Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
58145/22.2YIPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RP2023062758145/22.2YIPRT-A.P1
Data do Acordão: 06/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO ANULADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A apreciação da litigância de má-fé deve ocorrer até à decisão final do processo, apenas se podendo relegar para momento posterior a determinação da indemnização que tenha sido pedida pela parte contrária, se não houver elementos para a fixar logo na sentença.
II – A apreciação da litigância de má-fé em despacho posterior à sentença será nula, por excesso de pronúncia, por se encontrar esgotado o poder jurisdicional do juiz.
III – Só assim não será se o comportamento processual a apreciar for posterior à referida sentença, caso em que deverá ser apreciado até à decisão que puser termo ao incidente em que esse comportamento se inseriu.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 58145/22.2YIPRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
A..., SARL, com domicílio na Rua ..., ... ..., intentou contra AA, com domicílio na Rua ..., ..., ... ..., procedimento de injunção para cobrança da quantia de 10.996,20 €, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 128,29 €, e vincendos, correspondendo aquela quantia ao preço dos produtos que lhe vendeu e que esta não pagou, apesar de ter sido interpelado para esse efeito.
A requerida deduziu oposição alegando, em essência, que comprou e pagou os bens em causa a terceiros, no contexto que melhor descreve, pelo que nada deve à requerente.
Após distribuição dos autos como acção com processo comum, tendo-lhe sido concedido prazo para o fazer, a autora exerceu o contraditório, mantendo o anteriormente alegado.
Veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:
a) Absolver a ré do pedido;
b) Condenar a autora nas custas do processo.
Registe e notifique.
Valor: € 11.174,49».
Após o referido dispositivo foi exarado o seguinte:
«Atentos os factos provados e o pedido de condenação como litigante de má fé feito pela ré em sede de audiência de julgamento, notifique a autora para se pronunciar.
A autora pronunciou-se, pugnando pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má, por não estar preenchido nenhum dos pressupostos previstos no artigo 542.º, n.º 2, do CPC.
Foi proferido despacho, que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido condenar a Autora como litigante de má fé e, em consequência, condeno-a no pagamento de uma multa no valor de 10 UC».
*
Inconformada, a autora apelou deste despacho, formulando as seguintes conclusões:
«1.ª – O presente recurso é interposto contra a decisão do douto Tribunal que, por despacho proferido após ter sido proferida sentença nos autos, condenou a Autora, A... SARL, LDA, como litigante de má fé
2.ª – O tribunal a quo só veio condenar a Autora em litigância de má fé após a prolação da sentença.
3.ª – A apreciação da litigância de má fé em momento posterior à prolação da sentença, constitui nulidade insanável do despacho de que ora se recorre.
4.ª – O douto despacho recorrido é nulo por excesso de pronúncia pois violou o artigo 615º n.º 1 al. d) do CPC pelo que deve ser revogada a decisão recorrida.
5.ª – É pacifico na nossa melhor Jurisprudência que, sendo proferida sentença ou despacho a colocar fim ao processo, deve fazer-se aí, se não se fez antes, a apreciação da conduta processual assumida pelas partes que seja suscetível de configurar a litigância de má-fé.
6.ª – O Tribunal recorrido ao não ter conhecido da questão da litigância de má-fé, com base em circunstâncias e fundamentos que já constavam do processo e que se verificavam já à data da prolação da sentença, conhecendo desta questão apenas depois de proferida a sentença final, infringiu o princípio da extinção do poder jurisdicional.
7.ª – A conduta processual da Autora não integra o preenchimento de nenhum dos pressupostos previstos no artigo 542º, nº. 2 do C. P. C., para que possa ser condenada como litigante de má fé.
8.ª – A Autora não deduziu pretensão cuja falta de fundamento tinha obrigação de conhecer.
9.ª – A Autora não alterou a verdade dos factos, que se fundamentam em documentos.
10.ª – A Autora não faltou ao dever de cooperação com o tribunal.
11.ª – A Autora não fez do processo um uso manifestamente reprovável para alcançar algo ilegal ou impedir a descoberta da verdade.
12.ª – Em nenhuma circunstância a autora foi além dos limites toleráveis do exercício dos meios legais ao seu alcance, nem litigou de modo desconforme ao respeito que é devido ao tribunal e à contra-parte.
13.ª – A Autora, pura e simplesmente, não conseguiu convencer o tribunal, que refere na douta sentença “… a autora não demonstrou ter vendido bens à ré, e não se provou que esta lhe deva o preço dessa venda”.
14.ª – Não se verifica qualquer conduta ou comportamento processual da Autora que integre o conceito de litigância de má fé, devendo a mesma ser absolvida de tal pedido.
15.ª – O julgador deve ter, pois, uma atitude prudente e cuidadosa, só devendo proferir decisão condenatória por litigância de má fé no caso de se estar perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
16.ª – Somente na presença de elementos de prova seguros de que a parte atuou com a consciência de não ter razão é que deve ser censurada como litigante de má fé.
17.ª – O instituto da litigância de má-fé deve ser reservado para as condutas processuais inequivocamente inadequadas ao exercício de direitos ou à defesa contra pretensões.
18.ª – A atuação processual da recorrente não revela nenhuma culpa grave, nem a permite qualificar como lide audaciosa merecedora de condenação processual.
19.ª – A douta decisão impugnada não pode manter-se, pois violou o disposto nos artigos 542º e 613.º ambos do Código de Processo Civil.
20.ª – Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo violou, entre outras, as disposições legais dos artigos 542º, 543º, 613º, 615º do C. P. C..
21.ª – Impõe-se, como imperativo de justiça, a revogação do despacho que condenou a Autora como litigante de má fé.
Subsidiariamente,
22.ª – O valor da multa deve ser considerado elevado e desproporcional.
23.ª – A multa processual aplicada à recorrente deve ser reduzida para o seu limite mínimo.»
Concluiu pugnando pela procedência do recurso e pela revogação da decisão recorrida ou, subsidiariamente, pela redução do valor da multa processual.
Não f0i apresentada qualquer resposta.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
- A nulidade do despacho recorrido;
- A não verificação dos pressupostos da condenação da autora como litigante de má-fé;
- A desproporcionalidade da multa aplicada pelo Tribunal a quo.
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III. Fundamentação
A. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1) A requerente dedica-se, com intuitos lucrativos, à actividade comercial de importação e exportação de comércio geral e actividades de serviços de apoio prestado às empresas.
2) A requerente emitiu, em 04/03/2022, à requerida a factura n.º 1/58, no valor de €10.996,20, com data de vencimento a 3/04/2022, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
3) A autora relativamente àquela factura declarou dar plena e total quitação.
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B. Factos Não Provados
São os seguintes os factos julgados não provados pelo tribunal de primeira instância:
a) A autora vendeu à ré os bens constantes da factura supra mencionada.
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C. O Direito
Da nulidade do despacho recorrido
Entende a recorrente que o despacho que a condenou como litigante de má-fé é nulo, por ter sido proferido depois de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo, o que configura uma nulidade insanável, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 613.º e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC. Na verdade, acrescenta a recorrente, a questão foi suscitada em sede de audiência de julgamento, mais concretamente nas alegações orais da mandatária da ré, o tribunal apreciou o mérito da causa e só depois ordenou a notificação da autora para se pronunciar sobre a alegada litigância de má-fé, quando o deveria ter feito antes de proferir a sentença.
A questão assim colocada não é nova, mas não tem merecido uma resposta unívoca na jurisprudência dos Tribunais da Relação. Cremos ser maioritária, pelo menos no Tribunal da Relação do Porto, a jurisprudência que preconiza a tese aqui defendida pela recorrente, a qual também merece a nossa concordância, pelas razões que passamos a expor.
A condenação das partes como litigante de má-fé está regulada nos artigos 542.º e seguintes do CPC.
Sob a epígrafe “Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé”, dispõe assim o primeiro desses artigos:
1 – Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
(…)
A má-fé a que se reportam as referidas alíneas a) e b) é a má fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra, 1981, p. 264). As restantes alíneas respeitam à chamada má-fé instrumental.
Em qualquer dos casos, a litigância de má-fé surge como um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Corresponde antes a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objectivos muito práticos e restritos.
No essencial, não relevam aí todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as actuações tipificadas nas diversas alíneas do n.º 2 do citado artigo 542.º do CPC; não é requerido dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; exige-se dolo ou grave negligência, e não culpa lato sensu, em moldes civis; as consequências são apenas multa e, nalguns casos, indemnização calculada em moldes especiais (artigos 542.º, n.º 1, e 543.º, do CPC).
O conteúdo da indemnização prevista no n.º 1, daquele artigo 542.º, é regulado no artigo seguinte, preceituando assim o seu n.º 3:
Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte.
Como vemos, a lei processual não regula o momento em que deve conhecer-se da litigância de má-fé. Prevê apenas a possibilidade de, excepcionalmente, o montante da indemnização ser determinado em momento posterior à sentença, se não houver elementos para a fixar nesse momento. Igual previsão não foi consagrada relativamente à determinação da multa, nem relativamente à própria condenação da parte como litigante de má, de onde se depreende que esta condenação e a determinação da multa aplicável têm sede na própria sentença ou decisão final.
Tal interpretação a contrario sensu do n.º 3, do artigo 543.º, do CPC constitui, precisamente, um dos principais argumentos que a jurisprudência vem esgrimindo a favor da tese aqui preconizada pela recorrente. A circunstância de o legislador ter sentido a necessidade de prever expressamente a possibilidade de se relegar para momento posterior à sentença a determinação da indemnização revela que a regra é que essa determinação ocorra na própria sentença, regra igualmente aplicável, sem aquela excepção, à condenação e à determinação da respectiva multa.
Esta leitura está em total consonância com o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, inserido nas regras respeitantes à elaboração da sentença, nos termos do qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. O legislador não exclui expressamente do âmbito de aplicação desta norma a questão da litigância de má-fé que tenha sido suscitada por alguma das partes ou de que o tribunal entenda conhecer oficiosamente, nem se vislumbra qualquer razão válida para o intérprete o fazer.
A disciplina da elaboração da sentença prevista nos artigos 607.º e seguintes do CPC, onde se inclui a norma antes analisada, está alinhada com e tem o seu desenlace nas normas dos artigos 613.º e seguintes do mesmo código, dedicadas aos vícios e reforma da sentença.
Nos termos do disposto no artigo 613.º do CPC, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, apenas lhe sendo lícito rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença nos casos expressamente previstos nos artigos 614.º e 616.º do CPC. Tais normativos não contemplam a possibilidade de condenação da parte como litigância de má-fé depois de a sentença ter sido proferida. Assim, como se escreve no ac. do TRP de 15.12.2021 (proc. n.º 1211/14.7TBMTS.P1, rel. Aristides Rodrigues de Almeida), «se no momento da sentença se suscitar alguma questão de que o juiz pode conhecer, quais sejam todas as que forem de conhecimento oficioso e todas as que tiverem sido suscitadas pelas partes (sem que lhe esteja vedado o seu conhecimento, v.g. por já ter sido conhecida, o seu conhecimento se ter tornado supervenientemente inútil ou consistir numa excepção sanada) o juiz deve conhecer da mesma porque com a prolação da sentença o seu poder jurisdicional esgota-se e se não conheceu da questão nessa oportunidade deixa de poder conhecer da mesma posteriormente. (…) Se a litigância de má fé respeita à actuação processual anterior à sentença ela já se encontra evidenciada nos autos; trata-se nesse caso de uma questão a decidir e que não poderá deixar de o ser em virtude do esgotamento do poder jurisdicional subsequente à pronúncia da sentença».
Em contrapartida, não suscita dúvidas que a sentença que omita a apreciação e a decisão do pedido, anteriormente formulado por uma das partes, de condenação da outra parte como litigante de má, será nula por omissão de pronúncia, nos termos previstos na primeira parte, da al. d), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC (ainda que essa nulidade não seja de conhecimento oficioso, devendo ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença ou em sede de recurso, nos termos regulados no n.º 4 do mesmo artigo 615.º).
Em coerência com o exposto, a apreciação e decisão do pedido de condenação por litigância de má fé já depois de proferida a sentença também gera a nulidade dessa decisão, por excesso de pronúncia, nos termos previstos no artigo 613.º, n.º 1, do CPC, podendo igualmente convocar-se o mesmo artigo 615.º, n.º 1, al. d), in fine, na medida em que este preceito é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do preceituado no artigo 613.º, n.º 3, também do CPC.
Só assim não será se os fundamentos (e, naturalmente, a formulação) do pedido de condenação como litigante de ma fé forem posteriores à prolação da sentença, ou seja, se os actos que consubstanciam a ma-fé material ou instrumental da parte tiverem sido praticados já depois da sentença, o que pode perfeitamente suceder no âmbito dos incidentes posteriores à sentença (nomeadamente os incidentes relativos à reforma da sentença, à conta, às custas de parte, à liquidação, etc.) ou no âmbito do recurso que venha a ser interposto. Note-se que o esgotamento do poder jurisdicional tem, naturalmente, como pressuposto que o julgador, quando se prepara para prolatar a sentença final, tenha à sua disposição todos os elementos necessários para apreciar as questões que lhe compete conhecer, o que não sucede nas situações agora referidas.
Ainda assim, nessas situações, o regime legal acima descrito, com a interpretação antes preconizada, continua a ser inteiramente aplicável, com a única diferença de que o poder jurisdicional do tribunal se esgota com a decisão do incidente ou do recurso.
Neste sentido, escreve-se no já citado ac. do TRP de 5.12.2021 que, nestas situações, «a conduta enquadrável como litigância de má-fé deriva de uma actuação processual posterior à sentença e a apreciação da mesma terá de ser feita na decisão final do incidente no qual ela tenha sido praticada e, ainda assim, com fundamento apenas na actuação posterior à sentença, não sendo, mesmo nessa situação, admissível que o juiz revisite a tramitação anterior à sentença para a qualificar e sancionar como litigância de má-fé».
No caso concreto, decorre do relatório deste aresto e é corroborado tanto pelo teor da sentença proferida pela primeira instância como do subsequente despacho recorrido que o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé foi formulado antes da prolação da sentença, com fundamento no anterior comportamento processual daquela parte, pelo que, em consonância com o regime processual que vimos analisando, o Tribunal a quo devia ter apreciado e decidido aquele pedido na sentença, e não em despacho posterior, sob pena se esgotar o seu poder jurisdicional.
E não se argumente que, tendo a questão sido suscitada pela primeira vez nas alegações finais e estando o Tribunal a quo obrigado a assegurar o contraditório, se impunha relegar o conhecimento daquele pedido para momento posterior à prolação da sentença.
Não se questiona, naturalmente, a necessidade de assegurar o contraditório, erigido pelo legislador em princípio basilar e estruturante do actual processo civil, como decorre do comando geral do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, nos termos do qual 0 juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Mas desta norma geral também decorre que não existirá essa necessidade de o juiz ordenar que seja cumprido o contraditório se as partes tiverem tido oportunidade de o exercer, mesmo na ausência de despacho prévio nesse sentido, designadamente por terem sido notificadas pela contraparte da sua pretensão.
No caso concreto, o próprio iter processual legalmente previsto, nomeadamente a possibilidade de réplica prevista no artigo 604.º, n.ºs 3, al. e), e 5, do CPC, garantia à autora o exercício do contraditório. Se não usou dessa faculdade, sibi imputet!
Mas ainda que assim não entendesse, o Tribunal a quo sempre poderia ter dado imediata e expressamente a palavra ao mandatário da autora para se pronunciar, querendo, sobre a alegada litigância de má-fé e, se tal se justificasse, poderia ter interrompido a audiência pelo tempo que necessário para a autora responder.
A nosso ver, o que não podia era, depois de ter encerrado a audiência e proferido a sentença, conceder prazo para a parte se pronunciar sobre uma questão que “deixou pendente” e apreciá-la posteriormente em despacho autónomo, ainda que ao abrigo dos poderes de gestão processual (artigo 6.º do CPC) e de adequação formal (artigo 547.º do CPC), pois estes não permitem modificar o objecto da sentença ou excluir uma das causas de nulidade desta, afastando as consequências do artigo 613.º do CPC. De resto, no caso concreto, aqueles poderes de gestão processual e adequação formal nem sequer foram invocados e justificados, conforme exige a lei processual.
No sentido aqui preconizado, para além da jurisprudência por nós citada anteriormente e pela própria recorrente, vide os acórdãos deste TRP de 27.02.2023 (pro. n.º 19346/20.5T8PRT-A.P1, rel. Rui Penha) e de 02.05.2023 (proc. n.º 3625/21.7T8AVR.P1, rel. Maria da Luz Seabra, não publicado, em que o ora relator interveio como adjunto), o ac. do TRG, de 02.06.2016 (proc. n.º 128/12.4TBVLN.G2, rel. Jorge Seabra) e o ac. do TRC, de 08.09.2020 (proc. n.º 197/17.0T8TND.C2, rel. Fonte Ramos), bem como a demais jurisprudência citada nestes arestos.
No mesmo sentido, na doutrina, Alberto dos Reis (cit., p. 281), em anotação ao artigo 466.º do CPC de 1939, escreve o seguinte: «A apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; é nesta que há-de decidir se o litigante procedeu de má fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo como tal em multa e indemnização; o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização, caso o processo, na altura da sentença, o não habilite a determiná-lo».
Em sentido contrário se pronunciaram os acórdãos do TRG de 10.05.2018 (proc. n.º 27/15.8T8TMC.G1, rel. Alcides Rodrigues) e de 31.10.2019 (proc. n.º 587/18.1T8PTL-A.G1, rel. Paulo Reis), o ac. do TRL, de 12.07.2012 (proc. n.º 205/06.0TCSNT.L1-2, rel. Ezagüy Martins) e o ac. do TRC, de 02.02.2016 (proc. n.º 115/12.2TBPNC.C2, rel. Jorge Arcanjo).
Os defensores desta tese invocam, em defesa da mesma, a seguinte afirmação de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, pp. 126 e 127): «O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível. Convém atentar nas palavras «quanto à matéria da causa». Estas palavras marcam o sentido do princípio referido. Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida. O juiz pode e deve resolver as questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou no despacho que emitiu; cumpre-lhe, por exemplo, prover a todos os actos relativos à interposição e expedição do recurso oposto à sua decisão».
Mais afirmam que a condenação como litigante de má fé não altera nem contradiz a sentença que conheceu do mérito da causa, julgou procedente alguma excepção dilatória ou declarou extinta a instância por outra razão (confissão, desistência, transacção, impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide), sendo certo que se impõe ao Tribunal que aprecie a conduta processual da parte, sob pena de nulidade da decisão final por omissão de pronúncia sobre uma questão que lhe competia apreciar.
Não cremos, porém, que a questão da litigância de má-fé baseada em factos ocorridos antes da prolação da sentença se possa considerar um “incidente surgido posteriormente”, o que se torna mais evidente nas situações em que alguma das partes já havia pedido a condenação da outra como litigante de má-fé, como sucedeu no presente caso, ainda que esse pedido tenha ocorrido apenas nas alegações finais.
De resto, o próprio Alberto dos Reis não terá pretendido conferir à passagem agora transcrita o alcance que esta jurisprudência lhe confere, como decorre da citação que fizemos anteriormente do mesmo autor e obra.
Acresce que o esgotamento do poder jurisdicional não se cinge às questões que tenham sido efectivamente conhecidas na sentença, abrangendo todas as que competia ao tribunal apreciar e decidir nessa sede, independentemente de este o ter feito ou não. A omissão de pronúncia quanto a alguma destas questões gera a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e não o diferimento do conhecimento dessa questão para momento posterior, por livre iniciativa do tribunal.
Por fim, é, precisamente, porque se impõe ao tribunal o conhecimento da litigância de má-fé, sob pena de nulidade da decisão final, que esse conhecimento não pode ter lugar depois da referida decisão final. O conhecimento da litigância de má-fé deve fazer-se nesta decisão final, sob pena de nulidade, que o juiz não pode suprir oficiosamente, mas tão-só nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 4, do CC.
Demarcamo-nos, assim, do entendimento veiculado no ac. do TRL de 12.07.2012, também antes citado, nos termos do qual a prolação da decisão quanto à litigância de má-fé em momento processual não contemplado na lei para o efeito configuraria uma mera irregularidade, sem qualquer influência no exame ou decisão da causa (cfr. artigo 195.º do CPC).
Em abono da tese contrária à aqui preconizada, escreve-se no ac. do TRG de 31.10.2019, antes citado, que a matéria atinente à litigância de má-fé é autónoma do mérito da causa, pelo que a anterior pronúncia sobre o mérito da causa não obsta a que o tribunal decidia posteriormente a questão da litigância de má-fé, a qual não exerce influência naquela sentença.
Mas, para além de tudo quanto já ficou exposto, a verdade é que esta suposta estanquicidade entre o mérito da causa e litigância de má fé nem sempre se confirma, não ocorrendo, desde logo, mas situações de má-fé material ou substancial.
Admitimos, porém, que a situação possa ser mais duvidosa nos casos em que nada é requerido pelas partes e que apenas com a decisão sobre a matéria de facto se torna claro ao tribunal que uma das partes litigou com má-fé.
A este respeito, diz-se o seguinte no sumário do ac. do TRG, de 11.05.2022 (proc. n.º 1665/14.1T8BRG-I.G1, rel. António Beça Pereira): «Se durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia. Mas, se tal questão não tiver sido colocada no decorrer da lide e se para o conhecimento da mesma for necessário já haver decisão sobre a matéria de facto, uma vez que esta só tem lugar na sentença, por respeito ao princípio do contraditório, o tribunal só se poderá pronunciar quanto a ela depois de conceder à parte visada uma oportunidade para esta expressar o seu ponto de vista sobre essa matéria; o mesmo é dizer que apenas lhe é permitido decidi-la em momento posterior ao da sentença, o que implica, necessariamente, que não há aí qualquer vício processual».
Esta questão é igualmente suscitada no primeiro dos acórdãos antes citados (TRG de 10.05.2018). Reconhecendo-se aí que o momento processual adequado para apreciar e decidir a questão da litigância de má-fé é a sentença final ou qualquer outra decisão que ponha termo ao processo, afirma-se que esta regra geral «se dirige aos casos em que a matéria dos correspondentes pressupostos foi já objeto de discussão anterior; não sendo esse o caso, a subsequente decisão condenatória tem natureza complementar relativamente à sentença que formalmente a antecede»; na verdade, acrescenta-se no mesmo aresto, pode «dar-se o caso de somente com a prolação da sentença o juiz estar em condições de aquilatar oficiosamente duma atuação processual censurável por banda de uma das partes – pense-se, por exemplo, numa situação em que uma das partes alterou a verdade dos factos ou omitiu factos relevantes para a decisão da causa, circunstâncias estas de que o juiz apenas se consegue inteirar ao proferir a resposta à matéria de facto, a qual, no atual regime processual civil, faz parte integrante da sentença (art. 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC) –, não podendo de imediato proferir decisão condenatória quanto à litigância de má-fé por carecer de garantir o contraditório no caso em que a questão da má-fé não foi objeto de discussão anterior – art. 3º, n.º 3 do CPC –, sob pena de nulidade da decisão».
Afirma-se, por sua vez, no ac. do TRL de 12.07.2012 que, importando garantir o contraditório nos casos em que a questão da má fé não foi objeto de discussão anterior, «a alternativa ao procedimento adotado na 1.ª instância seria a pactuação com essa sorte de comportamentos processualmente desviantes. Ou, então, impor-se-ia ao juiz a elaboração de um projeto de sentença, em ordem a poder perspetivar cabalmente a condenação da parte como litigante de má fé, sobrestando depois na prolação da sentença, e ordenando a notificação das partes para se pronunciarem a propósito. Apenas depois de decorrido o prazo para o efeito… começando a correr o prazo para a elaboração da sentença. O que nada seguramente esteve nas intenções do legislador – vd. art.º 9º, n.º 3, 1ª parte».
Não vemos por que razão se imporia ao juiz a elaboração de um projecto de sentença, tal como não vislumbramos qualquer óbice a que o juiz possa sobrestar na decisão e conceder prazo para o contraditório, começando depois a correr novo prazo para a prolação da sentença. Cremos mesmo que este procedimento encontra apoio na norma do artigo 607.º, n.º 1, do CPC (que dispõe assim: «Encerrada a audiência final, o processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença no prazo de 30 dias; se não se julgar suficientemente esclarecido, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as demais diligências necessárias»).
Acresce que, embora sejam muito ponderosos os argumentos expendidos no sentido de ser processualmente admissível, nestas situações, que o tribunal se pronuncie sobre a litigância de má fé em momento posterior à sentença, não podemos ignorar que esta solução suscita problemas de difícil resolução, afigurando-se que a solução sobrestar na decisão para que seja previamente respeitado o contraditório se apresenta como a que melhor garante a certeza jurídica quanto a exercício dos direitos processualmente previstos, mormente o direito a recorrer, e quanto à data do trânsito em julgado da sentença.
Como se alerta no ac. do TRP de 27.02.2023, o trânsito em julgado da sentença que apreciou o mérito da causa antes da condenação de uma das partes como litigante de má-fé – porque esta se conformou com a decisão ou porque, simplesmente, carecia de legitimidade para interpor recurso, em virtude de a mesma lhe ter sido favorável, não obstante não ter logrado demonstrar a sua versão dos factos – impede que, em sede de recurso relativamente a esta condenação, se possa impugnar a decisão sobre a matéria de facto fixada (desfavoravelmente ao recorrente) na sentença já transitada.
A tese que vimos analisando parece pretender resolver este problema por via da consideração da decisão sobre a litigância de má-fé como um complemento da sentença final (o que acaba por ter ínsita a aceitação de que esta decisão deve constar da sentença), pelo que «o recurso da sentença terá vocação para abranger a impugnação da condenação como litigante de má-fé. E isto, assim, presente a íntima conexão que, as mais das vezes, se poderá estabelecer entre o conhecimento de mérito e o equacionar da litigância de má-fé» (ac. do TRL de 12.07.2012).
Mas isso pressupõe que o início do prazo para recorrer da sentença apenas se inicie com a notificação do despacho que aprecia e decide a questão da litigância de má-fé, devendo a parte acreditar que o Tribunal assim contará o prazo, mas podendo ser surpreendida com uma opção diferente. À cautela, a parte ver-se-ia forçada a recorrer a sentença – se tiver legitimidade para o efeito – e, posteriormente, a recorrer do despacho que a condenou como litigante de má-fé, se essa for a decisão; não o tendo sido, deveria então desistir do recurso inicialmente interposto, suportando os inerentes encargos.
Seja como for, ainda que se considere bem sustentada a tese defendida no citado ac. do TRG de 1.05.2022, a mesma não é aplicável ao caso concreto, por não ocorrer aí a situação que vimos equacionado. Na verdade, o Tribunal a quo não foi colocado pela primeira vez perante a possibilidade de a autora ter litigado de má-fé no momento em que decidiu sobre os factos, pois a ré já havia expressamente suscitado essa questão na audiência de julgamento e aí pedido ao tribunal que condenasse a autora como litigante de má-fé.
Deste modo, a cisão entre a sentença que aprecia o mérito da causa e a decisão sobre o pedido de condenação da autora como litigante de má também não encontra justificação na necessidade de evitar uma decisão surpresa.
Por tudo quanto ficou exposto, impõe-se declarar nulo o despacho recorrido.
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pela recorrente, referentes à verificação dos pressupostos da condenação da autora como litigante de má fé e à proporcionalidade da multa aplicada pelo Tribunal a quo.
Não obstante, as custas do recurso serão suportadas pela recorrente, por ser a parte que do mesmo tirou proveito (cfr. artigo 527.º, n.º 1, in fine, do CPC).
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IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência do recurso, os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto declaram nulo o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 27 de Junho de 2023
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
João Proença