Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
488/08.1TBLSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CONDENAÇÃO NO PEDIDO
CONDENAÇÃO ALÉM DO PEDIDO
CONVENÇÃO CONTRÁRIA AO CONTEÚDO DE ESCRITURA PÚBLICA
MÁ FÉ
NEGLIGÊNCIA CONSCIENTE
Nº do Documento: RP20140310488/08.1TBLSD.P1
Data do Acordão: 03/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 347º, 352º, 355º, 356º, 393º, 394º, 616º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I- Na acção da impugnação pauliana se o juiz, no dispositivo da sentença, julga a acção procedente e decreta as consequências plasmadas no artigo 616.º, nº 1 do C.Civil que não correspondem formalmente ao pedido formulado, ainda assim não se pode dizer que tenha havido condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, pois que, o decidido pelo tribunal não se afastou do efeito prático-jurídico que está subjacente à instauração daquela acção.
II- A prova testemunhal relacionada com convenção contrária ao conteúdo da escritura pública é de ter como admissível quando complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito que constitua um suporte documental suficientemente forte para que, constituindo a base da convicção do julgador, se possa, a partir dele, avançar para a respectiva complementação, ou seja, demonstrar não ser verdadeira a afirmação produzida perante o documentador.
III- Na impugnação pauliana provada a compra e venda de um imóvel pelo seu valor real, diferente do declarado na respectiva escritura, com isso fica verificado o requisito da existência do crédito, cabendo ao terceiro adquirente do acto impugnado a prova do pagamento desse valor com vista à improcedência da acção.
IV- Sendo impugnado negócio oneroso posterior ao crédito prejudicado, o preenchimento do requisito da má fé basta-se com a negligência consciente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 488/08.1TBLSD.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Lousada-1º Juízo
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
5ª Secção

Sumário:

I- Na acção da impugnação pauliana se o juiz, no dispositivo da sentença, julga a acção procedente e decreta as consequências plasmadas no artigo 616.º, nº 1 do C.Civil que não correspondem formalmente ao pedido formulado, ainda assim não se pode dizer que tenha havido condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, pois que, o decidido pelo tribunal não se afastou do efeito prático-jurídico que está subjacente à instauração daquela acção.
II- A prova testemunhal relacionada com convenção contrária ao conteúdo da escritura pública é de ter como admissível quando complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito que constitua um suporte documental suficientemente forte para que, constituindo a base da convicção do julgador, se possa, a partir dele, avançar para a respectiva complementação, ou seja, demonstrar não ser verdadeira a afirmação produzida perante o documentador.
III- Na impugnação pauliana provada a compra e venda de um imóvel pelo seu valor real, diferente do declarado na respectiva escritura, com isso fica verificado o requisito da existência do crédito, cabendo ao terceiro adquirente do acto impugnado a prova do pagamento desse valor com vista à improcedência da acção.
IV- Sendo impugnado negócio oneroso posterior ao crédito prejudicado, o preenchimento do requisito da má fé basta-se com a negligência consciente.

I-RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B… instaurou a presente acção declarativa comum com processo ordinário contra C… e mulher D… e E…, Ld.ª, pedindo seja declarado que a alienação onerosa que tem por objecto o prédio urbano composto por uma parcela de terreno para construção, com a área de 1.140 m2, sito no …, da freguesia …, do concelho de Lousada, à data omisso na matriz mas, actualmente inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.° 1006 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.° 00727/19900319, não produza efeitos relativamente à autora, que age por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu falecido marido F…, podendo esta exercer em plenitude os seus direitos na execução já instaurada sobre a fracção em causa, nomeadamente através de penhora, para recuperação do seu referido crédito.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
Em 15 de Junho de 2000, por escritura publica de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial de Lousada a autora e o seu falecido marido venderam à 2.ª Ré o identificado prédio urbano, tendo declarado que o preço da venda era de Esc. 500.00$00.
Para pagamento do preço real relativo à referida venda, de € 34.117,78, a 2.ª Ré, através dos seus sócios gerentes G…, H… e I…, os quais emitiram três documentos particulares, cada um deles denominado “confissão de dívida” com a mesma data da outorga da referida escritura, declarou-se devedora do preço correspondente à aquisição.
Sucede que, até à presente data, a 2.ª Ré não pagou tal quantia, nem à autora, nem ao seu falecido marido, nem aos seus herdeiros legais.
Entretanto, teve a autora conhecimento que em 03.01.2007, em data posterior ao óbito do marido da Autora, o 1.º Réu marido outorgou com a sociedade 2.ª Ré, contrato-promessa de compra e venda do referido prédio urbano, outorgando aquele como promitente-comprador e esta como promitente-vendedora declarando prometer vender o referido prédio ao 1.° Réu, que declarou prometer comprar esse prédio à 2.ª Ré, pelo preço de € 67.500,00.
Posteriormente, o 1.º Réu C… instaurou contra a Ré sociedade uma acção declarativa de condenação-execução específica-no 1.° Juízo deste Tribunal, proc. n.º 1726/07.3TBLSD, tendo aquela, através dos seus sócios, vindo confessar o pedido e solicitar ao Tribunal que ordenasse a transferência da propriedade do prédio em causa nos autos para o aqui 1.° Réu.
Tal acção não foi contestada pela Ré e foi proferida sentença por este Tribunal decretando-a e transferindo a propriedade do referido prédio para o 1.° Réu.
A aludida transmissão foi efectuada dolosamente e com o propósito de se esvaziar o património da 2.ª Ré sociedade, e com a consciência de que a autora e os demais herdeiros legítimos do seu falecido marido ficariam sem qualquer hipótese de obter a satisfação integral do seu crédito, sendo do pleno conhecimento de todos os Réus, ao outorgarem o dito contrato-promessa, a existência do crédito da Autora e do seu marido, pelo que se revela evidente a má-fé da transmissão operada.
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Regularmente citados, apenas os réus C… e mulher D… apresentaram contestação (fls. 162 e segs.), defendendo-se por excepção e impugnando os factos alegados na PI.
Excepcionaram, suscitando a ilegitimidade da autora para a propositura da presente acção. Por outro lado, invocaram que a autora e o seu falecido marido demandaram a ré sociedade e os demais sócios daquela numa acção de inquérito judicial que corre termos no 2.º Juízo deste Tribunal sob o n.º 506/06.8TBLSD e num arrolamento que constitui o apenso B) daquele processo, sendo que no âmbito daquela acção o falecido marido da autora identificava como bens da sociedade, além do sobredito prédio, todos os materiais e equipamentos que se encontravam nesse prédio que servia também como estaleiro, um veículo automóvel, da marca Toyota …, matrícula ..-..-SS, uma grua e uma betoneira.
Tais equipamentos e máquinas correspondem aos que pelo Serviço de Finanças de Lousada foram penhorados no âmbito de um processo de execução fiscal e foram descritos num anúncio publicado no J… de 16/03/2008, sob o n° 289, tendo então sido avaliados, com referência a 06/03/2008, em € 37.716,00, sendo que o seu valor real é bem superior. Portanto, à data do negócio entre o contestante e a ré sociedade, esta tinha bens penhoráveis de valor superior ao crédito que a autora reclama.
Por outro lado, o negócio em causa foi feito pelo seu valor real, pois o prédio carece de licenças válidas e de projecto aprovado e o mercado imobiliário encontra-se em profunda crise, e os pagamentos foram feitos pelo contestante à ré sociedade em cheques nominativos, sem qualquer intenção ou consciência de prejudicar alguém.
Acresce que a autora e o seu falecido marido venderam esse prédio à ré sociedade pelo preço real de Esc. 2.500.000$00 e não por € 34.117,78, pois à data da venda o falecido marido da autora era também sócio da ré, nada devendo a ré sociedade à autora, nem à herança do seu falecido marido, beneficiando aquela de documento autêntico do qual resulta ter pago a totalidade do preço.
Concluem, pugnando pela improcedência da acção.
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A autora respondeu à matéria das excepções deduzidas pelos réus contestantes, mediante réplica apresentada a fls. 210 e segs., concluindo como na PI.
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Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a invocada excepção da ilegitimidade, e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e da base instrutória.
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Instruída a causa, procedeu-se à realização de audiência e discussão e julgamento da causa e fixada a matéria de facto nos termos que dos autos consta foi, a final, proferida decisão que julgou a acção procedente por provada e, em consequência:
a) Determinou a restituição do prédio descrito em d) dos Factos Provados, transmitido da ré E…, Ld.ª ao réu C…, na medida exigida pela satisfação do crédito da autora B…;
b) Reconheceu à autora B… a possibilidade de executar o referido prédio no património do réu adquirente C…, com exclusão de outros credores; e
c) Reconheceu ainda à autora B… a possibilidade de praticar, relativamente a esse prédio, os actos de conservação patrimonial autorizados por lei.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Réus interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
1. A sentença padece de nulidade, por o Tribunal ter condenado em objecto diverso do pedido, como se expos supra em I, mostrando-se violado assim o artigo 668º, nº 1 al. e) do CPC revogado, correspondente ao actual artigo 615º, nº 1 al. e) do NCPC, nulidade esta que se requer que seja declarada com as legais consequências.
2. No que respeita à matéria de facto, entendem os recorrentes que o Tribunal julgou erradamente os pontos u), ac) ae) e aj) da mesma, (por referencia aos dados como provados na sentença), bem como os artigos 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34 e 37 dos não provados, constantes da b.i. e da resposta à matéria de facto.
3. De facto, conforme se encontra melhor indicado em II supra, entendem que as perícias de fls. 798 e ss e 821 e ss, as facturas (fls.1035 e ss ou 1333 e ss), os depoimentos de parte dos sócios gerentes da sociedade Ré-H… e G… -, o depoimento de parte da A., e o depoimento das testemunhas K…, L… e M…, devidamente transcritos também em II supra, e no local próprio devidamente referenciados de acordo com as actas respectivas, conjugados e articulados com as respostas restritivas dadas a variados quesitos, como resulta da resposta à matéria de facto, com os quesitos dados como não provados e bem assim com a matéria da contestação também indicada em II supra, não impugnada e que deve ser considerada assente como lá se defendeu,- 35, 49, 50, 51, 53, 54, 55, 57 e 58 da contestação - adicionada da confirmação que nos dão os factos provados sob as alíneas g), i), af), ah) e ai), levariam necessariamente a resposta diferente.
4. Os não provados devem ser dados como provados;
5. No que concerne à al. ae) dos provados, a resposta não podia ser de provado quanto à consciência de que a alienação do imóvel se dava “em prejuízo da satisfação do crédito” de que a A. se arrogava.
6. No que respeita à al. u), como se defendeu supra em II, não podia ter-se dado como provado que 34.117,78€ fosse o preço real; que esse preço fosse pelo menos de tal valor; que tivessem emitido as declarações na qualidade de sócios gerentes; e que F… fosse considerado segundo outorgante, - aqui remetemos para a fundamentação aduzida a propósito supra, pois que não se trata de assunções de divida, mas de negócios unilaterais, e/ou o decidido é nulo em obediência aos artigos 372º/1 e 371º/1 do CC, ou por violação do artigo 668º/1, al. e) do CPC ou ainda o decidido é nulo por contradição entre os fundamentos e o decidido por aplicação da al. c) do nº 1 do referido artigo 668º do CPC.
7. Quanto à al. ac) dos provados, como se defendeu também supra em II, o Tribunal excedeu o âmbito da alegação e pergunta, pois que nada se perguntava acerca da situação financeira da empresa, tendo nesta parte de considerar-se como não escrita à luz do aludido critério, a resposta dada, em obediência ao critério dos artigos 646º/4, 664º e 264º do CPC.
8. No que respeita à al. aj) e também como se defendeu em II supra, parece-nos que a resposta dada, sendo diferente do perguntado, não é restritiva, nem explicativa, tratando antes de factos diversos.
9. Pelo que, à luz dos mesmos princípios e preceitos invocados quanto à al. ac), terá esta resposta de se considerar como não escrita.
10. É manifesto, como decorre de V supra, que a acção teria e terá de improceder por incumbir à A. a prova da existência de um credito, e não estar provada a existência de credito algum desta ou de seu falecido marido sobre a sociedade.
11. Aliás, o quesito 2º, onde se perguntava se o preço não fora pago, - cuja prova cabia à A. -, foi dado como não provado.
12. Assim sendo, a douta sentença ao condenar os RR., fê-lo em frontal violação dos princípios de que depende a procedência da impugnação pauliana e designadamente dos artigos 610º e 611º do CC.
13. O tribunal não podia interpretar as declarações de divida de cada um dos sócios, juntas como documentos 6, 7 e 8 à p.i., como sendo uma divida da sociedade ao falecido marido da A., que se manteve, julgando-a uma assunção de divida.
14. Ao faze-lo ultrapassou sem justificação o que os autos lhe fornecem, pelo que, nesta parte os fundamentos estão em contradição com a decisão, gerando nulidade, ex vi, artigo 668º/1 al. c) do CPC.
15. De todo o modo, é manifesto que cada uma destas declarações constitui um singular e diferente negocio jurídico unilateral, como defendido supra em VI, pelo que, o Tribunal ao qualifica-los erradamente como transmissão de divida, ignorando a falta do acordo de vontades necessariamente subjacente, violou as lá mencionadas normas dos artigos 457º e 458º do CC, tal qual fez errado uso da norma do artigo 595º do mesmo, violando-a.
16. Ao dar como provada a má-fé dos recorrentes, violou ainda o Tribunal o mencionado artigo 612º do CC, como se expos supra em VII.
17. Por fim, como supra em VIII se identifica, existe contradição entre a causa de pedir e o pedido, e como tal, por violação do artigo 193º/2 al. b) do CPC, em bom rigor a petição seria inepta.
18. Reportando-se o vício ao momento da sentença, e em face do principio do dispositivo, cremos que a sentença condenatória também padece, nesta parte, de nulidade, por violação do artigo 668º, nº 1 al. c) uma vez que os fundamentos estão em contradição com a decisão.
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Devidamente notificados os Autores apresentaram as respectivas contra-alegações nas quais concluem pelo não provimento da apelação.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso- cfr. cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir:
a)- saber se a sentença padece das nulidades constantes das alínea c) e e) do artigo 615.º do NCPCivil;
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
c)- saber se no âmbito da acção paulina se verificam os requisitos da existência do crédito bem como da má fé.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que o tribunal de 1ª instância deu como provada.
Da matéria assente:
a) Em 14 de Outubro de 2006 faleceu F…, cônjuge da autora, com quem esta foi casada desde 07/06/1959, no regime de comunhão geral de bens.
b) Por sentença já transitada em julgado e datada de 28/02/2007 proferida pelo 2.° Juízo deste Tribunal no processo n.° 506/06.8TBLSD-A - incidente de habilitação de herdeiros-foram habilitados os sucessores do falecido marido da A., entre os quais esta se inclui.
c) Ainda, no processo de inventário instaurado neste Tribunal, por óbito do referido “de cujus”, proc. n.° 611/07.3TBLSD do 2.º Juízo, foi a autora nomeada cabeça-de-casal da referida herança.
d) Em 15 de Junho de 2000, por escritura publica de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial de Lousada a autora e o seu falecido marido venderam à 2.ª Ré um prédio urbano composto por uma parcela de terreno para construção, com a área de 1.140 m2, sito no …, da freguesia …, do concelho de Lousada, à data omisso na matriz mas, actualmente inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.° 1006 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.° 00727/19900319, constituindo o lote n.° 4, do alvará n.° 18/98, de 07/12, tendo declarado que o preço da venda era de 2.500.00$00.
e) G…, residente no … – …, Lousada e H…, residente no …, …, Lousada e, ainda, I…, residente no … ou …, casa ., …, outorgaram cada um, um documento particular denominado “confissão de divida”, com a mesma data da outorga da referida escritura (15/06/2000), com assinaturas reconhecidas no mesmo Cartório Notarial.
f) Cada um deles na qualidade de primeiros outorgantes declararam-se “devedor do segundo outorgante da quantia de Esc.2.280.000$00 (dois milhões duzentos oitenta mil escudos), referente à compra que fez a este sócio da sociedade comercial por quotas, sob a firma “E…, Ld.ª”, pessoa colectiva n.º ………, com sede no … ou …, Casa ., freguesia …, concelho de Lousada, do prédio urbano composto de uma parcela para construção, com a área de mil cento quarenta metros quadrados, designada pelo lote número quatro, do alvará de loteamento n.° ../98, da Câmara Municipal …, em 07 de Dezembro, registado na Conservatória sob o número zero zero setecentos e vinte e sete/…”;
“Mais declara o primeiro outorgante que no descrito lote irá ser construído um prédio em regime de propriedade horizontal composto de doze fracções autónomas tipo T3, destinadas a habitação e um parque para aparcamento de viaturas automóveis”;
“O montante em débito e constante da presente declaração de dívida será pago pelo primeiro ao segundo outorgante mediante a venda de cada uma das referidas fracções autónomas, no prazo de onze meses”;
“O montante em débito será totalmente pago ao segundo outorgante até à realização da última escritura pública de compra e venda das referidas fracções”.
g) Foram instauradas execuções fiscais pelo Serviço de Finanças de Lousada à 2.ª Ré, no valor de € 10.158,24 e € 29.863,27.
h) A penhora do lote de terreno referido em d) foi anunciada em 24/11/2007 e a dos bens móveis da firma “E…, Ld.ª” em 06/03/2008, conforme cópias de fls. 64 e 187 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
i) O 1° R. pagou a quantia exequenda e acrescidos, de € 10.158,24, no SF Lousada através do cheque de fls. 188 cujo conteúdo se dá por reproduzido.
i) A Autora foi aos citados processos executivos reclamar um crédito de € 134.117,78 mas também requerer a suspensão imediata da venda dos bens penhorados o que fez nomeadamente em 08/01/2008 e em 28/04/2008.
j) Corre neste Tribunal desde Março de 2006 um Inquérito Judicial à Sociedade aqui identificada como 2.ª Ré e instaurada então pelo falecido F…, por suspeitas de graves irregularidades, contra não só a sociedade 2.ª Ré mas também contra os sócios-gerentes desta, sócios estes que vieram a representar a 2.ª Ré na outorga do alegado contrato-promessa celebrado com o 1.º Réu marido, (Proc. n.º 506/06.8TBLSD, 2.º Juízo).
l) Já no Inquérito Judicial 506/06.8TBLSD, o falecido F… identificava como bens da sociedade além do prédio identificado em d), todos os materiais e equipamentos que se encontravam nesse prédio que servia também como estaleiro tais como serrotes, escoras, taipas e serras cabos, e ainda um veículo automóvel, da marca Toyota …, matrícula ..-..-SS e uma grua e uma betoneira.
m) A 18/01/07 a autora deu entrada neste Tribunal do pedido de Arrolamento dos bens propriedade da 2.ª Ré, processo que correu por apenso ao Inquérito Judicial supra referenciado.
n) O 1° R. C… foi indicado como testemunha na petição de arrolamento supra referido, tendo comparecido à diligência da inquirição de testemunhas marcada por este Tribunal no âmbito da referida providência em 11.01.2008.
o) No art. 27.º de tal petição alegou a autora, aí requerente que:
“Ocorre ainda que chegou ao conhecimento da requerente que os requeridos estão a tentar vender o dito terreno, tendo já realizado pelo menos duas propostas a dois diferentes possíveis compradores”.
p) Em 03.01.2007, o 1.º Réu marido outorgou com a sociedade 2.ª Ré, contrato-promessa de compra e venda do prédio urbano identificado em d), outorgando aquele como promitente-comprador e esta como promitente-vendedora declarando prometer vender o referido prédio ao 1.° Réu pela quantia de € 67.500,00 (sessenta e sete mil e quinhentos euros), conforme consta a fls. 71 e 72 e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.
q) Nesse contrato-promessa o 1.º Réu marido declarou prometer comprar o prédio urbano aqui em causa à 2.ª Ré, pelo preço de € 67.500,00 (sessenta e sete mil e quinhentos euros).
r) E consta a declaração que terá dado a título de sinal à 2.ª Ré a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) sendo que a restante € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) deveria ser paga no acto da escritura.
s) Foi instaurada acção declarativa de condenação - Execução Específica–neste Tribunal, no 1.° Juízo, proc. n.º 1726/07.3TBLSD, instaurado contra a Ré sociedade, pelo 1.º Réu C…, tendo aquela, através dos seus sócios, vindo confessar o pedido e, solicitar ao Tribunal que ordenasse a transferência da propriedade do prédio em causa nos autos para o aqui 1.° Réu.
t) A referida acção-execução específica-não foi contestada pela Ré e foi proferida sentença por este Tribunal decretando-a e transferindo a propriedade do prédio identificado em d) para o aqui 1.° Réu.
Da base instrutória:
u) Com vista ao pagamento do preço real relativo à venda referida em d) que foi de pelo menos € 34.117,78, os sócios gerentes da sociedade R., G…, H… e I…, emitiram as declarações referidas em f), cujo segundo outorgante aí mencionado era F…, melhor identificado em a), também ele sócio-gerente da sociedade R.
v) Até 8/01/2008, a A. teve conhecimento de que o 1.º R. marido havia outorgado com a sociedade 2.ª R. o contrato-promessa de compra e venda referido em p).
x) Nas vésperas do Natal de 2006, já após o falecimento do marido da A. e encontrando-se esta no Hospital … em Penafiel a fim de ser atendida por motivo de doença, acompanhada da sua filha N…, recebeu esta no seu telemóvel uma chamada do 1.º R. marido, dizendo-lhe que estava no exterior do edifício daquele hospital e que precisava de lhes falar.
z) A filha da autora a N… deslocou-se ao exterior do hospital enquanto a autora ficou a aguardar a sua vez de ser consultada, tendo o 1.° Réu marido, C…, dito à referida N… que tinha sido a sua filha O… quem lhe havia dado o contacto telefónico da mesma e que o informou que a mãe e a avó, a autora, se encontravam no hospital referido.
aa) O 1.º R. marido tinha-se dirigido ao local onde a referida N… residia, na Vila de Lousada, sendo atendido pela neta da A. O…, para se informar da situação do prédio melhor identificado em d).
ab) Antes dos factos descritos em x) e z), o R. marido soube por terceiros que o prédio melhor identificado em d) tinha problemas a ele associados.
ac) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em x) e z), a filha da A., N…, disse ao R. marido que o prédio de d) havia sido vendido pelo seu falecido pai à sociedade R. e que o preço correspondente ainda não tinha sido pago e que existiam divergências entre a A. sua mãe e os sócios da sociedade R. acerca desse assunto e da situação financeira desta última.
ad) O 1.º R. marido travou conhecimento com os sócios da sociedade R., H… e G…, através de um fornecedor de materiais a quem a sociedade R. devia dinheiro com a ideia de aquele comprar o terreno de d) que esta estava interessada em vender.
ae) A transmissão de propriedade referida em s) e t) foi pretendida pela sociedade R. com o propósito de satisfazer dívidas próprias e com a consciência de que o respectivo património ficava desprovido do único bem imóvel, à data de valor superior a € 67.500,00, de que dispunha, em prejuízo da satisfação do crédito de que a A. se arrogava o que era do conhecimento do R. marido.
af) Os equipamentos e máquinas referidos em l) correspondem aos que pelo Serviço de Finanças de Lousada foram penhorados no âmbito de um processo de execução fiscal e foram descritos num anúncio publicado no J… de 16/03/2008, sob o n° 289 e foram avaliados então e com referência a 06/03/2008, em € 37.716,00.
ag) A sociedade R. dispõe da carrinha Toyota … identificada em l).
ah) À data da propositura da acção judicial referida em s) e na data em que foi proferida sentença em 26/02/2008, a R. sociedade tinha apenas os bens referidos em l), em af) e em ag), sendo que o prédio prometido vender, penhorado nos termos referidos em h), tinha o valor base de venda de € 10.374,00 e a proposta mais elevada para a venda do mesmo–que não chegou a realizar-se em virtude do pagamento da quantia exequenda nos termos de i)–no âmbito da respectiva execução foi de € 35.300,00.
ai) Aquando da celebração do contrato promessa referido em p), o R. marido entregou à sociedade R. o valor de € 30.000,00 a título de sinal, o que, enquanto a propriedade do prédio prometido vender não foi transferida para aquele, foi levado à contabilidade desta como crédito do primeiro sobre a segunda.
aj) Em Outubro de 2006 a sociedade R. e o falecido marido da A. tentaram efectuar um acordo que incluía o crédito que este se arrogava no valor de € 34.117,78 correspondente a pelo menos parte do preço real da venda de d).
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III. O DIREITO

Apreciemos então as questões postas na apelação pela ordem cronológica que os apelantes as colocaram e decorrente da lei.

a)- saber se a sentença é nula por violação do artigo 615.º nº al. e) do NCPCivil.

Alegam os recorrentes que a sentença proferiu condenação que não tem correspondência com o pedido formulado na acção.
Vejamos se assim é.
Estatui o artigo 615.º, nº 1 al. e) do NCPCivil que “É nula a sentença quando:
(…)
e) “O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
Ora, no caso concreto, a Autora formulou o seguinte pedido:
“Que a acção fosse julgada procedente e provada e, consequentemente, declarar-se que a citada alienação onerosa que tem por objecto o prédio urbano composto por uma parcela de terreno para construção, com a área de 1.140 m2, sito no …, da freguesia …, do concelho de Lousada, à data omisso na matriz mas, actualmente inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.° 1006 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.° 00727/19900319, não produza efeitos relativamente à autora, que age por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu falecido marido F…, podendo esta exercer em plenitude os seus direitos na execução já instaurada sobre a fracção em causa, nomeadamente através de penhora, para recuperação do seu referido crédito”.
O tribunal recorrido decidiu:
a) Determino a restituição do prédio descrito em d) dos Factos Provados, transmitido da ré E…, Ld.ª ao réu C…, na medida exigida pela satisfação do crédito da autora B…;
b) Reconheço à autora B… a possibilidade de executar o referido prédio no património do réu adquirente C…, com exclusão de outros credores; e
c) Reconheço à autora B… a possibilidade de praticar, relativamente a esse prédio, os actos de conservação patrimonial autorizados por lei”.
Sem dúvida que não existe correspondência formal entre o peticionado e o decidido.
Mas padecerá a sentença da nulidade que lhe assacam os recorrentes?
Analisando.
Por força do princípio do dispositivo o tribunal, apesar de legitimado para fazer assegurar o direito objectivo, jamais pode condenar em objecto diverso do pedido ou em quantidade superior à peticionada pelo autor (cfr. o artigo 609.º, nº 1 do NCPC).
A sentença deve sempre corresponder à demanda, determinando-se por ela na sua espécie e medida, havendo, assim, um limite absoluto aos poderes do tribunal, qual seja o da correspondência necessária entre o pedido e o resultado.
A acção de impugnação pauliana tem como finalidade, como se sabe, conferir ao credor a possibilidade de obter, contra terceiro que procedeu de má fé ou que se locupletou, a eliminação do prejuízo resultante do acto impugnado.
Com efeito, estabelece o art. 616.º, nº 1 do C.Civil “julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.
Desta disposição resulta, que o credor, uma vez julgada procedente a impugnação, tem direito à restituição efectiva dos bens ao alienante (o que não terá interesse na generalidade dos casos, vide a este propósito o C.Civil Anotado dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela que referem que essa restituição pode ter interesse se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência caso em que o bens revertem para a massa falida) e direito de execução no património do obrigado à restituição.
Evidentemente que, face a estas circunstâncias, numa acção de impugnação pauliana o cerne do seu interesse será para o credor, a restituição efectiva dos bens ao alienante/devedor ou o direito de execução no património do obrigado à restituição.
Ou por outras palavras, o âmago essencial do pedido será a declaração de ineficácia da venda com vista a permitir ao credor, posteriormente, a execução do bem alienado.
Dúvidas não existem de que a Autora formulou adequadamente o pedido no sentido da declaração de ineficácia da venda feita entre a Ré E…, Ld.ª e os Réus C… e mulher.
Efectivamente, essa declaração de ineficácia está contida quando solicitam que essa venda “não produza efeitos relativamente à autora, que age por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu falecido marido”.
Da mesma forma que também solicitaram a possibilidade de “exercer em plenitude os seus direitos na execução já instaurada sobre a fracção em causa, nomeadamente através de penhora, para recuperação do seu referido crédito”.
Ora, a condenação proferida pelo tribunal mais não é do que a consequência jurídica da procedência da impugnação estabelecida no já citado artigo 616.º, nº 1 do C.Civil.
Evidentemente, que essa condenação só podia ser proferida se verificados os respectivos pressupostos em que assenta a sua procedência, ou seja, o decidido pelo tribunal, contém-se no pedido formulado pelos Autores, isto é, a essência do pedido formulado por aqueles manteve-se, o efeito prático por eles pretendido não se encontra desvirtuado pelo condenação proferida, vai antes ao seu encontro.
É preciso não esquecer que o que, afinal, identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico.
Ora, o decidido pelo tribunal não se afastou daquele efeito prático-jurídico que está subjacente à instauração da acção de impugnação pauliana.
Importa, ainda sopesar que nem sempre está vedado ao tribunal fazer a convolação do pedido, mesmo oficiosamente sem que isso represente violação do disposto no artigo 609.º, nº 1 do NCPCivil, antigo 661.º, nº 1.
Veja-se, por exemplo a possibilidade decidida no acórdão uniformizador 3/01, de 23 de Janeiro facultando ao juiz a correcção oficiosa, em acção de impugnação pauliana, do pedido de «declaração de nulidade ou anulação» do negócio impugnado para o de «ineficácia do acto em relação ao autor no assento ao tribunal convolar, mesmo oficiosamente, por exemplo, de um pedido de anulação do negócio jurídico para a declaração da respectiva ineficácia, sem que tal permita afirmar que, ao fazê-lo, o tribunal julgou objecto diverso do que havia sido peticionado ou a possibilidade reconhecida pelo Assento de 28/3/95 de fazer derivar o direito do autor a determinada prestação, não da via jurídica por ele construída e estruturada ao longo do processo–o cumprimento de determinada relação contratual–mas de via juridicamente diversa, resultante de o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade desse contrato, acabando por atribuir o bem pretendido pelo autor por força da actuação da regra da restituição do recebido, com fundamento no nº1 do art. 289º do CC ( e não no cumprimento do contrato tido por nulo, invocado pelo autor no pressuposto de que seria válido).[1]
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Decorre do exposto que não padece a sentença da nulidade estatuída na alínea e) do nº 1 do artigo 615.º do NCPCivil.
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Alegam também os recorrentes que existe contradição entre o pedido e causa de pedir sendo, pois, inepta a petição inicial e, reportando-se o vício ao momento da sentença, em face do princípio do dispositivo, a sentença condenatória também padece, nesta parte, de nulidade, por violação do artigo 668º, nº 1 al. c) hoje artigo 615.º, nº al. c) do NCPCivil, uma vez que os fundamentos estão em contradição com a decisão.
Com efeito, referem, a Autora usa na causa de pedir a impugnação do contrato promessa e peticiona a ineficácia do acto oneroso de transmissão.
Vejamos.
Estatui o artigo 615.º, nº 1 al. c) do NCPCivil que “É nula a sentença quando:
(…)
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A decisão é nula quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, isto é, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos diferente daquela que consta da decisão.[2]
Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial.
A coerência ou justificação interna da decisão reporta-se à sua coerência com as respectivas premissas de facto e de direito, dado que a decisão não pode ser logicamente válida se não for coerente com aquelas premissas.
Como refere Antunes Varela[3] “Nos casos abrangidos pelo artigo 668.º nº 1 al. c), há um vício real de raciocínio do julgador (…): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.[4]
E, tal contradição, referem os recorrentes, que resulta do facto de a Autora usar na causa de pedir a impugnação do contrato promessa e peticionar a ineficácia do acto oneroso de transmissão.
Salvo melhor entendimento, não se vislumbra onde ocorre a apontada nulidade.
Com efeito, o contrato-promessa inicial celebrado entre a 2ª Ré e Réu marido cujo objecto era o imóvel a que faz referência al. d) dos factos assentes, veio depois a ser objecto de execução específica tendo o tribunal, na procedência da acção, ordenado a transferência da propriedade do referido imóvel para Réu marido [factos descritos em p) a t)].
Como assim, o acto impugnado tinha, obviamente, que ser aquele acto definitivo de transmissão e, o pedido de ineficácia tinha que ser por referência a esse acto, pois que, o contrato promessa tornou-se, operada aquela transmissão, inócuo do ponto de vista jurídico quanto ao seu objecto.
Do que se acaba de expor, não vemos como possa se possa dizer que a decisão está em oposição com os seus fundamentos, face a factualidade que dela consta e à sua subsunção jurídica.
Na verdade, os fundamentos de direito vertidos na decisão recorrida, teriam, forçosamente, que levar a decisão vertida na sua parte dispositiva, não havendo, assim, a contradição que lhe pretendem assacar os recorrentes.
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b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Entendem os recorrentes que o Tribunal julgou erradamente os pontos u), ac) ae) e aj) da matéria de facto (por referencia aos dados como provados na sentença), bem como os artigos 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34 e 37 dos não provados, constantes da base instrutória e da resposta à matéria de facto.
Apreciando.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no art. 655.º, nº 1, do CPC: “o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”-actual 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[5]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[6]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art. 653º, nº 2, do CPC-actual 607.º nº 4).
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Daí que, conforme orientação jurisprudencial prevalecente o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.
Na verdade, só perante tal situação [de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão] é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal [ad quem] sindicar (artº 655.º-1 do CPC), e pelas razões já supra expandidas.
Em conclusão: mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade.
É que o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.
Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.[7]
Casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas-v.g. por distracção-determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.
A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão aos apelantes, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por eles pretendidos.
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Alegam os recorrentes estar erradamente julgado o facto constante da alínea u) dos factos provados.
Tal facto é do seguinte teor:
Com vista ao pagamento do preço real relativo à venda referida em d), que foi de pelo menos € 34.117,78€, os sócios gerentes da sociedade R. G…, H… e I…, emitiram as declarações referidas em f) (correspondente a 6 da p.i.), cujo segundo outorgante aí mencionado era F…, melhor identificado em a), também ele sócio gerente da R. sociedade”.
Este facto corresponde à resposta dada ao quesito 1º da base instrutória cuja redacção era a seguinte:
Para pagamento do preço real relativo à venda referida em D) que foi de € 34.117.78, a 2ª Ré, através dos seus sócios-gerentes, G…, H… e I… (omitiu-se a transcrição das moradas) emitiram as declarações referida em F) da matéria assente”?
O pomo da discórdia quanto a este ponto factual situa-se no facto de o tribunal recorrido ter dado como provado que, o valor do preço da compra e venda, tivesse sido de € 34.117,78.
Referem em primeiro lugar os recorrentes que não tendo a Autora alegado a falsidade da escritura como exige o artigo 371.º, nº 2 do C.Civil, tal documento faz prova plena nos termos do artigo 371.º, nº 1 do mesmo diploma legal.
Para, além disso, referem que impugnaram as declarações cujo conteúdo consta da alínea f) dos factos provados, nos termos constantes dos artigos 35º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º, 54º, 55º, 57º e 58º da contestação e, não obstante a réplica, não mereceram impugnação pelo que deveriam constar do acervo dos factos provados com vista à boa decisão da causa na ponderação crítica da prova.
Vejamos em primeiro lugar a questão da não impugnação dos factos supra referidos.
Nos termos do artigo 502.º, nº 1 do CPCivil revogado, “À contestação pode o autor responder na réplica, se for deduzida alguma excepção e somente quanto à matéria desta; a réplica serve também para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, mas a esta não pode ele opor nova reconvenção.”
Portanto, nos termos do citado preceito, o articulado da réplica apenas podia ser usado no âmbito das finalidades aí referidas, não podendo, pois, servir para impugnar factos que não constituíam matéria de excepção.
Ora, para além da factualidade constantes dos citados artigos da contestação não constituir matéria de excepção e por isso estar vedado à Autora a pronúncia quanto a estes factos o certo é que, ainda assim, ao contrário do que referem os recorrentes, parte dessa tal factualidade encontra-se impugnada no artigo 14º da réplica, só não estando os factos 49º, 51º, 52º e 54º.
Como assim, tais factos não podem constar da matéria assente.
Alegam depois os recorrentes que, uma vez que a Autora não alegou a falsidade da escritura como exige o artigo 371.º, nº 2 do C.Civil, tal documento faz prova plena nos termos do artigo 371º, nº 1 do mesmo diploma.
Vejamos.
Estatui o artigo 371.º do Código Civil que “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.”
Ora, quando o legislador determina que os documentos autênticos fazem prova plena, refere-se tão só aos actos praticados pela Autoridade competente e aos actos praticados pelas partes junto da mesma, designadamente as declarações prestadas aquando da elaboração do documento.
A autoridade, in casu o notário, não consegue confirmar se as declarações das partes são verdadeiras, se representam a realidade dos factos materiais.
Deste modo, o documento autêntico não pode fazer prova plena dos factos alegados pelas partes, carecendo os mesmos de produção de prova.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[8], “O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (ex. procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que perante ele o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coação, ou que o acto não seja simulado. Um exemplo: numa escritura de compra e venda de imóveis o vendedor declara que recebeu o preço convencionado; o documento só faz prova plena de que esta declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço ainda não foi pago”;
De igual forma refere Vaz Serra[9] “Os documentos em que o documentador (v.g., o notário) atesta determinados factos, só provam plenamente o que neles é atestado com base naquilo que o documentador se certificou com os seus sentidos. Assim, o documento não prova plenamente a sinceridade dos factos atestados pelo documentador ou a sua validade e eficácia jurídica, dado que disso não podia o documentador aperceber-se. Daí que o documento, provando plenamente terem sido feitas ao notário as declarações nele atestadas, não prova plenamente que essas declarações sejam válidas e eficazes.”
Portanto, a demonstração do preço não está sujeita à prova legal ou tarifada, isto é, “aquela cujo valor de convencimento é imposto pela lei ao Juiz”[10], mesmo no caso dos documentos autênticos, como, por exemplo, nas escrituras notariais, o preço declarado pelas partes e que deles constar, apenas faz prova plena se o pagamento tiver sido feito na presença do notário e se este assim o atestar.
É que, a força probatória plena das escrituras, não se estende à veracidade, realidade ou verosimilhança das declarações dos outorgantes intervenientes.
Com refere Almeida e Costa[11] ”(…) Assim se na escritura de compra e venda o vendedor declara ter recebido do comprador o preço convencionado, essa escritura só faz prova plena de que o vendedor emitiu a declaração perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove a existência de erro ou de simulação e que o preço ainda não tenha sido efectivamente pago”.
Aqui já não é materialidade das declarações, que não pode pôr-se em causa, mas o seu conteúdo, que, por não atestado pelo documentador público, é passível de impugnação e demonstração por qualquer meio de prova.
Acontece, porém, que, conforme se vem entendendo, a declaração prestada constituirá confissão extrajudicial de que faz prova plena a escritura pública, só contrariável mediante prova do contrário, para o que, contudo, está vedada a prova testemunhal–arts. 352.º, 355.º, nº 4, 358.º, nº 2, 347.º e 393.º, nº 2 C. Civil.
A razão de ser da proibição da prova testemunhal contra ou para além das declarações provadas pelo documento anda associada à consabida falibilidade desse meio de prova e aos perigos de que possa prevalecer sobre a prova documental, reconhecidamente mais segura, bem como ao facto de as partes poderem munir-se do competente escrito para titularem e provarem os pactos a que respeitem.
Todavia, sendo as convenções válidas, tem-se entendido que a norma do artigo 394º, nº 1 comporta restrições e limitações, designadamente quando há um começo de prova escrita que torne verosímil o facto invocado, pois que, então, a prova testemunhal não é já o único meio de prova desse facto ou pacto, resultando, consequentemente, em grande parte afastados os perigos que estão na origem da proibição, na medida em que a convicção do tribunal vai encontrar a sua primeira base de suporte num documento.
Perante esse começo de prova por escrito, quando as circunstâncias do caso façam crer que as convenções contra ou além do documento tenham tido lugar, a prova testemunhal, como defendeu Vaz Serra[12] “terá um papel de suplemento de prova” e será de admitir, impondo-se, ante as circunstâncias do caso, a interpretação “com os devidos cuidados” do preceito proibitivo, cuja desaplicação se deve ter por justificada quando o mencionado começo de prova por escrito já tenha tornado verosímil o facto a provar.
Portanto, perante um começo de prova por escrito, a prova testemunhal será de admitir, desempenhando uma função de suplemento de prova, em limitação à norma do n.º 1 do art. 394.º.[13]
Interpretando casuisticamente o preceito, julgar-se-á se a sua desaplicação se deve ter por justificada em razão de o mencionado começo de prova por escrito já ter tornado verosímil o facto a provar.
Assim perspectivadas as coisas, há que convir que a prova testemunhal eventualmente relacionada com convenção contrária ao conteúdo da escritura pública terá de ter-se por admissível porque complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito e de particular relevância consubstanciado nos três documentos particulares assinados pelos sócios da 2ª Ré em que se declaram devedores ao 2º outorgante das quantia aí mencionadas, documentos esses cuja reconhecimento da assinatura ocorreu no mesmo dia da celebração da escritura pública em causa.
Isto dito, não estava, portanto, a Autora impedida de fazer prova, mesmo testemunhal, de que o preço declarado não foi o preço real mas que este era de montante superior.
Ora, na fundamentação da decisão da matéria de facto o tribunal discorreu do seguinte modo:
“As respostas aos quesitos basearam-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência, mais concretamente no depoimento da própria sociedade R., através dos seus sócios gerentes H… e G…, que, a par do contrato de compra e venda a que se refere a al. D) dos Factos Assentes, reconheceram as declarações de dívida que então subscreveram juntas a fls, 56 e ss. e referidas nas als. E) e F) dos Factos Assentes, que diziam respeito ao preço real-embora não declarado, segundo o sócio H… para “fugir ao Fisco”-do terreno objecto do contrato correspondente à parte pela qual cada um daqueles sócios e ainda o sócio I… respondia.
Sobre o pagamento pela sociedade R. compradora desse preço real não foi produzida qualquer prova.
Na verdade, a assunção por parte daqueles três sócios de parte do preço do terreno, através da subscrição das referidas declarações de dívida, é mostra inequívoca de que o preço da compra do terreno correspondeu pelo menos à soma de cada uma das partes assumidas pelos sócios, inclusive a do próprio F… (de quem a aqui A. é viúva-cfr. fls. 31), na pessoa de quem se confundia também a qualidade de credor, assim se extinguindo a sua co-responsabilidade da dívida, e a necessidade de subscrever igual declaração.
Donde, fica também demonstrado o valor da obrigação da sociedade R. correspondente à compra do terreno em apreço.
Para mais, inexiste qualquer documento que comprove o pagamento desse valor e os depoimentos dos identificados sócios-gerentes H… e G… nesse sentido, e ainda assim de forma vaga e genérica, sem mais, não são meio idóneo para o efeito assim como não o é, em si mesma, a contabilidade da R. que, naturalmente, reflecte apenas aquilo que lhe é apresentado pela própria, sem garantia, se desacompanhada daqueles documentos comprovativos, de correspondência com a realidade, como foi declarado pelo próprio TOC que a realizou, M…, e L… e X…, que, no âmbito do inquérito judicial n.° 506/06.8TBLSD. do 2.° Juízo deste Tribunal que teve por objecto, além do mais a sociedade R. (cfr. fols. 98 e ss. e 607 e ss). analisaram a respectiva contabilidade conforme relatórios periciais de fols. 950 ess. e 1301 e ss.”
Respigando a fundamentação supra referida torna-se evidente que a Srª juiz fez uma ponderação conjunta da prova para fundamentar a resposta ao apontado quesito, valorando, naturalmente, as declarações de dívida constantes de fols. 56 e ss. dos autos e ainda os depoimentos prestados pelos sócios da 2ª Ré H… e G….
Ora, nenhum outro subsídio probatório os recorrentes invocam para que se altere a resposta dada pelo tribunal recorrido, limitando-se a tecer meras considerações sobre outros aspectos laterais e que nada têm que ver com a impugnação da matéria de facto tal como se encontra plasmada no artigo 640.º do NCPCivil.
Acontece que, as meras considerações e especulações sobre meios de prova a considerar, pela Juiz do tribunal “a quo”, não merece qualquer relevo para efeitos de reapreciação da prova, uma vez que a lei subordina a impugnação, apenas aos pressupostos de natureza formal previstos no citado normativo.
Têm, todavia, razão os recorrentes no que tange à expressão constante desse facto de “pelo menos”.
Na verdade, no artigo 5º da petição inicial alegou que o montante de € 34.117,78 foi o preço real relativo à venda. Ora, se assim foi, não faz sentido a utilização daquela expressão que inculca a ideia que terá sido mais e, portanto, não condizente com o afirmado no respectivo articulado a que a parte ficou vinculada (artigo 46.º do NCPCivil, antigo 38.º).
Como assim, fica tal facto expurgado dessa expressão.
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Referem também os recorrentes que existe erro no julgamento da matéria de facto, no que respeita às alíneas ac) e aj).
É do seguinte teor o conteúdo desse facto:
Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em x) e z), a filha da A., N…, disse ao R. marido que o prédio de d) havia sido vendido pelo seu falecido pai à sociedade R. e que o preço correspondente ainda não tinha sido pago e que existiam divergências entre a A. sua mãe e os sócios da sociedade R. acerca desse assunto e da situação financeira desta última”.
Esta resposta engloba a matéria factual constante dos quesitos 11º a 15º da base instrutória cuja redacção era a seguinte:
11. – E o primeiro R. assim fez tendo confirmado à dita N… a conversa que tinha acabado de ter com a sua filha O…?
12 - Questionou o 2.° Réu também a filha da autora N…, uma vez mais sobre o tipo de problemas que existiam?
13 - Então, esta referiu-lhe que o preço de venda do prédio identificado não tinha sido pago aos respectivos pais, referindo-lhe, ainda, a existência das confissões de divida referidas em F) da matéria assente?
14 - e, ainda, lhe disse que corria neste Tribunal desde Março de 2006 um Inquérito Judicial à Sociedade, 2.ª Ré e instaurado pelo seu falecido pai, por suspeitas de graves irregularidades, contra não só a sociedade 2ª Ré mas também contra os sócios-gerentes desta?
15 - Mas, também lhe disse que a 2ª Ré não só devia aos seus pais o preço correspondente à venda do prédio urbano no qual o 1° Réu estava interessado em adquirir mas também €100.000,00, (cem mil euros), que o seu pai havia mutuado à 2ª Ré?
Entendem os recorrentes que manifestamente, o Tribunal excedeu o âmbito da alegação e pergunta, pois que, nada se perguntava acerca da situação financeira da empresa.
Tem, efectivamente, razão os apelantes.
Na verdade, nos quesitos em causa nada se refere sobre a “situação financeira da empresa” e, como tal, essa expressão deve ser expurgada do citado facto.
O facto descrito em aj) tem a seguinte redacção:
Em Outubro de 2006, a Sociedade Ré e o falecido marido da A. tentaram efectuar um acordo, que incluía o credito que este se arrogava no valor de 34.117,78€, correspondente a pelo menos parte do preço real da venda referida em D)”.
Esta resposta corresponde ao quesito 39.º que tinha a seguinte formulação:
A Ré sociedade tentou efectuar um acordo com a A., propondo-lhe pagar a quantia de 100.000,00€, numa primeira prestação de 50.000,00€, no prazo de seis meses, e o restante em 8 prestações de 6000€ por ano e numa ultima de 2000€, acordo este que por divergências de valores e forma de pagamento não se conseguiu realizar”?
Aquele quesito 39º corresponde à alegação feita pela Autora no artigo 9º do articulado superveniente constante de fols. 1114 e ss.
Acontece que, a matéria do citado artigo teve por base a correspondência trocada entre a mandatária da Autora a Drª P…, sendo que, no documento de fols. 1123/1124 se discriminam os valores em dívida que a Ré E…, Ldª tinha para com a Autora e onde figurava também o referente ao terreno, cuja resposta da Ré foi a que consta de fols. 1127/1128.
Portanto, a resposta dada pelo tribunal recorrido não extravasa aquilo que nele se perguntava, o que se referiu é que esse acordo de pagamento também englobava o montante de € 34.117,78 relativo ao terreno referido na alínea D) dos factos assentes.
Quanto aos “sujeitos” e ao “tempo” a que o quesito se refere supõe-se que os recorrentes não atentaram na alteração dada ao quesito em causa como consta de fols. 329-B conforme despacho de fols. 1149-C a 1149-E e 1181.
Como assim, também se mantém a resposta ao citado quesito dada pelo tribunal recorrido.
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Dizem, depois, os recorrentes que resultaram como não provados os artigos 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34 e 37 da base instrutória, quando da prova produzida em audiência, “(…) nomeadamente, depoimentos de parte, testemunhal, perícia à contabilidade da Ré sociedade (fls. 798 e ss e 821 e ss), facturas (fls.1035 e ss ou 1333 e ss), constante dos autos, e não impugnada, deveriam tais factos ser dados como provados, pois que, tal a ser probatório, numa verdadeira análise critica, manifestamente e necessariamente o impunha”.
Os citados quesitos tinham a seguinte formulação:
26º– Em 31/05/2007, a Ré sociedade era titular de vários créditos que totalizavam pelo menos, 326.845,34€. - artigo 28º da b.i. – Resultante da divida de G…, no valor de 70.000,00€?
29º- Outro resultante da divida do filho da A., Q…, no valor de 15.125,00€?
30º– Outro resultante de divida da filha da A. S… no valor de 88.280,23€?
31º– Outro resultante de divida do filho da A. T…, no valor de 68.292,95€?
32º- Outro resultante da divida do filho da A. U…, no valor de 55.147,16€?
33º– A Ré sociedade apenas devia ao falecido marido da A. em 2007, a quantia de 559,54€?
34º – Na data de 26.02.2008, em que foi proferida sentença no processo 1726/07.3TBLSD deste Juizo e Tribunal e referida em T) da matéria Assente, mantinham-se os débitos referidos em 28 a 31 da BI?
37º- Na data referida em 26 da BI as dividas à Sociedade Ré de clientes de cobrança duvidosa ascendiam a 211.720,34€ (duzentos e onze mil, setecentos e vinte euros e trinta e quatro cêntimos)?
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Sobre a não prova destes factos o tribunal discorreu do seguinte modo:
“No que respeita aos créditos da sociedade R. sobre alguns dos filhos da A., não obstante ter ficado demonstrado que foi aquela quem construiu as casas de alguns deles, certo é que os elementos reunidos pela própria contabilidade, analisada nos termos sobreditos, conforme relatório de fols.. 950 e ss., não permite determinar a sua existência actual, desde logo pela desorganização, pela confusão proveniente de as receitas e pagamentos relativos à sociedade R. serem feitos através da conta pessoal do sócio H… e pela falta de rigor e fidelidade à realidade, características apontadas por todos os contabilistas que com ela tiveram contacto por via da sua análise quer no âmbito do mencionado inquérito judicial, os já referidos L… e X…, quer a título particular, o sobredito K…, ou por via da sua elaboração, o identificado M… que, segundo referiu, se limitou a recuperar as contas da empresa de acordo com os elementos fornecidos, não garantindo a sua correspondência com a realidade, tendo até dado o exemplo do valor de 70.000.00 € retratado no referido relatório a fls. 954 como uma dívida do sócio G…, supostamente pela aquisição de uma moradia à sociedade, quando na realidade se tratou de um empréstimo contraído em nome daquele que não se destinou a qualquer aquisição mas antes a financiar a sociedade que, de resto, como o sócio H… já havia adiantado, suportou os respectivos custos.
No que ao aspecto particular dos alegados créditos da sociedade R. sobre os filhos da A. diz respeito, é o próprio relatório pericial, a fol. 955 que, não sendo infirmado pelo TOC M…-que inclusivamente acrescentou que foi sempre o sócio H… quem lhe forneceu todos os dados que fazia reflectir na contabilidade-consigna que, atendendo aos descritivos pouco concisos das facturas (ex. serviços prestados na sua obra de …) não se consegue concluir se estas correspondem à totalidade da obra ou apenas a parte, nunca se referindo a um orçamento, auto de medição ou quaisquer outra forma de designar o serviço efectivamente prestado, pelo que é impossível aferir se todas as obras estão efectivamente facturadas ou não”, ou se, acrescenta-se agora, se correspondem ou não a trabalhos, materiais e serviços prestados.
A este respeito, a testemunha V…, filho da A., sabendo apenas o que os irmãos lhe disseram, não contribui para o seu esclarecimento.
Aliás, embora os sócios H… e G… tenham timidamente e de forma genérica adiantado que tinham a expectativa de que o falecido F… respondesse pelos custos inerentes à construção das casas dos filhos nenhuma outra prova se produziu nesse sentido.
Sobre empréstimos ou adiantamentos que o falecido F… ou os outros sócios tenham feito à sociedade R. não foi produzida qualquer prova susceptível de o demonstrar”.
Ora, ouvidos os depoimentos que os recorrentes convocam para que se dê resposta diferente aos quesitos em causa, deles não se retira qualquer arrimo no sentido por eles pretendido.
Repare-se que, todos eles, excepto no 34º, abarcam situações particulares e referem montantes concretos de dívidas que a sociedade 2ª Ré seria credora.
Acontece que, apenas no depoimento da testemunha G… se fala no valor de 34 mil contos que os filhos da Autora teriam ficado a dever à firma, todavia, sem especificar a sua origem e respectivos devedores, para além desse, só se volta a falar em números concretos nos depoimento das testemunhas L… e X… e a instâncias da Exª Advogada que menciona € 86.548,00 quando se referia a documentação contabilística e depois mais à frente em € 70.000,00 referente a uma dívida de um sócio da firma G….
Face a depoimentos tão genéricos não vemos como possa este tribunal alterar as respostas aos quesitos em causa, sendo que, nenhum outro elemento probatório constante dos autos pode servir de elemento adjuvante, nomeadamente os relatórios periciais feitos à contabilidade da 2ª Ré que, como muito bem se refere na motivação da decisão da matéria de facto, não permitem determinar a existência das dívidas a que os quesitos mencionados se referiam.
Para além disso, os recorrentes não referem em que termos é que prova testemunhal indicada podia levar a alteração da resposta dada à referida matéria factual, pois que, não basta indicar os depoimentos das testemunhas que depuseram sobre tal matéria factual, é preciso que também, a esse propósito, façam eles a análise crítica da prova no sentido de perceber em que termos pode sustentar a resposta que propugnam para a matéria factual em causa.
É que, do afirmado pelos recorrentes a fols. 23 das suas alegações no final deste segmento impugnatório da decisão da matéria de facto, nada se retira quanto a um iter decisório diferente do seguido pelo tribunal recorrido.
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Decorre do exposto que a apreciação da Mmª Juiz a quo-efectivada no insubstituível contexto da imediação da prova-, surge-nos assim como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando por isso a respectiva alteração.
O presente caso, manifestamente, não se reconduz, pois, a um daqueles casos flagrantes e excepcionais em que-como vimos-essa alteração é de ocorrência forçosa, por ter havido, na primeira instância, um manifesto erro na apreciação da prova, uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto.
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Como assim, temos de convir que, ouvidos os depoimentos indicados pelos recorrentes e demais argumentação por eles expedida a este propósito, não são de molde a sustentar a tese por eles apresentada, excepto no que toca à resposta constante dos factos u) e ac) nos termos sobreditos, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem, não existindo, portanto, fundamento probatório convocado pelos recorrentes para que este tribunal altere a decisão da matéria factual dada como assente pelo tribunal recorrido.
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Mantendo-se inalterada a matéria factual que o tribunal deu como provada excepto no que tange ao expurgo, nos termos atrás referidos, quanto às citadas expressões dos factos das alíneas u) e ac), vejamos, agora, se a subsunção dessa factualidade se mostra correcta no sentido de se encontrarem preenchidos os requisitos da impugnação pauliana e da qual os recorrentes dissentem.
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Inexistência do crédito

Defendem os apelantes que desde logo não se encontra provado que a Autora e seu falecido marido sejam titulares de qualquer crédito perante a sociedade Ré.
Na presente acção, a Autora lança mão de um meio de tutela (impugnação pauliana) dirigido à conservação da garantia patrimonial do credor, contra actos praticados sobre os bens do devedor susceptíveis de compreender aquela garantia, cujo regime se mostra vertido nos art.s 610.º e ss. do C.Civil.
Conforme decorre de tais preceitos legais, são requisitos da procedência da impugnação de actos celebrados pelo devedor em prejuízo dos credores:
a) A existência de um crédito;
b) Ser o crédito anterior ao acto que envolva a diminuição da garantia patrimonial ou, sendo posterior, ter sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito;
c) Resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
d) Tratando-se de acto oneroso, a existência de má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor;
e) Tratando-se de acto gratuito, a impugnação procede, ainda que devedor e terceiro tivessem agido de boa fé.
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Como deflui das alegações recursórias os recorrentes põem, desde logo, em causa a verificação in casu, do primeiro dos apontados requisitos.
Parece-nos que existe, por parte dos recorrentes, sobre este aspecto, um manifesto equívoco.
Vejamos.
Está provado nos autos que:
“Em 15 de Junho de 2000, por escritura publica de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial de Lousada a autora e o seu falecido marido venderam à 2.ª Ré um prédio urbano composto por uma parcela de terreno para construção, com a área de 1.140 m2, sito no …, da freguesia …, do concelho de Lousada, à data omisso na matriz mas, actualmente inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.° 1006 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.° 00727/19900319, constituindo o lote n.° 4, do alvará n.° 18/98, de 07/12, tendo declarado que o preço da venda era de 2.500.00$00” (facto descrito em d).
Já se referiu a propósito da impugnação do facto descrito em u) que a força probatória plena das escrituras, não se estende à veracidade, realidade ou verosimilhança das declarações dos outorgantes intervenientes quer quanto ao valor declarado e respectivo recebimento.
Ficou, assim, demonstrado que o preço real da referida venda foi de € 34.117,78.
E, nesse preço real se consubstancia o crédito que a Autora detém sobre a 2ª Ré.
Ora, provado este facto, satisfez a Autora o seu ónus probatório, pois que, no concerne ao ónus da prova no âmbito da acção pauliana, em desvio ao regime geral sobre a sua distribuição, cabe ao credor a prova do montante do crédito que tem contra o devedor e da anterioridade dele em relação ao acto impugnado, e ao devedor e/ou ao terceiro adquirente a existência de bens penhoráveis de valor igual ou superior na titularidade do obrigado lato sensu (art. 611.º do CCivil).
Todavia, esse ónus probatório quanto à existência do crédito não se confunde com a prova do pagamento desse montante.
É certo que no quesito 2º da base instrutório se perguntava o seguinte:
Até à presente data, a 2ª Ré não pagou tal quantia (34.117,78€) nem à autora, nem ao seu falecido marido, nem aos seus herdeiros legais”?
Acontece que, tal quesito nem sequer deveria ter sido formulado nos termos em que o foi, pois que, era sobre os recorrentes que incidia o ónus da prova do pagamento desse valor, como facto extintivo em que se traduzia (artigo 342.º, nº 2 do C.Civil).
Na verdade, para a acção naufragar bastava aos Réus recorrentes provar o pagamento do apontado crédito.
Mas da resposta negativa a esse quesito não se segue que o crédito não exista e que ele já tenha sido pago.
A resposta negativa a esse quesito de “não provado que a 2º Ré não pagou” é perfeitamente inócua porque nada prova, uma vez que, como já se referiu, neste âmbito o que era crucial era a prova do facto positivo, ou seja, que a 2ª Ré havia pago tal montante à Autora e seu falecido marido e que, aos Réus recorrentes, incumbia provar, o que não fizeram.
Isto dito, o caminho trilhado pelo tribunal sobre uma eventual assunção da dívida consubstanciada nas declarações de dívida é de todo irrelevante, tais declarações serviram, como supra se referiu, com o princípio de prova documental sobre qual foi o preço real da compra e venda e nisso se esgotou a sua relevância para a economia desta acção.
A existência do crédito da Autora e do seu falecido marido sobre a 2ª Ré, ficou satisfeita com a prova da compra e venda do terreno em questão e respectivo montante acordado como preço (diferente, como já se referiu, do declarado na escritura pública), não se tornando necessário, para esse efeito, lançar mão da construção jurídica que fez o tribunal recorrido.
Como se referiu, eram os Réus recorrentes que tinham de provar o pagamento do valor acordado para a compra e venda por parte da 2ª Ré à Autora ou ao seu falecido marido, pois que, só com essa prova é que se verificaria a não existência do crédito e consequente improcedência da acção.
Improcede, assim, também este segmento recursório.
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Má fé

Alegam depois os recorrentes que a Autora alegou e não conseguiu provar, o que consta dos quesitos 16, 17 e 18, que respeitavam à alegada má-fé do Réu.
Como já supra se deixou referido, um outro dos requisitos exigidos para a procedência da impugnação pauliana consiste, tratando-se de acto oneroso, a existência de má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor.
Vejamos, desde logo, se do acto impugnado resultou para a Autora a impossibilidade de o obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade
Como esclarecem os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela[14], o apontado requisito traduz-se numa diminuição dos valores patrimoniais que, nos termos do artigo 601.º, respondem pelo cumprimento da obrigação, diminuição essa que pode resultar tanto do decréscimo do activo, como do aumento do passivo, acrescentando que tal situação se resolvia, no Código Civil de 1867 (artigo 1033.º), na insolvência do devedor, mas que, actualmente, se reconduz à simples impossibilidade prática de obter a satisfação do crédito.
Doutrina que o segundo deles reafirma, ao escrever que “o Código de 1966, através da nova formulação do requisito, pretendeu deliberadamente colocar ao alcance da pauliana os actos deste tipo, que, não provocando embora, em bom rigor, a insolvência do devedor, podem criar para o credor a impossibilidade de facto (real, efectiva) de satisfazer integralmente o seu crédito, através da execução forçada”.[15]
Pensamento que, aliás, encontra eco no Prof. Menezes Leitão[16], Cura Mariano[17] e na jurisprudência do S.T.J..[18]
Em termos práticos, a impossibilidade de satisfação do crédito afere-se através da avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto, comparando o valor das dívidas com o dos bens que lhe são conhecidos; no caso de o montante das dívidas exceder o valor dos bens, ocorrerá a lesão da garantia patrimonial do credor que justifica o recurso à impugnação pauliana.
A data do acto impugnado é, pois, a que conta para se saber se dele resultou a impossibilidade, de facto, de satisfação integral do crédito do impugnante.
Ora, desde logo não resultou provado, como referem os recorrentes, que a sociedade 2ª Ré tinha mais créditos sobre os filhos da Autora e sobre terceiros.
Depois, como bem se refere na decisão recorrida apesar de terem sido encontrados outros bens no património da 2.ª Ré sociedade, além do imóvel objecto do aludido acto impugnado, tais como serrotes, escoras, taipas, serras, cabos, um veículo automóvel, da marca Toyota …, matrícula ..-..-SS, uma grua e uma betoneira, tendo os equipamentos e máquinas sido avaliados em € 37.716,00 com referência a 06/03/2008, certo é que remontando o crédito da Autora a 15 de Junho de 2000, o seu valor de € 34.117,78 sofre um natural acréscimo decorrente dos juros moratórios entretanto vencidos, como se vê da quantia exequenda liquidada pela mesma no requerimento executivo de fls. 118 e segs., destinado à cobrança do referido capital e respectivos juros, ascendendo o somatório de ambos a € 62.411,95, em 27.12.2007.
Todavia, do circunstancialismo fáctico apurado resulta que, nem na data da celebração do contrato promessa de compra e venda, nem na data da propositura da acção judicial destinada a obter a execução específica, a R. sociedade possuía bens de valor superior ao montante do crédito em dívida em qualquer dessas datas, sendo certo ainda que nesse período pendiam execuções fiscais, no âmbito das quais haviam sido penhorados aqueles bens, pelo que é de concluir no sentido da verificação do requisito legal em apreço.
Resulta assim do exposto que o acto impugnado causou, objectivamente, tal prejuízo.
Mas terá havido “consciência” desse facto?
Entre as múltiplas asserções e correspondentes conceitos, referidos à boa fé, a lei escolhe, apenas um, “a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.
Tratando-se de um requisito de índole subjectiva, naturalmente que ele há-de sustentar-se em factos concretos e objectivos que exteriorizem tal estado de espírito.
Este deve mostrar-se revelador de um conhecimento do efeito prejudicial em causa com tal grau e amplitude que, por referência a padrões de conduta honesta, fiel, diligente, leal, zelosa e respeitadora dos interesses legítimos de outros sujeitos relacionados, torne exigível a abstenção de actuar e justificada a reprovação ou censurabilidade ético-jurídica de quem assim não proceda.
De má fé actua, portanto, quem, desviando-se daqueles padrões, mesmo sem intenção específica de lesar ou não antevendo isso como efeito directo ou necessário da sua conduta, pelo menos de tal resultado se consciencializa como possível ou eventual e, todavia, se conforma com ele, ou, por não adoptar o comportamento diligente devido e de que, nas circunstâncias, era capaz, representa como possível o resultado lesivo mas, devido à imprudência, age confiante–com a consciência–que ele não ocorrerá.
Daí que, como ensina o nosso STJ, “A má fé, enquanto requisito da impugnação pauliana, com ressalva da situação em que o acto a atacar for anterior à constituição do crédito, consiste na consciência do prejuízo que o mesmo causa ao credor, ou seja, na diminuição da garantia patrimonial do crédito, o que requer, tão-só, a verificação do elemento intelectual, comum ao dolo eventual e à negligência consciente, e não já do elemento volitivo, não sendo, por isso, necessário demonstrar a intenção de originar tal prejuízo”.
Ou, ainda “A má fé que se exige e há-de verificar-se é a má fé psicológica ou subjectiva que se traduz na actuação com conhecimento da verificação de prejuízo resultante do contrato sujeito a impugnação, isto é, com a representação pelo agente do resultado danoso ou consciência do prejuízo;
- A má fé a que a lei prevê refere-se à representação pelos outorgantes no contrato, no momento da respectiva celebração, de que o acto praticado afectará negativamente a realização do direito de crédito no confronto com o do devedor”.[20]
Feitos estes breves considerandos encontra-se provado neste âmbito que:
ab) Antes dos factos descritos em x) e z), o R. marido soube por terceiros que o prédio melhor identificado em d) tinha problemas a ele associados.
ac) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em x) e z), a filha da A., N…, disse ao R. marido que o prédio de d) havia sido vendido pelo seu falecido pai à sociedade R. e que o preço correspondente ainda não tinha sido pago e que existiam divergências entre a A. sua mãe e os sócios da sociedade R. acerca desse assunto.
ae) A transmissão de propriedade referida em s) e t) foi pretendida pela sociedade R. com o propósito de satisfazer dívidas próprias e com a consciência de que o respectivo património ficava desprovido do único bem imóvel, à data de valor superior a € 67.500,00, de que dispunha, em prejuízo da satisfação do crédito de que a A. se arrogava o que era do conhecimento do R. marido.
Perante tal factualidade como dizer que não se encontra provado o apontado quesito de má fé quer por parte da 2ª Ré quer por parte do Réu marido?
Não restam dúvidas nenhumas que o prejuízo do acto impugnado resultante para a Autora (traduzido no agravamento da impossibilidade de cobrar o seu crédito) era obviamente do perfeito domínio cognitivo quer da 2ª Ré quer do Réu marido bem cientes de que, em resultado da transmissão em que participaram a Autora poderia ficar lesada na realização do seu crédito e, com esta hipótese se conformando, ou, no mínimo, mesmo que não tenham admitido a sua verificação, representaram-na como possível, sendo que, o Réu marido perante a informação que lhe foi dada pela filha da Autora, deveria ter obtido um melhor e mais completo esclarecimento de todas as circunstâncias em que se propunha actuar, sopesando as consequências que daí poderiam advir e que tinha o dever de acautelar.
Resulta, assim do exposto estar também verificado o apontado requisito, sendo irrelevante, para esse efeito, a não prova dos quesitos 16º, 17º e 18º.
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Destarte, esvaziada fica a alegação dos recorrentes de se não verificarem os requisitos, por eles postas em causa, da acção pauliana, não merecendo, pois, provimento o recurso interposto, apesar da alteração da matéria de facto nos termos que ficaram decididos.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se, assim, a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelos recorrentes (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 10 de Março de 2014.
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
______________
[1] A este propósito veja-se ainda o que diz Antunes Varela in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122, págs. 252 a 255 “(…) em sede de impugnação pauliana, se na petição inicial se pediu a declaração de nulidade do acto impugnado, não está o tribunal impedido de declarar esse acto ineficaz relativamente ao autor/credor na medida do valor do seu crédito. E tal não significará qualquer violação do disposto no art. 661, nº 1 do Cód. do Proc. Civil, que impede a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, porque o erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana (que é a inutilização jurídica do acto, na parte em que a mesma atinge o direito do autor) deve ser corrigido pelo juiz sem a mais ligeira ofensa do princípio dispositivo, tal como o art. 664 do Cód. Proc. Civil o concebe e o define”.
[2] Acs. da RC de 11.01.94, BMJ nº 433, pág. 633, do STJ de 21.10.88, BMJ nº 380, pág. 444 e de 30.05.89, BMJ nº 387, pág. 456 e da RC de 21.01.92, CJ, I, pág. 86.
[3] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 671.
[4] No mesmo sentido escreve Alberto dos Réis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 141 “(…) o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
[5] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol. p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[6] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[7] Miguel Teixeira de Sousa obra citada, pág. 348.
[8] In Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, página 327 e ss.
[9] In RLJ, 111.º, pág. 302.
[10] Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, III, 196.
[11] In RLJ. Ano 129, pág. 351/352.
[12] In BMJ 112.º-217 e ss.
[13] Cfr. Vaz Serra cit.; RLJ 107.º-311 e 113.º-121; Mota Pinto, CJ X-III-12.
[14] Código Civil Anotado Vol. I, 4ª ed., pág. 626.
[15] Das Obrigações em Geral Vol. II, pág. 436.
[16] Direito das Obrigações, Almedina, Vol. II, pág. 293.
[17] Impugnação Pauliana, pág. 173 seguintes.
[18] Acórdãos de 08.10.2009 e de 12.07.2007, processo n.º 07A1851, em www.dgsi.pt.
[19] Prof. Antunes Varela, obra e local referidos; acórdão do STJ, de 10.07.2008, processo n.º 08A2083, em www.dgsi.pt.
[20] Acórdão dos STJ, de 9/2/2012 e de 12/7/2007 in www.dgsi.pt.