Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6667/18.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: NEGÓCIOS UNILATERIAIS
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RP201911126667/18.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: ,
Sumário: I - A promessa de cumprimento e/ou reconhecimento de dívida é um negócio jurídico atípico, a meio caminho entre os negócios causais e os negócios abstractos, em que a causa de pedir é simplesmente a promessa da prestação e/ou o reconhecimento da dívida, como declaração unilateral do devedor, devidamente formalizada.
II - Não sendo elemento da causa de pedir, é desnecessária e supérflua a alegação na Petição Inicial da relação causal que esteve na sua origem.
III - Aliás, nestas situações a fonte da obrigação já não é a relação fundamental pura, mas uma realidade que, apesar de a ter tido como causa inicial, evoluiu, por vontade das partes, para uma assunção de dívida ou promessa de prestação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6667/18.6T8VNG.P1
Comarca: [Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia (J1), Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Vieira e Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

B…, residente na Rua …, n.º .., 2.º Esq. Frente, freguesia …, concelho de Valongo, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra C…, residente na …, n.º ../.., freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, e D…, com a mesma residência, pedindo que os Réus sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 57.000,00, acrescida de juros de mora vencidos no montante de € 99,95 e de juros vincendos, nos termos do art.º 806.º, n.º 1, e, ainda, juros compulsórios, nos termos do art.º 829.º-A, n.º 4 do Código Civil.
Alega, em síntese, que, por contrato de confissão de dívida e fiança, datado de 29 de Dezembro de 2017, ela e a Ré declararam dar sem efeito o contrato-promessa de cessão de quotas que haviam celebrado em 08 de Julho de 2010, em que ficou clausulado que a Ré prometia ceder-lhe a quota que possui na sociedade “E…, Lda.”, pelo valor de € 25.000,00.
Afirma que, como contrapartida da negociação deste último contrato, a Ré se confessou e constituiu devedora da quantia de € 60.000,00, obrigando-se a pagar-lhe tal quantia em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, de € 1.000,00 cada, vencendo-se a primeira em 10 de Fevereiro de 2018.
Mais alega que, pelo mesmo contrato, o Réu declarou constituir-se fiador e principal pagador, assumindo todas as obrigações constantes do mesmo e renunciando ao benefício da excussão prévia, bem como ao benefício do prazo.
Diz que os Réus apenas pagaram três prestações mensais, no valor global de € 3.000,00, apesar de terem sido interpelados para procederem ao pagamento das restantes.
Os Réus foram citados e não vieram contestar nem intervir por qualquer forma nos autos.
Convidada para esclarecer e concretizar a matéria de facto no que diz respeito à fonte da obrigação, a Autora veio apresentar novo articulado, alegando que, após a celebração do dito contrato-promessa, entrou na posse efectiva do estabelecimento.
Diz que passou a ser ela a gerir o mesmo, orientando a confecção, servindo os clientes e contactando os fornecedores – o que ocorreu no período compreendido entre 08 de Julho de 2010 e 29 de Dezembro de 2017.
Declara ter sido ela quem, fruto do seu trabalho e saber, gerou um valor acrescentado à quota em apreço, durante um período de mais de 07 anos.
Expõe ter sido por este motivo que ela e a Ré convencionaram que o preço da quota em questão não tinha um valor de € 25.000,00, mas de € 60.000,00.
A Autora veio sequencialmente apresentar alegações, reiterando as alegações e pedido da Petição Inicial.
Proferiu-se sentença com a seguinte parte decisória: “Em face do exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo os Réus C… e D… do pedido contra eles formulado pela Autora B….”
Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
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42) Ao não decidir como propugnado, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 405.º, 280.º, 247.º e 250.º do C.C. quando interpretados no sentido de que a origem da confissão de dívida não poderá ser a contrapartida da negociação da revogação da prometida alienação da quota social a favor da A., preço que as partes, de modo livre e esclarecido, convencionaram.
Não foram apresentadas contra-alegações pela Ré.
O presente recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
• Modificabilidade da decisão de facto, por aditamento de factos alegados pela Autora;
• Suficiência dos factos alegados nos articulados dos autos para a procedência do pedido.
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III – DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida:

1. Por documento de confissão de dívida e fiança, datado de 29 de Dezembro de 2017, A. e RR. declararam ter celebrado contrato promessa de cessão de quotas, em 08 de Julho de 2010, ficando clausulado que a primeira R. prometeu ceder à aqui A. a quota que aquela possui na sociedade “E…, Lda.”, sociedade comercial por quotas, com o NIPC ………, com sede na R. …, loja …, …, freguesia …, concelho do Porto, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto;
2. O preço estipulado da prometida cessão de quota foi de € 25.000,00, que a A. entregou à primeira R. e que esta expressamente declara ter recebido;
3. A primeira R. e a A. acordaram declarar e reciprocamente aceitar dar sem efeito o referido contrato promessa de cessão de quotas, o que fizeram através do referido documento de 29 de Dezembro de 2017, mantendo-se a aludida quota na titularidade da R. C…;
4. Consta da Cláusula Quinta do documento aludido em 1. que “Como contrapartida pelo presente contrato a primeira outorgante C… confessa-se e constitui-se devedora da segunda outorgante B…, da quantia de € 60.000,00 (…)”;
5. Consta da Cláusula Sexta do documento aludido em 1. que “A primeira outorgante obriga-se a pagar à segunda outorgante aquela quantia de € 60.000,00 em sessenta prestações mensais, iguais e sucessivas, de € 1.000,00 cada, vencendo-se a primeira prestação em 10 de Fevereiro de 2018, pagamento a efectuar mediante transferência bancária, a favor da segunda outorgante, para o IBAN (…) ou por depósito.”;
6. Consta da Cláusula Sétima do documento aludido em 1. que “O incumprimento pontual de qualquer das referidas sessenta prestações implica o imediato vencimento da totalidade do montante do capital que estiver em dívida”;
7. Consta da Cláusula Oitava do documento aludido em 1. que “O terceiro outorgante na qualidade de fiador da primeira outorgante, expressamente declara constituir-se fiador e principal pagador, assumir todas as obrigações constantes do presente contrato, renunciando desde já e expressamente ao benefício da excussão prévia, bem como ao benefício de prazo previsto no art.º 782.º do Código Civil”;
8. O referido documento de confissão de dívida e fiança foi assinado pela A. e RR. e as assinaturas reconhecidas.
9. Os RR. pagaram apenas três prestações mensais (por vezes com atrasos), no valor de € 1.000,00 cada, perfazendo o total de € 3.000,00 (meses de Fevereiro, Março e Abril de 2018), não tendo procedido ao pagamento das prestações vencidas em 10 de Maio de 2018, 10 de Junho de 2018, 10 de Julho de 2018 e 10 de Agosto de 2018;
10. A A. interpelou os RR. para pagamento, por diversas vezes, sem êxito;
11. Os Réus exploram o estabelecimento comercial de restauração “E…”;
12. Desde 08.07.2010 e até à outorga do documento aludido em 1. A A. geriu aquele estabelecimento comercial, orientava a confecção e servia a clientes, contactava fornecedores;
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IV – DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO

Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CP Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa."
A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do CP Civil. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder a reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material.
Nos presentes autos, e não tendo sido apresentada Contestação pelos Réus, todos os factos articulados pela Autora se consideraram confessados, por aplicação do disposto no art.º 567.º do CP Civil.
A Recorrente vem agora requerer que seja ampliada a matéria de facto para os factos alegados com o requerimento com a ref. 3195659, por - no seu entender – serem essenciais para a descoberta da verdade, a saber: - Foi a A. que, fruto do seu trabalho e saber, gerou um valor acrescentado à quota em apreço, durante um período de mais de sete anos; - Por isso que as partes (A. e R.) convencionaram que o preço da quota em questão em 29.12.2017 não ter um valor de € 25.000,00, mas de € 60.000,00.
Concordamos que os factos em questão assumem potencial relevo jurídico, pelo menos à luz da tese jurídica defendida na sentença recorrida, em decorrência do facto dada como provado em 12).
Assim, expurgando os mesmos dos respectivos elementos conclusivos, aditam-se aos Factos Provados os seguintes:
13) Em consequência do trabalho da Autora ao longo destes anos, a quota da Ré acima referida ficou com um valor patrimonial acrescido, em montante concreto não apurado.
14) Esta circunstância levou a que Autora e Ré tivessem convencionado, em 29/12/17, que o preço da quota em questão tinha passado a ter um valor de € 60.000,00.
Por outro lado, verifica-se que a Autora, ao alegar, na Petição Inicial, ter interpelado os Réus para pagamento, remete para o teor do documento de fls. 7-verso, o qual consubstancia uma cópia de carta registada, datada de 12/06/18, fixando um prazo de 02 dias para pagamento das prestações vencidas, sob pena de interposição de acção judicial.
Esta factualidade revela-se imprescindível para a apreciação do início da constituição em mora por parte dos Réus.
Por outro lado, este facto pode e deve considerar-se provado igualmente por força da aplicação da estatuição do art.º 567.º do CP Civil.
Assim sendo, e por aplicação da citada disposição legal do art.º 662.º do CP Civil, altera-se a redacção do Item 10) dos Factos Provados da seguinte forma:
10) A Autora interpelou os Réus para pagamento, por diversas vezes, sem êxito, designadamente através de carta registada, datada de 12/06/18, através da qual fixava um prazo de 02 dias para pagamento das prestações vencidas, sob pena de interposição de acção judicial.
Conclui-se, portanto, pela procedência deste fundamento de recurso.
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V – SUFICIÊNCIA DOS FACTOS ALEGADOS NOS ARTICULADOS PARA A PROCEDÊNCIA DO PEDIDO

A decisão recorrida julgou a presente acção totalmente improcedente, com fundamento em que a “confissão de dívida” sem indicação de causa, prevista no art.º 458.º do Código Civil[2], não é constitutiva da obrigação a que se refere, tendo subjacente outra relação jurídica fundamental que lhe constituiu a causa, cuja alegação, no caso concreto, foi omitida pela Autora (estava dispensada de provar tal relação fundamental, mas não estava dispensada de a alegar). E, sequencialmente, entendendo que, mesmo atendendo-se à factualidade que veio a ser alegada posteriormente na sequência de convite para o efeito, de tais factos não se deduz a existência de qualquer relação contratual da qual resultasse para a ora Ré a obrigação de pagamento da quantia de € 60.000,00 constante da dita “confissão de dívida e fiança”.
A Recorrente sustenta – no presente recurso – que a causa fundamental e subjacente à confissão de dívida está alegada, de modo claro e suficiente, nos factos assentes 1; 2; 3; 4; 5 e 12; art.º 4.º e 5.º da p.i. e no requerimento suplementar.
Expõe que as partes convencionaram um negócio lícito, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, e que este negócio consistiu em: 1. Revogar a contrato promessa de compra e venda de cessão de quotas; 2. Compensá-la pela perda do direito à quota que comprou por € 25.000,00; 3. Fixar o valor real à quota em € 60.000,00, resultante do incremento patrimonial do seu trabalho na sociedade e que lhe atribuiu uma mais-valia; 4. Possibilidade de pagar o valor real da quota de € 60.000,00, em 5 anos, em prestações mensais, iguais e sucessivas de € 1.000,00; 5. Com fiador.
Defende que, ao não decidir como propugnado, o tribunal a quo violou o disposto no art.º 405.º, 280.º, 247.º e 250.º do C Civil, quando interpretados no sentido de que a origem da confissão de dívida não poderá ser a contrapartida da negociação da revogação da prometida alienação da quota social a seu favor, preço que as partes, de modo livre e esclarecido, convencionaram.
Entendemos assistir razão à Recorrente, ainda que não exactamente com base na construção jurídica por si apresentada nas alegações de recurso.
Efectivamente, a regra geral no nosso direito obrigacional é a de que as obrigações são causais, no sentido de que “qualquer obrigação só vale se for acompanhada da sua fonte.”[3]
Justificando esta exigência, diz Castro Mendes[4]: “No domínio do negócio jurídico, como no direito subjectivo, é necessário conjugar vontade e interesse. A lei tutela a vontade, mas só na medida em que por ela se prossiga um interesse do agente, e um interesse atendível. A este interesse prosseguido pelo negócio jurídico chama-se causa do mesmo negócio.”
As obrigações necessitam, portanto, de ter uma fonte concreta, a qual é parte integrante do negócio, e que permite aferir da licitude e legalidade do negócio e da aplicação da(s) estatuição(ões) jurídica(s) correspondente(s) .
Por inerência, o autor tem, em sede de construção da causa de pedir, que invocar o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que invoca e pretende fazer valer com a acção.
Apenas em situações excepcionais, são admitidos pela lei civil negócios abstractos, válidos independentemente da respectiva causa ou relação subjacente. O caso típico mais comum é o dos títulos de crédito.
O art.º 458.º, n.º 1, do C Civil, incluído no Capítulo das “Fontes das Obrigações” e na Secção dos “Negócios Unilaterais”, prevê uma situação atípica perante esta regra geral da causalidade, ao admitir que “Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.”
Tem a sua razão explicativa no “facilitar a mobilidade da vida económica”[5] e como propósito conferir ao credor uma segurança acrescida relativamente ao negócio causal.
Apesar de ser discutível a inserção deste normativo na Secção dos “Negócios Unilaterais”[6], uma vez que se infere da sua estatuição que versa sobre negócios bilaterais, deve considerar-se justificada tal inclusão pela relevância preponderante atribuída à “declaração unilateral” de promessa de uma prestação ou de reconhecimento de uma dívida.
No entanto, apesar de dispensar a respectiva causa, não constitui estruturalmente um negócio abstracto, já que se atribui ao devedor a possibilidade de provar que a relação fundamental não existe, que é ilícita ou imoral ou que, por qualquer motivo, se modificou ou extinguiu (presunção iuris tantum).
Ainda assim, a inversão do ónus da prova aqui consagrada não reduz o âmbito do preceito a uma mera regra probatória. Se fosse essa a intenção, o legislador (que se presume tomar sempre as melhores opções) teria certamente incluído o preceito em causa no Capítulo alusivo às “Provas”, dos art.º 341.º e ss. do C Civil.
Com base nestas considerações, concluímos que a promessa de cumprimento e/ou reconhecimento de dívida é um negócio jurídico atípico, a meio caminho entre os negócios causais e os negócios abstractos, em que a causa de pedir é simplesmente a promessa da prestação e/ou o reconhecimento da dívida, como declaração unilateral do devedor, devidamente formalizada.
Assim sendo, contrariamente ao tribunal recorrido, entendemos que, não sendo elemento da causa de pedir, é desnecessária e supérflua a alegação na Petição Inicial da relação causal que esteve na sua origem.
Isto é, o credor está desonerado quer de alegar a causa ou título justificativo da promessa de prestação ou de reconhecimento de dívida, quer de a provar.
Veja-se, neste sentido, designadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/03/05, tendo como Relator Lopes Pinto[7]: “No negócio unilateral contemplado no art.º 458.º CC, não declarada a causa, presume-se que a obrigação a tem cabendo ao devedor a prova de que inexiste a relação fundamental.”
Igualmente o Acórdão desta Relação de 17/05/01, tendo como Relator Mário Fernandes[8]: “A declaração que encerra o reconhecimento de uma dívida é bastante para formular o pedido de condenação do autor da declaração, cabendo a este demonstrar que a dívida não existe, resulta de eventual negócio ilícito ou que é falsa a factualidade ou negócio gerador da obrigação resultante daquela declaração.”[9]
Aliás, nestas situações a fonte da obrigação já não é a relação fundamental pura, mas uma realidade que, apesar de a ter tido como causa inicial, evoluiu, por vontade das partes, para uma assunção de dívida ou promessa de prestação.
Tal como explica Menezes Cordeiro[10], “Havendo promessa de cumprimento ou reconhecimento de dívida, a obrigação preexistente já não é a mesma. Apenas por facilidade de expressão e de análise e pelas limitações de linguagem, nos vemos constrangidos a separar a substância da sua própria prova. Tudo isso é uma realidade que se apresenta em continuum. O reconhecimento, sendo declarativo, tem, também, uma eficácia constitutiva. Para além do decisivo aspecto da prova, devemos ter consciência que a dívida reconhecida nunca é precisamente a preexistente: bastaria a dispensa da “causa” para a tanto conduzir. Além disso, há uma pequena revolução nos deveres acessórios: estes já não são retirados da fonte, mas, tão-só, da própria declaração o que, em regra, será fortemente redutor.”
Explicação idêntica dada por Pais de Vasconcelos[11]: “Após aquelas declarações unilaterais nuas e em consequência delas, as posições jurídicas do credor e do devedor modificam-se, reforça-se a posição do credor, que passa a dispor de um título executivo, presume-se a causa, inverte-se o ónus da prova. Por outro lado, estes actos unilaterais não referem nem abrangem a totalidade do conteúdo da relação subjacente e autonomizam, do seu âmbito material global, uma parte que corresponde ao reconhecimento de uma dívida ou à promessa de cumprimento de uma prestação, que são assim separados da globalidade regulativa que é a relação fundamental ou subjacente. O conteúdo das declarações, unilaterais e nuas, de promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida é, assim não só adjectivamente, mas também substantivamente, diferente do da relação subjacente.”
Bem como por Lebre de Freitas[12]: “O acto de reconhecimento de dívida ou de promessa de cumprimento, para quem o considere um acto negocial, tem a sua própria causa no reforço da obrigação ou em efeito equivalente.”
Ora, no caso dos autos, e tal como decorre dos factos provados, as partes outorgaram “Documento de confissão de dívida e fiança”, em 29 de Dezembro de 2017, através do qual deram sem efeito contrato-promessa de cessão de quotas anteriormente celebrado e em que ficou a constar expressamente que “Como contrapartida pelo presente contrato a primeira outorgante C… confessa-se e constitui-se devedora da segunda outorgante B…, da quantia de € 60.000,00 (…)”;
Esta declaração da Ré traduz, sem margem para dúvidas, o reconhecimento por esta de uma dívida para com a Autora.
Além disso, trata-se de uma dívida para a qual não foi indicada a respectiva causa, limitando-se as partes a declarar que tal dívida foi reconhecida “como contrapartida” do contrato.
Por inerência, trata-se de uma dívida subordinada à estatuição do art.º 458.º do C Civil.
Assim sendo, em face da interpretação e forma de aplicação que deixamos acima exposta, concluímos pela suficiência das alegações apresentadas na Petição Inicial na construção da respectiva causa de pedir.
Deve, face a tais alegações, relembrar-se que os Réus, não tendo contestatado a acção, não afastaram a presunção consagrada neste normativo.
Passando directamente para a apreciação do pedido formulado na acção, está provado complementarmente que consta da Cláusula Sexta do mesmo documento que “A primeira outorgante obriga-se a pagar à segunda outorgante aquela quantia de € 60.000,00 em sessenta prestações mensais, iguais e sucessivas, de € 1.000,00 cada, vencendo-se a primeira prestação em 10 de Fevereiro de 2018, pagamento a efectuar mediante transferência bancária, a favor da segunda outorgante, para o IBAN (…) ou por depósito.”, bem como que consta da Cláusula Sétima seguinte que “O incumprimento pontual de qualquer das referidas sessenta prestações implica o imediato vencimento da totalidade do montante do capital que estiver em dívida”.
Por outro lado, considerou-se igualmente provado que os Réus pagaram apenas três prestações mensais (por vezes com atrasos), no valor de € 1.000,00 cada, perfazendo o total de € 3.000,00 (meses de Fevereiro, Março e Abril de 2018), não tendo procedido ao pagamento das prestações vencidas em 10 de Maio de 2018, 10 de Junho de 2018, 10 de Julho de 2018 e 10 de Agosto de 2018 – sendo que a Autora os interpelou para pagamento, por diversas vezes, sem êxito.
Assim sendo, com a falta de pagamento da prestação vencida em Maio de 2018, venceu-se a totalidade do capital em dívida.
Está, portanto, vencida a quantia de € 57.000,00, nos termos das Cláusulas citadas e por aplicação do disposto no art.º 781.º do C Civil, devendo a Ré ser condenada no respectivo pagamento.
Quanto aos juros de mora devidos, decorre do disposto no art.º 806.º, n.º1, do C Civil que na, obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.
Tendo-se considerado provado que a Autora interpelou os Réus para pagamento, por diversas vezes, sem êxito, designadamente através de carta registada, datada de 12/06/18, através da qual fixava um prazo de 02 dias para pagamento das prestações vencidas, sob pena de interposição de acção judicial, apenas nesta data - 15/06/18 - se pode considerar a Ré constituída em mora.
Tais juros devidos são os previstos na lei civil em termos supletivos, designadamente no art.º 559.º do C Civil.
Nos termos peticionados, são igualmente devidos juros compulsórios, desde a data de trânsito do presente Acórdão, por aplicação do disposto no art.º 829.º-A, n.º 4, do C Civil.
Quanto à obrigação do Réu, enquanto fiador, consta da Cláusula Oitava do documento dos autos que “O terceiro outorgante na qualidade de fiador da primeira outorgante, expressamente declara constituir-se fiador e principal pagador, assumir todas as obrigações constantes do presente contrato, renunciando desde já e expressamente ao benefício da excussão prévia, bem como ao benefício de prazo previsto no art.º 782.º do Código Civil”.
A fiança é a figura central prevista no C Civil no âmbito das garantias pessoais.
A obrigação do fiador, tal como ficou dito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/12/2003, tendo como Relator Salvador da Costa[13], “é de natureza pessoal ou fidejussória, no sentido de que consiste na assunção pessoal por um terceiro, como todo o seu património, da obrigação de satisfação, a título subsidiário, do direito de crédito do credor.”
Tipicamente a fiança constitui-se contratualmente.
No entanto, deve entender-se que o acordo do credor à fiança pode ser tácito, implícito ou presumido.
Ou seja, que, apesar da natureza contratual da fiança, só a declaração do fiador carece de ser prestada por escrito e não já a do credor a favor de quem é prestada[14].
Assim, apesar de a obrigação principal da Ré ter sido constituída “apenas” através de um reconhecimento de dívida, deve considerar-se validamente constituída a fiança, tendo sido aceite pelo credor através da assinatura do dito contrato.
A responsabilidade do fiador molda-se pela do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado: a prestação devida, a reparação de danos resultantes do incumprimento culposo (art.º 798.º C Civil) e/ou a pena convencional que se tenha estabelecido (art.º 810.º C Civil).
Estruturalmente, a fiança tem duas características basilares: a acessoriedade e a subsidiariedade, as quais se reconduzem essencialmente ao benefício da excussão, consagrado no art.º 638.º do C Civil.
No entanto, ao abrigo do princípio da liberdade contratual e nos termos especialmente consagrados no art.º 640.º do C Civil, o fiador pode renunciar a esse benefício[15].
Foi precisamente isso que aconteceu no caso dos autos, já que o fiador declararou expressamente que renunciava ao “benefício da excussão prévia, bem como ao benefício do prazo previsto no art.º 782.º do Código Civil.”
Assim sendo, a Autora/credora podia, cumulativa ou alternativamente, demandar a devedora e/ou o fiador, já que estes assumiram contratualmente responderem, em solidariedade, com aquela, pelo cumprimento da obrigação.
A conclusão final é, portanto, a da total procedência do presente recurso.
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VI - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso da Recorrente/Autora, revogando-se a sentença recorrida e, em face da fundamentação jurídica supra, condenando os Réus C… e D… a pagarem á Autora B… a quanta de € 57.000,00 (cinquenta e sete mil Euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano, contados desde 15/06/18 e até efectivo e integral pagamento, bem como da sanção pecuniária compulsória, prevista no n.º 4 do art.º 829.º-A, do C Civil, a partir do trânsito em julgado deste Acórdão.
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Sem custas - art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 12 de Novembro de 2019
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[1] Doravante apenas designado por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[3] Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil Português, Direito das Obrigações, Tomo I, 2009, Almedina, pág. 691.
[4] In Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 1979, Edições AAFDL, pág. 187.
[5] Usando a expressão utilizada por Vaz Serra in “Negócios Abstractos (Considerações Gerais – Promessa ou reconhecimento de dívida e outros actos” in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 83, Fevereiro de 1959, pág. 5.
[6] Veja-se, em termos de crítica a esta inclusão na Secção das “Negócios Unilaterais”, Almeida Costa in Direito das Obrigações, 12.ª Edição Revista e Actualizada, 2016, Almedina, pág. 464., e Galvão Telles in Direito das Obrigações, 7.ª Edição, 1997, Coimbra Editora, pág. 181.
[7] Proferido no Processo n.º 05A284 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[8] Proferido no Processo n.º 0130473 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[9] As decisões jurisprudenciais que encontramos a defender a necessidade de alegação da causa fundamental inserem-se em acções executivas e têm por pressuposto a consideração de que os títulos de crédito, enquanto meros quirógrafos, não equivalem juridicamente a um reconhecimento de dívida, para os fins previstos neste art.º 458.º do C Civil (veja-se, a título exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/10, tendo por Relator Serra Baptista, proferido no Processo n.º 373/08.7TBOAZ-A.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão, o Acórdão da Relação de Lisboa de 20/06/02, tendo por Relatora Rosa Coelho, proferido no Processo n.º 430/02-2 e disponível em Colectânea de Jurisprudência Ano XXVII, Tomo III, pág. 105 e o Acórdão da Relação de Lisboa de 23/02/06, tendo por Relatora Fátima Galante, proferido no Processo n.º 323/06 e disponível em Colectânea de Jurisprudência Ano XXXI, Tomo I, pág. 115.
[10] Ob. Cit. pág. 693.
[11] In Teoria Geral do Direito Civil, 2012, 7.ª Edição, Almedina, pág. 434.
[12] In A Confissão no Direito Probatório, 1991, Coimbra Editora, pág. 390, nota 24.
[13] Proferido no Processo n.º 03B3909 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[14] Veja-se neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/03, tendo como Relator Ribeiro de Almeida, proferido no Processo n.º 03ª1282 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[15] O mesmo ocorrendo sempre que se trate de uma fiança constituído sobre uma obrigação de natureza comercial.