.738,00€;
- fatura n.º 141, de 12-10-2006, no valor de 25.226,08€;
- fatura n.º 144, de 30-10-2006, no valor de 26.862,00€;
- fatura n.º 154, de 06-12-2006, no valor de 14.399,00€;
- fatura n.º 157, de 15-12-2006, no valor de 34.606,00€;
- fatura n.º 161, de 22-12-2006, no valor de 51.001,50€;
- fatura n.º 170, de 30-12-2006, no valor de 35.816,00€;
- fatura n.º 181, de 27-02-2007, no valor de 37.268,00€;
- fatura n.º 184, de 28-02-2007, no valor de 46.948,00€;
- fatura n.º 185, no valor de 48.400,00€, de 22-03-2007;
- fatura n.º 193, de 30-03-2007, no valor de 52.877,00€; e
- fatura n.º 194, de 31-03-2007 no valor de 56.870,00€.
8º - O arguido D... fez ainda integrar na contabilidade da sociedade que representa as seguintes faturas, as quais não correspondiam a operações efetivamente realizadas, o que o arguido bem sabia, como bem sabiam os arguidos F... e I... quando as emitiram em nome da sociedade H..., Lda., a saber:
- fatura n.º 109, de 31-03-2006, no valor de 112.421,10€;
- fatura n.º 136, de 30-06-2006, no valor de 53.261,78€;
- fatura n.º 161, de 05-09-2006 no valor de 19.360,00€;
- fatura n.º 162, de 15-09-2006, no valor de 26.871,08€;
- fatura n.º 165, de 28-09-2006, no valor de 20.194,30€;
- fatura n.º 175, de 20-10-2006, no valor de 15.972,00€;
- fatura n.º 176, de 31-10-2006, no valor de 33.229,02€;
- fatura n.º 201, de 14-12-2006, no valor de 11.616,00€;
- fatura n.º 202, de 29-12-2006 no valor de 45.229,80€;
- fatura n.º 204, de 29-12-2006, no valor de 18.833,65€;
- fatura n.º 215, de 15-02-2007, no valor de 28.819,78€;
- fatura n.º 251, de 05-09-2007, no valor de 28.361,92€;
- fatura n.º 254, de 20-09-2007 no valor de 57.148,30€ e
- fatura n.º 256, de 28-09-2007 no valor de 22.085,53€.
9º - O mesmo arguido D... fez também integrar na contabilidade da sociedade E..., Lda. as seguintes faturas, as quais não correspondiam a operações efetivamente realizadas, o que o arguido bem sabia, como bem sabia o arguido C... quando as emitiu:
- fatura n.º 74, de 23-03-2006 no valor de 27.164,50€; e
- fatura n.º 82, de 21-06-2006 no valor de 35.949,10€.
10º - O arguido D... fez também integrar na contabilidade da sociedade arguida as seguintes faturas, as quais não correspondiam a operações efetivamente realizadas, o que o arguido bem sabia, como bem sabia o arguido B... quando as emitiu:
- fatura n.º 1725, de 18-12-2006, no valor de 5.235,25€;
- venda a dinheiro n.º 1771, de 23-03-2006, no valor de 8.746,85€; e - venda a dinheiro n.º 1857, de 10-01-2007, no valor de 7.248,38€.
11º - Os valores do IVA das faturas e vendas a dinheiro referidas em 7º, 8º, 9º e 10º, foram também considerados nas declarações periódicas de IVA da sociedade E..., Lda., pelo arguido D... ou alguém por este mandatado para o efeito, pelo que tais valores foram objeto de dedução como IVA suportado, de que resultaram as seguintes deduções indevidas, em cada uma das declarações periódicas respeitantes aos períodos seguinte:
- Novembro de 2005, o montante de 16.010,40€;
- Março de 2006, o valor de 25.743,65€;
- Junho de 2006, o valor de 15.482,88€;
- Setembro de 2006, o valor de 28.912,16€;
- Outubro de 2006, o valor de 17.579,10€;
- Dezembro de 2006, o valor de 37.615,55€;
- Fevereiro de 2007, o valor de 19.617,78€;
- Março de 2007, o valor de 28.704,98€ e
- Setembro de 2007, o valor de 18.673, 64€.
12º - A sociedade arguida, E..., Lda. apropriou-se, desta forma, dos montantes referidos em 11º, prejudicando o Estado nestes mesmos valores.
13º - Cada um dos arguidos atuou com o propósito concretizado de provocar erro na Administração Fiscal e com isso fazer com que a sociedade arguida E..., Lda. obtivesse um benefício patrimonial, que sabiam ser ilegítimo.
14º - Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
15º - Posteriormente, e já depois de iniciada a ação inspetiva das Finanças, as quantias supra mencionadas foram integralmente pagas à Administração Fiscal tendo sido a situação tributária regularizada.
A.2 - Da discussão do objeto do processo [em que foi dado cumprimento ao disposto no artigo 358° n.º 1 do CPP - vide ata de 13/02/2017, a fls. 1418-1425], resultou também provado que:[2]
44º - As vantagens patrimoniais obtidas pela sociedade arguida E..., Lda., em resultado das faturas e vendas a dinheiro contabilizadas e que não correspondiam a transações reais, e descritas em 11º dos factos provados, correspondem por emitente daqueles documentos, da forma seguinte:

Mais resultou provado que:
45º - O arguido D..., é casado, gerente da sociedade E..., Lda., e aufere a remuneração mensal de 1.400,00€.
46º - A mulher trabalha para a sociedade E..., Lda. e aufere a remuneração mensal correspondente ao salário mínimo nacional.
47º - O agregado familiar do arguido vive em casa própria.
48º - O arguido e a mulher tem vário outro património imobiliário, mas a maioria dele está dado em hipoteca para garantia de financiamentos bancários para a sociedade.
49º - A sociedade arguida no ano de 2015 teve prejuízos.
50º - O arguido B... é empresário de comércio de pneus, tem uma atividade por contra própria e é gerente de uma sociedade com a mesma atividade.
51º -Aufere uma remuneração mensal de 800,00€.
52º - A empresa em nome individual com o seu nome, teve em 2015 um lucro de 3.000,00€.
53º -A mulher do arguido B... está desempregada.
54º - O casal tem dois filhos, sendo um com 13 anos e outro com 18 anos de idade, que está na universidade, correspondendo a um custo mensal de 500,00€.
55º - O arguido C..., é casado, serralheiro por conta própria, entretanto emigrado em França, aufere uma remuneração média mensal de 1.400,00€.
56º - A mulher é empregada de limpezas, também em França, aufere uma remuneração mensal de 1.400,00€.
57º - O casal tem dois filhos, sendo um de 13 anos e outro de 24 anos, que é ajudante de serralheiro, em França, e aufere a remuneração mensal de 1.300,00€.
58º - O agregado familiar vive em casa própria em Portugal e em França também têm casa própria, pagando uma prestação bancária de I.030,00€ mensais.
Outrossim resulta provado que:
59º - O arguido D..., tem como antecedentes criminais, a prática de um crime de violação da prestação de alimentos, artigo 250º n.º 1 e artigo 30º n.º 3, ambos do Código Penal, por factos praticados em 21/03/2013, dispensado de pena, nos autos com o processo n.º 180/08.7TAVLC, do então 2° Juízo do Tribunal Judicial de Vale de Cambra.
60º - O arguido F..., tem como antecedentes criminais, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º n.º 1 do RGIT, por factos praticados em 2011, condenado na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 9,00€, o que perfaz o total de 1.800,00€, nos autos com o processo n.º 57/12.lIDPRT, do então 2º Juízo do Tribunal Judicial de Penafiel.
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B - Factos Não Provados
B.I - Da acusação/pronúncia:
a) - Em momento que não se conseguiu determinar, mas anterior a abril de 2005, o arguido D..., na qualidade de gerente da E..., Lda., juntamente com os restantes arguidos, decidiram que estes últimos iriam emitir as faturas e vendas a dinheiro referidas em 7º, 8º, 9º e 10º, respeitantes a fornecimentos e serviços que não prestariam de facto, entregando-os ao primeiro arguido que, desta forma, as iria integrar na sua contabilidade e apresentá-las à Administração Fiscal nas declarações periódicas de IVA, o que fez, bem sabendo que as mesmas não correspondiam a operações reais, procurando obter, desta forma, uma vantagem patrimonial resultante da dedução do IVA apresentado como tendo sido suportado pela referida sociedade.
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3. Por seu turno, da subsunção jurídico-legal levada a efeito na decisão recorrida, importa ter presente o seguinte: (transcrição)
“Extrai-se dos factos provados que o arguido D... fez também integrar na contabilidade da sociedade arguida as seguintes faturas, as quais não correspondiam a operações efetivamente realizadas, o que o arguido bem sabia, como bem sabia o arguido B... quando as emitiu: fatura n.º 1725, de 18-12-2006, no valor de 5.235,25€; venda a dinheiro n.º 1771, de 23-03-2006, no valor de 8.746,85€; e venda a dinheiro n.º 1857, de 10-01-2007, no valor de 7.248,3 8€ [factos provados sob o n.º 10],
Mais resulta provado nos autos que os valores do IVA das faturas e vendas a dinheiro referidas em 7º, 8º, 9º e 10º, foram também considerados nas declarações periódicas de IVA da sociedade E..., Lda., pelo arguido D... ou alguém por este mandatado para o efeito, pelo que tais valores foram objeto de dedução como IVA suportado, de que resultaram as seguintes deduções indevidas, em cada uma das declarações periódicas respeitantes aos períodos seguinte: novembro de 2005, o montante de 16.010,40€; março de 2006, o valor de 25.743,65€; junho de 2006, o valor de 15.482,886; setembro de 2006, o valor de 28.912,16€; outubro de 2006, o valor de 17.579,10€; dezembro de 2006, o valor de 37.615,55€; fevereiro de 2007, o valor de 19.617,78€; março de 2007, o valor de 28.704,98€ e setembro de 2007, o valor de 18.673, 64€ [factos provados sob o n.º 11],
Outrossim resulta do elenco dos factos provados que cada um dos arguidos atuou com o propósito concretizado de provocar erro na Administração Fiscal e com isso fazer com que a sociedade arguida E..., Lda. obtivesse um benefício patrimonial, que sabiam ser ilegítimo [factos provados sob o n.º 13], e que os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo as suas condutas eram proibidas e punidas por lei [factos provados sob o n.º 14].
No entanto, importa aqui deixar referido que para que a sociedade E..., Lda. tivesse deduzido indevidamente IVA em cada uma das declarações periódicas os montantes acabados de referir, B... emitiu faturas e vendas a dinheiro, e nos referidos períodos foram utilizadas contabilística e fiscalmente pela sociedade arguida E..., Lda., que correspondiam a operações inexistentes ou por valores diferentes, como resulta do quadro descrito nos factos provados sob o n.º 44, sendo certo que resulta que em qualquer desses períodos, as faturas e vendas a dinheiro emitidas deram um contributo substancialmente inferior a 15.000,00€, não mostrando, por isso, preenchida em relação a este arguido a condição de punibilidade prevista no artigo 103º n.º 2 do RGIT, aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada, que se entende ser exigível para que o emitente das faturas ou documentos equivalentes tenha praticado o crime de fraude fiscal qualificado.
E verdade, que se vem verificando que há três posições distintas sobre situações idênticas às que em relação a este arguido se colocam: uma que vai no sentido de que, para que seja punível como crime a conduta de arguido que tenha emitido faturas ou documentos equivalentes sem que as mesmas representem efetivas operações comerciais e que o utilizador/destinatário das mesmas as faça constar da sua contabilidade e delas tirem as vantagens fiscais, é necessário que esses documentos que representam transações comerciais simuladas conduzam a que o utilizar das mesmas logre obter com elas, isoladamente, um aproveitamento fiscal superior a 15.000,00€, nos termos previstos no artigo 103º n.º 2 do RGIT, ou seja, as faturas ou documentos equivalentes permitam por si só que o destinatário como utilizador das mesmas obtenha um vantagem de natureza fiscal superior a 15.000,00€, independentemente de se considerar que o limite estabelecido no n.º 2 do artigo 103º do RGIT corresponde a uma condição objetiva de punibilidade ou faça parte do tipo; e uma outra posição que entende também como necessário que as faturas ou documentos equivalentes por si só possam atribuir uma vantagem fiscal para o utilizador das mesmas superior a 15.000,00€, mas considerando fazer parte do tipo o estabelecido no n.º 2 do artigo 103º do RGIT; e uma terceira posição que considera que desde que o utilizador das faturas ou documentos equivalentes que não representem efetivas transações, com tais documentos isolada ou conjuntamente com outros documentos de terceiro emitente, obtenha vantagem fiscal superior a 15.000,00€.
A doutrina e a jurisprudência não têm abordado de modo claro, direto e inequívoco as questões, e aceita-se que não é isenta de dúvida a opção por qualquer uma das posições.
Sabemos que, por outras razões, a jurisprudência vem entendendo que o limite a partir do qual o crime é punível [como é o caso do limite do n.º 2 do artigo 103º ou o limite do n.º 1 do artigo 105º, ambos do RGIT], corresponde a uma condição objetiva de punibilidade, pois que o crime se encontra perfeito sem que esteja ultrapassado tal limite de punibilidade.
Os defensores dessa posição contrapõem no sentido de que o disposto no n.º 2 do artigo 103º do RGIT não pode erigir-se de vantagem patrimonial a elemento do tipo, na medida em que exige o domínio do facto, a representação e a vontade na realização de tal elemento do tipo, considerando, portanto, que o referido limite consubstancia tão só como elemento objetivo do tipo.
Esses, consideram que é inequívoco o entendimento de que a verdadeira essência das condições objetivas de punibilidade como categoria dogmática autónoma no marco dos pressupostos materiais de punibilidade é, na perspetiva substancial, a sua autonomização em relação à ilicitude. O que sucede dado que esta classe de condições se coloca à margem da conduta ilícita e, consequentemente, a sua verificação vem a colocar em relevo tão-somente a questão da necessidade da pena. Nessa sequência, e num plano de conceitos, os elementos do tipo de ilícito e condições objetivas de punibilidade são noções que se excluem mutuamente.
As condições objetivas de punibilidade são circunstâncias que se encontram em relação direta com o facto mas que não pertencem nem ao tipo de ilícito nem ao de culpa. Constituem pressupostos materiais da punibilidade.
Para nós, temos como certo, que a apreciação jurídica desta questão tem que passar pela ponderação sobre uma verdadeira justiça material e pelo princípio da igualdade no tratamento jurídico dos factos.
Vejamos:
Não pode um emitente de uma fatura que simula uma operação comercial ser nuns casos responsável criminalmente e noutros casos não o ser, na medida em que os defensores da posição que entende que o limite do 103º n.º 2 do RGIT é uma condição objetiva de punibilidade e que, por isso, no caso de a mesma ser utilizada por um sujeito passivo que com a mesma, em conjugação com outras da mesma natureza, permita obter uma vantagem patrimonial igual ou superior a 15.000,00€, comete o crime de fraude fiscal, mas se a mesma fatura for utilizada pelo mesmo sujeito passivo que apenas a utiliza isoladamente ou em conjunto com outras da mesma natureza, mas que apenas obtém globalmente uma vantagem fiscal inferior a 15.000,00€, já não comete o crime e por tal comportamento não é punido.
Exemplificando: um empresário que emite uma fatura, vulgarmente designada de fatura falsa, mas que mais não é do que um documento verdadeiro representando um facto inexistente, um facto simulado, num montante que apenas permite ao utilizador da mesma, caso a utilize na sua contabilidade, ou nas relações com a administração fiscal, uma vantagem fiscal de 1.000,00€, pode ou não ser responsabilizado criminalmente conforme o destinatário da mesma a utilize, em conjunto com outras faturas com as mesmas características, que permita, no seu conjunto, obter uma vantagem patrimonial igual ou superior a 15.000,00€, ou a utilize isoladamente ou em conjunto com outras faturas com as mesmas características, que permita uma vantagem patrimonial inferior a 15.000,00€.
Segundo esta posição, que não partilhamos, a justiça material era inexistente, para além de que se tratava ou sancionava um mesmo comportamento de maneira diferente conforme as circunstâncias.
Não ocorre nestes casos igualdade de tratamento penal para um mesmo sujeito e um mesmo comportamento.
Defendemos que o emitente de uma fatura ou documento equivalente de uma transação simulada apenas deverá cometer o crime de fraude fiscal e por tal ser condenado se o documento por si só permitir ao utilizador do mesmo uma vantagem patrimonial, no período em que o utiliza, igual ou superior a 15.000,00€.
Ora, no caso dos autos e em relação ao arguido B..., estamos perante uma situação jurídica idêntica, ou seja, a vantagem patrimonial que o utilizador das faturas – E..., Lda. - tirou em cada um dos períodos que utilizou faturas não representativas de efetivas operações comerciais, vantagens fiscais ou patrimoniais de 1.518,05€ [período de março de 2006]; de 908,60€ [período de dezembro de 2016]; e de 1.257,98€ [período de março de 2017], conforme resulta do quadro descrito nos factos provados sob o n.º 44, ainda que o sujeito passivo beneficiário/utilizador da fatura nesses períodos tenha obtido vantagens patrimoniais-fiscais, pelo conjunto de documentos da mesma natureza dos documentos emitidos pelo arguido B..., em montante superior a 15.000,00€.
Posto isto, entendemos que não se mostra preenchida a condição objetiva de punibilidade do crime de fraude fiscal pela emissão de faturas que não correspondem a efetivas transações, a que se refere o artigo 103º n.º 2 do RGIT.
Na verdade, o crime de fraude fiscal tem duas vertentes: uma na perspetiva do emitente do documento que não representa efetivas transações; e outra na perspetiva do utilizador desse documento. E cada uma destas vertentes criminais tem pressupostos objetivos e subjetivos de natureza diferente, bem como condições objetivas e subjetivas de punibilidade igualmente distintas.
Isto porque, no entendimento de alguma doutrina e jurisprudência, o crime de fraude fiscal na vertente do emitente consuma-se com a emissão do documento e entra no tráfico jurídico, e o crime de fraude fiscal na vertente do utilizador consuma-se com a contabilização, para uns, ou com a entrega da declaração onde teve em conta tal documento, para outros, o que releva para efeitos de contagem do prazo de prescrição. Embora não se olvide que outra jurisprudência há que entende que o prazo de prescrição conta-se a partir da emissão do documento simulado.
Aqui chegados, importa concluir que não se verificando em relação ao arguido B... todos os pressupostos de facto e de direito que punem o crime de fraude fiscal, nomeadamente a falta da condição objetiva de punibilidade relacionada com o valor da vantagem patrimonial, vai o mesmo absolvido do crime de que vem pronunciado.
1.5 - Em relação ao arguido C...:
Resulta provado que o arguido D... fez integrar na contabilidade da sociedade E..., Lda. as seguintes faturas, as quais não correspondiam a operações efetivamente realizadas, o que o arguido bem sabia, como bem sabia o arguido C... quando as emitiu: fatura n.º 74, de 23-03-2006 no valor de 27.164,50€; e fatura n.º 82, de 21-06-2006 no valor de 35.949,10€ [factos provados sob o n.º 9]
Mais resulta provado nos autos que os valores do IVA das faturas e vendas a dinheiro referidas em 7º, 8º, 9º e 10º, foram também considerados nas declarações periódicas de IVA da sociedade E..., Lda., pelo arguido D... ou alguém por este mandatado para o efeito, pelo que tais valores foram objeto de dedução como IVA suportado, de que resultaram as seguintes deduções indevidas, em cada uma das declarações periódicas respeitantes aos períodos seguinte: novembro de 2005, o montante de 16.010,40€; março de 2006, o valor de 25.743,65€; junho de 2006, o valor de 15.482,88€; setembro de 2006, o valor de 28.912,16€; outubro de 2006, o valor de 17.579,10€; dezembro de 2006, o valor de 37.615,55€; fevereiro de 2007, o valor de 19.617,78€; março de 2007, o valor de 28.704,98€ e setembro de 2007, o valor de 18.673, 64€ [factos provados sob o n.º 11].
Outrossim resulta do elenco dos factos provados que cada um dos arguidos atuou com o propósito concretizado de provocar erro na Administração Fiscal e com isso fazer com que a sociedade arguida E..., Lda. obtivesse um benefício patrimonial, que sabiam ser ilegítimo [factos provados sob o n.º 13], e que os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo as suas condutas eram proibidas e punidas por lei [factos provados sob o n.º 14].
No entanto, importa aqui deixar referido que para que a sociedade E..., Lda. tivesse deduzido indevidamente IVA em cada uma das declarações periódicas os montantes acabados de referir, B... emitiu faturas e vendas a dinheiro, e nos referidos períodos foram utilizadas contabilística e fiscalmente pela sociedade arguida E..., Lda., que correspondiam a operações inexistentes ou por valores diferentes, como resulta do quadro descrito nos factos provados sob o n.º 44, sendo certo que resulta que em qualquer desses períodos, as faturas e vendas a dinheiro emitidas deram um contributo substancialmente inferior a 15.000,00€, não mostrando, por isso, preenchida em relação a este arguido a condição de punibilidade prevista no artigo 103º n.º 2 do RGIT, aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada, que se entende ser exigível para que o emitente das faturas ou documentos equivalentes tenha praticado o crime de fraude fiscal qualificado.
Ora, no caso dos autos e em relação ao arguido C..., estamos perante uma situação jurídica idêntica à que se desenvolveu em relação ao arguido B..., ou seja, a vantagem patrimonial que o utilizador das faturas – E..., Lda. - tirou em cada um dos períodos que utilizou faturas não representativas de efetivas operações comerciais, vantagens fiscais ou patrimoniais de 4.714,50€ [período de março de 2006]; de 6.239,10€ [período de junho de 2016], conforme resulta do quadro descrito nos factos provados sob o n.º 44, ainda que o sujeito passivo beneficiário/utilizador da fatura nesses períodos tenha obtido vantagens patrimoniais-fiscais, pelo conjunto de documentos da mesma natureza dos documentos emitidos pelo arguido B..., em montante superior a 15.000,00€.
Posto isto, entendemos que não se mostra preenchida a condição objetiva de punibilidade do crime de fraude fiscal pela emissão de faturas que não correspondem a efetivas transações, a que se refere o artigo 103º n.º 2 do RGIT”.
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4. Apreciando de mérito
4.1 Da condição objectiva de punibilidade do art. 103º, n.º 2, do RGIT
Consoante se apura do exposto o arguido D... agindo no interesse e em representação da sociedade “E..., L.da”, apresentou declarações periódicas de IVA cujos valores assentavam em facturas e vendas a dinheiro que não correspondiam a operações reais e lhe foram fornecidas por terceiros, visando obter uma vantagem patrimonial, resultante da dedução do referido imposto, como se este tivesse sido suportado pela sua representada.
Entre esses documentos constavam facturas e vendas a dinheiro emitidas por B..., relativas aos períodos de 6/3 e 6/12/2006, e 7/3/2007, nos valores de, respectivamente, € 1.518,05, € 908,60 e € 1.257,98, e por C..., reportadas aos períodos de 6/3 e 6/6/2006, nos montantes de, € 4.714,50 e € 6.239,10.
Conjugando tal documentação com outra obtida nos mesmos moldes, junto da firma “H..., L.da”, a sociedade “E..., L.da”, logrou obter no primeiro período em causa uma vantagem patrimonial de €25.743,65. E, no período seguinte, associando a documentação do arguido C... com a da citada “H..., L.da”, obteve vantagem patrimonial de €15.482,88.
No período restante, agrupando a documentação emitida pelos arguidos B... e J..., logrou vantagem patrimonial de €28.704,98.
Por conseguinte, estava imputado aos arguidos e apreciava-se nos autos o crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punível pelos arts. 103º, n.º 1, al. a), e 104º, n.º 2, do RGIT, o primeiro na redacção introduzida pela Lei n.º 60-A/2005, de 31/12, considerado, sem contestação, o regime mais favorável aos arguidos, e o segundo na redacção inicial, em vigor à data dos factos, cujo teor, no que ao caso importa, é o seguinte:
Art. 103º
Fraude
1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
(…).
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Art. 104º
Fraude Qualificada
1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
(…)
2 - A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.
É hoje consensual o entendimento de que a exigência de um patamar mínimo da indevida vantagem patrimonial, contida no n.º 2, do citado art. 103º, tal como decidido pelo tribunal a quo – e aceite pelo recorrente –, constitui uma condição objectiva de punibilidade.
Abrindo breve parêntesis, cumpre recordar que já Figueiredo Dias sustentava que a par do tipo de ilícito e do tipo de culpa do facto penal devia autonomizar-se uma outra categoria a denominar de “punibilidade” que actuaria ao nível da dignidade penal, reconduzindo a construção da doutrina geral do crime ao comportamento ilícito-típico, culposo e digno de pena[3].
Todavia, à invocada dignidade penal do facto, vieram outros autores[4] contrapor a ideia da “necessidade penal”, concluindo que o legislador, em relação a determinados crimes, faz depender a sua punibilidade e, consequentemente, a responsabilidade penal do agente da verificação de determinadas circunstâncias adicionais à ilicitude típica da acção e à culpa do agente que são denominadas pressupostos adicionais de punibilidade, ou seja condições objectivas de punibilidade.
Nesses casos, considera o legislador que, apesar de o facto ser ilícito e culposo, só verificando-se determinada circunstância é que deve ser punível penalmente, assentando a criação de pressupostos adicionais de punibilidade em razões de política criminal.
Na jurisprudência hodierna, predomina o entendimento de que as condições de punibilidade, sendo elementos estranhos à tipicidade, ilicitude ou à culpa, não integram nem contendem com a dignidade penal do facto, mas apenas com a necessidade da punição, constando da previsão do direito material.
Assim as condições objectivas de punibilidade são aqueles elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a acção antijurídica tenha consequências penais[5].
Na verdade, consoante se pode ler na fundamentação do AUJ, do STJ n.º 6/2008, de 9/4/2008[6], “…o poder punitivo do Estado é fundamentalmente desencadeado pela realização do tipo imputável ao autor. Não obstante, em determinados casos, para que entre em acção o efeito sancionador requer-se a verificação de outros elementos para além daqueles que integram o ilícito que configura o tipo. Por vezes essas inserções ocasionais da lei, entre a comissão do ilícito e a sanção concreta, inscrevem-se no direito material - hipótese em que se fala de condições objectivas ou externas de punibilidade -, noutros casos constituem parte do direito processual e denominam-se pressupostos processuais”.
Fechando parêntesis, importa apenas anotar que também não vem questionada a aplicação da aludida condição de punibilidade ao crime de fraude qualificada em sintonia, aliás, com a jurisprudência dominante nos tribunais superiores e, cremos, praticamente unânime neste Tribunal da Relação do Porto[7].
Feito este enquadramento, cumpre descer ao caso concreto.
Consoante se apura do exposto, o tribunal a quo absolveu os arguidos B... e C..., emitentes de parte das facturas e vendas a dinheiro que não correspondiam a operações reais, utilizadas pelo arguido D..., em nome e no interesse da sua representada, nas declarações periódicas de IVA, por considerar que a referida condição objectiva de punibilidade lhes era aplicável e não podiam ser sancionados porquanto a documentação por si facultada nunca permitiria a obtenção de vantagem patrimonial igual ou superior a €15.000,00. E conclui que os emitentes desse tipo de facturação só poderão ser sancionados se os elementos por si fornecidos permitirem a obtenção da vantagem patrimonial prevista na lei como patamar mínimo de punibilidade.
Por seu turno, o Digno recorrente sufraga posição diversa, afirmando que o que deve considerar-se não é o valor dos documentos fornecidos pelos emitentes mas antes o valor da vantagem resultante da declaração, por ser esse o parâmetro legal previsto no art. 103º, n.º 2, do RGIT, bastando que este seja superior ao referido montante para serem punidos todos os agentes que contribuíram para tal resultado.
Cremos que a transcrição da decisão recorrida, no segmento em causa, demonstra cabalmente as desigualdades e injustiças que a opção por esta última via promoveria, acrescendo ainda, dizemos nós, o completo atropelo das razões político-criminais que lhe subjazem pois que possibilitaria que estando em causa um único utilizador e um único emitente de facturação falsa, entregando este documentos ao primeiro, em moldes tais que lhe permitissem a obtenção de vantagem ilegítima no montante de, por exemplo, € 14.500,00, em cada uma de três declarações periódicas de IVA, este ficasse criminalmente impune, enquanto o aqui arguido B... emitindo e entregando à “E..., L.da”, documentação que permitiria vantagens de apenas, respectivamente, € 1.518,05, €908,60 e € 1.257,98, seria condenado por fraude qualificada devido ao contributo de terceiros, alheios ao plano firmado com o legal representante, que seria considerado sem haver consciência e vontade de colaboração das várias pessoas.
Ora, parece-nos, salvo o devido respeito por tese contrária, que é neste preciso segmento que há-de centrar-se o núcleo da questão controvertida, pois também não pode, sem mais, afirmar-se, como fez o tribunal a quo, que o emitente dos documentos que suportam o erro das autoridades tributárias apenas será punido se estes contemplarem valores capazes de gerarem uma vantagem patrimonial de determinado valor.
Na verdade, não foram os arguidos B... e C... quem apresentou as controvertidas declarações periódicas de IVA nem tal acto lhes competia.
Assim sendo e não se vislumbrando compaginável, num sistema jurídico-penal devidamente estruturado, que o legislador pretendesse subtrair à punição quem utiliza facturas falsas e obtém vantagens patrimoniais ilegítimas à custa do erário público, verificadas que fossem determinadas condicionantes, excluindo, porém, de tal benesse os emitentes dos documentos de suporte, a ligação de todos às declarações que propiciaram a obtenção da vantagem tem que ser realizada por via da caracterização da respectiva comparticipação criminosa pois que cada co-autor é responsável como se fosse autor singular da respectiva realização típica[8].
Aliás, não é coincidência ou irrelevante, mas antes sintomático, que da acusação constasse que: “o arguido D... ….juntamente com os restantes arguidos, decidiram que estes últimos iriam emitir as facturas e vendas a dinheiro referidas em 7º, 8º, 9º e 10º, respeitantes a fornecimentos e serviços que não prestariam de facto, entregando-os ao primeiro arguido que, desta forma, as iria entregar na sua contabilidade e apresentá-las à Administração Fiscal, nas declarações periódicas de IVA, o que fez…”.
Estaria, assim, caracterizada uma situação de co-autoria abrangendo todos os co-arguidos, unidos numa decisão conjunta e forças conjugadas, com plena consciência da cooperação na acção comum por todos delineada que culminaria na punibilidade da conduta dos emitentes nos precisos moldes que o utilizador.
No entanto, na decisão recorrida ficou apenas provada a existência de acordo entre o arguido D... e cada um dos demais arguidos, no sentido destes lhe entregarem facturas e vendas a dinheiro respeitantes a fornecimentos e serviços que não prestariam, para integração na contabilidade da empresa sua representada e posterior declaração e apresentação à Administração Fiscal, não se vislumbrando como é que o teor das declarações em causa lhes poderia ser oposto na totalidade, impondo punibilidade resultante de circunstâncias alheias ao acordo firmado com o utilizador.
Resumindo e concluindo:
O teor da declaração que serve de parâmetro à condição objectiva de punibilidade prevista no art. 103º, n.º 2, do RGIT, tem que ser aferido, no tocante aos diversos emitentes dos documentos que a suportam, de harmonia com a caracterização da sua comparticipação criminosa, sendo a punibilidade estabelecida por referência à vantagem ilegítima para a qual contribuíram directamente ou aceitaram no âmbito de plano estabelecido entre si e o utilizador daqueles, não podendo aceitar-se a extensão da punibilidade com base na argumentação de que o agente contribuiu para que o valor previsto na lei fosse atingido quando a existência de outros perpetradores lhe era desconhecida.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal da Relação do Porto julgar o recurso do Ministério Público improcedente e, embora por razões não totalmente coincidentes, manter a decisão recorrida.
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Sem tributação – arts. 513º, n.º 1, a contrario, e 522º, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP[9]]

Porto, 9 de Maio de 2018
Maria Deolinda Dionísio
Langweg
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[1] Indicação das penas e montantes por extenso, por força da previsão do art. 94º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal, preceito que a decisão recorrida, certamente por lapso, não observou.
[2] Pontos 16º a 43º - Eliminados da transcrição visto que se reportam a matéria argumentativa, conclusiva e declarações prestadas em fase de inquérito e vertidas no relatório inspectivo (prova insusceptível de valoração), acrescida de juízos de valor e análise crítica probatória, que não se compaginam com a enumeração de factos concretos e cuja sede seria, quando muito, a motivação da convicção.
[3] In “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Ed., 2004, págs. 264/265 e 617 e segs.
[4] V., Américo Taipa de Carvalho, in “O crime de abuso de confiança fiscal: As consequências jurídico-penais da alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro”, Coimbra Ed., 2007,pág. 33 e segs.
[5] Cfr., Acs. do STJ de7/2, 21/2 e 10/10/2007, Procs. n.ºs 4086/06, 4097/05 e 7P2077, in dgsi.pt
[6] Publicado no DR, I Série, de 15/5/2008.
[7] V., entre outros, Ac. de 21/5/2014, Proc. n.º 5722/04.4TDLSB.P1, e demais acórdãos aí citados, in dgsi.pt.
[8] Como é óbvio esta associação às declarações realizadas pelo utilizador apenas importará em sede de apreciação da verificação ou não da condição objectiva de punibilidade, porquanto é consabido que a conduta típica da fraude, relativamente aos emitentes, se consuma com a emissão dos documentos desconformes com a realidade.
[9] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.