Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
50/20.0T9OFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: PATERNIDADE
PRESUNÇÃO LEGAL
ASSENTO DE NASCIMENTO
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL
CRIME DE FALSAS DECLARAÇÕES
Nº do Documento: RP2023041950/20.0T9OFR.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PARCIALMENTE PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Existe uma presunção legal de paternidade anterior à elaboração do próprio assento de nascimento, prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, que consiste no seguinte: “quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de conceção”.
II - Não sendo esta presunção ilidida através da prova produzida em julgamento, designadamente, através do surgimento de “dúvidas sérias” sobre a paternidade indiciada (artigo 1871º, nº 3, do Código Civil), subsistirá a paternidade registada, designadamente, no âmbito de julgamento da matéria de facto por eventual crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art. 348.º-A, n.º s 1 e 2 do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 50/20.0T9OFR.P1
Data do acórdão: 19 de Abril de 2023
Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa Desembargador 2º adjunto: Manuel Soares
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Valongo

Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente a arguida AA.
I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de processo comum ordinário foi proferida a sentença condenatória datada de 17 de Outubro de 2023, cujo dispositivo se passa a reproduzir:
“Pelo exposto, e atentos os fundamentos de facto e de Direito invocados, julgo parcialmente procedente a acusação pública, em consequência do que decido:
a. Absolver o arguido BB quanto à imputada prática, em co-autoria material, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art. 348.º-A, n.º s 1 e 2 do Código Penal;
b. Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art. 348.º-A, n.º s 1 e 2 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), assim perfazendo um total de € 900,00 (novecentos euros).
Sem custas pelo arguido, sendo as mesmas a suportar pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC – arts. 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e art. 8.º do Regulamento das Custas Processuais. (…).”

2. Inconformado com a decisão condenatória, a arguida AA interpôs recurso da sentença, impugnando a decisão da matéria de facto provada sob os pontos 3, 4, 5 na parte que refere “sem prejuízo do que assim procedeu”, 6 e 7.
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos.
4. O Ministério Público apresentou resposta à motivação do recurso, pugnando pela improcedência do recurso, essencialmente, com base na fundamentação da decisão recorrida.
5. O Ministério Público [1] junto deste Tribunal emitiu parecer, devidamente fundamentado, pugnando pela procedência do recurso:
“(…) O recurso interposto pela arguida/recorrente abrange a impugnação da matéria de facto, considerando-se que foi cumprido o ónus de impugnação especificada.
A prova que sustentou a convicção do tribunal a quo é necessariamente insuficiente.
Conforme se verifica dos factos dados como provados e respectiva motivação, considerou o tribunal a quo que foi feita prova bastante de que o arguido BB não é o pai biológico do menor CC, o que se encontra em contradição com a verdade do seu registo de nascimento.
A arguida não foi ouvida em julgamento, tendo consentido no julgamento na sua ausência e tendo apresentado contestação, na qual rejeita a autoria dos factos pelos quais era acusada.
Em fase de inquérito a Recorrente foi interrogada como arguida perante autoridade policial, pronunciando-se sobre os factos.
Porém, tais declarações não podem ser valoradas em julgamento.
Em 12 de Março de 2020, 2 anos e 10 meses após o nascimento e registo, os dois arguidos fizeram um acordo de regulação das responsabilidades parentais como progenitores do menor CC, embora se fizesse constar em acta que o progenitor declarou não ser o pai do menor, mas assim estar registado na Conservatória do Registo Civil.
Na mesma data se juntou ao processo de promoção e protecção relatório social onde consta que a progenitora do menor CC terá reportado que BB não seria o pai biológico do seu filho.
O assento de nascimento do menor CC continua a constituir a prova da sua filiação. Dispõe o artigo 3.º do CRC que «A prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo. 2 - Os factos registados não podem ser impugnados em juízo sem que seja pedido o cancelamento ou a rectificação dos registos correspondentes.
É a acção de impugnação de perfilhação o meio indicado para fazer prova ou não de que o pai registral não corresponde ao pai biológico e que por esse motivo foram prestadas falsas declarações sobre a atribuição da paternidade.
Dos autos, para além das declarações do arguido/ pai registral e as declarações da Sra. Técnica da SS sobre o que lhe foi transmitido pela própria arguida, nenhuma prova existe suscetível de afastar as declarações prestadas voluntariamente pelos dois arguidos na Conservatória do Registo Civil, pelo que de acordo com o assento de nascimento do menor CC o mesmo é filho de BB.
Com as provas produzidas em julgamento o tribunal a quo não poderia concluir sobre a paternidade biológica do menor CC, ficando obrigatoriamente a dúvida relevante sobre se BB é ou não o pai biológico do menor CC, não podendo ser afirmado, como se afirma em sede de motivação, que o menor é resultante de outro relacionamento sexual da progenitora com terceira pessoa durante o período de concepção, não estando sequer esse período determinado em termos fatuais e documentais, nem é o processo crime o meio adequado de prova para a obtenção de tal certeza.
Nos factos constantes da acusação pública, constava no seu ponto 3 o seguinte «tal perfilhação não corresponde à verdade biológica, pois, nos nove meses anteriores ao nascimento de CC, a arguida manteve um relacionamento de cariz sexual com um outro indivíduo de nome DD, tendo sido em consequência desse relacionamento que foi gerado o CC».
Em termos de factos provados, faz-se constar no ponto 4 «sendo que essa perfilhação não corresponde à verdade biológica, sendo progenitor de CC um outro indivíduo, com quem a arguida manteve trato sexual nos noves meses que antecederam o respectivo nascimento».
Como factos não provados o tribunal a quo faz constar apenas o seguinte: «não se provou que naquelas circunstâncias de tempo e lugar o arguido foi conhecedor da falsidade da declaração que prestou na Conservatória do Registo Civil de ..., Valongo».
Acrescendo, para além do já defendido, são tais factos, como é obvio, contraditórios de forma insanável e com repercussão na decisão de considerar provado que o menor CC não é filho de BB.
Por um lado afirma-se na sentença recorrida- desconhecendo-se a prova que a sustenta, a não ser declarações prestadas pela arguida à Sra. Técnica da SS e alegadamente ao arguido, depois do nascimento do menor - que a arguida durante os noves meses da gravidez teve relações sexuais com outro indivíduo - não se dando como não provado que a mesma tenha tido tal relacionamento sexual com DD- e por outro lado afirma-se que o arguido BB não sabia na altura do registo do nascimento que o menor CC não era seu filho biológico, sendo certo que também ele manteve relações sexuais com a arguida durante os nove meses que antecederam o nascimento do menor CC, conforme resulta em termos de motivação de facto, e como obrigatoriamente implicaria a aceitação de que o mesmo não soubesse na altura do nascimento que o filho não era seu.
Não existe, como não podia haver, prova que o arguido BB não é pai do menor CC e muito menos se pode dar como provado, mas apenas presumir, caso se fizesse prova da falsidade das declarações prestadas para efeito de perfilhação, o que não aconteceu, que o pai de CC é outro individuo.
O crime de Falsas declarações, previsto e punido no artigo 348.º-A, nº1 do Código Penal, prevê como conduta objetiva típica que o seu agente faça declara ou atestar falsamente (…).
Ora, a prova da falsidade da declaração no caso da filiação e nascimento (artigo 1.º, a), b) do CRC,) terá que ser feita, nos termos previstos no artigo 3.º do CRC já citado.
O facto dado como provado na sentença recorrida no ponto 3.º e já acima transcrito está deste modo em manifesta oposição ao assento de nascimento, constante dos autos a fls. 24 e que faz parte da prova documental indicada pelo tribunal a quo em sede de motivação de facto.
A sentença recorrida enferma não só do vício de contradição insanável, pelas razões apontadas, como de erro notório na apreciação da prova, dado que é completamente manifesto que com a prova tida em conta pelo tribunal a quo não era possível provar a falsidade da declaração de paternidade constante do assento de nascimento do menor CC.
Pelo exposto, deve ser o recurso interposto pela arguida ser procedente, pelas razões indicadas no presente Parecer.”

6. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].

Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que a recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir a impugnação da decisão da matéria de facto – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -.
II – DA FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta a questão que constitui, pacificamente, o objeto deste recurso, importa ter presente a decisão da matéria de facto assente na sentença recorrida, incluindo a sua fundamentação:
Factos provados:
1. Em 19/06/17, na Conservatória do Registo Civil de ..., sita na Rua ..., ..., Valongo, os arguidos registaram o nascimento, em ../../2017 e na freguesia ... e ..., concelho do Porto, de CC como sendo seu filho.
2. O que ambos fizeram por meio de declaração voluntária nesse sentido.
3. Sendo que essa perfilhação não corresponde à verdade biológica, sendo progenitor de CC um outro indivíduo, com quem a arguida manteve trato sexual nos nove meses que antecederam o respectivo nascimento.
4. Sabia a arguida que, ao comunicar uma paternidade falsa à funcionária da Conservatória de Registo Civil, prestava declaração que não correspondia à verdade e determinava que essa informação ficasse exarada em documento oficial.
5. Sem prejuízo do que assim procedeu, da certidão de nascimento de CC ficando a constar o nome do arguido como sendo o do seu pai biológico.
6. Não desconhecia ser tal conduta proibida e punida por lei.
7. Não obstante o que não deixou de actuar como na realidade actuou, agindo livre e conscientemente.
8. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
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Com interesse para a discussão da causa, não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos, e, assim, nomeadamente, por referência à acusação pública, que, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido fosse conhecedor da falsidade da declaração que prestou na Conservatória do Registo Civil de ..., Valongo.
2.2. Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, cotejada com as regras da experiência comum e da normalidade social, tendo sopesado as declarações prestadas pelo arguido – tendo a arguida consentido que a audiência de julgamento decorresse na sua ausência por se encontrar no estrangeiro –, o depoimento prestado pela testemunha arrolada em sede de acusação pública e os documentos juntos aos autos com pertinência para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, nos moldes que doravante se expõem.
O arguido optou por prestar declarações, em cujo âmbito alegou ter sido sabedor do facto de não ser o pai biológico do menor CC cerca de três ou quatro semanas volvidas sobre o seu nascimento, no decurso de uma discussão entre o ex-casal, em razão do que contratou os préstimos de um advogado para cuidar desse assunto, o que o mesmo não fez. Instado, respondeu não se ter submetido a um teste de ADN; remontar a sua primeira relação sexual com a arguida a cerca de dois ou três dias após terem iniciado o namoro, que temporalmente situou em finais de Novembro ou inícios de Dezembro de 2016; ter questionado a arguida acerca da prematuridade do nascimento do menor, a mesma lhe respondendo serem frequentes os partos prematuros. Sendo certo não lhe incumbir a demonstração da sua inocência, o seu relato afigurou-se-nos simples e escorreito, destituído de quaisquer empolamentos ou artifícios, donde, a credibilidade que mereceu por parte deste Tribunal.
Em sede de acusação pública, foi arrolada como testemunha EE, técnica da Segurança Social no Núcleo de Infância e Juventude – EMAT ..., a qual – de forma séria e assertiva, donde, idónea a convencer – deu conta de conhecer apenas a arguida, no âmbito de um processo de promoção e protecção instaurado por referência aos seus filhos, aquela lhe tendo veiculado que o arguido não era o progenitor biológico do menor CC, do que a mesma sabia aquando engravidou; instada, respondeu jamais lhe ter sido comunicada a prematuridade do respectivo parto e ignorar se o arguido seria conhecedor dessa realidade.
Documentalmente, retiveram-se: a certidão judicial de fls. 4 e seguintes, a cópia do relatório social de fls. 9 e seguintes; a CAN de fls. 24 e seguinte, a informação da Conservatória do Registo Civil de fls. 87 e o CRC de fls. 215.”
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Tendo presente a fundamentação da decisão da matéria de facto, cumpre apreciar o mérito da motivação do recurso.
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Do mérito do recurso
A recorrente impugna a decisão da matéria de facto, designadamente os factos provados números 3, 4, 5 na parte que refere “sem prejuízo do que assim procedeu”, 6 e 7.
Para tanto, invoca, em suma, o seguinte:
1) Quanto ao ponto 3 - total falta de prova-.
Não se provou que a perfilhação não corresponde à verdade biológica, não tendo sido realizado qualquer exame pericial que o comprove.
O tribunal “a quo” considera tal facto provado atendendo às declarações do arguido e ao que a arguida terá mencionado à técnica da segurança social, aquando da elaboração do relatório de avaliação, de que o menor não era filho biológico do arguido.
O tribunal “a quo” refere para fundamentar a sua convicção que: “Mais se apurou não ser o arguido pai biológico daquele, o que naquelas circunstâncias de tempo e lugar o mesmo desconhecia, do que porém, a arguida era conhecedora, assim lho tendo noticiado no âmbito de uma discussão mantida semanas volvidas e comunicado a diversas instâncias, nomeadamente em sede de processo de promoção e protecção instaurado quanto aos seus filhos. Nestes termos, necessariamente soçobra a ilação de que o arguido houvesse agido animado de dolo, falecendo, pois, a imputação do crime em questão no que ao mesmo respeita; já no que concerne à arguida, convocadas as regras da experiência e da normalidade do acontecer, temos como evidente o animus que presidiu à sua conduta, pois que inevitavelmente sabia dos contornos da sua gravidez, sobretudo da sua data aproximada e, por referência a esta, da identidade do seu parceiro sexual, mais militando em abono dessa sua ciência o facto de o menor CC haver nascido em Junho de 2017, o mesmo é dizer, muito antes de perfeitos os nove meses de gestação. Deste modo, reservas não nos merece a ilação de que produziu uma declaração falsa – e que sabia ser falsa – aquando do registo do nascimento, não podendo ignorar – do mesmo modo que o cidadão comum o não ignora – que os dados fornecidos para o registo de um nascimento ao mesmo ficam oficialmente associados.”
Ou seja, parece-nos, salvo o devido respeito, que o tribunal “a quo” parte da premissa de que o menor não é filho biológico do arguido/pai que consta na declaração do assento de nascimento sem que no entanto aponte qualquer prova que o sustente.
Não poderá comprovar tal facto, salvo o devido respeito, a afirmação do arguido de que a arguida lho terá dito cerca de 3/4 semanas após o nascimento no decorrer de uma discussão – gravação do depoimento a minutos (00:05:47), (00:06:02); (00:06:05); (00:06:18); (00:11:33); (00:11:17); (00:12:05); (00:12:22) transcrito supra e para o qual se remete por economia processual - .Tal não prova o facto, mas apenas (a merecer credibilidade o depoimento do arguido em desfavor da co-arguida) que a arguida lho disse.
Tanto mais, como é do sendo comum e normalidade do acontecer, muitas vezes (principalmente em discussões conjugais) são ditas coisas no decorrer de uma discussão que não correspondem à verdade, sendo apenas uma forma de retaliação face ao que lhe é dirigido, no intuito de rebaixar ou, pelo menos, perturbar o oponente. De igual modo, não poderá comprovar tal facto a circunstância da arguida o ter mencionado em 2020 à técnica da segurança social no âmbito do processo de promoção e protecção instaurado.
Tais declarações apenas podem ser valoradas como prova documental – v.g. que a arguida o afirmou naquela ocasião - e não de prova por declarações. Mais, e como é consabido, o relatório de avaliação feito no âmbito do processo de promoção e protecção de menores apenas demonstram unicamente o que neles é relatado como realizado ou observado pela autoridade que os elaborou, mas não valem como auto de declarações da parte.
Não tendo na situação vertente sido as declarações prestadas perante autoridade judiciária, tornava-se necessária a concordância nos termos do art. 356º nº2 al b) e nº5 do CPP para que as sobreditas declarações constantes do auto de notícia pudessem ser valoradas, e inexistindo, é proibida a sua valoração.
Donde, o tribunal recorrido não podia ter valorado o que afirmou serem “Mais se apurou não ser o arguido pai biológico daquele (…) do que, porém a arguida era conhecedora, (…) e comunicado a diversas instâncias, nomeadamente em sede de promoção e protecção (…)” pois desta forma valorou declarações que não foram produzidas ou examinadas em audiência, em violação do disposto no convocado art. 355º nº 1 do CPP.
Mas mesmo que se considere que valorou tais declarações como prova documental tais declarações da arguida prestadas perante a técnica/assistente social para fins de eleboração do relatório de avaliação no âmbito do processo de promoção e protecção de menores (dos seus filhos) apenas poderá ser valorado enquanto verbalização pela participante/arguida de um acontecer, que poderá ter ou não ocorrido.
De facto, tais declarações e/ou verbalização da arguida perante a técnica/assistente social no âmbito do processo de promoção e protecção, foram feitas sem juramento ou outra advertência, e por conseguinte estão, necessariamente, incluídas no regime de proibições e permissões do art.º 356º do Código de Processo Penal. A informalidade na tomada de declarações ao participante (neste caso à arguida) não as pode colocar à margem desse preceito, a ponto de poderem ser livremente apreciadas, diversamente dos depoimentos produzidos e formalizados em inquérito, cuja leitura em audiência necessita do regime de permissões previsto no art.356º do CPP.
Por conseguinte, conclui-se inevitavelmente pela proibição da valoração das declarações da arguida perante a assistente social/técnica/testemunha da acusação insertas no relatório de avaliação no âmbito do processo de promoção e protecção.
Mais, apenas poderão ser valoradas enquanto prova documental, conjugadas com os demais elementos de prova, nomeadamente com a prova que resulta do depoimento da testemunha da acusação (técnica da segurança social perante a qual foram produzidas as afirmações).
E da prova produzida, apenas resulta que a arguida proferir tal afirmação à técnica, ou seja, que o arguido não seria o pai biológico do menor, e nada mais. Não resultou provado, que de facto não o fosse, tanto mais que a mesma testemunha referiu (…) – minutos (00:03:23) da gravação do seu depoimento melhor identificado supra -: “Não, essa informação foi dada, até porque eu tentei explorar um pouco mais a questão da criança mas o discurso da progenitora, foi confuso. Pouco consistente. Eh… com algumas dificuldades de comunicação… Na altura eu acompanhei muito pouco tempo e nunca consegui perceber se esta dificuldade será ao nível da comunicação se estaria relacionada com dificuldades a nível cognitivo ou se não seria demasiado aberta com os técnicos dos serviços”.
O que nos leva a concluir, que não foi feita prova de que o arguido não era o pai biológico da menor CC.
Mas vamos mais longe, a douta sentença refere “comunicado a diversas instâncias”. Salvo o devido respeito, não se vislumbra onde assentou tal convicção.
Nos autos apenas resulta – fls. 9 e seguintes – que a arguida afirmou perante a técnica da segurança social aquando a avaliação no âmbito de promoção e protecção, que o BB (arguido) não era o pai biológico do menor CC.
Mas não o fizeram na conferência que teve lugar no tribunal de família e menores, tendo inclusive ambos acordado o regime quanto à regulação das responsabilidades parentais do menor, acordo esse que foi homologado por sentença – fls. 4 e seguintes dos autos; certidão que deu origem aos presentes autos -.
Mais, não se compreende que o tivessem feito, se o arguido não fosse de facto o pai biológico do menor.
Nem colhe como sendo verosímil e credível a versão do arguido de que a arguida lhe tenha comunicado o facto de ele não ser pai do menor cerca de 3/4 dias após aquele ter nascido (ou seja, em 2017) e ficado com “a certeza” de que não era seu filho e tenha intervindo nos autos de promoção e protecção de menores na qualidade de progenitor e não tenha suscitado a questão e muito menos se compreende que acordasse regular as responsabilidades parentais do menor CC se soubesse e tivesse a certeza que o filho não era seu!
O tribunal “à quo” considera ainda que “mais militando em abono dessa sua ciência o facto de o menor CC haver nascido em Junho de 2017, o mesmo é dizer, muito antes de perfeitos os nove meses de gestação.
Mas, não foi feita qualquer prova no sentido de que de facto o menor CC não tenha nascido prematuro.
O arguido, nas suas declarações, refere precisamente que a arguida lhe disse que tinha nascido prematuro - confrontar declarações prestadas em sede de audiência e julgamento realizada em 06/10/2022 pelo arguido BB gravadas a minutos 00:12:05; 00:12:46; 00:12:57; 00:13:07; 00:13:12; 00:13:25– ficheiro 20221006141533_16197345_2871601 – transcritas supra e para as quais se remete por economia processual.
E a testemunha de acusação EE referiu na audiência de discussão e julgamento que não lhe foi exibido qualquer documento/boletim de grávida e/ou boletim médico de acompanhamento do menor CC – confrontar testemunho prestado em sede de audiência e julgamento realizada em 06/10/2022 pela testemunha da acusação gravadas a minutos (00:04:23) e (00:04:31) transcritas supra e para as quais se remete por economia processual.
Em suma,
Salvo o devido respeito, apenas poderiam considerar-se provados, atenta a prova produzida e as regras de experiência que: nos meses que antecederam o nascimento do menor CC, os arguidos (pelo menos desde finais de Novembro/inícios de Dezembro de 2016), tiveram um relacionamento de namoro com trato sexual – declarações do arguido prestadas na audiência de discussão e julgamento do dia 6/10/2022 gravadas a minutos (00:12:46) e (00:12:57) – ficheiro 20221006141533_16197345_2871601 – transcritas supra e para as quais se remete por economia processual –
- Não provado que:
a) - a perfilhação não corresponde à verdade biológica;
b) - que o menor tenha nascido ao fim de nove meses de gestação (e não prematuro) – apenas e tão só provado como consta do ponto 1 dos factos que nasceu em .../.../2017.
Relativamente aos pontos 4, 5 na parte que refere “sem prejuízo do que assim procedeu” e 7 da matéria considerada provada – ausência total de prova (pelo que deveriam ser julgados não provados).
Conforme decorre do alegado no ponto anterior (para o qual se remete por economia processual) em primeiro lugar não ficou provado que a perfilhação não correspondesse à verdade biológica, pelo que, por simples raciocínio não se poderá considerar provado que a arguida tenha comunicado “a paternidade falsa à funcionária da Conservatória Civil”, que “sabia (…) que prestava declaração que não correspondia à verdade e determinada que essa informação ficasse exarada e, documento oficial” e que tenha actuado agindo livre e conscientemente – prova testemunhal mormente depoimento do arguido prestado na audiência de discussão e julgamento do dia 6/10/2022 gravadas e transcritas supra a minutos (00:05:47), (00:06:02); (00:06:05); (00:06:18); (00:11:33); (00:11:17); (00:12:05); (00:12:22); (00:12:46); (00:12:57); (00:13:07); (00:13:12); (00:13:25) – ficheiro 20221006141533_16197345_2871601 e para o qual se remete por economia processual - e da testemunha da acusação EE que também testemunhou na audiência de discussão e julgamento no dia 6/10/2022, tendo o seu testemunho sido gravado e parcialmente transcrito supra para o qual se remete a minutos (00:04:23) e (00:04:31) – e prova documental (certidão de fls. 4 e seguintes e relatório de avaliação de fls. 6 e seguintes).
Mais, na ausência de confissão da arguida (que foi julgada na ausência), a prova do dolo terá de ser feita através de prova indirecta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objectivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. E mesmo que se considerasse que ficou provado que o pai biológico do menor CC não era o arguido e que a arguida sabia (o que não se confessa mas por mera hipótese académica se coloca) o certo é que, atendendo às declarações prestadas pela testemunha da acusação EE não se poderia considerar provado esse mesmo dolo, uma vez que foi referido por aquela testemunha que minutos (00:03:23) da gravação do seu depoimento melhor identificado supra -: “Não, essa informação foi dada, até porque eu tentei explorar um pouco mais a questão da criança mas o discurso da progenitora, foi confuso. Pouco consistente. Eh… com algumas dificuldades de comunicação… Na altura eu acompanhei muito pouco tempo e nunca consegui perceber se esta dificuldade será ao nível da comunicação se estaria relacionada com dificuldades a nível cognitivo ou se não seria demasiado aberta com os técnicos dos serviços” e na melhor das hipóteses, tal depoimento (porque mereceu credibilidade, foi escorreito e sem artifícios) impunha que o tribunal ficasse com uma dúvida inultrapassável que impedisse de dar como provados tais factos, valorando-o a favor da arguida atento o princípio in dúbio pro reo.
De facto, não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais
e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
Assim, e em resumo,
O tribunal “a quo” decidiu “in pejus”, contra a arguida, apesar dos elementos de prova documentais juntos aos autos a fls. 4 e seguintes, relatório de avaliação do âmbito do processo de promoção e protecção de menores a fls. 9 e seguintes, depoimento do co-arguido em sede de audiência de discussão e julgamento ocorrida em 06/10/2022 cujas declarações foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo o seu início pelas 14 horas e 20 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 28 minutos conforme consta do respectivo registo áudio 20221006141533_16197345_2871601 sendo as passagens mais pertinentes nos seguintes minutos (00:04:43); (00:04:58); (00:05:02); (00:05:34); (00:05:47); (00:06:02); (00:06:05); (00:06:18); (00:06:42); (00:07:06); (00:07:49); (00:10:59); (00:11:00); (00:11:33); (00:11:17); (00:12:05); (00:12:22); (00:12:36); (00:12:46); (00:12:57); (00:13:07); (00:13:12); (00:13:25); (00:13:43); (00:13:51); e o testemunho da testemunha da acusação EE que depôs na audiência de discussão e julgamento de 06/11/2022 qual foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele Tribunal, tendo o seu início pelas 14 horas e 30 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 35 minutos conforme consta do respectivo registo áudio 20221006143113_16197345_2871601 sendo as passagens mais pertinentes nos seguintes minutos (00:01:38); (00:02:40); (00:02:59); (00:03:08); (00:03:23); (00:04:23); (00:04:31); (00:05:12), que salvo o devido respeito por opinião contrária, impunham quando conjugadas com as regras de experiência comum decisão diversa. Isto é, impunham que se considerassem como não provados os factos que constam dos pontos 3, 4, 5 na parte que refere “Sem prejuízo do que assim procedeu”, e 6 da matéria julgada provada, conforme resulta da sentença em crise.
Existindo uma incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto, deve a sentença ser revogada, alterando-se a resposta aos pontos nos pontos 3, 4, 5 na parte que refere “sem prejuízo do que assim procedeu” e 7, sendo aqueles julgados não provados e aditados os seguintes factos como provados:
- nos meses que antecederam o nascimento do menor CC, os arguidos (pelo menos desde finais de Novembro/inícios de Dezembro de 2016), tiveram um relacionamento de namoro com trato sexual. Deverá ainda a sentença proferida ser revogada e aditados aos factos não provados os seguintes:
a) que a perfilhação não corresponde à verdade biológica;
b) que o menor tenha nascido ao fim de nove meses de gestação (e não prematuro);
- apenas e tão só provado como consta do ponto 1 dos factos que nasceu em .../.../2017.

Cumpre apreciar e decidir.
De jure
Para a devida apreciação do mérito da impugnação em apreço, julga-se útil recordar os critérios legais de apreciação da prova e as regras que condicionam a impugnação das decisões em matéria de facto, tendo por base um alegado erro de julgamento.
A valoração da prova produzida em julgamento é realizada de acordo com a regra geral prevista no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal - nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo -.
Esta regra concede ao julgador uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Essa liberdade não é, pois – de todo - absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência. A formação dessa convicção não se resume, pois, a uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, exigindo uma atividade intelectual de análise crítica da prova baseada nos critérios legais, beneficiando da imediação com a prova e tendo sempre presente que a dúvida inultrapassável fará operar o princípio in dubio pro reo. Tal impossibilita que o julgador possa formar a sua convicção de um modo puramente subjetivo e emocional.
Para os cidadãos – e os Tribunais superiores – poderem controlar a formação dessa convicção, o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal exige que a sentença deverá conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”, podendo o rigor dessa fundamentação ser aferido, também, com recurso à documentação da prova. Como decorre claramente da fundamentação da decisão da matéria de facto, acima reproduzida, a sentença recorrida satisfez plenamente tais exigências, podendo, por conseguinte, ser sindicada a convicção do Tribunal a quo em relação às provas produzidas em julgamento.
A livre apreciação da prova – ou, melhor, do livre convencimento motivado - não pode ser confundida com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação subjetiva e arbitrária da prova: a lei exige um convencimento lógico e motivado, assente numa avaliação das provas com sentido de responsabilidade e bom senso – que a decisão recorrida evidencia -.
O princípio da livre apreciação da prova não equivale ao livre arbítrio.
Tendo o tribunal a quo procedido a uma análise crítica dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, tal permitiu à recorrente impugnar o processo de formação da convicção da julgadora e este Tribunal só poderá revogar a decisão da matéria de facto recorrida, quando tal convicção não tiver sido formada em consonância com as regras da lógica e da experiência comum na análise dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, o que poderá ser aferido com base na análise da fundamentação da decisão e verificação da sua conformação, ou não, com a prova produzida em julgamento.
Na verdade, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância”.
A reapreciação das provas gravadas só poderá abalar a convicção acolhida pelo tribunal recorrido, caso se verifique que a decisão sobre matéria de facto:
a) não tem qualquer fundamento nos elementos probatórios constantes do processo; ou
b) se os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitirem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto.
No recurso da decisão da matéria de facto interessa apurar se os meios probatórios sindicados sustentam a convicção adquirida pelo tribunal a quo, de harmonia e em coerência com os princípios que regem a apreciação da prova, e não obter uma nova convicção do tribunal ad quem em resultado da apreciação de toda a prova produzida.
Embora a decisão da matéria de facto possa ser sindicada por iniciativa da recorrente interessada, mediante prévio cumprimento dos requisitos previstos no artigo 412.º, 3 e 4, do Código de Processo Penal, através de impugnação com base em alegados erros de julgamento, a reapreciação da prova é balizada pelos pontos questionados pela recorrente no estrito cumprimento do ónus de impugnação especificada imposto por tal preceito legal, cuja “ratio legis” assenta precisamente no modo como o recurso da matéria de facto foi consagrado no nosso sistema processual penal, incumbindo ao interessado especificar:
a) os pontos sob censura na decisão recorrida; e
b) as provas concretas que, em seu entender, impunham desfecho diverso nessa matéria, por contraposição ao juízo formulado pelo julgador - por referência ao consignado na ata, nos termos do estatuído no artigo 364º, 2, do Código de Processo Penal e com indicação/transcrição das concretas passagens da gravação em que apoia a sua pretensão - e as provas que devem ser renovadas.
Do exposto conclui-se que o objeto do recurso em apreço exige que se apure se os probatórios sindicados sustentam a convicção adquirida pelo tribunal a quo, de harmonia e em coerência com os princípios que regem a apreciação da prova, e não de obter uma nova convicção do tribunal “ad quem” assente na apreciação da globalidade da prova produzida.
Assentes estes pressupostos genéricos cumpre, pois, descer ao caso concreto.
Da impugnação em concreto
A recorrente impugna a seguinte matéria de facto considerada provada:
3. Sendo que essa perfilhação não corresponde à verdade biológica, sendo progenitor de CC um outro indivíduo, com quem a arguida manteve trato sexual nos nove meses que antecederam o respectivo nascimento.
4. Sabia a arguida que, ao comunicar uma paternidade falsa à funcionária da Conservatória de Registo Civil, prestava declaração que não correspondia à verdade e determinava que essa informação ficasse exarada em documento oficial.
5. Sem prejuízo do que assim procedeu, (.-..).
6. Não desconhecia ser tal conduta proibida e punida por lei.
7. Não obstante o que não deixou de actuar como na realidade actuou, agindo livre e conscientemente.
O tribunal “a quo” baseou-se na seguinte análise crítica da prova, para apurar os factos impugnados:
“(…) O arguido optou por prestar declarações, em cujo âmbito alegou ter sido sabedor do facto de não ser o pai biológico do menor CC cerca de três ou quatro semanas volvidas sobre o seu nascimento, no decurso de uma discussão entre o ex-casal, em razão do que contratou os préstimos de um advogado para cuidar desse assunto, o que o mesmo não fez. Instado, respondeu não se ter submetido a um teste de ADN; remontar a sua primeira relação sexual com a arguida a cerca de dois ou três dias após terem iniciado o namoro, que temporalmente situou em finais de Novembro ou inícios de Dezembro de 2016; ter questionado a arguida acerca da prematuridade do nascimento do menor, a mesma lhe respondendo serem frequentes os partos prematuros. Sendo certo não lhe incumbir a demonstração da sua inocência, o seu relato afigurou-se-nos simples e escorreito, destituído de quaisquer empolamentos ou artifícios, donde, a credibilidade que mereceu por parte deste Tribunal.
Em sede de acusação pública, foi arrolada como testemunha EE, técnica da Segurança Social no Núcleo de Infância e Juventude – EMAT ..., a qual – de forma séria e assertiva, donde, idónea a convencer – deu conta de conhecer apenas a arguida, no âmbito de um processo de promoção e protecção instaurado por referência aos seus filhos, aquela lhe tendo veiculado que o arguido não era o progenitor biológico do menor CC, do que a mesma sabia aquando engravidou; instada, respondeu jamais lhe ter sido comunicada a prematuridade do respectivo parto e ignorar se o arguido seria conhecedor dessa realidade..”

Perante a fundamentação da convicção do tribunal, acima concretizada, torna-se evidente que os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto.
Na verdade, resulta das declarações do arguido valoradas pelo tribunal da primeira instância que o mesmo manteve relações sexuais de cópula completa com a arguida no decurso do período legal de conceção.
Não foram realizados exames de ADN, nem qualquer outro meio de análise laboratorial destinado a estabelecer ou infirmar a paternidade declarada no assento de nascimento.
Tendo-se procedido, também, à audição integral do depoimento da testemunha EE, técnica da Segurança Social, constata-se que a mesma não revelou ter conhecimento pessoal dos factos considerados provados, tendo-se baseado, exclusivamente, numa opinião que lhe foi manifestada pela própria arguida – num discurso que a própria testemunha considerou confuso e lacunar - no âmbito de um processo de promoção e proteção, a respeito na paternidade da criança em causa, desconhecendo-se a real motivação da arguida ao prestar tais declarações (pretenderia, apenas, afastar o ora arguido do seu filho CC?), tal como as circunstâncias em que discutiu com o arguido (de acordo com as declarações deste) e, consequentemente, a sua motivação, ao dizer-lhe não ser o pai do seu filho.
Finalmente, importa ter presente existir uma presunção legal de paternidade anterior à elaboração do próprio assento de nascimento, prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, que consiste no seguinte: “quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de conceção”, vindo esta norma a eliminar o ónus de se provar a exclusividade (facto negativo) das relações sexuais com a mãe durante o período legal de conceção.
Esta presunção não foi ilidida através da prova produzida em julgamento, designadamente, através do surgimento de “dúvidas sérias” sobre a paternidade indiciada (artigo 1871º, nº 3, do Código Civil).
No fundo, a prova produzida em julgamento apenas permitiu apurar a paternidade do CC documentada no assento de nascimento, não tendo sido reveladas quaisquer dúvidas fundamentadas sobre o seu teor, sendo ainda certo que a arguida (a única fonte que questionou essa paternidade numa discussão com o arguido e numa conversa com a técnica da Segurança Social) não revelou nos autos, direta ou indiretamente, qualquer razão sustentada em qualquer dado objetivo que permita excluir a paternidade declarada na Conservatória do Registo Civil.
Nestes termos, os factos seguidamente reproduzidos transitam, forçosamente, para o elenco dos factos considerados não provados:
3. Sendo que essa perfilhação não corresponde à verdade biológica, sendo progenitor de CC um outro indivíduo, com quem a arguida manteve trato sexual nos nove meses que antecederam o respectivo nascimento.
4. Sabia a arguida que, ao comunicar uma paternidade falsa à funcionária da Conservatória de Registo Civil, prestava declaração que não correspondia à verdade e determinava que essa informação ficasse exarada em documento oficial.
5. Sem prejuízo do que assim procedeu, (.-..).
Da prova não resultou que a arguida desconhecesse ser tal conduta proibida e punida por lei, nem que a arguida não tenha deixado de atuar como na realidade atuou, agindo livre e conscientemente, ao comunicar a paternidade documentada no assento, improcedendo apenas nesta parte a impugnação da recorrente.
Como consequência da alteração da decisão da matéria de facto, impõe-se revogar a condenação da arguida pela prática, em autoria material, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art. 348.º-A, n.º s 1 e 2 do Código Penal, por não se terem provado os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime, devidamente identificados na decisão recorrida[4]
Das custas
Sendo o recurso julgado parcialmente provido, não há lugar ao pagamento de custas [artigo 513º, nº 1, “a contrario sensu”, do Código de Processo Penal)
*
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam por unanimidade os juízes ora subscritores, do Tribunal da Relação do Porto, em julgar o recurso da arguida AA parcialmente provido:
a) decidindo alterar a decisão da matéria de facto nos termos acima concretizados; e
b) revogando a condenação da arguida pela prática, em autoria material, de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art. 348.º-A, n.º s 1 e 2 do Código Penal, decidem a respetiva absolvição.
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 19 de Abril de 2023.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares
_________________
[1] Parecer subscrito pela Procuradora-Geral Adjunta Dra. Judite Babo.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da a no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] “Integram o respectivo tipo objectivo o acto de declarar ou atestar com falsidade, a qualidade do quanto se declara ou atesta – a identidade, o estado ou qualquer outra a que a lei atribua efeitos jurídicos – e a entidade perante a qual se declara ou atesta – autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções; no caso concreto do n.º 2, mais se exige um especial destino da declaração ou atestado – a sua exaração em documento autêntico. (…)
Finalmente, urge que o destinatário da declaração ou atestado se integre nos conceitos de autoridade pública ou de funcionário no exercício das suas funções, a densificar de acordo com o disposto no art. 386.º do Código Penal. Debruçando-nos sobre a previsão do n.º 2 da incriminação, o documento autêntico por excelência é aquele que, conforme ensina o art. 363.º, n.º 2 do Código Civil, se mostra exarado com as formalidades legais pelas autoridades públicas, nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública, sendo certo que, de acordo com o art. 35.º, n.º 2 do Código do Notariado, são autênticos os documentos exarados pelo notário nos respectivos livros, ou em instrumentos avulsos, e os certificados, certidões e outros documentos análogos por ele expedidos.
Subjectivamente, encontramo-nos na presença de um crime doloso, em qualquer uma das suas modalidades: impõe-se que agente saiba que está a declarar ou atestar uma qualidade – a identidade, o estado ou outra a que a lei atribua efeitos jurídicos – falsa, o mesmo é dizer, que o conteúdo da sua declaração ou atestado não corresponde à verdade; que o faz perante uma autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções – não sendo de exigir uma qualquer advertência no sentido de, ao assim proceder, poder incorrer na prática de um crime; e, na hipótese do n.º 2, que a falsidade se destina a ser inscrita em documento autêntico.
Deste modo, pode o agente representar e querer a produção do facto típico (dolo directo), representar como efeito necessário da conduta a produção de um dado evento e, não obstante, actuar (dolo necessário) ou prever a possibilidade da produção de um dado evento, agindo em conformação com a concretização do mesmo (dolo eventual).”