Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
499/13.5TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REVOGAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RP20180208499/13.5TJPRT.P1
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º122, FLS.284-294)
Área Temática: .
Sumário: I - O legislador admite a possibilidade de os cônjuges se apresentarem a requerer em conjunto, quer a insolvência quer a exoneração do passivo restante. regulamentando a apresentação conjunta de ambos os cônjuges à insolvência enquanto intervenção como coligatória – cfr. Artº 264º do CIRE.
II - Neste contexto a situação de cada um dos cônjuges devedores é objeto de avaliação separada ainda que na mesma decisão – cfr. Alínea a) do nº 4 do referido artº 264º do CIRE.
III - Admitido o pedido de exoneração do passivo restante requerido por ambos os cônjuges, e fixado em valor equivalente a um salário mínimo nacional por cada cônjuge o rendimento necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, só viola o dever de entrega do rendimento disponível durante o período de cessão previsto na alínea c) do nº 4 do artº 239º do CIRE o cônjuge que nesse período auferiu rendimentos em valor superior aquele valor.
IV - Enquanto para a revogação da exoneração do passivo restante já concedido o legislador exige que ao violar as obrigações a que se encontrava vinculado durante o período da cessão, o devedor tenha atuado com dolo, e que dessa atuação tenha resultado um prejuízo relevante para a satisfação dos interesses dos credores – cfr nº 1 do artº 246º do CIRE – já não tem a mesma exigência no caso da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante ainda não concedido, bastando-se para este efeito com a constatação da existência de um prejuízo que não precisando de ser relevante, para a satisfação dos créditos sobre aquele, e com a atuação com negligência grave, e – al. a) do nº 1, do artº 243º do CIRE – entendida esta como a atuação do devedor que, consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 499/13.5TJPRT.P1
Relator: Desembargador Freitas Vieira
1º Adjunto: Desembargador Madeira Pinto
2º Adjunto: Desembargador Carlos Portela

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Em requerimento de 20 de junho de 2017 veio a senhora fiduciária, em cumprimento do disposto no artº 240º, nº2, do CIRE, informar ter sido enviada carta aos insolventes para procederem mensalmente à entrega do seu rendimento disponível, não tendo estes cumprido tal obrigação, nem prestado mais informações sobre os rendimentos obtidos após abril de 2016, pronunciando-se por isso aquela Sra. Fiduciária pela cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.

Pronunciaram-se no mesmo sentido os credores B…, S.A., e C…, Sucursal da Sociedade Anónima Francesa C….

Seguiu-se decisão na qual, com fundamento nos factos que se tiveram como provados, se considerou que que os insolventes violaram as obrigações decorrentes da concessão da exoneração do passivo restante ao não entregarem à fiduciária a parte devida dos seus rendimentos, nem juntarem documentos comprovativos dos rendimentos auferidos, determinando em consequência a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante referente aos devedores D… e E….

Não conformados recorrem desta decisão os devedores insolventes, D… e E…, formulando em síntese das correspondentes alegações de recurso as seguintes CONCLUSÕES:
1 – Vem o presente recurso interposto do despacho que, “determinou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante aos devedores”.
2 - O presente recurso vem interposto do despacho proferido em 28 de Julho de 2017, merecendo, inteiro provimento, como se irá procurar demonstrar.
3 – Insurgem-se os Recorrentes com o despacho em causa porquanto o mesmo “determinou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante aos devedores”.
4 – É, precisamente, desta decisão que os Insolventes, ora Requerentes impugnam no presente recurso de apelação, no qual pedem a sua revogação.
5 – Os factos que relevam para a apreciação do recurso são os relativos ao conteúdo do despacho inicial de exoneração do passivo restante, ao valor do rendimento disponível aos Insolventes, ora recorrentes que se considera cedido, à omissão, por aqueles, da obrigação de entrega desse rendimento.
6 – São os seguintes os factos provados com relevância para a decisão do incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante:
– D… e E… foram declarados insolventes por sentença de 11 de Abril de 2013;
– Por decisão proferida em 04 de Dezembro de 2013 foi admitido o incidente de exoneração do passivo restante, tendo sido fixado como rendimento disponível o valor correspondente a um salário mínimo nacional;
- O processo de insolvência foi encerrado em 05 de Abril de 2016;
– A devedora mulher E… está aposentada da função pública, recebendo mensalmente uma pensão que à data da sentença de insolvência era de €1.103,74;
– O devedor marido D… está reformado e recebia à data da mesma sentença uma pensão de €461,00;
– Conforme informação junta aos autos, a despeito de terem sido interpelados para o fazer em Abril de 2016, os devedores não entregaram à senhora Fiduciária qualquer valor após tal data, sendo certo que nesse mês o rendimento líquido conjunto foi de €1.502,29, não tendo igualmente os devedores prestado qualquer informação sobre os seus rendimentos após tal data;
10 – Esse fundamento conflitua com um outro fim do processo de insolvência, a satisfação dos credores dos Insolventes.
11 – O processo de insolvência é, uma execução coletiva ou universal, tanto porque nela intervêm todos os credores dos Insolventes, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património destes devedores e no processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores dos Insolventes, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.
12 – Como os devedores se encontram em situação de insolvência, impossibilitados de cumprirem as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património dos devedores Insolventes respondem pelas suas dívidas
13 – O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de os devedores Insolventes saldarem todas as suas dívidas, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.
14 – A exoneração do passivo restante libera os devedores Insolventes, não dos créditos sobre a insolvência, mas dos seus débitos, mas, essa liberação é obtida à custa da insatisfação, no todo ou em parte, daqueles créditos, que, para se conseguir aquela liberação, se extinguem.
15 – Não havendo motivo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, do passivo constituído pelos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, o Tribunal profere um despacho inicial determinando que, durante os cinco anos posteriores àquele encerramento, o rendimento disponível dos devedores se considera cedido a um órgão especifico da exoneração do passivo restante, o Fiduciário, com vista ao pagamento das custas do processo de insolvência, dos reembolsos do dispêndio do Cofre Geral dos Tribunal com as remunerações e as despesas do administrador e do Fiduciário, da remuneração vencida e das despesas deste último, e à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência.
16 – Esgotado o prazo da cessão, o Tribunal profere, decisão a conceder ou a recusar a exoneração do passivo restante.
17 – Sobre o pedido de exoneração do passivo restante recai um despacho do Tribunal, no qual aprecia, com recurso a um juízo de prognose, assente na convicção que forme sobre a capacidade dos devedores Insolventes para cumprirem as exigências legais, a vantagem ou desvantagem em permitir aos devedores Insolventes a sua submissão ao procedimento de exoneração do passivo restante e esse despacho inicial, tem, por único objeto, a aferição da existência de condições mínimas para o pedido de exoneração do passivo restante ser apreciado pela assembleia de credores, condições que se destinam a decidir se aos devedores Insolventes deve ser dada uma oportunidade de se submeterem a uma espécie de período de prova, que, uma vez terminado, pode resultar na exoneração do passivo restante.
18 – O rendimento disponível dos devedores Insolventes objeto de cessão à Fiduciária é integrado por todos os rendimentos que, naquele período, advenham, por qualquer título, aos devedores Insolventes e exclui-se, porém, do rendimento disponível, que se considera cedido àquele órgão particular da exoneração do passivo restante, a Fiduciária, o que seja razoavelmente necessário, designadamente para o sustento digno dos devedores Insolventes e do seu agregado familiar, que, contudo, não deve exceder, salvo decisão fundamentada em contrário do Tribunal, três vezes o salário mínimo nacional.
19 – A fixação, no despacho inicial, do rendimento disponível não é imodificável, já que, mesmo depois do seu proferimento, e mesmo depois do seu trânsito em julgado, o Tribunal pode excluir desse rendimento, do que seja razoavelmente necessário para quaisquer despesas dos devedores Insolventes.
20 – A concessão do benefício da exoneração do passivo restante deve assentar num juízo não desvalioso relativamente aos devedores Insolventes quanto às circunstâncias em que ocorreu a colocação deles na situação de insolvência, estando, por isso, subjacente ao instituto da exoneração do passivo restante, uma cláusula implícita de merecimento da exoneração.
21 – Cláusula implícita de merecimento da exoneração que se mantém durante todo período de cessão, dado que a exoneração pode ser revogada também pelas mesmas razões que tornam lícita o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, com exceção da intempestividade da sua dedução e ainda com fundamento na violação, dolosa, pelos devedores Insolventes, durante aquele mesmo período, das suas obrigações, com prejuízo relevante para a satisfação dos credores da insolvência.
22 – Uma das obrigações a que os devedores Insolventes ficam adstritos em consequência do despacho inicial da exoneração do passivo restante é a de entregarem imediatamente à Fiduciária, quando a recebam, a parte dos seus rendimentos objeto da cessão.
23 – Obrigação que se compreende por si, se se tiver presente que esse será o único meio de satisfação dos créditos da insolvência, dado que, durante o período da cessão, não se admite a agressão por via executiva do património dos devedores insolventes com vista à satisfação daqueles créditos.
24 – A concessão da exoneração do passivo restante é, pois, revogável, designadamente com fundamento na violação, pelos devedores Insolventes, daquela obrigação pecuniária de dare.
25 – Nem toda e qualquer violação das obrigações impostas aos devedores Insolventes como corolário da admissão liminar do período de exoneração do passivo restante releva como causa de revogação do benefício.
26 – A lei é determinante em exigir, de um especto, que se trate de uma prevaricação dolosa e, cumulativamente, de outro, que tenha prejudicado, de forma relevante, a satisfação dos credores da insolvência e a doutrina adiciona a estes dois requisitos um terceiro, o da existência de um nexo causal entre a conduta dolosa dos devedores Insolventes e o dano para a satisfação daqueles créditos.
27 – A violação dos deveres dos Insolventes, o de entregar à Fiduciária o rendimento disponível, possa resultar da inobservância de um dever de cuidado, a verdade é que a lei não se contenta, para tornar licita a revogação da exoneração do passivo restante, com a negligência, exige dolo.
28 – É relevante qualquer modalidade de dolo e o dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo.
29 – Os devedores Insolventes atuam com dolo quando representam um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que estão adstritos durante o período da cessão, mesmo que não tenham consciência da ilicitude.
30 – Os devedores Insolventes atuam dolosamente desde que tenham a intenção de realizar, ainda que não diretamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possuam a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito.
31 – O dolo é intenção, mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta e além disso, os devedores Insolventes só atuam dolosamente quando se decidam pela atuação contrária ao direito.
32 – Se a violação do dever, de entregar à Fiduciária o rendimento disponível, constitui intenção específica da conduta dos devedores Insolventes, há dolo direto, se essa violação não é diretamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário e, se a violação não é diretamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.
33 – A violação, com dolo, da obrigação que vincula os devedores Insolventes há-de provocar um resultado, a afetação relevante da satisfação dos créditos da insolvência.
34 – Não é suficiente um qualquer prejuízo, como sucede, para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, deve tratar-se de um prejuízo relevante.
35 - Ao passo que para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante se reclama que da violação dolosa ou negligente de qualquer obrigação dos devedores Insolventes resulte simplesmente um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre aqueles, para a revogação da exoneração a lei é, no tocante ao dano resultante da conduta dolosa dos Insolventes para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, mais exigente, esse prejuízo deve ser relevante.
36 – A relevância desse prejuízo deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério quantitativo, em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência, mas a essa aferição não deve ser estranha a natureza do crédito e a qualidade do credor.
37 – A gravidade das consequências para os devedores Insolventes da revogação da exoneração, com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência, só detida pelo prazo ordinário da prescrição, impõe, por aplicação de um princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela revogação só possa fundamentar-se numa conduta dolosa dos devedores Insolventes que seja causa de um dano relevante para os seus credores, objetivamente imputável àquela conduta.
38 – O comprometimento da finalidade da exoneração do passivo restante, a concessão aos devedores Insolventes de um fresh start, de uma nova oportunidade, a reabilitação económica dos devedores Insolventes e a sua reintegração plena na vida económica, libertos do passivo que sobre eles pesava, só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que os devedores Insolventes estão vinculados durante o período da cessão, cause aos credores um dano relevante, grave ou significante.
39 – O despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, proferido no dia 04 de Dezembro de 2013, deferiu liminarmente o pedido correspondente dos devedores Insolventes e vincularam-se expressamente aqueles à obrigação de entregar à Fiduciária o seu rendimento disponível, simplesmente, o valor da remuneração mensal do devedor Insolvente D… era de €461,00, o valor da exclusão redundava, na prática, na ausência de qualquer rendimento disponível e, evidentemente, na inexistência da obrigação de entrega correspondente.
40 – Carece, de todo, de sentido, discutir relativamente ao devedor Insolvente D…, a violação da apontada obrigação de entrega, dado que, pelas razões apontadas, este não está vinculado à realização da prestação correspondente.
41 – O processo garante irrecusavelmente, porém, que a devedora Insolvente E… não cumpriu aquela obrigação de entrega.
42 – Aquela devedora Insolvente não conhecia, não sabia, não representou corretamente, não tinha consciência da sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível e do não cumprimento dessa obrigação.
43 – Não é patente a verificação, no caso de uma vontade dirigida a esse não cumprimento.
44 – O incumprimento daquela obrigação causa aos credores um prejuízo.
45 – Este dano, se se tiver em conta o valor do rendimento que se considera cedido, o montante da quantia não entregue e o valor global dos créditos sobre a insolvência, e a qualidade dos credores afetados, não suporta a qualificação de relevante.
46 – Como só um prejuízo significante ou grave, justifica a revogação da exoneração, e um tal pressuposto não se considera preenchido no caso, cumpre dar razão aos devedores Insolventes, e revogar a decisão impugnada.
47 – Sempre se impõe essa revogação no tocante ao devedor Insolvente D… dado que este, pelas razões apontadas, não estava vinculado a qualquer obrigação de entrega.
48 – O despacho ora recorrido violou as disposições conjugadas dos art. 243.º, n.º 1, a), n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
49 – Nos termos do disposto no art. 243.º, n.º 1, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é necessário verificarem-se dois pressupostos cumulativos para que seja recusada a exoneração do passivo restante por violação das obrigações impostas pelo art. 239.º, do Código acima referido, a) que o devedor tenha acuado com dolo ou negligencia grave, b) que a sua atuação cause um prejuízo para os credores.
50 - Os devedores Insolventes enfrentam sérias dificuldades financeiras e de saúde, devido à instabilidade das suas vidas, não tendo acuado com dolo ou negligencia.
51 – O prejuízo para os credores, deve, em nosso entendimento, ser um prejuízo relevante, por equiparação com o regime previsto no art. 246.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pois, quer a cessação antecipada quer a revogação da exoneração do passivo restante, geram a mesma consequência na esfera jurídica dos devedores Insolventes.
52 – A atuação dos devedores Insolventes não causou um prejuízo relevante, que coloque em causa a satisfação dos créditos sobre a insolvência, dado ao valor diminuto do rendimento disponível não entregue à Fiduciária, em comparação com o valor total do seu passivo.
53 – A decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasiado gravosa para os devedores Insolventes, quando comparada com o prejuízo mínimo causado aos credores, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido.

Não houve resposta às alegações dos recorrentes.

O objeto do recurso mostra-se circunscrito às seguintes questões:
- Sendo o rendimento auferido devedor Insolvente D…, inferior ao valor do rendimento indisponível fixado, não pode afirmar-se ter havido violação da obrigação de entrega do rendimento cedido;
- Inexistência de elementos suficientes para se poder concluir que a devedora Insolvente E… atuou dolosamente;
- O prejuízo ocasionado aos credores com o incumprimento daquela obrigação não suporta a qualificação de relevante que deve ter-se como necessária para a cessação antecipada do procedimento de concessão de exoneração do passivo restante.
- Violação do princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
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Os recorrentes não põem em causa a factualidade tida como assente na decisão recorrida, para a qual nessa parte se remete – artº 663º, nº 6 do CIRE – salientando-se em todo o caso como particularmente relevantes os seguintes factos:

A) D… e E… foram declarados insolventes por sentença de 11 de Abril de 2013 (fls. 46 a 49);
B) Por decisão proferida em 4 de dezembro de 2013 foi admitido o incidente de exoneração do passivo restante, tendo sido fixado como rendimento indisponível o valor correspondente a um salário mínimo nacional (fls. 239).
C) O processo de insolvência foi encerrado em 5 de abril de 2016 (fls. 391, vol.2).
D) A devedora mulher está aposentada da função pública, recebendo mensalmente uma pensão que à data da sentença de insolvência era de €1.103,74; o devedor marido está reformado e recebia à data da mesma sentença uma pensão de €461,00.
E) Conforme informação junta aos autos, a despeito de terem sido interpelados para o fazer em abril de 2016, os devedores não entregaram à senhora fiduciária qualquer valor após tal data, sendo certo que nesse mês o rendimento líquido conjunto foi de €1.502,29, não tendo igualmente os devedores prestado qualquer informação sobre os seus rendimentos após tal data.
F) Notificados para se pronunciarem sobre o pedido de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, os devedores não vieram responder ao alegado pela senhora fiduciária a fls. 459, nada dizendo.

- No recurso interposto os recorrentes analisam separadamente a situação de cada um dos devedores. Esta forma de abordagem remete-nos para a interpretação da decisão recorrida que, apreciando o requerimento de exoneração do passivo restante deduzido conjuntamente pelos insolventes D… e pela sua mulher E…, que se apresentaram também em conjunto à insolvência, fixou como rendimento disponível a entregar ao fiduciário “… (tudo o que o(a) devedor(a) aufira e que exceda um (1) salário mínimo nacional por mês – um (1) SMN…”.
Os termos da decisão não são claros no que concerne a saber se está ali salvaguardado como rendimento indisponível um (1) salário mínimo nacional por cada um dos devedores insolventes, ou se um salario mínimo nacional para ambos os cônjuges.

Os requerentes enquanto cônjuges, apresentaram-se a requerer em conjunto, quer a insolvência quer a exoneração do passivo restante.
O legislador admite essa possibilidade regulamentando a apresentação conjunta de ambos os cônjuges à insolvência enquanto intervenção como coligatória – cfr. Artº 264º do CIRE. O que pressupõe que a situação de cada um dos cônjuges devedores é objeto de avaliação separada ainda que na mesma decisão – cfr. Alínea a) do nº 4 do referido artº 264º do CIRE.
Deve por isso entender-se e interpretar-se a decisão recorrida, como de resto o fazem, quer a Sra. Fiduciária quer os próprios recorrentes, como tendo fixado como rendimento indisponível o valor correspondente a um (1) salário mínimo por cada um dos devedores insolventes.
Mas neste contexto também haverá de considerar-se que assiste razão ao recorrente D… quando sustenta que, na medida em que o seu rendimento foi inferior ao valor do salário mínimo nacional, não poderá afirmar-se em relação a ele a violação do dever de entrega do rendimento disponível a que se encontrava vinculado durante o período de cessão.
Com efeito, embora isso não conste da decisão recorrida como facto provado, está provado na sentença que declarou a insolvência dos ora recorrentes, e está documentado a fls 444, que aquele recorrente está reformado, recebendo mensalmente uma pensão que em 2016 era de 461,00€ mensais.

Assim que em relação a este devedor, em termos de violação das obrigações a que ficou vinculado durante o período de cessão, apenas pode considerar-se o facto de não ter fornecido à Sra. Fiduciária nomeada as informações solicitadas sobre a situação atualizada em termos de rendimentos.
Não estando, no entanto, provado que daí tenha resultado prejuízo para os credores, não pode considerar-se que estejam verificados os pressupostos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração – cfr artº 243º, nº 1, do CIRE.

Diversa é já a situação da recorrente E….
Com efeito na sentença que declarou a insolvência está dado como provado, que auferia como aposentada da função pública, uma pensão mensal de 1.103,74€, estando documentado a fls. 445 destes autos que esse valor, em 2016 era de €1002,87 (valor líquido de impostos e contribuições).
E assim sendo estava obrigada a, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), entregar ao fiduciário nomeado o rendimento disponível, ou seja, o valor excedente relativamente ao valor do salário mínimo nacional. O que comprovadamente não fez, violando por isso o dever de entrega do rendimento disponível a que se encontrava vinculada.
Com efeito o processo de insolvência foi encerrado em 5 de abril de 2016, iniciando-se aí o período de cessão de cinco anos durante os quais a devedora insolvente estava vinculada à observância dos deveres que para si decorriam do disposto no nº 4 do artº 239º do CIR, nomeadamente (alínea a) “Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão”.
No entanto, apesar de notificada logo em abril de 2016, para proceder aquela entrega, mais de um ano depois, em 31-7-2017, data em que a situação foi apreciada pela decisão recorrida, ainda não tinha entregue à senhora fiduciária qualquer valor, nem havia fornecido as informações solicitadas por aquela sra. Fiduciária.
Incumpriu assim claramente com os deveres a que se encontrava adstrita durante o período de cessão – alíneas a) e c) do nº 4 do artº 239º do CIRE - como de resto se reconhece no recurso interposto.
A recorrente, alongando-se em considerações sobre os requisitos da revogação da exoneração, argumenta que não existem elementos suficientes para se poder concluir que a devedora e ora recorrente, atuou dolosamente, com consciência da sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível e do não cumprimento dessa obrigação, ou de uma vontade dirigida a esse não cumprimento.
No entanto, e de resto a recorrente não ignora, o que está em causa na decisão proferida nos presentes autos não é a revogação da exoneração do passivo restante, a que se refere o artº 246º do CIRE, mas antes a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante prevista no artº 243º do mesmo diploma.
E se para a revogação da exoneração do passivo restante já concedido o legislador exige que ao violar as obrigações a que se encontrava vinculado durante o período da cessão, o devedor tenha atuado com dolo, e que dessa atuação tenha resultado um prejuízo relevante para a satisfação dos interesses dos credores – cfr nº 1 do artº 246º do CIRE – já não é tão exigente no caso da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante ainda não concedido, contentando-se com o dolo ou a negligência grave, e com a constatação da existência de um prejuízo (não precisando de ser relevante) para a satisfação dos créditos sobre aquele– al. a) do nº 1, do artº 243º do CIRE.
Distinguindo a doutrina entre culpa grave, culpa leve e culpa levíssima, a negligência grave ou grosseira corresponderá à conduta do devedor que, consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa.
E é inquestionável, perante os factos apurados, que a devedora, ora recorrente, estava ciente das obrigações que sobre si impendiam em função da exoneração do passivo restante que requereu, desde logo por força das notificações que lhe foram – doc. De fls 460 – e apesar disso manteve-se mais de um ano sem fazer entrega da parte do rendimento cedido para satisfação (parcial) das obrigações por si contraídas, para além de não fornecer quaisquer informações relativas a esses rendimentos, apesar de intimada para isso pela sra. Fiduciária.

Por outro lado, e em função do que vimos resultar do disposto na referida al. a) do nº 1, do artº 243º do CIRE, por comparação com o disposto no artº 246º do mesmo diploma, enquanto requisito cumulativamente exigido para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, o prejuízo para a satisfação dos interesses dos credores não tem que ser um prejuízo relevante. Basta, pois, que se deva concluir que o interesse dos credores na satisfação (ainda que parcial) dos seus créditos através da afetação dos rendimentos disponíveis do devedor a essa finalidade, tenha sido afetado em termos que não sejam de considerar irrisórios.
E notoriamente é também essa a situação que se verifica em relação à devedora insolvente E…, já que a não entrega do rendimento disponível dura há mais de um ano.
Estão por isso verificados os requisitos legalmente exigidos para a cessação do procedimento de exoneração do passivo restante, improcedendo as razões que em contraria são invocadas pela recorrente.

Por fim dir-se-á que não se verifica qualquer violação do princípio constitucional da proporcionalidade, previsto no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a interpretação feita da referida al. a) do nº 1, do artº 243º do CIRE conjuga de forma equilibrada os interesses em causa, ambos tutelados por lei. De um lado o interesse do devedor a um recomeço e ao refazer da sua vida económica, e do outro o legítimo interesse dos credores à satisfação dos seus créditos sobre o devedor insolvente.

Assim que, nos termos e em conformidade com o exposto, acordam os juízes nesta Secção Cível do tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão recorrida quando decide a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante em relação ao recorrente D…, mantendo-a quanto ao decido relativamente à recorrente E….

Custas por esta recorrente, na proporção de 50% do devido

Síntese conclusiva:
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Porto, 8 de fevereiro de 2018
Freitas Vieira
Madeira Pinto
Carlos Portela