Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
599/20.5T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: REGIME DE BENS DO CASAMENTO
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
CONSTRUÇÃO DE CASA EM TERRENO PRÓPRIO DE UM DOS CÔNJUGES
CONSTRUÇÃO COM DINHEIRO COMUM DO CASAL
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP20230508599/20.5T8PVZ.P1
Data do Acordão: 05/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Tribunal da Relação goza no âmbito da reapreciação da matéria de facto dos mesmos poderes e está sujeito às mesmas regras de direito probatório que se aplicam ao juiz em 1ª instância, competindo-lhe proceder à análise autónoma, conjunta e crítica dos meios probatórios convocados pelo recorrente ou outros que os autos disponibilizem, introduzindo, nesse contexto, as alterações que se lhe mostrem devidas.
II - A parte que impugne a decisão da matéria de facto não pode limitar-se a transcrever os depoimentos e concluir, sem mais, que com base neles se devem alterar determinados pontos factuais, a par disso terá de fazer a sua análise crítica.
III - Nas situações em que os cônjuges eram casados no regime da comunhão de adquiridos e procederam à construção de uma habitação, que anteriormente não existia, num terreno próprio de um deles, importa apurar qual o regime jurídico aplicável à obra incorporada no solo.
IV - Com a implantação do prédio urbano surge um direito de propriedade novo, perdendo o anterior prédio toda a sua autonomia, para dar lugar, conjuntamente com a edificação, a uma nova unidade jurídica indivisível.
V - Por aplicação da regra de direito matrimonial vertida no artigo 1726º do Código Civil, com vista a definir a natureza dessa nova unidade jurídica, há que apurar, em cada caso concreto, qual a participação de maior valor nas entradas efetuadas para a aquisição ou construção do bem.
VI - Assim, consoante a contribuição mais alta seja a do património próprio (terreno) ou do património comum (dinheiro ou bens comuns utilizados na construção da casa), o bem deverá ser qualificado como próprio ou comum, havendo, concomitantemente, a devida compensação ao património empobrecido de acordo com o regime estabelecido no artigo 1689.º do CCivil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 599/20.5T8PVZ.P1 - Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto -Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - J2

Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Drª. Fátima Andrade


Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, residente na Rua ..., ... intentou acção declarativa de processo comum contra BB, divorciada, residente na Rua ..., Santo Tirso, pedindo que:
a)- se declare que ele e a Ré são comproprietários, na proporção de metade para cada um, do prédio identificado nos artigos 2º e 14º a 19º da petição, condenando-se a Ré a reconhecer essa compropriedade;
b)- assim não se entendendo, se declare que esse prédio integrava o património comum de ambos, porque adquirido na constância do casamento;
c)- se ordenar-se o cancelamento dos registos que contendam com o direito pedido da alínea anterior;
d)- se declarar-se que é dono e legítimo possuidor dos móveis identificados nos artigos 28 a 38 e 65 desta petição, condenando-se a Ré a restituir-lhos em excelente estado de conservação.
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Alega para o efeito que, no estado de solteiros ele e a Ré, entre os anos de 2001 e o fim do ano de 2004, edificaram uma casa, destinada a habitação, num terreno destinado a construção urbana, sito no Lugar ..., freguesia e concelho de Santo Tirso, tendo tal parcela de terreno sido adquirida sob a forma de contrato de doação, outorgado por escritura no dia 21 de Agosto de 2001, onde figuram, como doadores, CC e DD, pais da Ré que aí figura como donatária, sendo que na sua construção despenderam em conjunto a quantia global de 110.000,00€.
Para além disso os móveis da referida casa foram fabricados com materiais e alguns serviços de terceiros adquiridos por si antes de casar com a Ré.
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Devidamente citada, pede a Ré a improcedência da acção, alegando em suma que ambas as partes sempre aceitaram que o terreno era bem dela e que a casa era uma benfeitoria que tinha de ser objeto de partilha.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos com a realização da audiência de julgamento foi, a final, proferida decisão que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo a Ré dos pedidos contra ela formulados pelo Autor.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso, rematando a alegação recursiva com as extensas conclusões que aqui nos abstemos de reproduzir, pedindo a revogação da decisão com a consequente procedência da acção.
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Devidamente notificada contra-alegou o Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- saber se seja em resultado de uma alteração factual que se imponha, seja porque os factos considerados provados não sustentam a solução jurídica adoptada na primeira instância, deve a decisão recorrida ser revogada nos termos propugnados pela apelante.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1) AA (ora Autor) casou com BB (ora Ré) no dia 15-05-2004, sem convenção antenupcial.
2) Em 10-12-2018, a ora Ré instaurou processo de divórcio contra o ora Autor, processo que correu termos sob o n.º 3975/18.0T8STS.
3) No âmbito do processo n.º 3975/18.0T8STS, por sentença proferida em 11-02-2019, já transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre ora Autor e a ora Ré.
4) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...30, da freguesia ..., um imóvel composto por parcela de terreno para construção, com a área total e descoberta de 602 m2, sito em ..., a confrontar do norte com caminho público, do sul com EE, do nascente com CC e do poente com FF, desanexado do 0030…/301286, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...62.
5) Pela apresentação n.º 27, de 30-08-2001, foi definitivamente inscrita a aquisição, por doação, a favor de BB (ora Ré), solteira, maior, do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...30.
6) Pela apresentação n.º 36, de 28-06-2002, foi definitivamente inscrita uma hipoteca a favor de Banco 1..., S. A., quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...30, para garantia do empréstimo concedido a BB (ora Ré) e AA (ora Autor), pelo montante máximo de 90.395,00 Euros.
7) Pela apresentação n.º 2, de 09-12-2002, foi definitivamente inscrita uma hipoteca a favor de Banco 1..., S. A., quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...30, para garantia do empréstimo concedido a BB (ora Ré) e AA (ora Autor), pelo montante máximo de 18.079,00 Euros.
8) O imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...62 encontra-se atualmente inscrito sob o artigo ...03.
9) No dia 20-08-2001, foi outorgada escritura pública intitulada “DOAÇÃO”–com o teor que consta do documento 5 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido–, pela qual, por CC e DD foi dito, entre o mais o seguinte: «Que, pela presente escritura e por conta das suas quotas disponíveis, doam à Segunda Outorgante [BB], sua filha, o prédio urbano composto por uma parcela de terreno, com a área de seiscentos e dois metros quadrados, a confrontar do norte com caminho público, sul com EE, nascente com CC e poente com FF, sito no Lugar ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...62, com o valor tributável e atribuído de dois milhões oitocentos e setenta e nove mil novecentos e sessenta e oito escudos»;…
10) …Tendo BB [Segunda Outorgante] declarado «que aceita esta doação, nos termos exarados».
11) O imóvel supra referido situa-se na Rua ..., ..., Santo Tirso.
12) Entre 2001 e data ulterior a 15-05-2004, AA (ora Autor) e BB (ora Ré) edificaram no imóvel supra referido uma casa destinada a sua habitação.
13) O projeto de arquitetura dessa casa foi da responsabilidade de GG, irmão do ora Autor.
14) O projeto e as responsabilidades inerentes da obra tinham o valor de €6.000,00.
15) O valor acabado de referir não foi cobrado por GG, irmão do ora Autor.
16) Após a conclusão da obra, a casa de habitação ficou com uma área de 248,42 m2 e anexos com uma área de 14,79 m2.
17) A casa edificada é constituída por rés-do-chão com 1 suite (com quarto de banho), 3 quartos, 1 sala de estar e 1 sala de jantar, cozinha, copa, lavandaria e garagem, e um desvão, a nível superior, com 18,40 m2, destinado a escritório.
18) A área descoberta é constituída por um deck em madeira, entradas pavimentadas e escadas em granito e jardim.
19) Os portões de entrada são em ferro.
20) Os portões de entrada foram colocados por volta do ano de 2008.
21) Esses portões foram fabricados e colocados por A..., Lda., pelo preço de €6.000,00.
22) A execução das artes – com exceção da arte de carpinteiro – que integram as obras realizadas foram pagas com dinheiro do Autor e da Ré, tendo estes despendido a quantia global de €110.000,00€;…
23) …Sendo €35.000,00 provenientes de uma conta bancária conjunta que ambos possuíam; €62.500,00 obtidos através de um empréstimo bancário concedido a ambos pela Banco 1..., S. A.; e €12.500,00 obtidos através de um outro empréstimo bancário concedido a ambos pela Banco 1..., S. A..
24) A arte de carpintaria executada na casa de habitação compreende todas as estruturas em madeira, nas portas, janelas, soalhos, móveis embutidos, rodapés e lambrins, e respetivos materiais acessórios, que foram aplicados nos quartos, casas de banho, no hall, nas salas de estar e de jantar, no escritório e zonas exteriores.
25) Esta obra de carpintaria foi executada com trabalho do Autor, ajudado por seu pai e pelos irmãos HH e II.
26) A sociedade B..., Lda. fabricou móveis que foram utilizados para mobilar a casa edificada pelo Autor e pela Ré.
27) AA (ora Autor) e BB (ora Ré) edificaram a casa supra referida e lá habitaram desde o seu casamento até ao seu divórcio;…
28) ...Sem qualquer oposição;…
29) …Perante toda a gente;…
30) …Sem qualquer hiato temporal;…
31) … E com exclusão de outrem.
32) O terreno supra referido tem o valor de €70.000,00;...
33) …E a casa edificada pelo Autor e pela Ré nesse terreno tem o valor de €220.000,00.
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Factos não provados
Não se provou que:
I) As declarações prestadas por CC e DD, por um lado, e por BB, por outro lado, na escritura pública supra referida em 9) e 10) não corresponderam ao que foi acordado.
II) Tendo em vista a celebração da escritura pública supra referida em 9) e 10), o terreno identificado nessa escritura foi avaliado em €18.000,00.
III) O negócio verbalizado na escritura pública supra referida em 9) e 10), foi feito com a obrigação de AA (ora Autor) e BB (ora Ré) entregarem metade do valor do terreno a JJ, irmã da ora Autora.
IV) AA (ora Autor) e BB (ora Ré) entregaram a JJ, irmã da ora Autora, a quantia de €5.000,00, mais a metade do valor de um automóvel Opel Corsa, no valor de €4.000,00.
V) Com a outorga da escritura pública supra referida em 9) e 10), tanto AA (ora Autor), como BB (ora Ré) ficaram convencidos de que o terreno identificado nessa escritura passava a ser de ambos, assim como a casa que aí iam edificar, independentemente dos contributos de cada um.
VI) A edificação da casa de habitação supra referida em 12) ficou concluída no fim do ano de 2003.
VII) A obra de carpintaria supra referida em 24) tinha o valor global de €32.671,55;…
VIII) …Foi realizada com materiais adquiridos pelo Autor;…
IX) …E foi integrada na casa de habitação em data anterior a 15-05-2004.
X) A casa edificada pelo Autor e pela Ré foi mobilada com os móveis identificados no documento 7 apresentado com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;…
XI) …Que tinham o valor total de €15.645,00.
XII) Esses móveis foram fabricados com materiais e alguns serviços de terceiros adquiridos pelo Autor;...
XIII) …E com mão-de-obra do Autor ajudado por seu pai e irmãos, HH e II;…
XIV) ...Antes de 15-05-2004.
XV) Autor e Ré, desde 2001, pagaram os impostos relativos ao terreno e às construções que nele realizaram.
XVI) Autor e Ré realizaram as construções no terreno e habitaram na casa daí resultante, convictos e com vontade de serem comproprietários do terreno e das construções aí realizadas.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões o Autor recorrente impugna a matéria de facto, alagando que deviam ter sido dados como provados factos que constam do elenco dos factos dados como não provados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao Autor apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
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Pretende o Autor que se dêem como provados os pontos VI a XVI da resenha dos factos não provados.
O tribunal recorrido na motivação da decisão da matéria de factos discorreu do seguinte modo:
“O Tribunal formou a sua convicção através de um juízo crítico que fez de toda a prova produzida nos autos (prova documental, prova pericial, prova por declarações de parte e prova testemunhal), e tendo presentes os critérios sobre o direito probatório previstos no nosso ordenamento jurídico, nomeadamente, no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do Código de Processo Civil, no qual se consagram as regras que devem nortear o juiz do julgamento na apreciação da prova; e nos preceitos que o Código Civil dedica à prova (arts. 341.º e segs.). Muito embora se reconheça que dar por reproduzido o teor de documentos não é uma técnica processual exemplar em termos de seleção da matéria de facto, optou-se por proceder desse modo atendendo a razões de economia processual.
No decurso da audiência final foram prestadas declarações de parte pelo Autor AA. Quanto à valoração das declarações de parte, estabelece o n.º 3, do art. 466.º do Código de Processo Civil que «o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão». Ora, relativamente à factualidade controvertida, por um lado, nas declarações de parte o Autor não confessou factos relevantes para a decisão da causa; e, por outro lado, as declarações de parte por aquele prestadas revelarem uma compreensível parcialidade (as declarações de parte do Autor foram sempre no sentido do por si alegado na petição inicial, sem corroboração de outros meios de prova), o que comprometeu a sua credibilidade. Sobre as declarações de parte, foi já decidido pelo Tribunal da Relação do Porto que «as declarações de parte (art. 466.º do CPC) ou o depoimento de um interessado na procedência da causa não podem valer como prova de factos favoráveis a essa procedência se não tiverem o mínimo de corroboração por um qualquer outro elemento de prova» (acórdão proferido em 20/11/2014, no processo n.º 1878/11.8TBPFR.P2, disponível em www.dgsi.pt) e que «as declarações de parte [artigo 466.º do novo CPC]–que divergem do depoimento de parte–devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos» (acórdão proferido em 15/09/2014, no processo n.º 216/11.4TUBRG.P1, disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, inter alia, cfr. o acórdão proferido em 23/03/2015, no processo n.º 1002/10.4TVPRT.P1, também disponível em www.dgsi.pt).
A testemunha HH–carpinteiro, irmão do Autor e que disse ser sócio-gerente da sociedade B..., Lda., da qual também é sócio o Autor – entrou em contradição ao longo do seu depoimento (pois, quanto aos móveis elencados no documento 7 apresentado com a petição inicial, começou por referir que os materiais foram adquiridos pelo Autor e, depois, disse que tinha sido a sociedade B..., Lda. a adquirir todos esses materiais), e prestou declarações imprecisas (disse que os móveis do documento 7 da petição inicial foram colocados na casa do Autor e da Ré, mas não demonstrou conhecimento circunstanciado sobre tais móveis, não os descreveu e acrescentou que todos os anos a sociedade B..., Lda. fornecia móveis para a casa do Autor e da Ré, não decorrendo das suas declarações que os móveis do documento 7 da petição inicial ainda se encontram na casa – sublinhe-se que o Autor peticionou que esses móveis lhe sejam entregues pela Ré) e inverosímeis, atendendo a que é irmão do Autor, que se trata do gerente da sociedade B..., Lda. e que essa sociedade é uma empresa familiar (confrontado com os documentos 6, 7 e 8 da petição inicial e com o documento 2 da contestação, sendo que o documento 8 da petição inicial é uma fatura e o documento 2 da contestação é um orçamento, ambos em papel timbrado da sociedade B..., Lda., afirmou que não sabia quem elaborou esses documentos; não apresentou qualquer explicação para a elaboração do orçamento que constitui o documento 2 da contestação, orçamento cuja data precede em poucos dias a data em que a ora Ré deu entrada da petição do processo de divórcio contra o ora Autor), pelo que o seu depoimento não foi considerado credível.
Também o depoimento da testemunha CC não foi considerado credível. A testemunha CC–pai da Ré BB e que nunca mais falou com o Autor desde que ocorreu a separação do Autor e da Ré–prestou um depoimento evasivo e não circunstanciado (por exemplo, afirmou que ele e a sua falecida mulher doaram o terreno à sua filha BB, mas não sabia a data, nem o ano em que tal ocorreu; disse que foi doado o terreno à BB e à outra filha, JJ, foi doado um carro, que tinha sido comprado novo, há pouco tempo, mas referiu que não tinha ideia do valor do terreno e que não sabia o valor do carro; disse que não sabia se a BB tinha dado €5.000,00 à JJ para a compensar), pelo que esse depoimento não foi considerado credível.
Os factos das alíneas 1 a 3 foram considerados provados com base nas certidões juntas ao processo com o requerimento com a refª 36794949 e com o requerimento com a refª 43783325, a saber: a certidão do assento de casamento do Autor com a Ré e a certidão extraída do processo de divórcio n.º 3975/18.0T8STS.
A factualidade das alíneas 4 a 10 foi considerada provada com base na respetiva certidão do registo predial (certidão permanente com a chave de acesso que consta do documento junto ao processo com a refª citius 27008955), na respetiva caderneta predial (documento 4 apresentado com a petição inicial) e na certidão da escritura intitulada «DOAÇÃO», outorgada em 20-08-2001 (documento 5 apresentado com a petição inicial).
Quanto às alíneas 11-14, 19-21, 22-23 e 24-25, os factos dessas alíneas não foram impugnados, pelo que foram considerados provados (art. 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil); refira-se que o documento 2 apresentado com a petição inicial também corrobora que o autor do projeto de arquitetura da casa edificada por Autor e Ré foi GG, irmão do Autor; e que, no seu depoimento, a testemunha KK, serralheiro, sócio da sociedade A..., Lda., confirmou que os portões foram feitos por esta sociedade.
A matéria fáctica da alínea 15 foi considerada provada atendendo ao depoimento da testemunha GG, arquiteto, irmão do ora Autor, o qual, nesta parte, foi considerado credível, porque a testemunha se pronunciou de forma espontânea e verosímil sobre tal matéria fáctica, que lhe diz diretamente respeito, pois foi o arquiteto responsável pelo projeto da casa. A Ré, em impugnação motivada, alegou que o valor de €6.000,00 que seria devido a GG foi pago a este; todavia, não foi produzida qualquer prova neste sentido, maxime, não foi apresentado qualquer documento comprovativo desse alegado pagamento.
A convicção do Tribunal para considerar provada a factualidade das alíneas 16-18 e das alíneas 32-33–relativa ao que Autor e Ré realizaram no terreno e à respetiva avaliação–baseou-se na prova pericial realizada, no âmbito da qual, de forma fundamentada, o Senhor Perito analisou a realidade física existente e procedeu ao cálculo do valor do terreno, tendo apurado o valor de €70.000,00, e ao cálculo do que foi edificado no terreno por Autor e Ré, tendo apurado o valor de €220.000,00. O relatório pericial (refª citius 31287539), bem como o conexo levantamento topográfico (refª citius 30195216), não foram postos em causa seja pelo Autor, seja pela Ré.
Em relação à alínea 26 dos factos provados e às alíneas X-XIV dos factos não provados, o Tribunal baseou-se no depoimento da testemunha II–carpinteiro, irmão do Autor e que disse ser sócio-gerente da sociedade B..., Lda., da qual também é sócio o Autor–, tendo também em consideração os documentos 7 e 8 apresentados com a petição inicial e o documento 2 apresentado com a contestação. Resultou do depoimento da identificada testemunha que os móveis utilizados para mobilar a casa edificada pelo Autor e pela Ré foram fabricados pela sociedade B..., Lda., o que está de acordo com as regras da experiência comum, pois o Autor era sócio dessa sociedade que explora uma carpintaria. No entanto, o depoimento da testemunha não convenceu o Tribunal de quais os concretos móveis fornecidos para a casa do Autor e da Ré, designadamente de que foram os móveis elencados no documento 7 da petição, porquanto o depoimento da testemunha foi genérico e não circunstanciado, limitando-se a dizer, por exemplo, que quanto ao quarto principal fizemos tudo e que fomos nós que fornecemos todo o mobiliário. Também os documentos 7 e 8 da petição e o documento 2 da contestação, ainda que conjugados com o depoimento da testemunha, são manifestamente insuficientes para demonstrar a ocorrência da factualidade das alíneas X-XIV, sublinhe-se que os móveis elencados no documento 7 da petição integram um orçamento elaborado pela sociedade B..., Lda. em final de novembro de 2018, o que não é compatível com a demonstração do fornecimento desses móveis quando o Autor ainda era solteiro, i. e., em data anterior a 15-05-2004.
No que concerne às alíneas 27-31 dos factos provados e à alínea XVI dos factos não provados, o Tribunal baseou-se nos depoimentos das testemunhas GG, II, LL Costa-que disse estar casado com uma irmã (JJ) da Ré–e MM Azevedo–construtor civil, que disse ter feito a obra de pedreiro e trolha da casa edificada pelo Autor e pela Ré. Dos depoimentos destas testemunhas resultou demonstrada a ocorrência dos factos verbalizados nas alíneas 27-31. Porém, desses depoimentos não resultou que os poderes de facto praticados por Autor e Ré foram praticados com animus de serem comproprietários do terreno e do que foi construído no mesmo. Neste âmbito, é sintomático o declarado pela testemunha GG que referiu que tinha ideia de que aquilo era deles, do Autor e da Ré, tendo acrescentado que, no entanto, saber se eles eram proprietários era discutível. Também a testemunha II afirmou que, no seu entender, o terreno era do Autor e da Ré pelo que se conversa. As outras duas testemunhas não se pronunciaram quanto ao animus do Autor e da Ré.
A factualidade não provada foi assim considerada por não ter sido feita prova bastante da sua ocorrência, sendo que o ónus da prova quanto a essa factualidade incidia sobre o Autor. Relembre-se que «as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos» (art. 341.º do Código Civil); ora, no caso em análise, a prova produzida foi manifestamente insuficiente para demonstrar a ocorrência da factualidade considerada não provada. Para além do acima referido, acrescenta-se, ainda o seguinte.
Relativamente às alíneas I-V dos factos não provados, é de relembrar o seguinte despacho, que transitou em julgado, proferido na primeira sessão da audiência final de julgamento: «atendendo, nomeadamente, a que nenhum elemento documental consta nos autos suscetível de consubstanciar princípio de prova documental de simulação, nos termos do estabelecido no art. 394.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil e estando a doação invocada no articulado inicial formalizada por documento autêntico, não se admite que seja produzida prova testemunhal tendo em vista pôr em causa a referida doação». Excluída a prova testemunhal, a única prova produzida quanto à matéria ora em análise, foram as declarações de parte prestadas pelo Autor, mas tais declarações de parte não foram consideradas credíveis (cfr. supra).
A factualidade verbalizada na alínea VI foi considerada não provada, porque o depoimento da testemunha GG, que foi o único que se pronunciou no sentido da ocorrência dessa factualidade não logrou convencer o Tribunal. Em relação a esta matéria, que tem a ver com a construção da casa, o depoimento não foi credível, porque a testemunha, embora assumindo a autoria do projeto de arquitetura, revelou um estranho distanciamento quanto à construção da casa (por exemplo, a testemunha declarou: acredito que eles terão contratado alguém para construir a casa). Ora, o distanciamento do arquiteto em relação à obra por si projetada contraria as regras da experiência e não é verosímil num meio relativamente pequeno, como é Santo Tirso, e sendo o Autor seu irmão (aliás, a testemunha GG vinculou-se como fiador no empréstimo contraído pelo Autor e pela Ré, tendo em vista a construção da casa – cfr. documento 1 apresentado com a contestação).
Em relação ao valor da obra de carpintaria, a única prova produzida foi o orçamento datado de 20-11-2018–ou seja, mais de 10 anos após a realização dessa obra – (documento 2 da contestação; sendo que o documento 6 da petição reproduz parte do orçamento), documento esse que, por si só, é insuficiente para demonstrar qual o valor de tal obra.
No que concerne à alínea VIII, não foi produzida qualquer prova no sentido da ocorrência dessa factualidade.
Quanto à data da integração da obra de carpintaria na casa, por um lado, a prova documental (documento 6 da petição e documento 2 da contestação – orçamento elaborado pela sociedade B..., Lda. em final de novembro de 2018) não é compatível com a demonstração da integração da obra de carpintaria quando o Autor ainda era solteiro, i. e., em data anterior a 15-05-2004. Por outro lado, quanto à prova testemunhal, os depoimentos das testemunhas GG e II não lograram convencer o Tribunal. Em relação à testemunha GG, veja-se o já exposto a propósito da alínea VI. Em relação à testemunha II, este limitou-se a dizer que quando Autor e Ré casaram já estava tudo lá, o que foi manifestamente insuficiente para demonstrar a ocorrência da factualidade ora em análise.
Quanto à alínea XV, não foi produzida qualquer prova da ocorrência da matéria fáctica aí verbalizada”.
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A fundamentação supra transcrita cumpre, de forma exemplar, a factie species do artigo 607.º, nº 4 do CPCivil, ou seja, faz uma análise verdadeiramente crítica da prova que foi produzida.
Para infirmar a referida fundamentação naquilo que é o objecto da impugnação da matéria de facto, o recorrente convoca as suas declarações de parte e o depoimento das testemunhas das testemunhas HH, GG, II, NN e KK.
Acontece que, sob este conspecto, o apelante, depois de fazer extensas transcrições dos aludidos depoimentos, limita-se a concluir o seguinte:
“De entre outros factos de especial relevância, resulta dos depoimentos das testemunhas II, HH e GG os seguintes:
a) Que a edificação da casa de habitação ficou concluída no fim do ano de 2003, tanto mais que o casal, após o casamento foi habitar a mesma.
b) Que o casal sempre teve o animus possidendi, do terreno e construções aí realizadas, como seus proprietários, pois um investimento do casal , na construção da habitação de ambos, no terreno em causa ( sendo certo que o casamento , em teoria e na altura, seria para a vida), foi feito , pelo que resulta da experiência comum e do depoimento do autor, com o convencimento que aquele terreno era do casal e assim o sentiram sempre.
c) Que a obra de carpintaria tinha o valor de 32.671,55€, foi adquirida com materiais adquiridos pelo autor e integrada na casa de habitação em data anterior a 15.5.2004, tanto mais que, após o casamento ambos foram viver para a referida habitação. E estava habitável!
d) Que as testemunhas, irmãos do autor e ele próprio, identificaram-porque foram eles que realizaram os trabalhos em causa e, ainda, igualmente, porque lhe foram exibidos os documentos respectivos e confirmaram a veracidade o seu conteúdo-os móveis e todas as obras de carpintaria realizadas, suas características e valores respectivos.
e) Que as obras e móveis foram fabricados com alguns materiais e serviços de terceiros adquiridos pelo autor e com mão de obra deste, ajudado pelo pai e irmãos” (cfr. conclusão 53ª).
Ou seja, refere os factos que, em seu entender e sustentados nesses depoimentos, deviam ser dados como provados.
Todavia, a simples transcrição de excertos de depoimentos não cumpre o ónus de impugnação da matéria de facto.
A lei impõe aos recorrentes que indiquem o porquê da discordância, isto é, em que é que os referidos meios probatórios contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta dos citados meios probatórios.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Na verdade, transcrever os depoimentos não é fazer a sua análise crítica, esta pressupõe que se construa um raciocínio lógico e fundamentado que leve a extrair uma conclusão baseada naqueles, ou seja, o que se exige é que se analisem esses meios de prova, cotejando-os mesmo com a prova em sentido contrário, relativizando o sentido dessa prova e dizendo porquê, mas também relativizando as provas que convoca para sustentar o seu ponto de vista e de tudo isso extraindo o sentido que lhe merecer acolhimento.
O que se pretende que a parte faça?
Certamente que apresente um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, dizendo onde se encontram no processo e, tratando-se de depoimentos, identifique a passagem ou passagens pertinentes, e, em segundo lugar, produza uma análise crítica dessas provas, pelo menos elementar.
A razão pela qual se afirma que a parte deve produzir uma análise crítica mínima é esta: indicar apenas os meios probatórios, isto é, o depoimento da testemunha A ou B, ou o documento C ou D, é reproduzir apenas o que consta do processo, pelo que nada se acrescenta ao que já existe nos autos, nem se mostra a razão por que a resposta a uma dada matéria de facto deve ser diversa da que foi dada pelo juiz.
Para desencadear a reapreciação pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
Não basta, pois, identificar meios de prova.
A parte terá de elaborar e expor uma análise crítica da prova e concluir no sentido que pretende o que, manifestamente, o recorrente não fez.
Simplificando, a tese do recorrente é a de que os depoimentos das testemunhas supra referidas são merecedoras de inteiro crédito.
No fundo, o que faz o recorrente é contrapor a sua própria avaliação da prova produzida, à avaliação que dela fez o tribunal, pretendendo que seja a sua a prevalecer.
Ora, quando o tribunal de recurso empreende o reclamado “exercício crítico substitutivo” da decisão da primeira instância (que pode implicar a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes), tem de ter presente que, se não se exige um erro notório, ostensivo na apreciação da prova para que a Relação deva proceder à alteração, também não basta que as provas, simplesmente, permitam, ou até sugiram, conclusão diversa daquela que foi a conclusão probatória a que se chegou na primeira instância é necessário, como acima se referiu, que a imponham.
Na verdade, importa ter presente que, não obstante, o tribunal de recurso possa formar a sua própria convicção, mantêm-se vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância deve abarcar, essencialmente, os casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, o que não é, manifestamente o caso, já que, como noutro passo se referiu, o apelante apenas pretende que sua avaliação da prova prevaleça sobre a que fez o tribunal recorrido, todavia, sem que faça uma análise crítica dessa prova nos moldes acima referidos.
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Alega depois o apelante que existe contradição entre aquilo que consta dos pontos 25) e 26) e os pontos X), XII) e XIII) do elenco dos factos não provados.
Salvo o devido respeito não se divisa onde existe a alegada contradição.
Os pontos 25) e 26) dos factos provados têm, respectivamente, a seguinte redacção:
“- Esta obra de carpintaria foi executada com trabalho do Autor, ajudado por seu pai e pelos irmãos HH e II.
- A sociedade B..., Lda. fabricou móveis que foram utilizados para mobilar a casa edificada pelo Autor e pela Ré”.
Por sua vez os pontos X, XII, e XIII dos factos não provados têm o seguinte conteúdo:
“- A casa edificada pelo Autor e pela Ré foi mobilada com os móveis identificados no documento 7 apresentado com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;…
- Esses móveis foram fabricados com materiais e alguns serviços de terceiros adquiridos pelo Autor;...
- E com mão-de-obra do Autor ajudado por seu pai e irmãos, HH e II”.
Ora, uma coisa é dar-se como provado que a obra de carpintaria [por referência ao ponto 24) onde não estão incluídos quaisquer móveis excepto os imbutidos-esses também fazem parte da obra de carpintaria] foi executada com trabalho do Autor, ajudado por seu pai e pelos irmãos HH e II outra, completamente distinta é, a partir dessa realidade, dar-se como provado que a casa edificada pelo Autor e Ré foi mobilada com os móveis fabricados com materiais e alguns serviços de terceiros adquiridos pelo Autor e com mão-de-obra deste, ajudado por seu pai e irmãos, HH e II.
Portanto, uma coisa não implica a outra, ou seja, não existe qualquer contradição entre os citados pontos.
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Como assim, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que o apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre a impugnação da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por ele expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter o Mmº juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objectiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, reflectindo a fundamentação dos factos os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
Conclui-se, por isso, que o tribunal de forma fundamentada, fez uma análise crítica e ponderada todos os meios probatórios, e, reavaliada essa prova, apenas haverá que sufragar tal decisão.
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Improcedem, assim, as conclusões 47ª a 58ª formuladas pelo recorrente.
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Permanecendo inalterado quadro factual que o tribunal recorrido deu como provado a segunda questão que importa analisar prende-se com:
b)- saber se a subsunção jurídica se mostra, ou não, correctamente efectuada.
Como se evidencia dos autos a questão jurídica que importa dilucidar é saber se, a edificação de um imóvel num terreno próprio de um dos cônjuges, com trabalho e financiamentos obtidos pelo casal, antes e durante a pendência do seu casamento, celebrado em comunhão de adquiridos, implicará, na respetiva partilha dos bens, a presença de um único bem imóvel a ter-se como comum e exigindo a compensação do cônjuge a quem o terreno pertencia nos termos do nº 2 do art. 1726º CC, ou, antes, se esse terreno, não obstante a construção nele edificada, mantém, embora beifeitorizado, a categoria de bem próprio, apenas decorrendo, dessas benfeitorias, para o outro cônjuge, um direito de crédito referente à sua contribuição para as mesmas [cfr. pontos 9) a 23) dos factos provados].
A decisão recorrida optou por este último entendimento, argumentando, na esteira de alguma jurisprudência[6] de que o terreno é um bem próprio da Ré nos termos do art. 1722º, nº 1, al. a) do Cód. Civil e, por isso, a casa nele construída não é um bem comum, mas sim uma benfeitoria.
A apelante insurge-se contra este entendimento, alegando que o imóvel em questão assume natureza de bem comum à luz do disposto no nº 1 do artigo 1726.º, do CCivil.
Quid juris?
Como é consabido, uma das principais dificuldades que se coloca na partilha dos bens comuns do casal subsequente ao divórcio é a de apurar qual a natureza de certo bem, a fim de se deliberar quanto ao seu relacionamento.
Efectivamente, malgrado o legislador tenha estabelecido, nos artigos 1721.º a 1731.º, do CCivil, um conjunto de regras destinadas a definir quais os bens que, no regime da comunhão de adquiridos, integram a categoria de bens próprios e quais os bens que se afirmam serem comuns, certo é que, na prática judiciária, têm surgido algumas situações onde essa categorização se torna duvidosa, como sucede no caso em apreço, em que se discute qual, afinal, a natureza de uma edificação construída com dinheiro ou bens comuns de ambos os cônjuges, em terreno que é bem próprio de um deles.
Portanto, a questão que se coloca é a de saber a que esfera jurídica patrimonial pertence a coisa que é resultado da obra feita por ambos os cônjuges em terreno próprio de um deles: se ao património comum dos cônjuges (como defende o ora apelante) ou à esfera patrimonial própria do dono do solo (solução sustentada na decisão recorrida e igualmente secundada pelo ora apelada).
Na resolução deste diferendo importa, pois, apurar qual o regime jurídico aplicável à obra incorporada no solo, a fim de sabermos em que património se integrará o prédio urbano resultante dessa incorporação.
Respigando a jurisprudência que se tem pronunciado sobre essa temática perfilam-se vários entendimentos, ora se sustentando que essa obra constitui uma benfeitoria[7], ora defendendo-se a possibilidade de aplicação do instituto jurídico da acessão, registando-se ainda um posicionamento nos termos do qual o bem deve ser qualificado como próprio ou como comum consoante a contribuição mais alta seja a do património próprio (terreno) ou do património comum (dinheiro comum utilizado na construção da casa).[8]
Analisando.
Segundo a definição legal (cfr. artigo 216.º do CCivil), benfeitorias são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. São necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; são úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; por último, são voluptuárias, as benfeitorias que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
De harmonia com o assim preceituado, dá-se a acessão quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que não lhe pertencia (art. 1325.º do CCivil). A acessão pode ser natural ou industrial–conforme resulta da natureza ou da ação humana–e a última pode subdividir-se em mobiliária e imobiliária, consoante respeite apenas a coisas móveis ou envolva também imóvel; qualquer delas pode ainda ser considerada de boa ou má fé, conforme a posição em que esteja o possuidor, entendendo-se, neste contexto, por boa fé o desconhecimento pelo autor da obra do carácter alheio do terreno (cfr. artigos 1326.º, nºs 1 e 2 e 1340.º, nº 4 do CCivil).
No que se refere à acessão industrial imobiliária–que pode, genericamente, definir-se como a união ou incorporação em prédios (imóveis) de coisas alheias por ação do homem-a lei trata sempre conjuntamente as hipóteses de obras, sementeiras ou plantações, estatuindo, para as diversas hipóteses, um regime particularmente complexo, dado que atende a quatro critérios: a titularidade do terreno; a titularidade dos materiais ou sementes; a boa ou má fé dos intervenientes; o valor relativo das coisas (art. 1339.º do CCivil).
Como assim, a incorporação feita em terreno alheio com materiais próprios, de boa fé, confere o direito à aquisição do conjunto ao titular da coisa mais valiosa, desde que pague ao outro o valor da coisa adquirida (cfr. artigo 1340º, nºs 1 e 3 do Código Civil).
A incorporação, nas mesmas condições, mas feita de má fé, confere ao titular do terreno a faculdade alternativa de adquirir as coisas incorporadas, pelo valor fixado de acordo com as regras do enriquecimento sem causa ou de exigir que o terreno seja restituído ao seu estado primitivo, à custa do incorporador (cfr. artigo 1341.º do C Civil).
Acontece que, a distinção entre benfeitoria e acessão não tem sido pacífica, registando-se entendimentos díspares quanto à delimitação dessas figuras jurídicas.
Com efeito, alguma doutrina[9] sustenta que o distinção entre acessão e benfeitoria assenta na finalidade e no regime jurídico de ambas: no caso de simples benfeitorias, atribuiu a lei, ao autor delas, um direito ao levantamento ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, não, porém, um direito de propriedade sobre a coisa, já que a benfeitoria não se destina, senão, a conservar ou melhorar a coisa; no caso de acessão, diversamente, não se trata apenas de melhorar ou conservar uma coisa de outrem, mas construir uma coisa nova, mediante a alteração daquele em que a obra é feita, atribuindo, assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão, a propriedade da coisa.
Todavia, outra[10] é do parecer que a regra geral é a da acessão, sendo esta aplicável sempre que a coisa incorporada não seja qualificável de benfeitoria, designadamente, quando valha mais do que a outra coisa, quando modifique o destino económico do conjunto, ou quando não conserve nem melhore a coisa, nem sirva para recreio do benfeitorizante, antes correspondendo ao normal exercício do direito acedido; as benfeitorias seriam aplicáveis quando a lei expressamente o dissesse, como sucede, por exemplo, na locação ou no usufruto (cfr. artigos 1046.º e 1450.º do CCivil).
Uma terceira[11] é ainda da opinião que a benfeitoria consiste no melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela; a aquisição por acessão é sempre subordinada à falta de um título que dê, de per si, a origem e a disciplina da situação criada.
Assim, são acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional. As benfeitorias e a acessão constituem fenómenos paralelos, cuja destrinça assenta na existência de uma relação jurídica que vincule a pessoa à coisa beneficiada.
Ora, é justamente, por aplicação deste último critério que parte significativa da jurisprudência tem decidido que a construção, pelos cônjuges, de um prédio urbano em terreno de um só deles, deve ser considerada uma benfeitoria e, como tal deve ser descrita, no inventário consequente à extinção, por divórcio, da comunhão de bens entre eles.
O cônjuge–faz-se notar-não pode considerar-se estranho à coisa nem de boa-fé, e, portanto, o caso é, simplesmente, de benfeitorias realizadas na coisa (e não um fenómeno de acessão[12], que atribui à comunhão conjugal um direito de crédito sobre o cônjuge proprietário.
Porém, este posicionamento tem sido objeto de crítica por se considerar que a benfeitoria, na sua definição legal, não se adequa à situação em análise por estar precisamente em causa uma obra que não se limita a benfeitorizar, alterando, antes, a substância da coisa, que passar a adotar a natureza de bem urbano.
O prédio rústico perde a sua autonomia, por passar a incorporar outro bem, dando lugar a um novo objeto jurídico.
Isso mesmo é posto em evidência por Oliveira Ascenção[13], quando afirma que “não há prédio urbano sem aderência a uma determinada porção de terreno. Esta porção de terreno sobre que o edifício assenta não é um prédio rústico. Após a implantação do prédio urbano, perde autonomia, uma vez que a sua função específica foi absorvida no novo conjunto”, ou seja, com a implantação do prédio urbano surge um direito de propriedade novo, perdendo o prédio rústico toda a sua autonomia, para dar lugar, conjuntamente com a edificação, a uma (nova) unidade jurídica indivisível, como, aliás, decorre do nº 2 do artigo 204.º, do CCivil.
Perante as críticas que, sob um ponto de vista dogmático, têm sido direcionados a essa tese, vem sendo defendida uma outra posição que considera que a problemática, sob análise, deve obter resposta por aplicação da regra plasmada no artigo 1726.º, do CCivil, cujo escopo consiste em dirimir situações conflituosas, em que um dado bem é ambíguo quanto à sua natureza, podendo parte dele ser considerado como comum e outra parte como próprio.
A este propósito, escreve Rita Lobo Xavier[14] “o espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os “ganhos” “alcançados” pelos cônjuges, todos os bens que “advierem” aos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei.
Assim, parece que a construção de uma casa estará abrangida por este conceito amplo de “adquirido”, que prescinde da sua distinção baseada no fundamento jurídico da aquisição.
A casa constitui uma unidade jurídica com o terreno onde está implantada e não faz sentido pretender que o terreno mantém a qualidade de bem próprio e que a casa é bem comum.
Ora, nos termos do art. 1726.º, os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das prestações”.
O objetivo desta disposição, afirma a referida autora, é precisamente “obstar a que um bem possa, em parte, ser qualificado como comum e, em parte, como próprio de um dos cônjuges, na proporção do valor das entradas do património comum e do património próprio desse cônjuge. O legislador evitou este resultado difícil recorrendo à regra simples da prevalência da parte maior para a qualificação do bem». Acrescenta depois que a situação em que os cônjuges constroem uma casa num terreno que é propriedade exclusiva de um deles, utilizando valores comuns na construção, «não parece ser substancialmente diferente daquela em que os cônjuges pagam o preço de uma casa por meio da entrega de valores comuns e de um terreno incluído num dos patrimónios próprios (situação que seria evidentemente subsumível na hipótese da referida norma). Esta solução será também a que melhor corresponde às expectativas dos cônjuges. Com efeito, os cônjuges têm o dever de conjugar esforços de ordem patrimonial para acorrer às necessidades da família e existem expectativas fundadas, sobretudo quando o regime é comunitário, de que irão participar de forma igual nos resultados dessa colaboração. É aliás tais expectativas que o regime da comunhão de adquiridos protege e, por isso, um regime deste tipo corresponderá melhor à natural e espontânea interpenetração de patrimónios que ocorre durante a vida conjugal”.
Reconhecendo-se embora que se trata de um modo peculiar de objetivamente salvaguardar e proteger a “coisa nova”-criada enquanto unidade predial de natureza urbana resultante da incorporação da obra no solo-e de constituição e aquisição do direito de propriedade sobre o conjunto por via da atribuição ope legis à mesma da natureza comum ou própria conforme a mais valiosa das prestações efetuadas (seja em dinheiro, seja em bens), parece-nos, ainda assim, a que melhor respeita a vontade recíproca dos cônjuges, concretiza o princípio acessorium sequitur principale, não prejudicando, outrossim, os interesses do cônjuge cedente nem as eventuais pretensões de terceiros com direitos sobre o património deste.
Na verdade, o bem assim adquirido e colocado sob o domínio do casal, na medida em que obtido segundo a vontade e em resultado da ação e obra conjugada de ambos os seus membros ainda que à custa (para além do dinheiro de ambos) da voluntária entrada e consequente disposição pelo proprietário do seu direito absoluto sobre o terreno em favor do património comum, em nada difere, de facto, do que sucederia se tal aquisição fosse feita a um qualquer terceiro ao qual fosse pago o preço com dinheiro e bens.
Consequentemente, o bem irá adotar a natureza da mais valiosa das prestações que contribuíram para a aquisição desse bem, sendo certo que a lei (nº 2 do invocado normativo) salvaguarda o património que ficar desfalcado, atribuindo-lhe um direito de crédito.[15]
Passando ao caso concreto, o que se verifica é que após a conclusão da obra, a casa de habitação implantado no terreno em questão ficou com uma área de 248,42 m2 e anexos com uma área de 14,79 m2, sendo constituída por rés-do-chão com 1 suite (com quarto de banho), 3 quartos, 1 sala de estar e 1 sala de jantar, cozinha, copa, lavandaria e garagem, e um desvão, a nível superior, com 18,40 m2, destinado a escritório, 18) sendo a área descoberta constituída por um deck em madeira, entradas pavimentadas e escadas em granito e jardim, tem o valor de €220.000,00 (duzentos e vinte mil euros) e o terreno tem o valor de €70.000,00 setenta mil euros) [cfr. pontos 16), 17), 18), 329 e 33) da resenha dos factos provados].
Resulta também dos factos provados que a execução das artes–com exceção da arte de carpinteiro–que integram as obras realizadas foram pagas com dinheiro do Autor e da Ré, tendo estes despendido a quantia global de €110.000,00€, sendo €35.000,00 provenientes de uma conta bancária conjunta que ambos possuíam; €62.500,00 obtidos através de um empréstimo bancário concedido a ambos pela Banco 1..., S. A.; e €12.500,00 obtidos através de um outro empréstimo bancário concedido a ambos pela Banco 1..., S. A. [cfr. pontos 22) e 23) dos factos provados].
Diante do exposto temos, assim, que considerar que mencionada casa foi adquirida e construída em parte com dinheiro ou bens próprios da Ré mulher e em parte com dinheiro ou bens comuns.
Ora, face aos elementos factuais que constam do processo, o que se verifica é que a prestação dos bens comuns é significativamente superior à prestação dos bens próprios na contribuição para a aquisição/construção dessa casa.
Por conseguinte, tendo em atenção a regra do referido artigo 1726.º do CCivil, há que considerar o imóvel dos autos, como bem comum.
Contudo, no nº 2 deste mesmo preceito estabelece-se que “fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão”.
Normativo este que, à semelhança de outros, representa um afloramento do princípio geral que obriga à compensação das deslocações patrimoniais ocorridas entre os patrimónios próprios dos cônjuges e entre estes e os patrimónios comuns, gerando um verdadeiro direito de crédito de compensação a favor do titular do património empobrecido. Há como que um acerto de contas entre as (diversas) esferas patrimoniais no momento da partilha (cfr. artigo 1689.º do CCivil).
*
Procedem, assim, em parte as conclusões 1ª a 46ª formuladas pelo apelante e, com elas, o respectivo recurso.
*
IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida declara-se que o prédio identificado nos artigos 2º e 14º a 19ª da petição inicial por ser um bem comum integra o património de Autor e Ré e ordena-se o cancelamento dos registos que contendam com este direito.
*
No mais mantém-se a decisão recorrida.
*
Custas pelo apelante e apelada na proporção do decaimento, sem prejuízo da concessão do apoio judiciário que foi concedido à Ré apelante na modalidade do pagamento faseado da taxa de justiça (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
*

Porto, 08 de Maio de 2023.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Fátima Andrade
_________________
[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt..
[6] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 20/06/2017 (processo nº 298/16.4T8PBL.C1) e o acórdão da Relação de Lisboa de 8.06.2010 (processo nº 2737/07.4TBCSC-D.L1-1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Cfr., neste sentido, entre outros, acórdãos da Relação de Coimbra de 13/05/2014 (processo nº 1068/08.7TBTMR-B.C1) e de 20.06.2017 (processo nº 298/16.4T8PBL.C1), acórdão da Relação de Lisboa de 8.06.2010 (processo nº 2737/07.4TBCSC-D.L1-1) e o acórdão desta Relação de 09/12/2013 (processo nº 480/10.6TVPRT.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 12/10/2020 (processo nº 2124/15.0T8LRA.C1) e acórdão da Relação de Guimarães de 26/01/2017 (processo nº 954/15.2T8VLR.G2), acessíveis em www.dgsi.pt.
[9] Cfr., inter alia, Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 108º, págs. 253 e seguintes.
[10] Assim, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, 1979, págs. 515 e seguinte e Menezes Leitão, Direitos Reais, 5ª edição, Almedina, págs. 217 e seguintes.
[11] É a posição defendida, designadamente, por Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 163.
[12] Isto porque existe uma relação jurídica prévia entre um dos construtores da casa (o cônjuge proprietário do terreno) e o terreno; já quanto ao cônjuge não proprietário, não se afere o requisito da boa-fé, por ser do seu conhecimento que o terreno é alheio, podendo até afirmar-se que também ele tem uma certa ligação à coisa por ser casado com o seu proprietário.
[13] In Direitos Reais, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 43.
[14] As relações entre o Direito Comum e o Direito Matrimonial, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, vol. I, Coimbra Editora, págs. 487 e seguintes; em análogo sentido milita Cristina Araújo Dias, Da acessão no âmbito da titularidade dos bens no regime de comunhão de adquiridos: bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios, in AAVV, Estudos em Comemoração do 10º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Almedina, 2004, págs. 229 e seguintes.
[15] Cfr. neste sentido Ac. desta Relação de 10/10/2022 in www.dgsi, relatado pelo aqui primeiro Adjunto (subscrito também pela aqui segunda Adjunta) e que acabamos, por com ele concordar, seguir de perto.