Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1166/17.6T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO
SUBSCRIÇÃO DE DOCUMENTO POR PARTE DO TRABALHADOR
REMISSÃO ABDICATIVA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RP201805301166/17.6T8OAZ.P1
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 276, FLS 179-190)
Área Temática: .
Sumário: I - Saber se determinada declaração deve ser entendida como integrada num contrato de remissão abdicativa, pressupõe a interpretação dessa declaração negocial, nessa indagação observando-se a disciplina contida no artigo 236.º do Código Civil,
II - Na interpretação desta declaração cabe encontrar o sentido que corresponda àquele que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduziria do seu teor, mas sendo também necessário atender ao contexto factual em que a mesma foi emitida.
III - Estando-se perante uma declaração subscrita pelo autor, mas elaborada pela R. por sua exclusiva iniciativa, na qual aquela fez constar menções que não tinham correspondência com a realidade, não podia aquela deduzir do comportamento do autor que este estava a considerar-se pago daquilo que na verdade não lhe pagou e, logo, ele não recebeu, nem tão pouco que estava a renunciar ao pagamento dessas prestações que lhe eram devidas, o que pressupunha que houvesse menção expressa na declaração ou então que ele tivesse a noção daquela divergência entre o que nela foi feito constar na declaração e o que efectivamente era o seu direito.
IV - A condenação em litigância de má-fé assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento adoptado pela parte na lide.
V - A conduta do A é inteiramente merecedora dessa censura: omitiu factos relevantes para a boa apreciação e decisão da causa, actuando pelo menos com negligência grave.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1166/17.6T8OAZ.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I.RELATÓRIO
I.1 B... intentou a presente acção declarativa com processo comum, emergente contrato individual de trabalho, contra C..., Lda, pedindo que julgada a acção procedente seja declarada a ilicitude do seu despedimento e a Ré condenada no seguinte:
i) no pagamento de uma indemnização por antiguidade de € 1.950;
ii) no pagamento das retribuições que deixou de auferir desde Março de 2017 até ao trânsito em julgado da sentença;
iii) no pagamento da quantia de € 1.300 a título de créditos laborais acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento;
iv) no pagamento da quantia de € 750 a título de danos não patrimoniais.
Para sustentar os pedidos alegou, no essencial, que foi admitido na ré em Setembro de 2015. No dia 1 de Março de 2017, o representante legal da Ré, chamou-o Autor ao escritório e impôs-lhe que assinasse vários documentos, preparados pelos seus funcionários e comunicou-lhe que a partir daquela data, deixaria de ser trabalhador da Ré, tendo-lhe apenas entregue 3 recibos de vencimento.
A conduta do representante da Ré configura um verdadeiro despedimento do Autor, sem procedimento disciplinar e sem justa causa e completamente abusivo.
A Ré não lhe pagou sequer as férias e o subsídio de férias.
Por outro lado, por força desta situação, o autor passou a sofrer de ansiedade, depressão e insónias frequentes, tendo tido de recorrer a apoio médico do foro neurológico.
Procedeu-se a audiência de partes, não se tendo logrado obter o acordo.
A Ré contestou, contrapondo, em síntese, que através de carta de 1 de Fevereiro de 2017, entregue em mão, o autor apresentou-lhe a sua demissão com efeitos a partir de 28 de Fevereiro de 2017, tendo recebido todos os seus créditos e subscrito uma declaração em que declara nada mais ter a exigir da sua entidade patronal, seja a que título for, dando total quitação e assinando o respetivo recibo.
Daqui resulta que o autor litiga de má-fé, devendo ser condenado em multa e indemnização não inferior a € 1.000.
Respondeu o autor alegando que não existe qualquer má-fé na medida em que não foi ele quem redigiu os documentos referidos e não recebeu o valor de € 1.300 relativos a férias e subsídio de férias.
Procedeu-se ao saneamento dos autos e à delimitação dos temas de prova.
Foi fixado à acção o valor de € 4.000,00.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença concluída com o dispositivo seguinte:
«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, condeno a ré a pagar ao autor a quantia de € 1.300 acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
No mais, julgo improcedente a ação e absolvo a ré dos pedidos.
Mais, julgo improcedente o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé.
Condeno autor e ré no pagamento das custas na proporção do decaimento.
Registe e notifique.
(..)».
I.3 Inconformada com a sentença a Ré apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
1 – Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou, como infra se demonstrará, o disposto nos artigos 863º nº1, 217º, 219º e 234º do Código Civil e 542º do Código de Processo Civil, por incorrecta e imprecisa aplicação daqueles normativos legais.
2 - A questão a decidir no presente recurso cinge-se ao facto de saber se a declaração subscrita pelo autor em 28 de Fevereiro de 2017 configura remissão abdicativa nos termos do nº1 do artigo 863º do Código Civil, e se através da mesma o autor renunciou ao valor relativo às férias e subsídio de férias vencidos em 1 de Janeiro de 2017.
3 - Nos termos do nº1 do artigo 863º do Código Civil “o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor”.
4 - A remissão constitui uma causa de extinção das obrigações sendo configurada como a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aquiescência da contra parte, necessitando de revestir a forma de contrato.
5 - O meritíssimo juiz ad quo entendeu que a declaração subscrita pelo autor não configura remissão abdicativa nos termos do artigo 863º do Código Civil.
6 - Salvo o devido respeito pela douta decisão proferida e fundamentação subjacente, a mesma não pode merecer acolhimento.
7 - Diferentemente do que se verifica com o “cumprimento”, em que a obrigação se extingue pela realização da prestação, na “remissão”, a obrigação não chega a ser cumprida: ela extingue-se por mera renúncia do credor.
8 - No caso dos autos o autor declarou ter “recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação”. E,
9 - Declarou também “não podendo eu B..., exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que titulo for, razão pela qual dou total quitação.”
10 - Poderá esta segunda declaração ser entendida como uma remissão abdicativa?
11 - A resposta, adiantando já a conclusão, terá que ser forçosamente afirmativa, ao invés do decidido pelo meritíssimo juiz ad quo.
12 – A título prévio diga-se que in casu é inequívoca a aceitação (tácita) do devedor (aqui Ré/recorrente) da remissão, tendo em conta, até, a posição processual assumida nos autos.
13 - Como é sabido, na interpretação da declaração não poderá deixar de atender-se ao que estatui o art. 236.º do CC, ou seja, que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante”.
14 - A questão que se coloca é a de saber se estamos perante um mero recibo de quitação, isto é, um documento em que o autor, na qualidade de credor se limita a declarar ter recebido a prestação que lhe é devida, constituindo o mesmo uma simples declaração de ciência certificativa do facto de que a prestação foi cumprida pelo devedor e recebida pelo credor;
15 - Ou, se para além disso, atendendo àquele parágrafo final da declaração outorgada em 28 de Fevereiro de 2017 existe também um acordo de remissão abdicativa, feito com a aquiescência da ré, tendo o autor renunciado ao direito de exigir qualquer prestação à ré.
16 – É manifesto que o documento – declaração outorgado pelo autor datada de 28 de Fevereiro de 2017 - contém duas declarações negociais do autor:
17 - A primeira delas “…recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação” consubstancia uma quitação atinente à quantia recebida;
18 - A segunda “…não podendo eu B..., exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que titulo for, razão pela qual dou total quitação.”, claramente separada da anterior, integra o reconhecimento de que nada mais lhe cabe receber da ré por força do contrato que os ligou.
19 - Não se trata de uma simples e vulgar “quitação” – em que o credor se limita a atestar que recebeu aquela determinada prestação – tratasse de algo mais abrangente em que o credor declara ter recebido todas as prestações a que tinha direito.
20 - Pois bem, no caso afigura-se-nos evidente que o sentido da segunda declaração do autor foi inequívoco quanto à renúncia a todos os créditos – conhecidos ou não – que pudessem emergir da relação de trabalho ou da sua cessação.
21 - Acresce que tendo o contrato cessado em 28 de Fevereiro de 2017, por iniciativa do autor, a declaração em causa é emitida pelo autor no dia da cessação do contrato e portanto, quando aquele já não tinha quaisquer constrangimentos derivados da subordinação à Ré que existiriam na pendência da relação de trabalho e em que se verificaria a indisponibilidade dos créditos (cfr. artigos 270.º e 271.º, do Código do Trabalho).
22 - Ou seja, uma vez que a indisponibilidade dos créditos provenientes do contrato de trabalho se verifica apenas durante a vigência do mesmo, à data da celebração do acordo não existia qualquer impedimento legal à renúncia de créditos emergentes desse contrato.
23 - De resto, dentro do princípio da liberdade contratual (cfr. artigo 405.º, do Código Civil), não se vislumbra qualquer obstáculo à celebração do acordo em causa.
24 - Daí que os (eventuais) créditos do autor emergentes da relação de trabalho, rectius, por cessação do contrato de trabalho, se consideram extintos por remissão abdicativa nos termos do n.º 1 do artigo 863.º, do Código Civil.
25 - Refira-se que esta tem sido a posição uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, que em casos muito semelhantes ao presente tem declarado a extinção de créditos por remissão abdicativa, como podem verse, entre outros, os Acórdãos de 24-11-2004 (Proc. 04S2846), de 25-05- 2005 (Proc. 05S480), de 11-10-2005 (Proc. 05S1763), de 31-10-2007 (Proc. 07S1442) e de 10-12-2009 (Proc. 884/07.1TTSTB.S1), todos disponíveis sob a respectiva indicação em www.dgsi.pt.
26 - Actua como litigante de má-fé, o autor que na petição inicial alega uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conhecia, o que significa ter ele alterado a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente, portanto, com dolo, uma pretensão contra a ré, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, assim integrando o estatuído no art. 542.º do Código de Processo Civil.
27 - Assenta pois a litigância de má-fé, no facto da parte – no caso o autor - ao deduzir a sua pretensão e ao afirmar factos não ocorridos, ter atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão, ou encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.
28 – O autor afirmou na petição inicial a ré procedeu ao seu despedimento de forma ilícita, porque realizado sem procedimento disciplinar, justa causa e de forma abusiva.
29- Vindo o autor a requerer, em função do alegado despedimento ilícito, à ré uma indemnização no valor de 1950,00€ acrescido de uma indemnização de 750,00€ por não patrimoniais em função do despedimento tudo nos termos do artigo 389º do C.T.
30 - Sobre esta matéria foi dado como provado que “Durante o mês de Janeiro de 2017 o autor manifestou verbalmente ao seu superior na ré a sua vontade de se demitir e, nesse sentido, veio a subscrever uma carta onde consta a data de 1 Fevereiro de 2017 em que apresenta à ré a sua demissão" e ao invés foi dado como não provado tudo o alegado pelo autor.
31 - Como se vê da enumeração dos factos provados acima feita resulta que foi o autor que tomou a iniciativa de se despedir. Ou seja, ao contrário do que o autor repetidamente afirmou, não foi a ré a proceder ao seu despedimento, pelo que por razões óbvias não existiu qualquer despedimento ilícito nem o autor tinha direito às quantias peticionadas.
32 - Sendo que o autor alterou a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente, portanto, com dolo, uma pretensão contra a ré, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, assim integrando o estatuído no art. 542.º do Código de Processo Civil. Pelo que,
33 - Não pode, em consequência, deixar de se concluir pela falsidade consciente com que o autor afirmou o mencionado e inexistente despedimento por iniciativa da ré, o que forçosamente o autor sabia.
34 - Por outro lado, nos termos supra expostos, o autor assinou uma declaração onde renuncia a todos os créditos declarando “…não podendo eu B..., exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que titulo for, razão pela qual dou total quitação.”
35 - Com tal declaração o autor criou na ré a convicção que estava abdicar das quantias, férias e subsídio de férias vencidas em 1 de Janeiro de 2017.
36 - Vindo, mais tarde, à falsa fé, exigir judicialmente essas quantias, em clara contradição com a declaração que assinou de forma voluntária e consciente.
37 - Até e porque o autor não alegou o autor qualquer vício da vontade ou constrangimento na assinatura de tal declaração.
38 - O que significa ter o autor alterado a verdade dos factos, o que integra o estatuído nas citadas alíneas a) e b), preenchendo os requisitos para se concluir pela litigância de má-fé por parte do autor.
Conclui pedindo a procedência do recurso, em consequência revogando-se a sentença, para ser substituída por outra que a absolva dos pedidos deduzidos pelo A. e condene este como litigante de má-fé.
I.4 O Recorrido autor apresentou contra alegações finalizadas com as conclusões seguintes:
1 - A Douta Sentença proferida pelo Mmº Juiz a quo decidiu julgar parcialmente procedente a acção e em consequência condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de €1.300,00 acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento e julgou improcedente o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé.
2- A Douta Sentença proferida teve como pressuposto os “Fatos provados”, que “A Ré não pagou ao autor as férias e o respectivo subsídio de férias, que se venceram a 1 de Janeiro de 2017 no valor de 1.300,00 euros (650,00 euros + 650,00)”;
3 - E também o fato provado: «Com a data de 28 de Fevereiro de 2017, o autor assinou uma declaração elaborada pelos serviços da ré “...
4 - O Mmº Juiz a quo declarou que “não ficou provado ter existido uma declaração de denuncia efectuada em termos normais, em que se prova que o trabalhador, ou alguém a seu mando, elabora uma declaração e remete ao empregador, existindo dúvidas sobre quem elaborou a declaração de denuncia, quando foi assinada e quando foi recebida”.
5 - Falece por completo toda a argumentação usada nas alegações e conclusões formuladas pela Ré.
6 - Não se compreende como pode a Recorrente concluir, 21- “tendo o contrato cessado em 28 de Fevereiro de 2017, por iniciativa do autor, a declaração em causa é emitida pelo autor no dia da cessação do contrato”, face aos fatos dados como provados.
7 - Não resulta dos fatos provados, que a declaração em causa é emitida pelo Autor, ao contrário, resulta que a declaração foi “elaborada pelos serviços da Ré”.
8 - E ainda afirmar, quanto à indisponibilidade dos créditos, sem qualquer pudor, que o Autor emitiu a declaração, objecto do análise do presente recurso, quando “já não tinha quaisquer constrangimentos derivados da subordinação à Ré na pendência da relação de trabalho”.
9 - Não resulta dos fatos provados que o contrato cessou em 28 de Fevereiro!!, (que por sinal foi dia de Carnaval e a empresa esteve fechada, como bem sabe a Recorrente);
10 - Foi dado fato como não provado que “A referida carta de demissão foi assinada em 1 de Fevereiro de 2017 e entregue à Ré em mão pelo Autor, produzindo efeitos a partir do dia 28.02.2015”.
11 - Não pode a Recorrente concluir que o contrato de trabalho celebrado entre Autor e Ré terminou no dia 28 de Fevereiro de 2017.
12 - A declaração objecto de análise do presente recurso, como o Mmº Juiz referiu foi elaborada pelos serviços da Ré e foi assinada pelo Autor, com data de 28 de Fevereiro.
13 - A Recorrente pretende, com as alegações de recurso extrair uma interpretação diferente completamente antagónica dos fatos dados como provados e não provados, sem contudo recorrer via transcrição dos depoimentos gravados em audiência de julgamento.
14 - O que de forma alguma se pode conceder a tal ilegal e abusiva interpretação.
15 - Alega ainda a Recorrente, nas suas conclusões 35 “Com tal declaração o autor criou na ré a convicção que estava a abdicar das quantias, férias e subsídio de férias vencidas em 1 de Janeiro de 2017.”
16 - Não podemos concordar com tal interpretação porquanto, não só, tais dizeres não constam na declaração, como o Mmº Juiz a quo deu como provado que tal declaração foi “elaborada pelos serviços da Ré”.
17 - A Ré, Recorrente ao elaborar a declaração objecto de análise no presente recurso, como o Mmº Juiz deu como provado que foi a Ré, é que criou a convicção, para ela própria, de que dessa forma, não pagaria ao Autor as férias e subsídios de férias vencidos a 1 de Janeiro de 2017, como devia.
18- Até porque para a cessação do contrato de trabalho, entre Autor e Ré não era nem é necessário a emissão e assinatura de qualquer declaração, muito menos nos termos em que o foi.
19 - A Declaração é emitida e redigida pela Ré, só a Ré sabe porque o fez.
20 - Para o Autor, dúvidas não existem que a Ré não quis - nem mesmo quando o Mmº Juiz a quo, interrompeu a audiência de julgamento para obter conciliação das partes na resolução do conflito, que o Autor aceitou, conforme consta na ata de audiência de julgamento - nem quer pagar ao Autor, as férias e subsídio de férias que se venceram em 1 de Janeiro de 2017, os designados “direitos indisponíveis”, como tão bem a Recorrente, sabe que existem e o Autor tem direito.
21 - A Ré, Recorrente escuda-se na emissão de uma declaração preparada por ela própria para não pagar ao Autor.
22 - O que, em nossa modesta opinião configura um verdadeiro Abuso de Direito, que V. Exªs, Senhores Desembargadores, com o devido respeito deverão se pronunciar e caso assim o entendam, concluir pela condenação da Ré como litigante de má-fé e multa em montante a considerar por V. Exªs, uma vez, como se pode verificar por todo o processado, existe por parte da Ré um uso anormal do processo.
23 - Quanto à pretensa litigância de má- fé por parte do Autor e como refere o Mmº Juiz a este propósito e já o dissemos anteriormente “não ficou provado ter existido uma declaração de denúncia efectuada em termos normais, em que se prova que o trabalhador, ou alguém a seu mando, elabora uma declaração e remete ao empregador, existindo dúvidas sobre quem elaborou a declaração de denúncia, quando foi assinada e quando foi recebida”,
24 - Para que haja má-fé torna-se necessária a existência de uma pretensão absolutamente infundada, o que no caso não aconteceu.
25 - A Ré foi condenada, por douta sentença proferida pelo Mmº Juiz a quo a pagar ao Autor as férias e subsídio de férias que se venceram a 1 de Janeiro de 2017.
26- Pelo que neste considerando, não há qualquer litigância de má-fé por parte do Autor e também falece toda argumentação usada nas alegações e conclusões formuladas pela Ré.
Termos em que deve o recurso interposto pela Ré ser julgado improcedente mantendo-se a douta sentença recorrida, devendo V. Exªs se pronunciarem quanto à pretensa existência da abuso de direito e má-fé por parte da Recorrente, com aplicação de multa e indemnização a favor do Autor, em montante a fixar.
I.5 O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso. Sustenta no seu parecer, em síntese, que a declaração assinada pelo autor é genérica e não configura um contrato de remissão, nos termos do artigo 863.º 1 do CC, acrescendo que se refere que a data da cessação da relação laboral é contemporânea da declaração, mas não se provou quando ocorreu aquela.
I.5.1Respondeu areplicando o essencial da argumentação usada no recurso.
I.6 Colhidos os vistos legais, determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas pela recorrente para apreciação consistem em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento na aplicação do direito aos factos quanto ao seguinte:
i) Ao considerar não existir remissão abdicativa, tendo condenado a Ré no pagamento de € 1 300, relativos a férias e subsídio de férias.
ii) Ao considerar não ter o autor litigado de má-fé.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo tribunal a quo consiste no que se passa a transcrever (a numeração foi introduzida por nós).
A. Factos provados:
1. Em Setembro de 2015, o Autor celebrou um contrato de trabalho escrito com a empresa C..., Lda, com sede na Zona Industrial ..., contribuinte número ..........
2. O Autor foi contratado pela Ré para exercer a actividade de soldador sob a sua direcção, autoridade e fiscalização.
3. A Ré não pagou ao autor as férias e o respectivo subsídio de férias, que se venceram a 1 de Janeiro de 2017 no valor de 1.300,00 euros (650,00 euros + 650,00 euros).
4. Em 30 de Março de 2017, o autor recorreu a apoio médico do foro neurológico.
5. Durante o mês de Janeiro de 2017 o autor manifestou verbalmente ao seu superior na ré a sua vontade de se demitir e, nesse sentido, veio a subscrever uma carta onde consta a data de 1 de Fevereiro de 2017 em que apresenta à Ré a sua demissão.
6. Com a data de 28 de Fevereiro de 2017, o autor assinou uma declaração elaborada pelos serviços da ré onde declarou “ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação, nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito a saber, salários, vencimento de férias não gozadas, subsídio de férias e de natal, horas extraordinárias, diferenças salariais, prémios de assiduidade, horas de trabalho nocturnas, despesas de transporte, ajudas de custo, indemnização pela não concessão de férias, complementos de subsídios de doença e de pensões, subsídios de refeição”, não podendo exigir da sua entidade patronal quaisquer quantias, seja a que titulo for, dando total quitação.
7. No dia em que o autor assinou essa declaração foram-lhe entregues os três recibos de vencimento de Fevereiro de 2017 que também assinou [folhas 18 frente e verso].
B. Factos não provados:
No dia 1 de Março, da parte da manhã, o Sr. D..., representante legal da Ré, chamou o Autor ao escritório e impôs que este assinasse vários documentos, preparados pelos seus funcionários e comunicou-lhe que a partir daquela data, deixaria de ser trabalhador da Ré.
Desde o dia 1 de Março de 2017, o autor encontra-se desempregado.
Em consequência da situação, o Autor passou a sofrer de ansiedade e depressão com insónias frequentes.
A referida carta de demissão foi assinada em 1 de Fevereiro de 2017 e entregue à Ré em mão pelo Autor, produzindo efeitos a partir do dia 28.02.2017.
II.2 Alteração da decisão sobre a matéria de facto por iniciativa deste Tribunal de recurso
No âmbito dos poderes oficiosos conferidos pelo art.º 662.º n.º1, do CPC, entende-se conveniente alterar a matéria de factos, nomeadamente, quanto aos factos 5, 6 e 7, para integrar neles, por transcrição, o essencial do conteúdo dos documentos a que se referem, conferindo-lhes maior objectividade.
Assim, os factos 5 e 6 passam a ter a redacção seguinte:
[5] Durante o mês de Janeiro de 2017 o autor manifestou verbalmente ao seu superior na ré a sua vontade de se demitir e, nesse sentido, veio a subscrever uma carta em texto impresso, onde consta “Entregue em mão” e a data de “01-02-2017”, seguindo abaixo com o conteúdo seguinte:
Exmos Senhores
Venho por este meio comunicar a V. Exas. a minha demissão, como empregado dessa firma, a partir do dia 28-02-2017.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com consideração”.
[6] Com a data de 28 de Fevereiro de 2017, o autor assinou uma declaração elaborada pelos serviços da ré onde se lê o seguinte:
Na sequência da cessação do contrato de trabalho nesta data, operada por min e pela Entidade Patronal C..., LDA declaro ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação, nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito, a saber, salários, vencimento de férias não gozadas, subsídio e férias e de natal, horas extraordinárias, diferenças salariais, prémios de assiduidade, diuturnidades, horas de trabalho nocturnas, subsídios de compensação, despesas de transporte, ajudas de custo, indemnização pela não concessão de férias, complementos de subsídios de doença e de pensões, subsídios de refeição, não podendo eu B... exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que título for, razão pela qual dou total quitação.
Por ser verdade e corresponder à minha vontade, assino a presente declaração».
[7] No dia em que o autor assinou essa declaração foram-lhe entregues os três recibos de vencimento de Fevereiro de 2017 que também assinou, respetivamente, com os números 32, 33 e 34, referindo os valores totais de abonos ilíquidos, resultantes dos pagamentos discriminados, que seguem:
i) Recibo 32: “vencimento / dia 21,67 x 32 dias” – “693,33”;
subsídio de alimentação 5,00 x19 dias” – “95,00
No valor total ilíquido de € 788,33;
ii) Recibo 33: “Subsídio de Férias”- “108,33”
No valor total ilíquido de € 108,33;
iii) Recibo 34: “Subsídio de Natal” – “108,33”
No valor total ilíquido de € 108,33;
III. MOTIVAÇÃO de DIREITO
Como se precisou acima, a recorrente insurge-se contra a sentença por alegado erro de julgamento na aplicação do direito aos factos, com dois fundamentos distintos:
i) Por ter considerado não existir remissão abdicativa, vindo a condená-la no pagamento ao autor de € 1.300, relativos a férias e subsídio de férias.
ii) Ao considerar não ter o autor litigado de má-fé.
III.1 Sobre a questão de saber se há remissão abdicativa relativamente à retribuição de férias vencidas em 1 de janeiro de 2017 e não gozadas, bem como ao respectivo subsídio de férias, na fundamentação da sentença consta o seguinte:
No entanto, a apreciação do pedido de condenação da ré no pagamento da quantia de € 1.300 relativos a férias e subsídio de férias vencidos em 1 de Janeiro de 2017, apesar de não ter sido provado o pagamento, antes pelo contrário, não pode proceder sem se conhecer a exceção de remissão abdicativa formulada pela ré.
Nos termos do artigo 863.º, n.º 1, do Código Civil, uma das formas de extinção das obrigações é a chamada remissão abdicativa.
Por meio deste contrato, credor e devedor acordam que aquele renúncia ao cumprimento de uma obrigação, podendo traduzir-se numa renúncia parcial a um crédito mediante o cumprimento parcial.
Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 2009 – Processo 274/07.6TTBRR.S1 –, relatado pelo Conselheiro Sousa Grandão, considera que «como contrato que é, a “remissão” exige o necessário consenso entre as partes e, daí a emissão de, pelo menos, duas declarações negociais: uma delas a cargo do credor – declarando renunciar ao direito de exigir a prestação – e a outra por banda do devedor – declarando aceitar aquela renúncia – podendo, esta, ser tácita», sendo que «este tipo de declaração é normalmente emitido aquando do acerto de contas após a cessação do contrato: o empregador paga determinada importância, exigindo em troca a emissão daquela declaração, a fim de evitar futuros litígios e, por sua vez, o trabalhador aceita passar essa declaração em troca da quantia que recebe, evidenciando-se, assim, um verdadeiro acordo negocial, com interesse para ambas as partes».
A questão tem sido discutida precisamente a propósito de declarações de quitação de todos os créditos laborais subjacentes ao recebimento dos créditos finais, sejam declarações mais genéricas no sentido de que o trabalhador nada mais tem a reclamar do empregador, seja de declarações mais específicas como a que existia no arresto em referência em que o trabalhador «declara para todos os efeitos legais, nada mais será devido com referência a ordenados, férias, subsídios de férias, subsídios de Natal, horas extraordinárias, trabalho em dias de descanso semanal ou complementar, ou seja a que título for, ficando assim definitivamente liquidadas todas as contas entre o declarante e a referida sociedade».
Assim, por um lado, encontramos na jurisprudência situações em que se entendeu que «a declaração da trabalhadora de que recebeu da sua empregadora “todos os créditos emergentes do contrato de trabalho e da cessação do mesmo, nada mais tendo a receber ou a reclamar, seja a que título for” é uma declaração genérica, a qual não pode ser havida como prova plena de que a declarante nenhum outro direito pretendia conservar, respeitante à relação jurídica laboral já extinta», pelo que caso se demonstre «que a empregadora não provou ter disponibilizado todos os créditos a que a trabalhadora tinha direito, aquela declaração, como quitação genérica, é insuficiente para concluir por um verdadeiro acordo negocial do interesse das partes» [acórdão da Relação do Porto de 18 de Fevereiro de 2013 – processo n.º 78/11.1TTSTS.P1 –, relatado pelo Desembargador Machado da Silva] e, por outro lado, noutras situações atribui-se eficácia abdicativa a declarações deste tipo, como por exemplo numa situação em que o trabalhador declara que «por via da cessação do contrato de trabalho que mantinha com C…, Ldª (…) recebi tudo quanto me era devido e que com o recebimento do mês de Agosto de 2011, para a minha conta bancária (…) dou total e rasa quitação de todos os créditos vencidos e vincendos, dos quais me declaro integralmente ressarcido» [acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Maio de 2014 – Processo n.º 929/11.0TTVFR.P1 –, relatado pela Desembargadora Paula Maria Roberto].
Em nosso entendimento, uma declaração desta natureza constitui efetivamente uma remissão abdicativa sob pena de ser absolutamente inútil mas apenas se resultar que a declaração negocial foi produzida no sentido do declarante abdicar de quaisquer outros valores que eventualmente tivesse recebido, ou seja, o trabalhador recebe uma quantia e com essa quantia considera-se pago de todos os valores que tivesse a receber no âmbito da relação laboral, abdicando de quaisquer outros valores que eventualmente lhe pudessem ser devidos.
Neste âmbito, a remissão abdicativa pretende permitir que as partes cessem a relação laboral e considerem resolvidos todos os créditos que lhe estão subjacentes e, com esse conhecimento, abdica de outros valores que eventualmente possam ser discutidos, pondo termo, em definitivo, à relação laboral e aos assuntos que desta podiam resultar em matéria creditória.
Então, temos que olhar para a declaração e para o circunstancialismo em que foi produzida e interpretar a declaração negocial no sentido de apurar se existe efectivamente uma remissão abdicativa.
A interpretação das declarações negociais formais deve fazer-se de acordo as regras dos artigos 236.º e 238.º, do Código Civil, segundo os quais as declarações negociais devem valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, deve entendê-la, desde que no texto do documento esse sentido encontre um mínimo de correspondência.
Em tese geral, o artigo 236.º, do Código Civil, consagra a chamada teoria da impressão do destinatário de modo a conferir uma tutela plena à legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração, o que significa que o que é relevante é o “sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer” com a limitação de que para esse “sentido relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele” (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1994, páginas 447 e 448; e Ferrer Correia, Erro e interpretação na teoria do negócio jurídico, Coimbra, 1939, página 200).
Sendo esta a regra geral, sofre desvios em sentido objectivista e subjectivista em situações particulares.
O artigo 238.º, do Código Civil, corresponde exactamente a um desvio à regra geral de natureza objectivista.
Refere-se esta norma aos negócios formais e nestes o sentido correspondente à doutrina da impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no texto do respectivo documento – trata-se da consagração da denominada teoria da manifestação.
Admite-se, no entanto, que um sentido não traduzido no documento possa ainda assim valer desde que corresponda à vontade real e concordante das partes e a esse sentido não se oponham as razões determinantes da forma do negócio (Mota Pinto, obra citada, página 453).
Com estes critérios interpretativos, temos que averiguar se as declarações referidas, para um declaratário razoável, são de molde a considerar que o autor estava a abdicar da parte restante do crédito que podia existir.
Os termos da declaração são os seguintes: com a data de 28 de Fevereiro de 2017, o autor assinou uma declaração elaborada pelos serviços da ré onde declarou “ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação, nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito a saber, salários, vencimento de férias não gozadas, subsídio de férias e de natal, horas extraordinárias, diferenças salariais, prémios de assiduidade, horas de trabalho nocturnas, despesas de transporte, ajudas de custo, indemnização pela não concessão de férias, complementos de subsídios de doença e de pensões, subsídios de refeição”, não podendo exigir da sua entidade patronal quaisquer quantias, seja a que titulo for, dando total quitação.
Para além disso, temos que atender ao circunstancialismo que rodeou a declaração e que foi o seguinte: o autor pretendia pôr termo à relação laboral, assinou três recibos de vencimento relativos aos valores que recebeu e a declaração acima indicada.
No entanto, não podemos deixar de ter em conta que o que está em causa é o valor relativo às férias e subsídio de férias vencidos em 1 de Janeiro de 2017 e relativamente a estes valores, o autor não produz qualquer declaração abdicativa, ou seja, o autor em nenhum momento declara abdicar deste valor, pelo contrário, o que o autor faz é declarar que o recebeu e, como tal, o autor não pode abdicar daquilo que está a declarar ter recebido e, por conseguinte, da declaração em causa não se pode retirar que um declaratário normal, colocado na posição de empregador, pode entender que o trabalhador está a abdicar destas quantias pois tem que entender que está a dar quitação dos valores em causa e uma obrigação ou se extingue por cumprimento [daí a quitação] ou por remissão abdicativa.
Mas, apesar de existir uma declaração de quitação, isso não impede o autor de demonstrar que não recebeu as quantias em causa como, de facto, se demonstrou e, por isso, nos termos dos artigos 237.º, n.º 1 e 245.º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho, o autor tem direito a receber a quantia de € 1.300 acrescida de juros desde a citação até integral pagamento».
Argumenta a recorrente, no essencial, que o documento contém duas declarações negociais do autor. A primeira delas - “…recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação” - consubstancia uma quitação atinente à quantia recebida; a segunda - “…não podendo eu B..., exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que titulo for, razão pela qual dou total quitação” - separada da anterior, integra o reconhecimento de que nada mais lhe cabe receber da ré por força do contrato que os ligou.
No seu entender, o sentido da segunda declaração foi inequívoco quanto à renúncia a todos os créditos – conhecidos ou não – que pudessem emergir da relação de trabalho ou da sua cessação.
III.1.1 Como decorre do n.º1, do art.º 863.º do CC, a remissão é um negócio jurídico bilateral, que tem como fonte um contrato, estabelecendo a norma “O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor”.
A remissão abdicativa é uma das causas de extinção das obrigações, consistindo na “(..) renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com a aquiescência da contraparte” [Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. II, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1980, p. 209].
Elucida aquele mesmo autor, referindo-se ao recorte funcional que caracteriza a remissão, “ (..) o direito de crédito não chega a funcionar; o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente. E, todavia, a obrigação extingue-se. Na remissão é o próprio credor que, com a aquiescência embora do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse, que a lei lhe conferia” [Op. cit., p. 298].
Como contrato que é, a remissão implica a existência de duas declarações negociais: uma proferida pelo credor (declarando renunciar ao direito de exigir a prestação) e outra da parte do devedor (declarando aceitar aquela renúncia).
Contudo, a lei não exige que o consentimento do devedor seja manifestado por forma expressa, estando, portanto, sujeito às regras gerais sobre declarações negociais (art.s 217.º e 218.º) [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1986, p.155].
A propósito, escreve também Antunes Varela, que “Ficou, de facto, bem assente no texto definitivo do artigo 863.º, que a remissão necessita de revestir a forma de contrato (embora a aceitação da proposta contratual do remitente se possa considerar especialmente facilitada pelo disposto no art.º 234.º (..)” [Op. cit, p. 211].
Assim, a aplicação da doutrina do art.º 234.º CC à remissão, assenta nos pressupostos de que, em regra, o devedor quererá a remissão, nada impedindo que a declaração de aceitação seja tácita (art.º 217.º, n.º1, CC), dado que a validade do contrato não está dependente da observância de forma especial (art.º 219.º do CC), nem nada obstando a que o silêncio seja valorado como possível manifestação dessa vontade (art.º 218.º CC).
No que respeita à admissibilidade da remissão abdicativa após a cessação do contrato de trabalho, isto é, sendo a declaração emitida aquando do acerto de contas após a cessação do contrato de trabalho, é sabido ser entendimento pacífico da jurisprudência e da doutrina que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, uma vez que a indisponibilidade de créditos provenientes de contrato de trabalho se impõe, apenas, durante a vigência do mesmo. Entende-se que cessada a relação laboral, já nada justifica que o trabalhador não possa dispor livremente dos seus eventuais créditos resultantes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, uma vez que já não se verificam os constrangimentos existentes durante a vigência dessa relação [Nesse sentido, entre outros os Acórdãos do STJ de 31-10-2007, processo n.º 07S1442, VASQUES DINIS; e, de 10-12-2009, processo n.º 884/07.1TTSLB.S1, PINTO HESPANHOL disponíveis em www.dgsi.jstj].
Subjacente a esse entendimento está a consideração de que com a dissolução do vínculo laboral tende a dissipar-se a situação de subordinação jurídica e económica que justifica a indisponibilidade de certos direitos do trabalhador, solução também adoptada na prescrição (só os direitos disponíveis são prescritíveis), a qual não é admissível no decurso do contrato de trabalho, mas se torna possível depois da cessação deste [Cfr. João Leal Amado, A Proteção do Salário, Almedina, Coimbra, 1993, pp. 216 e 217].
Mas para além dessas situações, e por identidade de razões, a jurisprudência do Supremo Tribunal vem pacificamente entendendo que o contrato de “remissão abdicativa” tem também plena aplicação na fase de cessação do contrato de trabalho, por exemplo, quando o trabalhador se predispõe a negociar a cessação do contrato de trabalho.
Como escreve o Senhor Conselheiro Sousa Grandão, [Ac. STJ de 25-11-2009, proc.º 274/07.6TTBRR.S, disponível em www.dgsi.pt] «Nessa fase como sublinha o Acórdão desta Secção de 11/10/05 (Proc. n.º 1763/05) – já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho. Mais sublinha o referido Aresto:
“Qualquer outro entendimento levaria ao absurdo de se concluir que os acordos de cessação do contrato de trabalho entre a entidade empregadora e o trabalhador seriam sempre irrelevantes – porquanto o trabalhador nunca poderia dispor dos seus direitos – isto apesar de estarem expressamente previstos na lei como uma das modalidades da cessação da relação laboral (cfr. arts. 7º e 8º da L.C.C.T.)”.
O que se deixa dito não exclui, todavia e à semelhança do que acontece em qualquer contrato, que o mesmo não possa ser tido como inválido, sempre que concorra um vício na declaração da vontade, designadamente a existência de um erro reportado à ignorância do direito a créditos salariais que, ulteriormente, se vêm reclamar».
A situação mais frequente respeita aos casos em que a cessação do contrato de trabalho ocorre por mútuo acordo entre a entidade empregadora e o trabalhador, mas outras situações existem em que igualmente é possível a remissão abdicativa dos créditos eventualmente existentes e que tenham por fonte o contrato de trabalho cessado, por exemplo quando o trabalhador acorda com a empresa o reconhecimento da sua situação de invalidez e consequente transição para a reforma [Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Processo de 20-09-2006, proc.º 06S574, MÁRIO PEREIRA; e, de 11-10-2005, pro.º 05S1763, FERNANDES CADILHA, disponíveis em www.dgsi.pt].
Neste outro leque de situações em que também se admite como válida a celebração do contrato de renúncia abdicativa na fase de cessação do contrato de trabalho, isto é, antes de cessado o contrato de trabalho, mas sendo já conhecido que esse facto irá verificar-se, está subjacente a consideração de que existe um processo negocial entre o trabalhador e o empregador, anterior ao termo da relação jurídico laboral, mas que tem na sua origem precisamente esse facto futuro e destina-se a produzir os respectivos efeitos com a sua verificação.
Saber se determinada declaração deve ser entendida como integrada num contrato de remissão abdicativa, pressupõe a interpretação dessa declaração negocial, nessa indagação observando-se a disciplina contida no artigo 236.º do Código Civil, que consagra, de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário, ao dispor que a «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele» (n.º 1), mas acrescentando depois que «Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida» (n.º 2).
Revertendo ao caso, relevam para a apreciação deste ponto os factos 5, 6 e 7 – com a redacção que lhes conferimos -, bem assim o 3, nos quais consta o seguinte:
5. Durante o mês de Janeiro de 2017 o autor manifestou verbalmente ao seu superior na ré a sua vontade de se demitir e, nesse sentido, veio a subscrever uma carta em texto impresso, onde consta “Entregue em mão” e a data de “01-02-2017”, seguindo abaixo com o conteúdo seguinte:
Exmos Senhores
Venho por este meio comunicar a V. Exas. a minha demissão, como empregado dessa firma, a partir do dia 28-02-2017.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com consideração”.
6. Com a data de 28 de Fevereiro de 2017, o autor assinou uma declaração elaborada pelos serviços da ré onde se lê o seguinte:
Na sequência da cessação do contrato de trabalho nesta data, operada por min e pela Entidade Patronal C..., LDA declaro ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação, nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito, a saber, salários, vencimento de férias não gozadas, subsídio e férias e de natal, horas extraordinárias, diferenças salariais, prémios de assiduidade, diuturnidades, horas de trabalho nocturnas, subsídios de compensação, despesas de transporte, ajudas de custo, indemnização pela não concessão de férias, complementos de subsídios de doença e de pensões, subsídios de refeição, não podendo eu B... exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que título for, razão pela qual dou total quitação.
Por ser verdade e corresponder à minha vontade, assino a presente declaração».
7. No dia em que o autor assinou essa declaração foram-lhe entregues os três recibos de vencimento de Fevereiro de 2017 que também assinou, respetivamente, com os números 32, 33 e 34, referindo os valores totais de abonos ilíquidos, resultantes dos pagamentos discriminados, que seguem:
i) Recibo 32: “vencimento / dia 21,67 x 32 dias” – “693,33”;
subsídio de alimentação 5,00 x19 dias” – “95,00
No valor total ilíquido de € 788,33;
ii) Recibo 33: “Subsídio de Férias”- “108,33”
No valor total ilíquido de € 108,33;
iii) Recibo 34: “Subsídio de Natal” – “108,33”
No valor total ilíquido de € 108,33;
3. A Ré não pagou ao autor as férias e o respectivo subsídio de férias, que se venceram a 1 de Janeiro de 2017 no valor de 1.300,00 euros (650,00 euros + 650,00 euros).
A questão que se coloca é, pois, a de saber se a declaração subscrita pelo autor, dizendo “declaro ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação, nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito, a saber, (..) não podendo eu (..) exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que título for, razão pela qual dou total quitação”, comporta uma quitação integral e concomitantemente uma remissão abdicativa de eventuais créditos que pudesse ter direito.
Na interpretação desta declaração cabe encontrar o sentido que corresponda àquele que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduziria do seu teor, mas sendo também necessário atender ao contexto factual em que a mesma foi emitida.
Como primeira nota releva assinalar que a data da declaração é a mesma da cessação do contrato de trabalho. Apenas dispomos desses elementos, mas o certo que o autor, em Janeiro já manifestara o propósito de fazer cessar o contrato de trabalho por sua iniciativa, vindo depois a subscrever a carta que se mostra datada de 01-02-2017. Neste contexto, na esteira do afirmado no acórdão do STJ de 25-01-2009, acima citado, assumiremos que já não se colocava a questão da indisponibilidade dos direitos laborais, na consideração de que o autor, em face da intenção assumida e que depois concretizou, não se encontrar, à data em que subscreve o documento, contemporânea da cessação do contrato de trabalho, sujeito aos constrangimentos característicos da relação de trabalho subordinado, quer em virtude da subordinação jurídica quer por efeito premente da dependência económica.
No que concerne ao conteúdo literal da declaração, deve notar-se que o mesmo é genérico, dado que ao dizer “nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito, a saber, salários, vencimento de férias não gozadas, subsídio e férias e de natal, horas extraordinárias, diferenças salariais, prémios de assiduidade, diuturnidades, horas de trabalho nocturnas, subsídios de compensação, despesas de transporte, ajudas de custo, indemnização pela não concessão de férias, complementos de subsídios de doença e de pensões, subsídios de refeição”, não concretiza minimamente qualquer daquelas prestações remuneratórias que tenham sido pagas, desde logo, nada referindo quanto aos abonos e respectivos valores discriminados nos recibos que foram entregues ao autor, nem tão pouco quanto à retribuição de férias e subsídio de férias vencidos em 1 de Janeiro do ano da cessação do contrato, prestações que na verdade não foram pagas (facto 3).
Por outro lado, no que concerne ao contexto factual, releva assinalar que a declaração não surgiu no âmbito de uma cessação do contrato por mútuo acordo, nem houve o pagamento de uma compensação global acordada entre as partes. Aconteceu foi que o autor “Durante o mês de Janeiro de 2017 o autor manifestou verbalmente ao seu superior na ré a sua vontade de se demitir e, nesse sentido, veio a subscrever uma carta em texto impresso, onde consta “Entregue em mão” e a data de “01-02-2017”, e a declaração “Venho por este meio comunicar a V. Exas. a minha demissão, como empregado dessa firma, a partir do dia 28-02-2017”. Significa isto, pois, que a cessação do contrato de trabalho ocorreu por iniciativa do autor, nos termos da lei por denúncia do contrato de trabalho mediante comunicação escrita dirigida ao empregador (art.º 400.º do CT), sendo aqui irrelevante saber se cumpriu ou não o aviso prévio, dado não ser questão suscitada pela Ré.
Os factos provados não permitem concluir se a carta foi efectivamente entregue à Ré na data que nela consta mencionado – 01-02-2017 -, mas o ponto também não assume aqui importância. Releva, sim, o conteúdo da declaração e o seu propósito, dirigido a fazer cessar o contrato de trabalho “a partir do dia 28-02-2017”.
É neste quadro que surge a declaração, com data coincidente com a da anunciada cessação do contrato de trabalho, a qual, como provado foi, elaborada pelos serviços da ré. Não há, pois, qualquer facto que aponte no sentido da existência de qualquer negociação prévia com vista à elaboração do documento que o autor veio a subscrever. De resto, nem a Ré o veio alegar.
Para além disso, entre os factos que se inserem neste contexto e que cabe atender, temos o respeitante à entrega dos recibos e respectivo conteúdo, dai ressaltando que não há a menção ao pagamento da retribuição das férias vencidas a 1 de Janeiro do ano da cessação do contrato de trabalho, nem do respectivo subsídio de férias. E, para além disso, em coerência com o conteúdo desses recibos, provou-se que a Ré não pagou ao autor as férias e o respectivo subsídio de férias, que se venceram a 1 de Janeiro de 2017.
Sobre este último ponto, não é despiciendo sublinhar que a Ré, apesar do pedido expresso do autor, nunca veio afirmar ter-lhe pago esses valores, limitando-se a alegar “Vindo a ser recebidos por o Autor todos os créditos vencidos e exigiveis à data da cessação, conforme declaração por este lida e assinada (..)”.
Neste quadro, conclui-se estarmos perante uma declaração subscrita pelo autor, mas elaborada pela R. por sua exclusiva iniciativa, na qual aquela fez constar menções que não tinham correspondência com a realidade. Com efeito, a Ré fez constar de forma genérica, para o autor subscrever, “declaro ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação, nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito, a saber, saber, (..) vencimento de férias não gozadas, subsídio (..)”, quando é seguro que não lhe pagou a retribuição das férias vencidas a 1 de Janeiro de 2017 e o respectivo subsídio de férias, facto que, enquanto entidade empregadora, não podia ser ignorar.
Portanto, das duas uma, ou a Ré fez essa menção por eventual lapso ou então fê-lo intencionalmente para de forma subreptícia se furtar ao pagamento daqueles valores ao autor.
Seja como for, o que aqui releva é que nestas circunstâncias, a R. não podia deduzir do comportamento do autor, apenas por ter subscrito aquela declaração, que este estava a considerar-se pago daquilo que na verdade não lhe pagou e, logo, ele não recebeu, nem tão pouco que estava a renunciar ao pagamento dessas prestações que lhe eram devidas, o que pressupunha que houvesse menção expressa na declaração ou então que ele tivesse a noção daquela divergência entre o que nela foi feito constar na declaração e o que efectivamente era o seu direito.
Repare-se que a parte final da declaração também não tem correspondência com a realidade, pois contrariamente ao que ali foi feito constar pela Ré, não era “verdade” que o autor tenha sido pago de “todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação”, nomeadamente da retribuição de férias e subsídio de férias em causa.
Conforme elucida João Leal Amado, «a remissão (..) pressupõe que o credor conhece o seu direito, tem consciência da sua existência, sabe que ele ainda se encontra insatisfeito, e pressupõe, também, que o credor quer extinguir esse crédito, tem vontade de o abandonar, de dele se demitir (..)» [Op. cit. pp. 223/224].
Caso tivesse sido havido uma negociação prévia entre a Ré e o autor, tendo sido acordado, p. ex., o pagamento de uma compensação global pela cessação do contrato de trabalho, a questão já teria que se apreciada atendendo a esse circunstancialismo fáctico bem diverso deste, e a interpretação a dar à declaração possivelmente seria no sentido pretendido pela recorrente Ré. Mas não é essa a situação em presença.
Como se disse, e repete-se para que não haja dúvidas, a Ré fez inserir na declaração que elaborou para o autor subscrever um conteúdo que não tinha correspondência com a realidade: faz constar que o autor recebeu “todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação”, quando efectivamente assim não aconteceu, designadamente, por não lhe ter pago as férias não gozadas e o respectivo subsídio de férias. Neste circunstancialismo, não há, pois, fundamento para se interpretar a declaração subscrita como se dela decorresse a vontade do autor remir as quantias que não recebeu, nem para se considerar que esse seria o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, lhe atribuiria. E, sabendo a Ré da desconformidade entre o que fez constar da declaração e a realidade, não podia esperar que o autor lhe conferisse o sentido que vem defender.
Como diz o Tribunal a quo se assim fosse, nem se colocaria a questão da renúncia, visto que o A. não poderia então renunciar a um crédito que já recebera.
Por último, importa assinalar que não têm aqui a aplicação pretendida os arestos invocados pela recorrente, pela simples razão de que embora os princípios ai afirmados sejam aqueles que também aqui defendemos, já o mesmo não acontece quanto aos contextos fácticos em que foram emitidas as declarações neles em apreciação, dado respeitarem a situações em que, de uma ou outra forma, houve processos negociais que conduziram às declarações de remissão, ou pagamentos de quantias a título de compensação global.
Acolhe-se, pois, a posição do tribunal a quo, quer quanto à fundamentação quer quanto ao decidido.
Concluindo, quanto a esta questão improcede o recurso.
III.2A segunda questão respeita à absolvição do autor do pedido de condenação como litigante de má-fé.
Sobre esse pedido da Ré, o Tribunal a quo pronunciou-se nos termos seguintes:
Não há dúvida que, para além da questão dos créditos laborais, o autor defende uma posição em relação à qual concluímos não lhe assistir razão mas não podemos deixar de considerar que não ficou provado ter existido uma declaração de denúncia efetuada em termos normais, em que se prova que o trabalhador, ou alguém a seu mando, elabora uma declaração e remete ao empregador, existindo dúvidas sobre quem elaborou a declaração de denúncia, quando foi assinada e quando foi recebida e, por isso, concluímos que não podemos afirmar a existência de litigância de má-fé».
Argumenta a recorrente que o autor que na petição inicial alega uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conhecia, visto estar provado que foi ele que tomou a iniciativa de se despedir, ou seja, ao contrário do que afirmou, não foi a ré a proceder ao seu despedimento, pelo que por razões óbvias não existiu qualquer despedimento ilícito, o que significa ter ele alterado a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente, portanto, com dolo, uma pretensão contra a ré.
Vejamos então.
A Constituição da República Portuguesa, no seu art.º 20.º, assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Na esteira desse princípio constitucional do acesso à justiça, o art.º 2.º do CPC, vem garantir que “A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito a obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie com a força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo (..)” [n.º1], bem assim que “A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-la coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.
O exercício destes direitos não é isento de deveres, nomeadamente no que respeita à conduta processual das partes. Para os assegurar o Estado coloca os seus órgãos jurisdicionais à disposição de quem quer que se arrogue um direito, mas o direito a propor a acção, bem assim o correspondente direito de defesa por parte de quem é demandado, devem exercer-se dentro de determinados limites circunscritos por deveres de conduta.
A Lei de autorização de revisão do Código de Processo Civil (Lei nº 33/95 de 18 de Agosto), consignou a orientação de que “As alterações à lei processual deverão consagrar o dever de cooperação para a descoberta da verdade (..)”.
Dando consecução à lei de autorização legislativa, a revisão do Código de Processo Civil veio a ser introduzida pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, em cujo preâmbulo é proclamada a afirmação dos princípios fundamentais estruturantes de todo o processo civil, entre os quais, e de acordo com aquela orientação, consta o princípio cooperação, referindo-se-lhe o legislador como “(..) princípio angular e exponencial do processo civil”.
O princípio da cooperação encontrou consagração no art.º 266.º do pretérito CPC, correspondendo-lhe actualmente o artigo 7.º, dele constando, para além do mais, que “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.
A cooperação que a lei impõe deve ser feita de boa-fé, isto é, com lealdade e lisura de procedimento. Assim resulta do art.º 8.º, correspondente ao art.º 266.º A do pretérito diploma, onde se lê “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres resultantes do preceituado no artigo anterior”.
É a violação do dever de boa-fé processual, de forma dolosa ou gravemente negligente, que configura a litigância de má-fé, a que se refere o art.º 542.º do CPC (anterior artigo 456.º no pretérito CPC).
Como elucida o legislador na exposição de motivos da Lei nº 33/95 de 18 de Agosto, o dever de boa-fé processual surge consagrado como reflexo e corolário do princípio da cooperação, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos.
O sancionamento da litigância de má-fé é feito através da condenação em multa e, se a parte contrária o pedir, em indemnização a seu favor (n.º1 do aludido artigo). E, de acordo com a tipificação constante do n.º2, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Em suma, é a violação do dever geral de probidade, consagrado no art.º 8.º, do CPC, enquanto conduta ilícita, praticada de forma dolosa (lide dolosa) ou gravemente negligente (lide temerária), que configura a litigância de má-fé [cfr. Ac. STJ, de 7-10-2004, Processo 04S1002, MARIA LAURA LEONARDO, disponível em http://www.dgsi.pt/jst; e, J.P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 3.º Edição, pp. 210].
Retomando o caso, cabe atentar no que foi alegado pelo autor. No que aqui releva, consta da petição inicial o seguinte:
[] No p.p. dia 1 de Março, da parte da manhã, o Sr. D..., representante legal da Ré, chamou o Autor ao escritório e impôs que este assinasse vários documentos, preparados pelos seus funcionários e comunicou-lhe que a partir daquela data, deixaria de ser trabalhador da Ré.
[] Tendo apenas entregue ao Autor 3 recibos de vencimento, cfr. doc. nº 1, 2 e 3.
[] A conduta do representante da Ré configura um verdadeiro despedimento do Autor, sem procedimento disciplinar e sem justa causa e completamente abusivo.
[] O Autor foi despedido pela Ré sem esta lhe ter pago as férias e o respectivo subsídio de férias, que se venceram a 1 de Janeiro de 2017 e que totaliza a quantia de 1.300,00 euros (650,00 euros + 650,00 euros).
[] O Autor foi despedido no dia 1 de Março de 2017, encontra-se desempregado e tem por isso direito às retribuições que deixou de auferir desde Março de 2017 até o trânsito em julgado da sentença.
[] Atenta a ilicitude do despedimento, o Autor, que desde já opta pelo despedimento em substituição da reintegração, artigo 391º nº 1 do CT, tem direito a uma indemnização por antiguidade no valor de (3 x 650,00€) 1.950,00€.
Afirmando a falsidade daquela versão, contrapôs a Ré na contestação, em suma, que contrariamente ao afirmado pelo autor o contrato cessou por iniciativa dele, que para esse efeito e por carta de 1 de Fevereiro de 2017, apresentou-lhe a sua demissão, nesta consideração vindo pedir a sua condenação como litigante de má-fé.
Confrontado com essa posição, respondeu o autor que o que “pretende é efectivamente provar que não foi ele quem redigiu os documentos, agora juntos pela Ré, o que é notório e que a Ré não nega; Bem como receber, entre outras, a quantia de 1.300,00 euros a título de férias e subsídio de férias que se venceram no dia 1 de Janeiro de 2017 e que a Ré não pagou ao Autor”.
Provou-se, conforme já acima vertido, mas que aqui se repete por comodidade, o seguinte:
[5] “Durante o mês de Janeiro de 2017 o autor manifestou verbalmente ao seu superior na ré a sua vontade de se demitir e, nesse sentido, veio a subscrever uma carta em texto impresso, onde consta “Entregue em mão” e a data de “01-02-2017”, seguindo abaixo com o conteúdo seguinte:
Exmos Senhores
Venho por este meio comunicar a V. Exas. a minha demissão, como empregado dessa firma, a partir do dia 28-02-2017.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com consideração”.
[6] Com a data de 28 de Fevereiro de 2017, o autor assinou uma declaração elaborada pelos serviços da ré onde se lê o seguinte:
Na sequência da cessação do contrato de trabalho nesta data, operada por min e pela Entidade Patronal C..., LDA declaro ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação, nomeadamente, todas e quaisquer remunerações que porventura tivesse direito, a saber, salários, vencimento de férias não gozadas, subsídio e férias e de natal, horas extraordinárias, diferenças salariais, prémios de assiduidade, diuturnidades, horas de trabalho nocturnas, subsídios de compensação, despesas de transporte, ajudas de custo, indemnização pela não concessão de férias, complementos de subsídios de doença e de pensões, subsídios de refeição, não podendo eu B... exigir da minha entidade patronal, qualquer outra quantia, seja a que título for, razão pela qual dou total quitação.
Por ser verdade e corresponder à minha vontade, assino a presente declaração».
Constata-se, pois, que o autor omitiu o seguinte:
i) Ter manifestado ao representante legal da ré a sua vontade de fazer cessar o contrato de trabalho;
ii) Ter subscrito e entregue uma carta à Ré, onde consta que através dela comunica a sua “(..) demissão, como empregado dessa firma, a partir do dia 28-02-2017;
iii) Ter subscrito um documento onde declarou “ter recebido todos os créditos vencidos e exigíveis à data da cessação” e não poder exigir “qualquer outra quantia”.
É certo, como refere o Tribunal a quo, que não se sabe “quem elaborou a declaração de denúncia, quando foi assinada e quando foi recebida”.
Mas salvo o devido respeito, esse não é o ponto fulcral.
O Autor podia vir discutir a ilicitude do despedimento e reclamar créditos decorrentes da ilicitude do despedimento, nomeadamente, a indemnização em substituição da reintegração e os salários intercalares, bem assim outros créditos devidos pela cessação do contrato de trabalho, mas para esse efeito não podia omitir factos essenciais e do seu perfeito conhecimento, nomeadamente, os que acima se mencionaram.
Na verdade, se pretendia “provar que não foi ele quem redigiu os documentos, agora juntos pela Ré”, como veio alegar na resposta ao pedido de condenação em litigante de má-fé, referindo-se necessariamente à carta e àquela declaração, então por isso mesmo, cabia-lhe, pelo menos, alegar a existência desses documentos, e concretizar minimamente o seu conteúdo.
Esses factos são relevantes, diremos mesmo essenciais para a apreciação e boa decisão da causa, sendo-lhe exigível que os alegasse.
A matéria provada é exígua para permitir concluir que o A. omitiu esses factos dolosamente, mas seguramente que já não o é para se concluir que actuou pelo menos com negligência grave. Na verdade, era-lhe exigível, como a qualquer pessoa de média diligência, que tivesse pelo menos sérias dúvidas quando ao dever de os alegar, trazendo a juízo uma versão devidamente contextualizada, ou dito de outra forma, com a necessária correspondência com a realidade, ao invés de se limitar a apresentar uma versão sugerindo que a Ré, sem mais, o confrontou com documentos, exigiu-lhe que os assinasse e “comunicou-lhe que a partir daquela data, deixaria de ser (seu) trabalhador (..).
Como se elucida no Ac. do STJ de 16-12-2001, “Há negligência grave, fundamentadora de um juízo de litigância de má-fé, quando o litigante procede com imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um” [Proc.º JSTJ00000672, AFONSO DE MELO, disponível em www.dgsi.pt].
A condenação em litigância de má-fé assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento adoptado pela parte na lide.
Pelas razões expostas, conclui-se que a conduta do A é inteiramente merecedora dessa censura: omitiu factos relevantes para a boa apreciação e decisão da causa, actuando pelo menos com negligência grave.
A Ré pediu a condenação do autor em indemnização a seu favor de montante não inferior a 1.000,00 euros (1/4 do pedido). Sustenta esse pedido na consideração de que o Autor, para além de alterar os factos, ter deduzido uma pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, actuando a título doloso. Invoca a alínea a), do n.º 1 do artº 543.º do CPC.
Posição que reitera no recurso, como ressalta das conclusões, designadamente da sob o n.º32.
Acontece não se entender que haja prova para se concluir pela actuação dolosa, apenas se tendo concluído pela negligência grosseira. Por outro lado, também não se entende que o autor alterou a verdade dos factos, antes tendo omitido factos relevantes, que é conduta diversa e com menor reflexo, pelo menos no caso em apreço, nas dificuldades que criou à defesa da parte contrária. Em bom rigor, sem pôr em causa o juízo de censura que a conduta do autor merece, o certo é que a Ré não viu significativamente dificultada a sua posição em termos de defesa, no essencial, bastando-lhe alegar os factos e juntar os documentos subscritos pelo autor.
Acresce, ainda, que também não pode concluir-se que o autor deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, nomeadamente ao pugnar pela ilicitude do despedimento. Em termos gerais não pode excluir-se que seria possível configurar essa hipótese, apesar do autor ter subscrito aquela carta, embora dependendo da alegação de outros factos, o que na verdade não fez, mas não sendo também de excluir a eventual inépcia da sua parte.
Não basta que o autor tenha visto improceder o pedido de condenação da Ré, era também necessário que o autor tivesse consciência da desrazão da sua pretensão ou, pelo menos, que tivesse actuado com negligência grave ao não conceber essa possibilidade, não podendo esquecer-se que nesta última situação não se enquadram os casos em que está perante o uma construção jurídica julgada manifestamente errada, conduta processual fica aquém da lide temerária [Cfr. Ac. STJ de 11 de Dezembro de 2003, Proc.º 03B3893, Quirino Soares; e, 17 de Maio de 2011, Proc.º 3813/07.9TVLSB.L1.S1, Gregório Silva Jesus, igualmente disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.
Por último, cabe assinalar que a Ré invocou a alínea a) do n.º1 do art.º 543.º, do CPC, onde se estabelece que a [1]a indemnização pode consistir [al.a)]“No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos”.
Ora, no caso não se nos afigura que a Ré, em virtude o autor ter omitido aqueles factos, tenha visto dificultada a sua posição na acção, implicando tal um acréscimo de despesas que de outro modo não teriam que ser suportadas na acção, ou um maior custo dos honorários com o ilustre mandatário constituído. De resto, faz-se notar, nem a Ré o alegou na contestação nem posteriormente, limitando-se a pedir a fixação de uma indemnização no valor de € 1000,00, para aquele efeito, sem justificar esse valor com qualquer suporte fáctico.
Neste quadro, visando a indemnização a reparação de um dano que aqui não se verifica, afigura-se-nos não se justificar a condenação do autor no pagamento de indemnização a favor da Ré.
No que concerne à multa, a mesma deve ser fixada entre 2 UC e 100 UC (art.º 27.º n.º3, do Regulamento de Custas Processuais).
No caso, ponderando-se estar-se perante actuação a título negligente, a pouca repercussão da conduta do autor na normal tramitação da marcha do processo e a condição económica do autor - auferindo retribuição mensal pouco acima do salário mínimo nacional – considera-se adequado fixar a multa em 3 UC.
Concluindo, quanto a este ponto procede parcialmente o recurso, cumprindo alterar a sentença recorrida.
IV. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso parcialmente procedente, alterando-se a sentença na parte em que absolveu o autor do pedido de condenação como litigante de má-fé, para em substituição o passar a condenar a esse título, fixando-se a multa em 3 UC.
No mais improcede o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas da acção e do recurso a cargo de Autor e Ré, na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 527.º n.º2, CPC).

Porto, 30 de Maio de 2018
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira