Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
674/2001.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: ACTO MÉDICO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RP20110224674/2001.P1
Data do Acordão: 02/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Deve considerar-se não escrito o quesito formulado sobre a violação da leges artis própria do exercício da medicina, por constituir um conceito a preencher pela conduta do agente mediante a qualificação a efectuar em sede de apreciação dos correspondentes factos.
II - Estando em causa actos médicos contratados entre o médico e o paciente, pelos quais são prestados serviços clínicos, existe um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as regras próprias do mandato, já que a lei não regula a contratação daqueles serviços de modo especial.
III - Não obstante essa qualificação, o resultado a que alude o art.º 1154.º do Código Civil deve considerar-se não a cura, mas os cuidados de saúde, por se tratar de uma obrigação de meios.
IV - Como tal, caberá ao credor dessa obrigação a prova da ilicitude do acto, ou seja, o lesado terá de demonstrar que a conduta (acto ou omissão) do prestador do serviço não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a proporcionar a produção do almejado resultado.
V - Para ver excluída a responsabilidade, ao devedor (médico ou seguradora) competirá demonstrar que não teve actuação culposa, isto é, que agiu com a prudência, o esforço técnico e a diligência devidos.
VI - A utilização de técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais traduz a chamada imperícia do médico, pelo que, se este se equivocar na eleição da melhor técnica a ser aplicada no paciente, age com culpa, tornando-se responsável pelas lesões causadas ao doente.
VII - Não age com culpa o médico dentista que, após diagnosticar a causa da dor e a necessidade de extracção, extrai um dente do siso, tendo pata tal administrado uma anestesia regional, seguida de duas anestesias locais, por se manter a sensibilidade à dor, apesar de, durante a prática desse acto, ter ocorrido a fractura da correspondente mandíbula, que, por si só, não significa violação da leges artis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 674/2001.P l – 3ª Secção (apelação)
Tribunal Judicial de Matosinhos

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Teresa Santos
Adj. Desemb. Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, casado, motorista, residente na … …, … …, instaurou acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra C…, SA, NIPC ……… e matrícula …., com sede na Rua … .., …. Porto.
Aqui em síntese, alega que a R. assumiu, por contrato de seguro, a responsabilidade civil profissional por actos médico do dentista D…, de quem o A. foi cliente ao longo de vários anos.
No ano de 1999, no exercício da sua actividade, o Dr. D… procedeu à extracção de um dente do siso da boca do A., tendo administrado três anestesias em razão das queixas que este apresentou durante aquela intervenção. Na sequência daquela acção e por causa dela, o A. ficou com dores permanentes, edema facial, alterações da sensibilidade, dificuldade de mastigação e incontinência salivar e, por isso, foi medicado pelo Dr. D… que, cerca de 2 meses depois, persistindo as queixas, efectuou uma radiografia à boca do A. e diagnosticou-lhe a formação de um quisto e uma fractura no maxilar inferior que aceitou ser resultado do processo de extracção do dente.
Com efeito, o A. teve que ser submetido a uma intervenção cirúrgica hospitalar para redução e imobilização da fractura, o que ocorreu no dia 1 de Julho seguinte. Teve alta no dia 2 do mesmo mês, e no dia 1 de Agosto, também de 1999, foi submetido a nova intervenção, para remoção do bloqueio e arcos de Erich anteriormente colocados, tendo alta da especialidade.
A recuperação foi lenta, prolongada e relativa, tendo ficado com dificuldades, subsistindo uma incapacidade permanente parcial e a eventualidade de nova intervenção correctora dos danos causados.
Sofreu dores fortes e outros danos psicológicos e sociais por causa daquela situação e seus efeitos directos, chegando a babar-se e a morder o lábio inferior sem que disso se apercebesse, também com afectação da vida conjugal. Só parcialmente recuperou do estado de angústia e depressão por que passou.
Pretendendo ser indemnizado pela R., estima:
- Os danos não patrimoniais em esc.10.000.000$00.
- Os seus danos patrimoniais em montante não inferior a esc.150.000$00;
- Os danos patrimoniais indirectos, pela redução permanente da sua capacidade, designadamente no futuro e a determinar, esc.836.325$00 por cada ponto percentual.
Pelo que termina com a dedução do seguinte pedido:
«Termos em que, D. e A., deve:
a) ser julgada a presente acção provada e procedente, condenando-se a R. C…, COMPANHIA DE SEGUROS, SA, …a pagar ao A. indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, de que este é titular, por direito próprio, no montante global não inferior a 10.986.325 (dez milhões novecentos e oitenta e seis mil trezentos e vinte cinco escudos), a que acrescem juros, que se vencerem sobre tal quantia, à taxa legal, e até efectivo pagamento, correspondendo:
1) 10.000.000$00, ao pagamento ao A. a título de compensação por todos os danos não patrimoniais próprios sofridos;
2) 150.000$00$00, ao pagamento ao mesmo A. a título de compensação por todos os danos patrimoniais directos que suportou;
3) o remanescente, ao pagamento ao A. dos danos patrimoniais indirectos resultantes da incapacidade parcial permanente, a liquidar no decurso da acção à razão de 836.325$00 por ponto percentual de incapacidade, que para si resultou como sequela da intervenção a que foi sujeito pelo segurado da R. e que afectaram a sua capacidade gerai de ganho.

b) Condenar-se a R. no pagamento das custas, custas de parte, procuradoria e mais de lei;»

Citada, a R. deduziu contestação. Por excepção, invocou a sua ilegitimidade passiva, defendendo que o A. não poderia ter demandado directamente a seguradora, dado o carácter facultativo do seguro. Parte legítima é o autor do facto gerador de responsabilidade, pelo que deve ser absolvida da instância.
Quanto ao mais, impugnou parcialmente os factos, defendendo que, em caso de procedência da acção, a indemnização não deve ir além de esc.1.000.000$00.
Conclui no sentido da procedência da excepção de ilegitimidade, com a sua absolvição da instância ou, caso assim não se entenda, deve a acção ser julgada improcedente por não provada com todas as legais consequências.
O A. replicou suscitando desde logo, ad cautelam, incidente de intervenção provocada do segurado autor do facto D…, apesar de manifestar que se trata de uma situação de litisconsórcio voluntário dependente da vontade do autor da demanda, opondo-se à procedência da excepção.
Teve lugar a audiência preliminar, onde, pelo despacho saneador, se julgou improcedente a excepção da ilegitimidade, tendo o A. ali declarado, imediatamente, que considera prejudicado o incidente intervenção provocada suscitada em sede de réplica.
Foram elaborados os factos assentes e a base instrutória, de que não houve reclamações.
Seguiu-se a instrução, com longo desenvolvimento em razão da prova pericial, e a audiência de julgamento que culminou com a prolação fundamentada das respostas em matéria de facto, de que as partes também não reclamaram.
Produzias alegações de Direito pelo A., foi proferida sentença cerca de três anos e meio depois, julgando a acção totalmente improcedente, com absolvição da R. do pedido.
Inconformado, o A. apelou da sentença, CONCLUINDO as suas alegações nos seguintes termos:
«I) A matéria dos números 69, 70 e 71 da fundamentação de facto respeita a conclusões extraídas de parecer, sem correspondência em factos probandos ou provados, pelo que se mostra indevidamente introduzida na sentença, devendo ter-se por não escrita.
II) Apurada a fractura de maxilar, no decurso da prática do acto médico de extracção de dente do siso, resulte tal fractura de força excessiva do médico dentista ou resulte de inclusão intra-óssea profunda que a dificultou, ocorre sempre responsabilidade do clínico, obrigado a não usar do excesso ou a interromper o acto para realização de exames que permitissem o diagnóstico, sempre com informação dos riscos da intervenção;
III) Ao decidir pela inverificação da responsabilidade contratual do clínico a instância violou o regime do artigo 799 do CC.
Sem prescindir,
IV) Ofende a integridade física do paciente o médico dentista que executa extracção particularmente difícil de dente do siso e contemporiza com período de morbilidade por infecção póst-operatória excepcionalmente prolongado, já por lhe ser imputável a lesão fractura causada na intervenção, já por lhe ser imputável a lesão doença, causada e prolongada pela omissão do tratamento que estava obrigado a dispensar;
V) Ao decidir pela inverificação da responsabilidade extra-contratual a instância recorrida violou o regime dos artt. 483 e sgs do CC.
Finalmente,
VI) Afirmada a responsabilidade e reconhecido o direito à indemnização, deve ser fixada como compensação devida pela prática do ilícito, e em reparação dos danos causados o montante indemnizatório de € 36.000,00.» (sic)
Terminou solicitando a revogação da sentença, a substituir por acórdão que condene a R. no pagamento ao A. de indemnização no montante de € 36.000,00.

Em contra-alegações, a R. defendeu a improcedência do recurso.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
As questões a decidir --- excepção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação do A. recorrente (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 690º, do Código de Processo Civil[1]).

Para apreciar está:
1- A inclusão na sentença da matéria de facto constante sob os itens 69º, 70º e 71º dos factos provados;
2- A verificação, in casu, dos pressupostos da responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, por acto médico; e,
3- Na constatação da sua existência e da imputação à R., o apuramento da indemnização a favor do A.
*
III.
Os factos provados na acção
1. O A foi cliente do Dr. D…, médico dentista que exerceu profissionalmente na E…, Lda, sita na Rua …, .., …, concelho de Matosinhos, durante vários anos e até Junho de 1999.
2. A Ré é uma sociedade anónima que desenvolve actividade comercial de seguradora.
3. No âmbito da sua actividade a Ré celebrara contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, a que corresponde a apólice nº ../../……, aceitando que para si se transmitisse a responsabilidade pelos actos praticados pelo médico dentista no desenvolvimento da sua actividade profissional.
4. O representado da Ré, Dr. D…, comunicou à seguradora a intervenção praticada ao Autor.
5. Em Abril de 1999 o Autor foi acometido de fortes dores de dentes.
6. Consultou o Dr. D…, no Consultório que este mantinha no …, na Freguesia de …, concelho de Matosinhos.
7. O Dr. D… diagnosticou como causa das dores um dente do siso.
8. No caso o terceiro molar inferior direito, ou dente 48.
9. O Dr. D… medicou o Autor com antibiótico e recomendou a extracção do dente.
10. Foi marcada uma nova consulta para uma semana depois.
11. No mês de Abril de 1999, o Dr. D… procedeu à extracção do terceiro molar inferior direito ou dente do siso.
12. Numa primeira vez administrou anestesia regional e, verificando a sensibilidade à dor aquando de cada uma das tentativas de extracção, administrou anestesia local por duas vezes.
13. Na sequência da intervenção sobrevieram para o Autor complicações pós-operatórias.
14. Com dores permanentes.
15. Edema facial.
16. Alterações da sensibilidade.
17. Apresentando o Autor a face e a boca permanentemente inflamada, dificuldade de mastigação e incontinência salivar.
18. Hipersensibilidade ao toque, designadamente ao fazer a barba.
19. Consultado o Dr. D… uma semana após a extracção optou este por manter o Autor medicado com antibióticos, designadamente Zipo 500 e Jabasulid.
20. Em Junho de 1999, no novo consultório, à …, no concelho de Matosinhos, efectuou radiografia e identificou a formação de um quisto no maxilar inferior.
21. A radiografia permitiu suspeitar da presença de uma fractura do maxilar inferior.
22. Causada pela intervenção efectuada pelo Dr. D….
23. O Dr. D… entregou ao Autor uma guia para efectuar uma radiografia mais pormenorizada no F… em Matosinhos.
24. E entregou uma carta/declaração para ser presente nos serviços de cirurgia do Hospital …, na cidade do Porto, referindo que ao proceder à extracção do dente 4.8 causara a fractura do maxilar inferior do Autor.
25. Em 26 de Junho de 1999 o Autor compareceu na consulta de cirurgia do Hospital …, sendo observado por médico que referiu a necessidade de intervenção, que não poderia ser realizada de imediato.
26. Em 29 de Junho, novamente no Hospital …, dois médicos --- Srs. Drs. G… e H… --- confirmaram o diagnóstico de fractura do maxilar com consolidação defeituosa e necessidade de intervenção cirúrgica.
27. A intervenção visava a redução e imobilização da fractura.
28. Em 30 de Junho de 1999 o Autor entrou de baixa.
29. O Autor foi internado no Serviço de Urgência em 30 de Junho de 1999.
30. Com diagnóstico de fractura da mandíbula, a nível de Gonion direito.
31. Sujeito a exames analíticos e radiográficos.
32. E foi operado, sob anestesia geral, em 1 de Julho de 1999.
33. Consistindo a operação na redução e imobilização da fractura com osteossintese, por abordagem cervical e bloqueio maxilo-mandibular após colocação de arcos de Erich.
34. O Autor teve alta hospitalar em 2 de Julho de 1999.
35. Em 1 de Agosto de 1999 o Autor foi sujeito e nova intervenção para remoção do bloqueio e arcos de Erich, tendo alta da especialidade.
36. Durante este mês o Autor não pode tomar alimentos sólidos.
37. A sua dieta alimentar foi constituída por leite, iogurtes, sumos e sopa ralada.
38. Perdendo nesse mês alguns quilos.
39. Mantendo-se de baixa.
40. A recuperação do Autor foi lenta e demorada, permanecendo meses com dores e edemas faciais, de que não recuperou integralmente.
41. Apresentando designadamente traço de fractura mandibular ao nível do Gonion direito, permanência dos fios metálicos utilizados na redução da fractura, apreciável tumefacção na região do músculo do masseter direito, sensibilidade anormal dos dentes canino e prémolares do quarto quadrante, resposta exacerbada ao estímulo com baixa temperatura, percepção alterada ao toque da pele do mento e da metade direita do lábio inferior, hipotonicidade do tónus muscular do lábio inferior com consequente incontinência.
42. Subsistindo a eventualidade de nova intervenção correctora dos danos causados pelo Dr. D….
43. O Autor viveu meses com dores, edemas e sem sensibilidade.
44. Persiste a perda de sensibilidade.
45. E a perda de sentido gustativo.
46. Causais de dificuldades no quotidiano.
47. Designadamente durante as refeições, uma vez que a perda de sensibilidade retirou ao Autor a percepção da escorrência de líquidos pelos lábios.
48. Babando-se sem que sequer disso se aperceba e mordendo o lábio inferior.
49. O que é doloroso e desagradável à vista.
50. E causa vergonha pessoal.
51. Deixando o Autor de frequentar restaurantes com a família, durante meses.
52. E sentindo vergonha perante terceiros.
53. Tais factos tiveram repercussões pessoais negativas no plano afectivo.
54. Entre Autor e esposa houve por vezes situações de tensão.
55. E sofreu a alteração do seu sistema nervoso, causal de mal-estar.
56. Deixou de poder ter relações com o seu cônjuge durante mais de um mês.
57. O Autor tem como habilitações literárias a 4ª classe.
58. Exercia profissionalmente a actividade de motorista, ao serviço da empresa K….
59. Vive em cada própria que adquiriu com recurso a crédito bancário.
60. O Autor era um homem social, alegre, com gosto de viver, dado a saídas em casal, com família e amigos.
61. Cultivando como hobby a canicultura e, frequentando grupo de amigos que regularmente se deslocavam a exposições e usavam os fins-de-semana para saídas da região.
62. O que deixou de poder fazer durante meses.
63. E concretamente desde a intervenção do Dr. D… e até ao termo do período de baixa por doença.
64. Sendo que, neste período, a reclusão foi absoluta.
65. O Autor sentiu angústia progressiva pela diminuição verificada na sua capacidade física.
66. As lesões e sequelas que lhe ficaram do acidente acarretam para o Autor uma incapacidade permanente geral fixável em 5%.
67. As sequelas são compatíveis com o desempenho profissional do Autor.
68. O Autor suportou despesas com medicamentos e consultas, deslocações e estacionamentos e com a alimentação especial no período de baixa por doença.
69. A prescrição de Zipo 500 (antibiótico) e Jabasulide (anti-inflamatório) é uma terapêutica médica adequada à situação.
70. Não estando, nunca por nunca, em causa a ‘’três anestesias’’, a fractura da mandíbula ao nível do gonion direito no decurso da extracção do dente 48 (dente do siso inferior direito) é um acidente operatório que, embora raramente, pode acontecer, estando descrito na literatura.
71. Sendo que a injecção anestésica é feita as vezes necessárias para insensibilizar o local onde vai actuar e 3 injecções é aceitável.[2]
72. Em 26.07.1999 o segurado da Ré comunicou-lhe um sinistro ocorrido durante o mês de Abril de 1999, acrescentando que aquando da extracção do dente 48 no meu consultório, o Sr. I… sofreu uma fractura da mandíbula nesse local, tendo sido operado posteriormente em meio hospitalar.
73. Não declarando ter sido (ou não) o autor do acto.
*
A.
A inserção na sentença e o invocado dever de eliminação da matéria de facto constante sob os itens 69º, 70º e 71º dos factos provados
Consta da sentença recorrida, como provada, além do mais, a seguinte matéria de facto:
«69- A prescrição de Zipo 500 (antibiótico) e Jabasulide (anti-inflamatório) é uma terapêutica médica adequada à situação.
70- Não estando, nunca por nunca, em causa as “três anestesias’’, a fractura da mandíbula ao nível do gonion direito no decurso da extracção do dente 48 (dente do siso inferior direito) é um acidente operatório que, embora raramente, pode acontecer, estando descrito na literatura.
71- Sendo que a injecção anestésica é feita as vezes necessárias para insensibilizar o local onde vai actuar e 3 injecções é aceitável.».
Esta matéria foi trazida aos factos provados na sequência da resposta dada aos quesitos 105º, 106º e 107º da base instrutória, cujo teor é o seguinte:
«Provado apenas o que consta do parecer junto aos autos pelo Conselho Médico-Legal».
Os referidos quesitos têm o seguinte teor:
«105)
O Dr. D… realizou intervenção terapêutica medicamente indicada?
106)
Sem observação das leges artis, entendidas como o conjunto das regras generalizadamente reconhecidas da ciência médica e como a observância dos demais deveres gerais de cuidado do tráfego médico?
107)
Sendo consequência da sua conduta a produção dos resultados de lesão da integridade física do Autor e a verificação de sequelas traumáticas que o acompanham irreversivelmente?».
A propósito da resposta dada a estes quesitos, refere-se na fundamentação das respostas à base instrutória:
«Depois, no que agora respeita aos quesitos 105° a 107°, nada mais se podia dar como provado senão o que consta do parecer do Conselho Médico-Legal (e é este que vai permitir densificar uma eventual violação das “artis legis” – pelo que uma outra resposta mais não seria do que entrar já na área do Direito); temos, salvo o devido respeito, que a questão não se coloca, ou pelo menos apenas, no momento da extracção, mas sim na consulta realizada uma semana depois (como, aliás, o senhor médico J… acabou por admitir) em sede de diagnóstico às queixas e sintomas apresentados nesse momento pelo autor.»

Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (importante manifestação do princípio do dispositivo; art.º 264º, nº 1).
O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514° e 665° e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (art.ºs 264º, nº 2 e 664º).
Nos termos do nº 3 do referido art.º 264º, o juiz pode ainda atender a factos essenciais não alegados pelas partes, desde que sejam cumpridas as exigências legais ali previstas.
Em qualquer caso, no âmbito da matéria de facto não alegada pelas partes e fora das situações previstas nos art.ºs 514º e 665º, o juiz tem que providenciar até ao encerramento da discussão pela ampliação da base instrutória da causa, facultando às partes o contraditório e a produção de prova (art.º 650º, nº 2, al. f) e nº 3).
Assim, é admissível a concretização de matéria de facto alegada de modo conclusivo, ainda que seja essencial, através do referido mecanismo processual dos art.ºs 264º, nº 3 e 650º, nºs 2 e 3).
Está aqui em causa matéria alegada pelas partes, sem que, em audiência de julgamento, se tenha lançado mão da referida faculdade: não foi ampliada, concretizada ou complementada a base instrutória com qualquer facto instrumental ou essencial.
Os referidos quesitos constam dos art.ºs 148º, 149º e 151º da petição inicial como parte da causa de pedir da acção (actual art.º 467º, nº 1, al. d)). Importa saber se as respostas em matéria de facto são jurídico-processualmente admissíveis.
Entende o A. recorrente que os referidos pontos 69º, 70º e 71º da sentença devem ser eliminados por conterem meras conclusões sem correspondência nos factos seleccionados, não podendo, também, o parecer do Conselho Médico-legal ser transformado em matéria de facto.
Há, desde logo, que distinguir o que constitui conceito e aquilo que se configura como uma realidade passível de constatação e de apreensão pelo tribunal que deve julgar a matéria de facto. As dificuldades de delimitação estendem-se aos juízos de valor, que tanto integram normas jurídicas como, por vezes, se situam no plano dos factos. O problema adensa-se naquelas situações em que o excessivo rigor na condensação pode levar ao conhecimento imediato do pedido, quer a favor do autor, quer em seu prejuízo, altura em que o juiz deve ponderar se será essa a forma mais justa de resolver o litígio ou se deve protelar para momento posterior a decisão, dando azo ainda a que a decisão sobre a matéria de facto controvertida possa superar os problemas suscitados pela deficiente alegação fáctica, designadamente através do referido mecanismo dos art.ºs 264º, nº 2 ou, simplesmente, através de uma resposta que resulte da prova produzida, com eventual conteúdo clarificador, desde que tal não implique ampliação da matéria de facto não permitida pelo art.º 664º[3].
Nos casos em que os factos conclusivos, no sentido normativo, por conterem em si a resolução da questão de direito tenham sido alegados nos articulados e tenham desta forma sido quesitados, estamos perante uma deficiência de alegação por falta de factos que integram a causa de pedir, desde que não corresponda o juízo de valor a um dado da experiência. E aqui, para efeitos de caso julgado, tem de ponderar-se se o facto conclusivo que, por resolver a questão de direito, deve ser havido como não escrito (art. 646º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Teixeira de Sousa[4], entende que a selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica.
Abel Simões Freire[5] entende que não deve admitir-se a formulação dum quesito que decide de direito aquilo que se visa subsumir à lei com factos que decidem o caso. Daí que, nesta asserção, a matéria conclusiva, para efeito de dever ser considerada não escrita, é apenas aquela que tem, em si mesma, a decisão de direito controvertida, porque o juízo valorativo, composto de factos corresponde à questão a decidir e não é, em si mesmo, factos simples, ocorrências da vida real, mas um complexo de factos inscritos na norma com o sentido de decidir a questão. Os juízos que contenham a resolução da questão de direito controvertidos pelas partes, quer integrem normas jurídicas geralmente conhecidas, quer a apreciação de factos, não podem ser aceites e têm-se por não escritos.
Já os quesitos e as respostas que contenham expressões que simultaneamente tenham um significado jurídico e utilização na linguagem corrente terão sempre esta significação que, de resto, não é vinculativa para o juiz da sentença[6].
Volvendo aos quesitos 105º a 107º, logo se verifica que, enquanto o primeiro e o último contêm matéria de facto, o quesito 106º está totalmente preenchido com um facto de tal modo conclusivo, mesmo conceituoso, que a sua demonstração conduziria, praticamente, à decisão da acção em sentido favorável ao A. A violação, pelo Dr. D… das leges artis próprias do exercício da medicina, não pode deixar de constituir uma conclusão a tirar pelo tribunal em resultado da ponderação dessas regras com aspectos determinados da sua conduta médica na relação que estabeleceu com o A. enquanto seu paciente. A eventual violação da leges artis não é um ponto de partida, um facto demonstrável, uma realidade da vida, mas um conceito a preencher pela conduta do agente mediante a qualificação a efectuar pelo tribunal em sede de apreciação dos factos demonstrados.
Nesta perspectiva, deve ter-se por não escrito o quesito 106º da base instrutória e a possível resposta relativamente a ele proferida que, aliás, não vislumbramos, nem nas respostas à matéria da base instrutória, designadamente ao quesito 106º, nem nos itens 69º, 70º e 71º da sentença recorrida (art.º 646º, nº 4).
Ainda que assim não se entendesse, jamais aquele quesito poderia ter uma resposta que não fosse “não provado”. Isto, dada a sua formulação por iniciativa e alegação do A. --- de não observância da leges artis por banda do médico segurado na R. ---, contrária ao sentido consignado no parecer para o qual a resposta que lhe foi dada remete.
Quanto aos quesitos 105º e 107º, a resposta foi também “provado apenas o que consta do parecer junto aos autos pelo Conselho Médico-Legal”.
O art.º 653º, nº 2, não impõe ao juiz do julgamento uma fórmula rigorosa pela qual deva responder à matéria de facto. Refere-se ali apenas que “a matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, …; a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, …». O tribunal não está impedido de responder por remissão, mormente para os articulados da acção, contanto que não deixe dúvidas quanto ao que considera provado e não provado de entre a matéria levada à base instrutória e que não seja extravasado o âmbito da matéria quesitada.
Assim, em bom rigor e de acordo com a regra da auto-suficiência da decisão, a resposta deve ser de “provado”, “não provado”, “provado apenas que…” ou mesmo “provado, com o esclarecimento…” …ou com a reserva…”, desde que o esclarecimento não exorbite o facto quesitado.
Apesar de pouco cuidada, a expressão da vontade soberana do tribunal recorrido, ao remeter expressamente para o invocado “parecer do Conselho Médico-legal”, com a motivação ali também consignada, deixou claro --- no uso da sua liberdade de julgamento (art.º 389º do Código Civil e art.ºs 653º, nº 1 e 655º do Código de Processo Civil) --- que o seu conteúdo, a informação dali constante, na conjugação de provas, mereceu o crédito, a confiança do Julgador no que concerne aos referidos quesitos ao ponto de dever ser considerado provado, contudo dentro dos limites dessa quesitação. Ou seja, embora possa constituir uma técnica não recomendável e até irregular, pelo grau de incerteza que pode acarretar, no caso sub judice as respostas aos ditos quesitos não são omissas, embora tenham que ser encontradas no teor daquele documento, que o tribunal acolheu como provado, porém, limitado pelo âmbito dos mesmos, assim, sem excesso nas respostas a proferir.
Respondendo agora com a devida discriminação factual, não fica prejudicado, in casu, o exame e a decisão da causa, obtendo-se, com o devido rigor e respeito pela prova produzida, as respostas em matéria de facto que o juiz do julgamento deveria ter proferido quando, simplesmente, remeteu para o parecer médico-legal.
Pelas referidas razões, o juiz que proferiu a sentença --- o mesmo juiz que proferiu as respostas à base instrutória[7] --- aditou nela os factos dos itens 69º, 70º e 71º.
Estes factos têm expressão no referido parecer (cf. fl.s 156 e fl.s 191 do processo). Resta saber se as “respostas” consideradas na sentença têm a afinidade necessária com as questões quesitadas sob os quesitos 105º e 107º e neles são enquadráveis sem a sua alteração indevida, por excesso[8].
Manifestamente, com base no parecer (para onde é remetida resposta pelo juiz do julgamento), a resposta dada ao quesito 107º tem que ser de “não provado”. Sendo da lavra do A. e do seu interesse, a matéria do quesito foi alegada e está formulada no sentido da imputação do resultado lesivo à conduta do médico, Dr. D…. O que resulta do referido parecer é a possibilidade (contrária) da fractura do maxilar poder resultar de várias causas, designadamente de condições endógenas, ligadas à própria pessoa e à saúde do lesado.
Já o quesito 105º não integra qualquer conceito de direito, mas uma realidade passível de constatação e de apreensão pelo tribunal que deve julgar a matéria de facto. Deve ter uma resposta de conteúdo clarificador, sendo sempre admissível a respectiva restrição. E não pode olvidar-se que a alegação de tal facto partiu do próprio A. (artigo 148 da petição inicial) e foi compreendida pelo R., como é compreensível por qualquer homem minimamente esclarecido e pragmático.
E, dada a especificidade da linguagem clínica, seria mesmo muito difícil uma alegação de factos nos articulados de tal modo pormenorizada e tecnicista que permitisse uma resposta médica ajustada. Daí que, ao alegar aquele facto, o A. o tenha feito de modo muito condensado, sendo de esperar, sem qualquer surpresa para as partes, uma resposta explicativa, clarificadora e concretizadora com origem na ciência médica, como efectivamente aconteceu.
Em lugar de responder de modo a confirmar o quesito, o tribunal como que o concretizou com o conteúdo do texto do parecer consultivo médico-legal, reconhecendo o seu teor como provado, necessariamente, dentro dos limites factuais constantes do quesito 105º.
Desta feita, acolhendo o conteúdo daquele parecer clínico, mais uma vez conforme determinado nas respostas à base instrutória, impõe-se aquela resposta ao quesito 105º nos termos que se seguem e que substituem os itens 69º, 70º e 71º dos factos constantes da sentença:

Provado apenas que a administração das três anestesias no tratamento a que o A. se submeteu é aceitável e normal para insensibilizar o local onde se vai actuar, e a prescrição de ZIPOS 500 (antibiótico) e JABASULIDE (anti-inflamatório) é uma terapêutica médica adequada à situação do demandante”.

É esta --- e não outra, designadamente a matéria que consta dos itens 69º, 70º e 71º da sentença, que se afasta parcialmente --- a substância da remissão efectuada na resposta ao quesito 105º da base instrutória.
Ainda explicando, não estamos a modificar a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo[9], mas tão-só a conferir auto-suficiência às respostas em matéria de facto, tornando mais fácil a sua apreensão, através da transferência do conteúdo útil da remissão ali efectuada, respeitando-a e limitando, necessariamente, os factos revelados no parecer médico-legal ao âmbito do quesito 105º.
Improcede, pois, o primeiro fundamento da apelação.
*
B.
Eventual existência, in casu, dos pressupostos da responsabilidade civil, contratual e extra-contratual, por acto médico
Identificada que está a matéria de facto provada, há que aplicar o Direito, seguindo as questões suscitadas na apelação.
Como sustenta o Prof. Miguel Teixeira de Sousa[10], a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art.º 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.
Contudo, qualquer que seja a natureza da responsabilidade civil que impende sobre o lesante, ela traduz-se numa obrigação de indemnizar, ou seja, de reparar os danos sofridos pelo lesado.
Hoje é, aliás, tendencialmente pacífica aquela posição doutrinária no sentido de que, estando em causa actos médicos contratados entre o médico e o paciente, pelos quais se prestam serviços clínicos, como ocorre no caso em análise, existe um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as regras próprias do contrato de mandato, previstas nos art.ºs 1157º e seg.s, por força dos art.ºs 1154º e 1156º, todos do Código Civil, já que a lei não regula a contratação da prestação de serviços médicos de modo especial[11]. Esta qualificação jurídica conduz-nos à responsabilidade contratual ou obrigacional, pela qual começaremos no tratamento da questão da responsabilidade que nos é colocada.
Os elementos da responsabilidade obrigacional não diferem, em grande parte dos seus aspectos, daqueles que dizem respeito à responsabilidade extracontratual ou aquiliana. Numa e noutra formas de responsabilidade é necessário que haja uma acção humana que constitua um acto ilícito, que haja culpa, um prejuízo e nexo causal, assim, uma relação de causa-efeito, entre o facto e o dano.
A responsabilidade contratual distingue-se da responsabilidade por actos ilícitos, sobretudo, pela natureza do acto ilícito que, naquela constitui a violação de uma obrigação, e pelas regras de distribuição do ónus da prova já que ali é imposta ao devedor a prova de que agiu sem culpa no incumprimento ou no cumprimento defeituoso da obrigação (art.º 799º, nº 1, do Código Civil), enquanto na responsabilidade aquiliana cabe a lesado a prova da culpa do lesante (art.º 487º, nº 1, do Código Civil), sendo a culpa, em qualquer caso, apurada com base num critério abstracto, pela “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” (nº 2 de uma e outra disposições legais acabadas de citar).
Consta do acórdão da Relação de Lisboa de 8.01.2008, citado no recente acórdão da Relação do Porto de 16.11.2010[12], que “a actividade médica perdeu o carácter quase mágico de que durante muito tempo se revestiu, impeditivo não só da indagação sobre a bondade das práticas, mas sobretudo sobre a sua inadequação às situações sobre as quais incidiam, maxime em termos de eventuais erros cometidos, geradores da obrigação de reparar. A tal dessacralização não foram estranhas as sucessivas descobertas científicas, com constantes progressos no debelar de doenças ou lesões anteriormente tidas por fatais ou sem qualquer solução de alívio, muito menos de cura, aliadas a uma crescente massificação dos cuidados de saúde, não só em termos da procura de remédio, mas também no que concerne aos meios terapêuticos que devem ser utilizados para tanto e as consequências que deles podem decorrer”.
No que respeita a obrigações/deveres do médico, dispõe o artigo 31º (Princípio geral) do Código Deontológico da Ordem dos Médicos que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”. E continua o n.º 1 do artigo 35º do mesmo diploma (Tratamentos vedados ou condicionados) que “o médico deve abster-se de quaisquer actos que não estejam de acordo com as leges artis”. Impõe o art.º 9º ainda do mesmo código (Actualização e preparação científica) que “o médico deve cuidar da permanente actualização da sua cultura científica e da sua preparação técnica, sendo dever ético fundamental o exercício profissional diligente e tecnicamente adequado às regras da arte médica (leges artis)”.
Tais disposições são eco do princípio proclamado no Código Internacional da Ética Médica segundo o qual “o médico deve ter sempre presente o cuidado de conservar a vida humana”, sendo, assim, obrigação do médico prestar ao doente os cuidados ao seu alcance, de acordo com os seus conhecimentos e o estado actual da ciência médica, por forma a preservar-lhe a saúde na medida do possível. Tudo isto tem a ver com a leges artis, entendida como o conjunto de regras da arte médica, isto é, das regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico na concreta situação em que tal abordagem ocorre[13].
Nesta perspectiva, apesar de considerar o contrato médico um contrato de prestação de serviços, como a doutrina e a jurisprudência afirmam, o «resultado» a que alude o art.º 1154° do Código Civil deve considerar-se não a cura em si, mas os cuidados de saúde. O conceito de “resultado” no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente, enquanto obrigação de meios, como deve ser qualificada, corresponde ao esforço na acção diligente do diagnóstico e do tratamento, e não a cura. A obrigação de meios (ou de pura diligência, como também é conhecida) existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”[14]. O objectivo pretendido não pode ser atendido para a invocação de incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, já que o médico apenas promete a diligência em ordem a obter um resultado, a prestação consistirá num “meio” de lograr o cumprimento. Aos médicos cabe a obrigação legal e contratual de desenvolver prudente e diligentemente, atento o estádio científico actual das leges artis, certa actividade para se obter um determinado efeito útil, que se traduza em empregar a sua ciência no tratamento do paciente, sem que se exija a este a obtenção vinculada de um certo resultado, como seja a “cura”.
O médico deve agir segundo as exigências da leges artis e os conhecimentos científicos então existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado, assim como de certos deveres específicos, como seja o dever de informar sobre tudo o que interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que pode prolongar-se mesmo cipós a alta do paciente.
O ponto de partida para qualquer acção de responsabilidade médica é assim o da desconformidade da concreta actuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na mesma data responsabilidade médica supõe culpa por não ter sido usado o instrumental de conhecimentos e o esforço técnico que se pode esperar de qualquer médico numa certa época e lugar.[15]
Sendo assim, age com culpa, não o médico que não cura, mas o médico que viole os deveres objectivos de cuidado, agindo de tal forma que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada, culpa a ser apreciada, como se disse, pela diligencia de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos art.ºs 487° nº 2, e 799°, nº 2, do Código Civil.
Não vemos razão que justifique o afastamento da presunção de culpa prevista no nº 1 daquele art.º 799º, desde que seja respeitada a natureza da obrigação de meios a que o médico está adstrito.
Nesta perspectiva, caberá, antes de mais, ao credor da obrigação, ao lesado, a prova da ilicitude do acto, ou seja, que a conduta do médico é ilícita no sentido de que, objectivamente considerada, se mostra contrária ao Direito, com desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado, mais concretamente, o burden of proof do incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. E, tratando-se de uma obrigação de meios, caberá ao credor (lesado) fazer a demonstração em juízo de que a conduta (acto ou omissão) do devedor (ou prestador obrigado) não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a propiciar a produção do almejado resultado.[16] É o lesado que assume o encargo probatório da violação da leges artis por parte do médico (assim, a ilicitude), enquanto este último deverá afastar o juízo de censurabilidade fazendo a prova de que naquelas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente. Conforme resulta do acórdão da Relação de Lisboa de 20.4.2006[17], em regra, caberá ao doente demonstrar que existiu actuação deficiente na intervenção cirúrgica, que a conduta do devedor não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a propiciar o resultado almejado[18], enquanto ao médico, ainda que de obrigação de meios se trate, sempre caberá demonstrar que utilizou as técnicas adequadas, com recurso às regras da arte médica e meios técnicos de que razoavelmente dispunha, ou seja, cumprir-lhe-á demonstrar que não teve actuação culposa”. Há-de ser ele ou a seguradora demandada a demonstrar que em determinadas circunstâncias agiu com a prudência, o esforço técnico e a diligência a que se obrigou, que no acto médico posto em causa actuou com a diligência “de um bom pai de família” que, tratando-se de um acto funcional, corresponde à diligência de um bom profissional, com emprego dos conhecimentos científicos então existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado. Esta exigência afigura-se equitativa em face da facilidade da prova neste domínio se encontrar do lado do médico, e não do paciente.
Em geral, para que haja culpa torna-se necessário que o agente não só conheça, ou tivesse que conhecer, o desvalor da acção que cometeu, como tenha a possibilidade de escolher a sua conduta e ainda que, nas circunstâncias concretas do caso, possa ser censurável a sua conduta, ou seja, é preciso não apenas que o facto seja imputável ao agente, mas que lhe seja censurável.
Sendo a culpa apreciada em abstracto, nela incorre o profissional clínico que agiu em desconformidade com a conduta que um profissional normalmente diligente teria tomado nas circunstâncias concretas, tendo em atenção aquela actividade clínica. A actuação do médico não será culposa quando, consideradas as circunstâncias de cada caso, ele não possa ser reprovado ou censurado por ter actuado como actuou.
A inobservância de quaisquer deveres objectivos de cuidado torna a conduta (do médico) culposa, sendo que a culpa se traduz na inobservância de um dever geral de diligência que o agente conhecia ou podia conhecer aquando da respectiva actuação e que comporta dois elementos: um de natureza objectiva – o dever concretamente violado – e outro de cariz subjectivo traduzido na imputabilidade do agente. A utilização da técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais traduz a chamada imperícia do médico, pelo que, se o médico se equivoca na eleição da melhor técnica a ser aplicada no paciente, age com culpa e consequentemente, torna-se responsável pelas lesões causadas ao doente.[19]
Dentro desta concepção, a lei inclina-se para a consideração da negligência como erro de conduta, a qual envolve a imperícia ou a incapacidade técnica do lesante, a sua falta de aptidão, mais que a simples deficiência da vontade, não esquecendo as atenuações da lei ao ordenar a apreciação da culpa em face das circunstâncias do caso concreto.[20] A actuação do médico rege-se pela lex artis ad hoc, o que significa que é em relação ao preciso caso concreto situado temporalmente que a intervenção médica se afere, de acordo com as circunstâncias em que esta se desenrola. Só assim poderemos ponderar a qualificação de certo acto médico como conforme ou não com a técnica normal requerida.[21]
Nem sempre é fácil definir o limite entre a ilicitude e a culpa do agente médico.
Regressando ao caso sub judice, é ponto assente que não está em causa qualquer abuso na decisão de extracção de um dente do siso do A., o dente 48, mas apenas os efeitos perniciosos dessa extracção. Em Abril o A. compareceu no consultório do médico dentista acometido de fortes dores de dentes, o médico diagnosticou-lhe correctamente a causa da dor e a necessidade de extracção daquele dente e, numa nova consulta, nesse mesmo mês, procedeu à respectiva extracção, como, tudo indica, se impunha fazer.
Na preparação do acto, como constitui prática médica habitual, o clínico, no seu consultório, administrou ao A. anestesia regional mas, mantendo-se a sensibilidade à dor, administrou ainda duas anestesias locais tendo em vista, necessariamente, a eliminação da sensibilidade ou sensação de dor que aquele tipo de intervenção provocaria se não fosse a utilização de analgésico adequado. E extraiu o dente, sem aparente complicação na execução da tarefa.
Conforme se provou, a aplicação de três injecções é aceitável e normal. Revela esforço na insensibilização e prevenção da dor.
Se atentarmos no parecer do conselho médico-legal junto aos autos, a que o próprio recorrente apela, dele consta que “a injecção da substância anestésica é feita as vezes necessárias para insensibilizar o local onde se vai actuar…”.
Com efeito, não se vislumbra na conduta médica do A., tão-pouco indiciada, a prática de qualquer acto ilícito entre o momento em que o lesado compareceu no seu consultório pela primeira vez e o momento da extracção do dente 48. Não se demonstrou a prática de qualquer acto ou a omissão de outros que pudessem constituir violação dos princípios deontológicos ou das regras da leges artis que devem orientar a sua conduta e a execução da sua prestação de serviço médico. Designadamente, nada nos faz supor que tivesse utilizado meios inadequados, porque ultrapassados ou utilizados de modo deficiente, na extracção do dente que se consumou por completo, assim, sem deixar qualquer parte da peça dentária ou resíduos dos meios utilizados na região dentária intervencionada e que pusessem em causa a qualidade dessa intervenção. E cabia ao A. demonstrar que não lhe foram prestados os melhores cuidados possíveis, nisto consistindo o incumprimento do contrato, ou que a conduta do médico não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem propiciar o tratamento das suas lesões pigmentadas.
Mas, afinal, com aquela acção surgiu uma fractura do maxilar inferior do A., mais precisamente, fractura da mandíbula, ao nível de Gonion direito, impondo-se uma pergunta muito simples --- porventura, de resposta difícil ---: porquê?
Usou, o médico, de força excessiva na intervenção? Ou será que podem existir em vez dela, ou mesmo concorrer, outras causas determinantes daquela fractura?
O parecer do conselho médico-legal trata a questão consignando que se trata de um acidente operatório raro, fazendo remissão para um tratado de cirurgia bucal, de Cosme Gay Escola (Catedrático de Patologia Cirúrgica Bucal da Universidade de Barcelona) e Leonardo Berini Aytés (Professor Titular de Patologia Cirúrgica Bucal da Universidade de Barcelona) – 1999, 1ª Edição – Ergon S.A. – Madrid, e de onde se retiram as seguintes ideias-chave[22]:
a) A fractura mandibular é uma complicação muito pouco frequente quando ocorre na extracção dos terceiros molares;
b) Nestas situações, a fractura pode ser devida ao facto destes dentes terem uma inserção óssea profunda a nível do ângulo mandibular e, em segundo lugar, ao nível dos pré-molares inferiores onde a grossura da mandíbula pode estar reduzida por uma grande reabsorção óssea;
c) Não excluindo a possibilidade da fractura ser devida à utilização de excesso de força utilizada na extracção, o tratado aponta ainda a possibilidade de se actuar sobre dentes afectados por patologias hipercementosis.
d) As fracturas são ainda possíveis quando existe alguma alteração patológica do maxilar, como a presença de grandes quistos, tumores e em transtornos gerais do paciente, como a osteoporose senil, alterações do metabolismo do cálcio, atrofia, osteomilites ou radioterapia prévia.
Como o próprio A. alega sob o artigo 64º da petição inicial, contava cerca de 30 anos de idade à data da intervenção, uma idade ainda jovem e habitualmente saudável para que sejam expectáveis as patologias acima indicadas. Apesar de, ao menos em parte, ser possível ocorrerem em alguns adultos jovens, é de presumir a sua raridade. E como se esta raridade não bastasse, também é pouco frequente a ocorrência de fractura da mandíbula por extracção de dentes, designadamente do siso, não implicando ela --- como se acrescenta no referido parecer ---, necessariamente, negligência.
Por outro lado, nada se apurou quanto ao desenrolar da intervenção cirúrgica, designadamente que, do ponto de vista objectivo, se justificasse a interrupção dessa intervenção para a realização de exames de diagnóstico.
Neste conjunto de circunstâncias, exógenas e endógenas não se deparando o médico com informação ou qualquer indício das patologias acima indicadas, e que também não foram despistadas a posteriori, não é possível afirmar que tivesse usado mais do que a força necessária à extracção do dente, ou seja, de força excessiva, subsistindo a possibilidade da fractura estar relacionada com qualquer outra causa, desconhecida. E, na falta de queixas do paciente, devidamente correlacionáveis, não só não era exigível ao médico, naquelas condições, que conhecesse as patologias, como também que as despistasse, uma a uma, antes de proceder à ablação do dente 48, sob pena de tornar o acto excessivamente oneroso para o A., tal como resultaria injustificadamente oneroso para a generalidade das pessoas que necessitam de extrair um dente, preterindo o médico exigente na concorrência médica que dispensa tais cuidados.
Assim sendo, também neste ponto falta a demonstração de erro ou da violação objectiva do cuidado devido segundo as regras do proceder adequado e comum na prática médica. Não se antolha violação da leges artis com o significado de dever legal que acima ficou exposto, nomeadamente enquanto obrigação de meios. E falta, por isso, também a demonstração de nexo causal relevante entre a conduta do Dr. D… e a fractura do maxilar, por subsistir a possibilidade daquele resultado ser devido, exclusivamente, a factores endógenos, estranhos à acção do agente que, como se referiu, pode situar-se, sem excesso, no âmbito do consentimento prestado pelo A. e da força necessária e exigível para a extracção do dente.
Mas havemos de nos situar ainda noutro momento para avaliar da diligência médica empreendida ou da falta dela.
Surgiram para o A. complicações no tempo imediato à intervenção médica cirúrgica: dores permanentes, edema facial, alterações da sensibilidade (hipersensibilidade ao toque), com boca inflamada, dificuldade de mastigação e incontinência salivar. Tais sintomas levaram o lesado a consultar de novo o médico uma semana após a intervenção, tendo este optado por manter o A. medicado com antibiótico e anti-inflamatório, designadamente Zipo 500 e Jabasulid. Constando dos factos provados que clínico manteve aquela medicação é porque já anteriormente a receitara por considerar adequada à prevenção da inflamação, passando a entender agora que era também adequada à eliminação dos sintomas e queixas que então o paciente lhe apresentou, porventura compatíveis com uma inflamação.
É facto assente que a prescrição de ZIPOS 500 (antibiótico) e JABASULIDE (anti-inflamatório) é uma terapêutica médica adequada à situação do demandante.
Sendo rara e distante a possibilidade de causar a fractura do maxilar inferior, designadamente a do A., como é que o médico, decorrida apenas uma semana, e sendo ainda admissível a existência de uma mera infecção dentária por efeito da cirurgia, há-de considerar, desde logo, a possibilidade de existência de uma fractura no maxilar?
Na ocasião, que pode ter ocorrido no final de Abril, ou no princípio do mês de Maio, aquela terapêutica ainda era adequada à situação do doente.
Mas logo em Junho o clínico fez o A. realizar uma radiografia ao maxilar e identificou a formação de um quisto no maxilar inferior, determinando a realização de uma radiografia mais pormenorizada no F… em Matosinhos. E entregou uma carta/declaração para ser presente nos serviços de cirurgia do Hospital … na cidade do Porto, referindo que ao proceder à extracção do dente 48 causara a fractura do maxilar inferior do A. Em 26 de Junho de 1999 o A. compareceu na consulta de cirurgia do Hospital …, sendo observado por médico que referiu a necessidade de intervenção, que não poderia ser realizada de imediato. E em 29 de do mesmo mês foi confirmado o diagnóstico de fractura do maxilar com consolidação defeituosa e necessidade de intervenção cirúrgica.
Ora, também no pós-operatório o médico agiu com obediência às práticas exigíveis, cumprindo designadamente o dever de vigilância e acompanhamento da evolução do tratamento dispensado. Não há elementos disponíveis no sentido de que, naquele contexto de acção, devesse e pudesse detectar a fractura antes da data em que realizou a radiografia, ainda no mês de Junho. E tendo suspeitado imediatamente da existência da fractura, logo, sem omissão ou ocultação do que quer que fosse, diligenciou pelo adequado socorro ao lesado, obtendo previamente e de imediato, por novos meios radiográficos, confirmação efectiva da perfeição do seu diagnóstico.
Atendendo à natureza da obrigação, de meios, a que estava adstrito, tais factos não só permitem notar a não verificação de ilicitude da acção do Dr. D… também neste segmento --- pós-operatório ---, como reflectem ainda a ausência de censurabilidade da sua conduta, ao ter feito de modo correcto e diligente o diagnóstico que estava ao seu alcance e lhe era exigível, designadamente através de expedientes clínicos exteriores à sua consulta, para que ao A. fossem prestados os necessários cuidados de saúde.
Ficamos, por outro lado, muito aquém da prova de utilização de qualquer técnica incorrecta dentro dos padrões científicos da época que possa traduzir a chamada imperícia do médico, pelo que, também por esta razão, não pode ser responsável pelas lesões causadas ao doente. Portanto, nenhum indício se constata que seja revelador de falta de cuidado, zelo, diligência, imperícia (violação do chamado duty of skill and care) ou de falta de conhecimentos técnico-científicos necessários ao exercício do respectivo múnus, aos quais se possam causalmente imputar os invocados efeitos danosos.
Sintetizando, não ficou provado que o médico tenha violado quaisquer deveres objectivos de cuidado, próprios do profissional normal, impostos pela cautela e bom senso clínico.
Neste conspecto, desde logo pela falta de ilicitude da conduta do médico, não estão integralmente preenchidos os necessários pressupostos da responsabilidade civil contratual do Dr. D…, transferida para a R. por força do contrato de seguro profissional pelos respectivos actos médicos (itens 2º e 3º dos factos provados).

É aceite, na maioria da doutrina e jurisprudência que a responsabilidade decorrente da lesão da saúde causada por médico assume natureza de responsabilidade contratual, sendo também por vezes a questão reconduzida a responsabilidade delitual quando se trate apenas de violação de direitos absolutos como são os direitos do doente à saúde e à vida.
Assistirá, pois, ao lesado uma dupla tutela (tutela contratual e tutela delitual), pois que o facto ilícito pode representar, a um tempo, violação de contrato e ilícito extracontratual. Tal tipo de danos, advenientes do defeituoso cumprimento da panóplia de obrigações assumidas, são pois e de per si, mesmo na falta de contrato, por natureza reparáveis em sede extracontratual. Em todas estas situações existirá um único dano, produzido por único facto. Só que este, além de constituir violação de uma obrigação contratual, é também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física. Daí que deva entender-se “que a lei tenha querido fornecer ao contraente, como tal, um instrumento ulterior de defesa do seu interesse, sem lhe subtrair aquela defesa geral que lhe compete independentemente da sua qualidade especial de parte num contrato[23]. Na falta de disposição legal em contrário, deve considerar-se, em princípio, como solução natural a que permite ao lesado a opção entre as duas espécies de responsabilidade, em virtude de o facto constitutivo da responsabilidade do lesante representar simultaneamente a violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual, em concurso de responsabilidades[24]. É manifesto que, com o contrato, não pretendem as partes renunciar, criando, com o seu poder jurisgénico, uma disciplina específica destinada à tutela geral que sempre a lei lhe facultaria. Bem pelo contrário, pretendem reforçar tal tutela, criando, assim uma protecção acrescida[25].
Porém, como no caso se está na presença de uma intervenção que se dá numa relação contratual de direito privado, entre o paciente e um médico por ele escolhido no exercício de clínica privada, não releva abordar esta problemática.
Aliás, na sequência do que registámos de início relativamente ao tema, importa dizer que a tutela contratual é a que, em regra, mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória, face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (art.ºs 799° nº 1 e 487°, nº 1, do Código Civil). Enquanto nesta, verificada a ilicitude da conduta, se presume a censurabilidade ético-jurídica da conduta do devedor (salvo prova em contrário), na responsabilidade extracontratual caberá ao credor (doente/lesado) fazer a demonstração em juízo de que a conduta do devedor não se pautou pelas regras de actuação susceptíveis de, in abstracto, virem a propiciar a produção do pretendido resultado (no caso de responsabilidade médica, o adequado cumprimento da obrigação de meios), que constitui sempre uma maior oneração do desempenho processual do lesado. Os regimes divergem ainda em matéria de prazos de prescrição (art.º 309º versus art.º 498º do Código Civil); responsabilidade por facto de outrem (art.º 800º, nº 1 versus art.º 500º do Código Civil); atenuação equitativa da indemnização em caso de mera culpa (art.º 494º do Código Civil).
Ora, faltando a prova da ilicitude do facto, pressuposto comum à responsabilidade aquiliana, fica afastada também a possibilidade de responsabilizar extracontratualmente o médico e, por isso, a R. pelos prejuízos sofridos pelo A.

É o direito constituído que os tribunais têm que aplicar sem as conjecturas das eventuais vantagens do iuri constituendo. Entre estudos que recomendam o agravamento da posição do médico no âmbito da distribuição do onus probandi, designadamente com a oneração da presunção de culpa na responsabilidade extracontratual[26], situações existem que bem justificariam a consagração de responsabilidade objectiva, mas com desoneração directa do médico através da existência de um seguro obrigatório de responsabilidade civil médica, assim se salvaguardando com mecanismos de justa protecção do interesse dos pacientes os prejuízos emergentes dos riscos próprios de determinadas intervenções clínicas.
De iure constituto, pelos fundamentos expostos, não pode a R. ser civilmente responsabilizada pelos comprovados prejuízos sofridos pelo A.
Por conseguinte, improcede também a apelação na questão da responsabilidade civil, ficando prejudicada a apreciação da terceira questão, ou seja, o apuramento de qualquer indemnização a suportar pela R. a favor do A.
Atendendo a que são as conclusões da apelação que delimitam o objecto do recurso, não há mais questões a apreciar, decaindo a apelação.
*
VII.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
*
Custas da apelação pelo A. recorrente.
*
Porto, 24 de Fevereiro de 2011
Filipe Manuel Nunes Caroço
Teresa Santos
Maria Amália Pereira dos Santos Rocha
_________________
[1] Na redacção que precedeu a que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Os itens 69º, 70º e 71º são abaixo substituídos pelo seguinte facto: “Provado apenas que a administração das três anestesias no tratamento a que o A. se submeteu é aceitável e normal para insensibilizar o local onde se vai actuar, e a prescrição de ZIPOS 500 (antibiótico) e JABASULIDE (anti-inflamatório) é uma terapêutica médica adequada à situação do demandante”.
[3] A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, II, 4ª edição, 2010, volume II, pág. 239 2e 240.
[4] Estudos Sobre o Novo Código Processo Civil, pág. 313.
[5] Matéria de Facto-Matéria de Direito, Estudo publicado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo, 2003, T. III, pág.s 5 e seg.s.
[6] A. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 240.
[7] Como resulta da informação emergente da acta de publicação das respostas em matéria de facto e da leitura da assinatura da sentença.
[8] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.3.1992 e de 5.7.1994, BMJ 415/518 e 439/479, e da Relação de Évora de 22.6.2004, in www.dgsi.pt.
[9] O que não seria possível fora do âmbito do art.º 712º.
[10] In “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, Lisboa, 1996, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 127,
[11] Cf., entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.7.2006, in Colectânea de Jurisprudência, T. I, pág. 144, e acórdão da Relação do Porto de 20.7.2006, nº RP200607200633598, in www.dgsi.pt.
[12] Com o nº RP201011161347/04.2TBPNF.P1, in www.dgsi.pt.
[13] Citado acórdão desta Relação de 20.7.2006.
[14] Idem, acórdão de 20.7.2006.
[15] Cf. acórdão da Relação de Lisboa de 20.4.2006, Colectânea de Jurisprudência, T. II, pág. 110.
[16] Cf. recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010, citando acórdão também daquele tribunal superior de 5.7.2001, in Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 166 e seg.s e João Álvaro Dias, in “Da Natureza Jurídica da Responsabilidade Médica” – conf. João Álvaro Dias, pág. 225.
[17] Atrás citado, na senda de André Dias Pereira e de Antunes Varela, citado por Manuel Rosário Nunes in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos, Almedina, 2ª edição, pág. 50.
[18] De contrário, seria fazer recair sobre o médico a prova de que a sua actuação não foi desconforme com certas regras de conduta abstractamente idóneas a favorecerem a produção de um certo resultado (v.g. a cura), o que equivaleria, na prática, a uma quase real impossibilidade, pois que se teria então de provar uma afirmação negativa indefinida.
[19] Cf. citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010.
[20] André Dias Pereira, in Da Responsabilidade Civil por Actos Médicos – Alguns Aspectos”, polic., Lisboa, 2001, pág.s 29 a 34.
[21] Manuel Rosário Nunes, ob. cit., pág. 54, na continuação da nota 94 da pág. 46.
[22] Com tradução nossa.
[23] Cf. referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010, citando Rui Alarcão, in Direito das Obrigações, pág. 210.
[24] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.80, BMJ 301/404, de 22.10.87, BMJ 370/529 e de 5.7.2001 (Ferreira de Almeida), Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 166.
[25] Idem, citando Pinto Monteiro, BFD, Sup., vol XXVIII, Coimbra, 1985, pág.s 398-400.
[26] Cf. Proposta de Directiva Comunitária referida por Manuel Rosário Nunes, ob. cit., pág. 61.