Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0416676
Nº Convencional: JTRP00039159
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: BURLA
REENVIO
Nº do Documento: RP200605100416676
Data do Acordão: 05/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 443 - FLS. 92.
Área Temática: .
Sumário: I- São elementos do crime de burla previsto, no art. 217º do C. Penal/95: (i) a obtenção para o agente ou para terceiro de um enriquecimento, definido este segundo o conceito de enriquecimento sem causa do art. 473º do C. Civil; (ii) que o agente, para obtenção desse enriquecimento, astuciosamente induza em erro ou engano outrem; (iii) que, através desses meios, determine o ofendido à prática de actos causadores de prejuízos materiais.
II- Não resultando claro da matéria provada e não provada que o arguido tenha omitido factos essenciais, quando considerados no quadro de uma relação de lealdade, que permitissem ao interessado considerar a viabilidade de um investimento relativo à compra de fracções autónomas prometidas vender, ocorre o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, devendo ser ordenado o reenvio para apuramento de tais factos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDÃO (Tribunal da Relação)
Recurso n.º 6676/04
Processo n.º …./03.OTOPRT
Acordam na 1.ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
1- Na ..ª Vara Criminal do Porto, no processo acima referido, foi o arguido B……… julgado em processo comum, com tribunal colectivo, e, a final, foi proferida a seguinte decisão :
- absolver o arguido B……., do crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º e 218º nº2 al. a) e b) do CPenal bem como do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º nº1 al. a) também do C.Penal;
- absolver o arguido do pedido civil formulado nos autos pelo requerente/assistente C……….;

3- Desta sentença interpôs recurso o Ministério Publico na primeira instância, concluindo a motivação da forma seguinte:
o tribunal limitou-se a enumerar os meios de prova, adjectivando ou qualificando alguns deles, mas sem efectuar verdadeira análise crítica dos mesmos. Mais, omitiu até a referência ao depoimento da testemunha D……., inquirida na última sessão e que não se percebe porque é que não foi valorado positiva ou negativamente, quando é certo o mesmo se revelou importante para o esclarecimento dos factos
há contradição insanável da fundamentação e erro notório no apreciação da prova - vícios previstos nas alíneas b) e c) do art.° 410° do C.P.P.;
o acórdão recorrido dá como provados os factos nos pontos 1. a 48. que traduzem inequivocamente o estratagema, o processo enganatório e fraudulento utilizado pelo arguido para extorquir dinheiro ao ofendido e, logo a seguir, dá como não provado que o arguido actuasse com o propósito de enriquecer ilegitimamente à custa do património do ofendido;
impunha-se, no entanto, que em face da referida factualidade provada se concluísse também que «o arguido actuou com o intuito de enriquecer ilegitimamente à custa do património do ofendido»;
deu-se provado nos pontos 27. e 28. do elenco factual que o arguido no início de 1999 enviou ao ofendido a fotocópia de uma escritura de compra e venda relativa à loja com o n.° 203. A dita escritura pública de compra e venda, com data de 4 de Dezembro de 1998, era, porém, um documento inteiramente forjado pelo arguido, que assim pretendia fazer crer ao ofendido que tinha celebrado um negócio aquisitivo de propriedade revestido de toda a legalidade e segurança;
não obstante isso, não se deu como assente que «o arguido, ao elaborar o documento pretendesse obter um enriquecimento ilegítimo à custa do património do ofendido ou de que pretendesse causar prejuízo ao Estado
devem ser considerados provados os factos constantes dos n.°s 1. a 5. inclusive, do elenco factual não provado;

3- Também inconformado, interpôs recurso o assistente C…….., concluindo do seguinte modo:
contesta-se, entre outra, a seguinte matéria factual dada como provada;
- que o ofendido quando celebrou o contrato promessa de permuta da loja 203, pelo escritório 408, tivesse conhecimento que o documento de "escritura pública" (doc. a fs. 26 a 30 dos autos) não era verdadeiro, e que o mesmo havia sido forjado pelo arguido;
impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto não provada, a qual deve ser tida como provada:
- que o arguido actuasse com o propósito de enriquecer ilegitimamente à custa do património do ofendido;
- que o arguido actuasse no convencimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei, e que ao forjar o documento de fls. 26 a 30 dos autos, pretendesse atentar contra a segurança do tráfico probatório;
- que pretendesse ainda causar um prejuízo ao ofendido;
- que o arguido usasse de qualquer meio de erro ou engano sobre factos que levaram à realização do contrato-promessa do escritório 408.
há provas que impõem decisão diversa da recorrida, a saber que:
- o ofendido tenha afirmado que tinha conhecimento da falsidade da "escritura pública", aquando da troca da loja 203 pelo escritório 408;
- o arguido nunca esclareceu o ofendido da situação em que se encontrava o Edifício ……, já em 1999, muito menos da falta de Licença de Utilização e Habitabilidade;
- o arguido nunca esclareceu o ofendido que vendia bens alheios,
- os contratos de promessas de garantia de rendimentos para fracções sitas no Edifício ….. (sendo facto notório que essas fracções em 1999 nada rendiam ou valiam);
- o arguido nunca entregou o sinal recebido pelo contrato-promessa do escritório 408 ao verdadeiro proprietário;
- o arguido não informou sequer este proprietário que a sua fracção havia sido prometida vender;
o acórdão recorrido a pág. 7, refere que a falsificação de escritura forjada pelo arguido, "apenas teve a virtualidade de, temporariamente, manter o ofendido no convencimento erróneo de que já se encontrava celebrado o contrato definitivo relativo à loja 203°”; porém não conclui qual o período de tempo que esse convencimento erróneo se mantém, pelo que sempre se consubstancia um vicio da insuficiência para a decisão da material de facto provada, no ponto 70, pag. 12 do acórdão recorrido;
que mesmo "temporariamente" o ofendido esteve no convencimento erróneo que havia adquirido uma fracção através de um negócio aquisitivo de propriedade revestido de toda a legalidade e segurança ;
a decisão recorrida é omissa no tocante ao testemunho de D…….., que à data dos factos trabalhava para o arguido, e que declarou, entre outros factos, que a sua assinatura constava do documento a fls.26 dos autos, não tendo sido ela a sua signatária e desconhecendo que o arguido havia celebrado estes negócios com o ofendido;

4- Nesta Relação o Emo sr PGA emitiu parecer, em que conclui :
existem fundamentos para dar como provados os factos referidos pelo assistente nas suas conclusões, e estes factos, conjugados com os demais dados como provados, impõem uma decisão de sianl contrário à proferida na primeira instância, tendo havido erro de julgamento

5- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a audiência de discussão e julgamento.
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FUNDAMENTAÇÃO
Os factos
Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos:
Nesta cidade do Porto existe um edifício, designado por “Centro Comercial …..”, situado na Avenida ……, n° ……;
Para a construção de tal edifício foi apresentada na Câmara Municipal do Porto, em 07.05.1979, um projecto de construção de imóvel composto pelas Torres A, B e C, qual veio a ser deferido tacitamente em 06.02.1980, tendo sido emitida a licença de construção n° 182/80;
Em 26 de Março de 1982, em aditamento à licença referida, foi apresentado um outro projecto para construção das torres D e E que não foi aprovado pela Câmara Municipal do Porto;
Não obstante foram construídas as torres D e E, a primeira com quatro pisos e a segunda com treze andares acima do solo, que não têm licença de construção e nem de utilização;
Mas mesmo assim, por escritura celebrada em 16 de Setembro de 1982 no 6° Cartório Notarial do Porto, foi constituída a propriedade horizontal sobre o referido imóvel;
Nela ficando integradas as torres D e E, respectivamente com fracções (a D) e 90 E;
Em 4 de Julho de 1990 o Ministério Público adstrito aos Juízos Cíveis ia Comarca do Porto, intentou uma acção em que pedia que se declarasse a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, na parte respeitante aos blocos D e E (doc. de fls. 75 e seguintes);
De todo o modo, e em relação a todo o edifício, não existe licença de utilização;
Em Dezembro de 1996, a EDP cortou o abastecimento eléctrico à parte comercial do edifício;
No entanto, a parte reservada aos escritórios continua a funcionar por tolerância das autoridades camarárias, apesar de não ter licença de utilização;
A situação irregular e ilegal do edifício é perfeitamente conhecida do arguido que é, actualmente sócio apenas, de uma Sociedade Imobiliária sita nesta cidade do Porto, no Largo ….., n° …., ….. e designa-se “E……., Lda”, tendo por objecto o estudo, planificação, construção e administração de centros comerciais, empreendimentos turísticos ou habitacionais, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e realização de projectos, fiscalização, direcção e execução de obras de construção civil; (Doc. fls. 14 dos autos);
A outra designava-se “E1……S.A.R.L.” e tinha a sua sede em França na Rua ……., …..-FONTAINEBLEU;
Esta sociedade cessou a sua actividade no dia 31.08.2002 (doc. de fls. 273 dos autos);
O arguido utilizou as duas sociedades e continua a utilizar a E….., Lda. para efectuar as suas transacções comerciais e utilizou a E1……, S.A para angariar clientes para os seus negócios, convencendo cidadãos portugueses emigrantes em França a investirem as suas poupanças no sobredito imóvel;
No ano de 1997 o ofendido C……, empregado da construção civil emigrante em França, conheceu o arguido B……. que desde logo procurou atraí-lo para investir os seus recursos na compra de lojas no Centro Comercial ……..;
Em 1998 o arguido encontrou novamente o ofendido C…… propondo-lhe a compra de uma loja no “…..”, situação a que este anuiu;
No dia 20.08.1998 o arguido dirigiu-se a casa do ofendido C……, sita em …… propondo-lhe a compra das Lojas n°s … e …. pelo preço de 7.000.000$00 de escudos. Na mesma altura solicitou o arguido que lhe fosse passada uma procuração a fim de tratar de toda a documentação respeitante a tais fracções;
No dia 21.08.1998 o ofendido outorgou no Cartório Notarial de Vimioso uma procuração, constituindo o arguido como seu procurador (Doc de. fls. 16);
No início do mês de Setembro o arguido dirigiu-se à residência do ofendido em França e propôs-lhe a troca das referidas lojas pela loja/escritório com o n° ….., que corresponde à fracção autónoma 104-P5, sita no edifício “…..” – Avenida ….., n°s …., …. e ……;
Porém, disse o arguido, essa loja/escritório seria um milhão de escudos mais caro que as lojas n°s … e …., atingindo assim o valor de 8.000 contos (7.000+1.000 contos);
Denunciante e denunciado formalizaram tal negócio celebrando o Contrato Promessa cuja cópia consta dos autos a fls. 17 e 18 dos autos;
O arguido sabia perfeitamente que o negócio que celebrava incidia sobre uma fracção de um imóvel que não tinha licença de utilização nem de habitabilidade;
Para cativar o ofendido o arguido elaborou um documento a que designou como “Contrato Promessa de Garantia de Rendimento”, nos termos do qual se comprometia a garantir ao ofendido um rendimento mensal de Esc. 75.000$00 durante um período de dez anos. Tal documento foi assinado por ambos os outorgantes (fls. 19);
O ofendido deu assim, para pagamento do preço do negócio que celebrava e que pressupunha lícito, uma ordem de transferência do seu banco para a conta do arguido com o número 001701080000843332128, Agência do B.P.A. com balcão na Rua Gonçalo Sampaio no Porto (Doe. N° 5 de fls. 21);
Tendo assim o arguido embolsado a quantia de 5.500.572$00 (cinco milhões quinhentos mil e quinhentos e setenta e dois escudos);
Na mesma altura, i.é., no início do mês de Setembro de 1998, o ofendido entregou ao arguido dois cheques sacados sobre a União de Bancos Portugueses no valor global de 49.173 francos franceses, ou seja Esc. 1.503.267$00, que eram emitidos à ordem da E….., Sociedade do arguido;
No início do ano de 1999 o ofendido recebeu uma carta do arguido onde este juntava a fotocópia de uma “Escritura” de Compra e Venda relativa à loja com o nº …., fracção autónoma designada por 104-P5 e um anexo de contas já pagas pelo ofendido C……. (Docs. De fls. 24, 25, 26, 27, 28 e seguintes);
A dita “Escritura Pública” de Compra e Venda com data de 04.12.1998 era, porém, um documento inteiramente forjado pelo arguido, que assim pretendia fazer crer à vítima que tinha celebrado um negócio aquisitivo de propriedade revestido de toda a legalidade e segurança;
Com efeito, contactado o 1° Cartório Notarial de Vila do Conde este informou que o livro 61-D constante da fotocópia da pretensa escritura, esteve em vigor no mês de Maio de 1998 e não em Dezembro;
E, por outro lado, informou que em Dezembro de 1998 o livro em vigor era o 91-D (doc. de fls. 145 dos autos);
Quando do Contrato Promessa celebrado entre a “E1…….S.A.R.L.” e o ofendido, o arguido fez porém uma promessa de venda de coisa alheia, uma vez que a fracção em causa era pertença de F…….., sendo certo que a fracção 104-P5 (loja 203) não pertencia ao arguido;
Aliás, tal fracção tinha sido vendida ao referido F……. por G…….., H……. e I…….. (doc. fls. 163 dos autos);
Em Abril de 1999 o arguido dirigiu-se de novo à residência do ofendido C…… e propôs-lhe a troca da loja 203 pelo escritório CE 7, com o n° 408 sito no mesmo edifício do Centro Comercial ………;
Entretanto para pagamento da aquisição de n° 203, que o ofendido julgava ter comprado, o arguido recebeu dois cheques, um com o valor de 15.000 Francos, n° 0810548, com data de 11.03.99 e outro com o nº 0810552, datado de 22.04.99, no valor de 4.156 Francos Franceses, no total de Esc. 585.618$07 (fls. 31 “in fine”);
Porém, dizia o arguido, este escritório era mais caro e tal transacção só podia ser efectuada mediante a entrega da Loja n° 203, mais 3.500.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos);
E assim o ofendido C…… deu uma ordem de transferência no dia 28.04.1999 ao seu banco, no montante de 3.000.000$00 (três milhões de escudos) para a conta do arguido com o n° 001701080000843332128, Agência do B.P.A., Balcão da Rua Gonçalo Sampaio (doc. de fls. 32 dos autos);
O ofendido entregou ainda ao arguido um cheque no valor de 16.361 Francos ou seja, Esc. 500.041$00 para perfazer o quantitativo de 3.500 contos que tinha de pagar pela permuta que efectuou (docs. de fls. 34, 35 e 36 dos autos);
Em Maio de 1999 o arguido escreveu ao ofendido, enviando-lhe simultâneo o Contrato Promessa respeitante à transacção do dito escritório CE 7, com o n º 408;
No referido Contrato Promessa o arguido, mais uma vez na qualidade de representante da “E1…….. S.A.R.L.”, promete vender ao ofendido C……. o aludido escritório n° 408 (docs. de fls. 35 e 36 dos autos);
Porém, mais uma vez, o arguido estava a fazer a promessa de venda de coisa alheia visto que tal escritório pertencia e pertence a J……, residente em Coimbra (docs. de fls. 170 e seguintes dos autos);
Com efeito este último tinha concedido autorização meramente verbal ao arguido para vender o escritório, caso houvesse comprador interessado, mas nunca veio a receber qualquer quantitativo por esta transacção (doc. de fls. 61 dos autos);
O arguido, para melhor convencer o assistente a realizar transacção respeitante ao escritório com o n° 408, assinou ainda um documento que designou como “Contrato Promessa de Garantia de Rendimento”, nos termos do qual se comprometia a garantir um rendimento mensal de 95.000$00 proveniente da fracção autónoma CE 7, ou n° 408. Tal documento tem data de 22.04.1999 (docs. de fls. 38 e 39 dos autos);
Em Julho de 1999 dirigiu-se a casa do ofendido para lhe pedir dinheiro emprestado;
Nesta altura, o C……… emprestou ao arguido a quantia de 1.478.644$00, tendo clausulado juros à taxa legal de 9% (doc. de fls. 37 dos autos);
Tendo o C……. transferido no dia 17.08.1999 para a conta do arguido o montante de Esc. 1.271.982$00 (doc. de fls. 40);
Através dos sucessivos contratos realizados com o ofendido e que supra se deixaram descritos, o ofendido entregou ao arguido o montante global de Esc. 12.361.480$00 (doze milhões trezentos e sessenta e um mil – quatrocentos e oitenta escudos), ou seja, 61.658,80 € (sessenta e um mil, seiscentos e cinquenta e oito euros e oitenta cêntimos);
O arguido transacciona desde 1991 com os espaços do Centro Comercial ….., sabendo perfeitamente que transacciona bens alheios e que as fracções por si transaccionadas não tinham licença de utilização nem de habitabilidade;
O arguido ao praticar os factos supra descritos, actuou de forma livre, voluntária e consciente;
Do pedido de indemnização civil
Resultaram provados todos os factos comuns à acusação e ao pedido civil que supra se descreveram e, ainda;
O escritório CE7 ou 408, pertence a J……., que concedeu autorização verbal ao Arguido para vender o aludido escritório, não tendo nunca recebido qualquer quantia por essa transacção;
O ofendido ao celebrar os negócios que supra se deixaram descritos com o arguido, viu-se desapossado de, ao menos parte, das suas economias;
O ofendido sente-se desgostoso, triste e angustiado por ter perdido ao menos parte das as economias e pelos incómodos e aborrecimentos causados pelo presente processo;
A sua saúde psíquica e física ressentiu-se, tendo emagrecido e deixou de dormir tranquilamente;
Durante todo o tempo que decorreu o inquérito, o ofendido e sua esposa tiveram que se deslocar de França a Portugal para interrogatórios no processo ao que acresceram ainda os dias de trabalho que perderam, totalizando montante não apurado mas de, pelo menos, € 500,00 (quinhentos Euros) por cada deslocação a Portugal;
Da contestação
A acção intentada pelo M.P. em representação da Câmara Municipal do Porto com o objectivo de ver declarada a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal do edifício …… na parte respeitante aos blocos D e E foi julgada extinta por inutilidade superveniente da lide (vd. Docs. NºS 1 a 7 juntos com o requerimento de abertura de instrução) tendo por fundamento uma certidão emitida pela Câmara Municipal do Porto de 26 de Março de 2001, na qual se afirma que o pedido de informação prévia formulado pelo condomínio do edifício ….. com vista à total remodelação e reconstrução do centro comercial “está em condições de deferimento”;
Até ao ano de 1999 realizaram-se inúmeras escrituras públicas de compra e venda de fracções pertencentes ao edifício, sendo que, também no ano de 2003 se realizou, pelo menos uma escritura de compra e venda de múltiplas fracções, tendo-se mencionado apenas que foi demonstrado o pedido de obtenção de licença de utilização, entregue na Câmara Municipal (Docs. de fls. 399 a 405 dos autos);
O Centro Comercial ….. apenas encerrou definitivamente no dia 1 de Julho de 1999, facto que ocorreu não devido a falta de electricidade mas antes por falta de condições de segurança (doc. de 270 dos autos);
O denominado “Centro Comercial …..” situa-se numa zona privilegiada da cidade do Porto;
A sociedade “E1…… S.A.R.L.”, foi extinta/dissolvida em 31 de Agosto de 2000 (docs. de fls. 271 e ss. dos autos);
Ao menos em parte dos contratos celebrados pelo arguido relativos a fracções do C.C. ……, este actuou com a autorização verbal e/ou escrita dos proprietários, no exercício da sua função de mediador imobiliário;
O encerramento do centro comercial no ano de 1999, por factores alheios à vontade do arguido, impossibilitou o arguido de cumprir com algumas das suas responsabilidades e impediu-o de arrendar ou comercializar algumas dessas lojas;
Celebraram-se pelo menos duas escrituras públicas de compra e venda sobre as fracções do Edifício ……;
O proprietário da fracção 104-P5, Sr. F……, tinha subscrito uma procuração em 08 de Abril de 1998, pela qual conferia os poderes necessários ao arguido para este poder transaccionar a fracção. (doc. de fls. 278 e 279 dos autos);
Quanto ao escritório C-7 ou 408, o arguido também estava autorizado a transaccioná-lo;
O arguido foi emigrante em França até data não exactamente apurada, tendo ele próprio investido parte não exactamente apurada das suas economias no C.C. ……;
A entidade administrativa que encerrou o edifício, isto é, a Câmara Municipal do Porto, é também aquela a quem incumbia a fiscalização da legalidade da construção e utilização do mesmo com vista a evitar o encerramento do aludido Centro Comercial;
Da análise do contrato-promessa de compra e venda do escritório 408 em nenhuma das suas cláusulas se vislumbra que alguma vez o aqui demandado se tenha afirmado dono ou legítimo proprietário daquela fracção;
Mais resultou provado:
Que o arguido afectou, ao menos parte, do dinheiro recebido nos contratos-promessa em causa nestes autos e em outros contratos similares em despesas tendentes à viabilização do empreendimento ainda em curso;
O demandante por diversas vezes contactou o demandado para cumprir o acordado no contrato-promessa de compra e venda e ainda no sentido de devolver a quantia mutuada;
O ofendido quando celebrou o contrato-promessa de troca da loja 203 pelo escritório 408 já sabia que não era verdadeiro o documento de fls. 28 a 30 dos autos e que o mesmo havia sido forjado pelo arguido;
Das condições pessoais do arguido:
O arguido tem dois filhos menores a cargo, com 7 e 13 anos de idade; a esposa é professora, profissão que exerce em “part-time”, devido a problemas de saúde que teve recentemente e a impedem de exercer tal profissão em “full-time”; o arguido aufere em média, pelo menos, € 730,00/mês; vive em casa própria adquirida com recurso a financiamento bancário e paga de prestação mensal o montante de € 529,00; tem como habilitações literárias a frequência da licenciatura em engenharia agrícola, faltando-lhe apenas uma cadeira para terminar o curso; o arguido já sofreu uma condenação pela prática de um crime de Burla Agravada, tendo sido condenado na pena de 3 anos de prisão suspensa por dois anos sob a condição de em 6 meses indemnizar o ofendido;

E o tribunal deu como não provado que:
- as fracções existentes no edifício ….. não possam ser transaccionadas;
- que o Centro Comercial existente no edifício …….. tenha encerrado em Dezembro de 1996, e ainda que, tal tenha ocorrido por falta de abastecimento de electricidade;
- o arguido se servisse das sociedades “E1……., S.A.” e “E……, Lda.” para lhe servirem de fachada legal para efectuar transacções fraudulentas;
- o montante de Esc. 1.478.644$00 que foi emprestado ao arguido pelo ofendido C……. se destinasse a regularizar as constas das transacções efectuadas entre arguido e ofendido e que o ofendido estivesse convencido de tal facto ou ainda que o arguido invocasse tal argumento para convencer o ofendido a emprestar-lhe o dinheiro;
- o arguido viva em permanência da prática de actos criminalmente ilícitos, ludibriando emigrantes residentes em França, apropriando-se das suas poupanças;
- o arguido, tenha pendentes nos Serviços do Ministério Público mais dois processos por crimes graves de Burla, respectivamente com os números 8076/02.0TDPRT e 3394/02.0TDPRT;
- o arguido celebre negócios jurídicos fraudulentos, sendo refractário ao cumprimento das normas legais inerentes a uma vida negocial séria;
- o arguido actuasse com o propósito de enriquecer ilegítimamente à custa do património do ofendido;
- o arguido actuasse no convencimento de que a sua actuação era proibida e era punida por lei e que ao forjar o documento de fls. 28 a 30 dos autos pretendesse atentar contra a segurança do tráfico probatório e causar um prejuízo ao ofendido ou ao Estado;
- o arguido usasse de qualquer meio de erro ou engano sobre os factos que levaram à realização do contrato-promessa do Escritório 408 do Edifício …….;
- seja séria a intenção do arguido de restituir a totalidade da importância recebida ao aqui assistente em moldes a acordar, ou realizar a prometida escritura definitiva de compra e venda;
- o arguido convencesse falsamente o ofendido de que era sócio gerente da “E……, Lda.”, com sede no Largo …… , n.° …., ……, Porto;
- até ao seu encerramento pela Câmara Municipal do Porto o Centro Comercial …… fosse um bom investimento;
- o negócio proposto pelo arguido ao ofendido fosse rentável;
- o arguido não tivesse pedido dinheiro emprestado ao ofendido;
- fosse o ofendido que sabendo da difícil situação económica do arguido devido ao encerramento do C.C. …… a oferecer-se para lhe emprestar dinheiro;

O direito
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes, extraídas das motivações apresentadas, cabe agora conhecer das questões ali suscitadas.

Diz o Ministério Publico no seu recurso que o tribunal não fez uma análise critica das provas
Nos termos das disposições dos arts 374.º-2 e 379.º-1-a) do CodProcPenal, é nula a sentença que, na apreciação da prova, não proceda a uma análise crtica da prova.
Este dever emerge directamente do dever de fundamentação da sentença, que se situa exactamente nos limites propostos, entre outros, pelo Ac do Tribunal Constitucional 680/98, e que já tinha adquirido foros de autonomia também a nível do Supremo Tribunal (Acordão de 13/2/1992), no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal colectivo se formasse num sentido, ou seja, um exame critico das provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido, essa válvula de escape do sistema permitindo o reexame do processo lógico ou racional que subjaz á decisão. Também por aí se concretiza a legitimação do poder judicial contribuindo para a congruência entre o exercido desse poder e a base sobre o qual repousa o dever de dizer o direito no caso concreto (Michele Tarufo F.D.U.C. V.LV pag 31-32), sendo pois o dever de fundamentação parte integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, ao menos quanto ás decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e de legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada pag 799), e em termos de princípios não poderia ser outra a conclusão a extrair da aplicação do sistema de prova livre ou de livre apreciação da prova vigente no nosso processo penal, pois, como refere Figueiredo Dias (Direito Processual Penal pag 139) o principio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável -- e portanto arbitrária da prova produzida.
A análise crítica da prova permite essa avaliação da prova, descrevendo, no que for descritível, como e porque a prova ganhou relevância, atento as regras da experiência comum, e assim óbvio se torna que não basta a sentença indicar, numa lista, as provas que serviram para formar a convicção, sem sequer relacionar essa prova com os factos nem referir um mínimo sobre o juízo de apreciação e de valor efectuado.
Neste particular o acordão recorrido é claramente deficiente, só sumáriamente procede a uma avaliação critica da prova, não estabelendo a suficiente relação entre os diversos meios de prova que serviram para confirmar a sua convicção.
Não obstante, analisando a fundamentação verifica-se que a decisão recorrida aponta as fontes de prova que levaram a decidir como se decidiu e indica, ainda que de forma sumária, o motivo pelo qual essas fontes de prova tiveram relevância.
Portanto, se a sentença recorrida manifesta uma deficiência de fundamentação no sentido exposto, não omite totalmente aquele dever de apreciação critica, de exposição dos motivos pelos quais o tribunal firmou a sua conviccção, e por isso não incorre naquela nulidade
Quanto à não valorização positiva ou negativa das declarações da testemunha D……., de facto o tribunal recorrido não referencia, na fundamentação, o valor desse testemunho. Mas aqui poder-se-à dizer que o faz no exercicio da livre apreciação da prova, entendendo assim que o mesmo não tem relevância. Como se extrai do art. 127.º do CódProcPenal, salvo os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum. E, só perante a constatação de que tal convicção se configurou em termos errados é legalmente possível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.
Mas analisando o teor das declarações em causa, constata-se que a dita testemunha não evidencia um conhecimento directo dos factos relativos ao arguido, pois não presenciou as negociações e as diversas conversas entre o arguido e o queixoso, não acompanhou as diversas fases do trato comercial entre eles, não foi informada por qualquer deles do teor dos negócios.
É certo que a testemunha refere que o proprietário do escritório-fracção CE 7, com o n.º 408 (facto 33 ss) lhe referiu que o arguido não lhe tinha dito que vendera (devendo dizer, se quisesse/pudesse ser mais precisa, que celebrara o contrato promessa de compra e venda), mas este facto não contraria o que ficou firmado em temos factuais e que deriva do depoimento daquele proprietário (Machado): que o arguido tinha autorização daquele para vender a dita fracção.
E quanto a outras vendas supostamente fraudulentas que a testemunha D……. refere que terão sido feitas pelo arguido, não tem relevo, para o caso, saber se as mesmas aconteceram e em que circunstâncias, pois nada viriam acrescentar de concreto ao caso em apreço, e aliás nem seria possivel determinar com exactidão os ditos factos dado o conhecimento indirecto da testemunha.

Nos dois recursos, o Ministério Publico e o assistente imputam ao acordão os vicios do erro na apreciação da prova e da contradição manifesta entre os factos provados e os não provados.
Antes de verificarmos em concreto os factos que os arguentes dizem estar em contradição e os factos que não poderiam ter sido dados como não provados, passemos a uma caracterização do primeiro desses vícios.
O erro notório na apreciação da prova, previsto no n.º 2-c) do art. 410.º do CodProcPenal, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (vg. declarações em inquérito ou instrução) -- sem embargo do recurso às regras da experiência e a elementos de prova vinculada existentes no processo, como perícias e documentos autênticos, que também eles podem contraditar o juízo a que o tribunal chegou.
Consistindo e traduzindo-se num erro patente, no sentido de poder ser detectado por um homem médio -- aqui recorrendo-se á doutrinal noção de observador médio, do bom pai de família, atento e sensato --, consubstanciando-se numa incorrecção evidente de constatação. Análise, apreciação e/ou valoração dos dados objectivos recolhidos da prova produzida, incorrecção essa que se pode evidenciar quer por uma constatação viciada pelo ponto de vista ou de focagem intelectual da questão, quer por uma análise sincrónica ou diacrónica dos factos, quer por uma apreciação concatenada com dados de uma experiência pessoal que não comum ou por uma valoração não admitida pelas vivências da generalidade das pessoas com a mesma formação humana e intelectual. O erro notório será sempre para a generalidade das pessoas óbvio, limitando a formação da convicção, como se normatiza no art. 127.º do CódProcPenal. O erro será relevante quando o dado objectivo recolhido da produção de prova permite uma conclusão filosófica e metodologicamente ilógica, denunciadora de subjectividade arbitrária notoriamente chocante para a experiência comum -- Maria João Antunes Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 4Q, I. 118 e ss e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 84/07/13. CJ/STJ. 111. 187, entre muitos.
Este vício ocorre nas seguintes situações: (1) retira-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou arbitrária, ou que não é defensável segundo as regras da experiência comum; (2) dá-se como provado algo que não podia ter acontecido; (3) determinado facto provado é incompatível ou contraditório com outro facto dado como provado ou não provado contido no texto da decisão recorrida; (4) há violação das regras sobre o valor da prova vinculada, das regras da experiência ou quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
Mas só perante erro notório de julgamento, patenteado pela desconformidade flagrante entre os elementos de prova recolhidos e a decisão da matéria de facto é possível à Relação modificar esta decisão
No caso em apreço, o tribunal, a partir da prova produzida em audiência, entendeu dar como provados os factos 1. a 48., directamente relacionados com a factualidade da acusação, para depois concluir na factualidade dada como não provada, com relevo o seguinte: «o arguido actuasse com o propósito de enriquecer ilegítimamente à custa do património do ofendido; o arguido actuasse no convencimento de que a sua actuação era proibida e era punida por lei e que ao forjar o documento de fls. 28 a 30 dos autos pretendesse atentar contra a segurança do tráfico probatório e causar um prejuízo ao ofendido ou ao Estado; o arguido usasse de qualquer meio de erro ou engano sobre os factos que levaram à realização do contrato-promessa do Escritório 408 do Edifício …… »
Evoquemos, de forma necessáriamente sintética e com necessidade de remissão para os factos dados como provados para uma compreensão mais exacta, que:
No dia 20.08.1998 o arguido propôs ao ofendido a compra das Lojas n°s 113 e 184 pelo preço de 7.000.000$00 de escudos, o que foi aceite; e um mês depois já lhe estava a propôr a troca das referidas lojas pela loja/escritório com o n° 203, por mais Esc 1.000.000$00, pelo que foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, sendo que para cativar o ofendido o arguido elaborou um documento a que designou como “Contrato Promessa de Garantia de Rendimento”, nos termos do qual se comprometia a garantir ao ofendido um rendimento mensal de Esc. 75.000$00 durante um período de dez anos e no início do ano de 1999 o ofendido recebeu uma carta do arguido onde este juntava a fotocópia de uma “Escritura” de Compra e Venda relativa à loja com o nº 203, na qual se declara a venda ao ofendido da dita fracção, mas esse documento era inteiramente forjado pelo arguido, que assim pretendia fazer crer à vítima que tinha celebrado um negócio aquisitivo de propriedade revestido de toda a legalidade e segurança;
Em Abril de 1999 o arguido propõe ao ofendido a troca da loja 203 pelo escritório CE 7, com o n° 408 por mais 3.500.000$00, o que o ofendido aceitou, e assim o arguido o contrato promessa de compra e venda respeitante ao dito escritório, sendo que o arguido, para melhor convencer o assistente a realizar transacção, assinou ainda um documento que designou como “Contrato Promessa de Garantia de Rendimento”, nos termos do qual se comprometia a garantir um rendimento mensal de 95.000$00 proveniente da fracção autónoma CE 7, ou n° 408.
Em Julho de 1999 o arguido dirigiu-se a casa do ofendido para lhe pedir dinheiro emprestado, tendo este no dia 17.08.1999 para a conta do arguido o montante de Esc. 1.271.982$00
Temos portanto que o arguido, na qualidade de representante legal de uma sociedade promete sucessivamente vender e trocar fracções urbanas, dele sempre recebendo o dinheiro na totalidade, e por preços sempre crescentes, fracções essas que não pertenciam ao arguido, mas a terceiros, sem que tal conste mencionado dos ditos contratos promessa.
Essas fracções estavam todas num Centro Comercial que à data dos ditos contratos promessa não tinha licença de utilização nem de habitabilidade, o que o arguido bem sabia (cfr facto 47.)
Para convencer o ofendido de que já era proprietário da fracção n.º 203 o arguido enviou-lhe uma cópia de uma escritura de compra e venda da dita fracção para o ofendido; porém, tal escritura fora totalmente forjada pelo arguido com aquele propósito
É portanto imperioso fazer salientar o seguinte: as sucessivas promessas de venda, sempre por valores superiores, sempre sendo pagos estes valores exigidos pelo arguido, de fracções que nem estavam em nome do arguido ou da sociedade que ele representava, criam logo um ar de suspeita. Mas que se não fica pela suspeita: forjar um documento que pretende ser uma escritura pública de compra e venda para fazer crer ao ofendido de que era já o dono da fracção antes prometida vender pelo arguido, isto depois de já ter embolsado o preço respectivo, já é claramente uma mentira, um artificio, uma evidência de que o arguido não estava de boa fé e com propósitos sãos: de contrário teremos de admitir que todos os comerciantes, empresários, etc, costumam falsificar escrituras ou documentos para convencerem os seus clientes a fazer negócios ou a convencerem que fizeram negócios que na verdade não aconteceram, facto este que não é, óbviamente, verdadeiro nem admissivel.
Mais e pior: depois desta falsificação e encenação o arguido ainda propôs ao ofendido a venda de um outro escritório, que também não lhe pertencia, recebeu o preço e o negócio (contrato promessa) não foi cumprido.
Mais ainda: com a celebração dos dois contratos promessa celebrados com o ofendido o arguido, para melhor convencer este da rentabilidade dos negócios (e, como deriva dos termos daquelas declarações, para lhe garantir um rendimento mensal seguro, qualquer que fosse o aproveitamento dos espaços: com a condição apenas de o arguido ficar procurador do ofendido e poder dar de arrendamento os ditos espaços) o arguido garantia ao ofendido uma quantia mensal fixa e por vários anos. Este mais um elemento estranho aos hábitos do comércio e da experiência comum, e que, conjugado com os factos e conclusões antes expostos, permitem revelar que o arguido não prescindiu dos meios necessários para convencer o assistente da bondade da sua actuação -- com o relevo jurídico penal que a seguir veremos.

Um parêntesis aqui para dizer que na sentença recorrida, foi fixado o seguinte facto (ponto 70.): «O ofendido, quando celebrou o contrato-promessa de troca da loja 203 pelo escritório 408 já sabia que não era verdadeiro o documento de fls. 28 a 30 dos autos e que o mesmo havia sido forjado pelo arguido».
Da transcrição da prova parece de facto resultar do depoimento do ofendido (embora a questão das datas exactas não fosse preocupação desse interrogatório nesta parte) que, quando celebrou o segundo contrato promessa relativo à loja 408 o ofendido já sabia que a escritura relativa à loja 203 era falsa, e que o arguido era o autor dessa falsidade. Embora este facto, ainda que a provar-se, se não revele necessáriamente decisivo (poderá apenas revelar que o aqui assistente contemporizou com uma situação irregular, mas face ao dinheiro que tinha investido no projecto, acabou por aceitar a proposta de venda da fracção 408 e que, no contexto exposto, ele manifesta a extrema ingenuidade e ligeireza do ofendido na condução dos negócios), ainda assim ele poderá ter interesse para o completo enquadramento e compreensão dos factos, designadamente quanto à intenção do arguido após a celebração de tal contrato.
Isto para dizer que se impõe o completo esclarecimento desse facto.

Perante aqueles factos e conclusões, é tempo de expôr agora algumas considerações relativas ao tipo legal base do crime de burla.
São elementos típicos do crime de burla previsto pelo art. 217.º do CPenal/95: (1) a obtenção para o agente ou para terceiro de um enriquecimento ilegítimo -- este definido segundo o conceito de um enriquecimento sem causa, do art. 473.º do CCivil; (2) que o agente, para obtenção desse enriquecimento, astuciosamente induza em erro ou engano outrém; (3) que, através desses meios, determine o ofendido à prática de actos causadores de prejuizos materiais.
O elemento material consiste na criação ou no aproveitamento do erro (isto é, a falsa ou nenhuma representação da realidade, por dedução falaciosa, por indução sem fundamento, por deficiência da vontade ou da inteligência, etc.) ou do engano (isto é, a mentira), realizados através de múltiplas formas -- incluindo a prática de outros crimes -, seja por palavras ou declarações expressas (incluindo códigos gestuais, por actos concludentes ou por omissão: o uso de falso nome, emprego de falsificação de escrito, passagem de moeda falsa, utilização de instrumentos de medição adulterados, a emissão de cheque sem provisão, etc. Ponto é que esse erro ou engano sejam astuciosamente provocados: que haja habilidade para enganar, subtileza para defraudar, engenho para criar a aparência de uma realidade que não existe ou para falsear a realidade.
Todas as pessoas devem agir de boa-fé, e aqui subjaz o princípio de boa-fé (em sentido objectivo). A este propósito, refere Siebert / Knopp (in SOERGEL, Kommentar Zum Burguerliches II, 1990 § 242 12) tratar-se de uma "exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte''. Nele radica o decisivo critério de lealdade que deve acompanhar as relações entre as pessoas no comércio jurídico, e, portanto, o limite da relevância do domínio do erro ou quadro da burla.
Em sintonia com o exposto, o tipo legal do n.° 1 do artigo 217.°, constitui uma “norma penal em branco" ( Cfr, Eduardo Correia I, 144 - 5 e 149-50, e Figueiredo Dias / Costa Andrade, Direito Penal - Polic 1996-171-2), cujo âmbito de protecção se encontra condicionado pela prévia definição, em sede de direito privado, do que se apresenta permitido ou proibido à luz do princípio de boa-fé "em sentido objectivo". A constatação de uma deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico, o domínio de erro que viole os ditames de boa-fé consubstancia, desde que preenchidos os demais requisitos do delito, o desvalor característico do ilícito de burla.
No caso em apreço, não está claro se o arguido omitiu factos essenciais quando considerados no quadro de uma relação de lealdade, desde logo que permitissem ao aqui recorrente/ assistente considerar a viabilidade do seu investimento, vg quanto à situação legal das fracções prometidas vender. Ou seja, não é possível dos factos, nem isso se retira das trancrições (porque ou isso não foi perguntado, ou porque nessa parte as declarações são imperceptiveis) saber se nos momentos em que foram celebrados os contratos promessa relativos àquelas duas fracções o assistente foi ou não informado pelo arguido que o prédio onde as mesmas se situavam não tinha licença de utilização.
É que, na órbita da conclusão do contrato, se uma das partes se abstiver de declarar que não se encontra em condições de o cumprir, pode cometer um crime de burla por actos concludentes, uma vez que a celebração de um negócio leva implícita a afirmação de que qualquer dos intervenientes tem a possibilidade de satisfazer as obrigações dele emergentes (Cfr Almeida Costa, Comentário Conimbricence do Código Penal, t. 2, parte especial, p. 302 ss), sendo ainda necessário, no plano da causalidade, que os factos criados pelo burlão sejam determinativos e condicionantes do comportamento do lesado (não sendo exigivel uma idoneidade para convencer um " homem médio", porque a eventual culpa da vitima não pode ser desculpa para o burlão ). Seja como for, importa saber se houve ou não tal informação, e em que momento, pois pode também confugurar-se um caso de burla por omissão, em que o agente se limita a aproveitar o estado de erro do sujeito passivo-lesado (cfr sobre esta possibiliadde do processo típico: Ac STJ, de 24-4-97, BMJ, 466.º - 257; Ac RP, de 5-3-86, BMJ, 355.º-437; Ac RP, de 11-3-88, CJ, ano III, t. 3, p. 246; Maia Gonçalves, C.Penal Anotado, 8.ª ed., 1995, p. 731; Almeida Costa, Comentário Conimbricence do CPenal, II, p. 307).
O elemento subjectivo daquele crime é o dolo especifico, isto é, a vontade de defraudar outrém e a intenção de obter um enriquecimento ilegitimo à custa de património alheio, isto é, um enriquecimento que não tem justificação. Ou seja, exige-se «que a mentira, dissimulação ou silêncio sejam astuciosos, ainda que se limitem a determinar ou a aproveitar condições que lhes confiram especial credibilidade» (Beleza dos Santos, citado por Sousa e Brito, Scientia Juridica, p. 140), que é preciso harmonizar com o entendimento, hoje pacifico, de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características concretas do burlado (vg. mercê de fragilidade intelectual, de inexperiência ou de especiais relações de confiança)» - Almeida Costa, Comentário Conimbricence do CPenal, II, ps. 298 e 295.
Ora, o esclarecimento daqueles pontos poderá determinar a definição do elemento subjectivo do dito crime no caso concreto, sendo que a questão da culpa ( numa palavra, do elemento subjectivo, da intenção ) se pode inferir das circunstâncias em que os factos aconteceram, vg. através da consideração das regras da experiência comum.

Para concluir, há claramente insuficiência da matéria de facto, que pode, ou não, determinar um erro na apreciação da prova, vicio aquele que é do conhecimento oficioso ( Ac do STJ, fixador de jurisprudência, de 95-10-19, DR de 28-12-95 )
+
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos:
Nos termos do art. 426.º-1 do CodProcPenal, determina-se o reenvio do processo para novo julgamento (a realizar pelo tribunal mais próximo: art. 426.º.-1 do CodProcPenal), para apuramento do seguinte:
- saber se à data da celebração do contrato de fls 35 e 36 dos autos o assistente estava informado de que a escritura referida no ponto 17 dos factos provados era falsa e que tinha sido o arguido o autor da falsificação;
- saber se na data da celebração dos contratos promessa ( fls 17-18 e fls 36-37) o assistente sabia que o edificio em que se situavam as lojas não tinha licença de utilização, designadamente se o arguido o informou desse facto, e, neste caso afirmativo, saber quais as circunstâncias ou condições que o arguido deu a conhecer.

Porto, 10 de Maio de 2006
Jaime Paulo Tavares Valério
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira
José Manuel Baião Papão