Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8910/17.0T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
OFENDIDO
SOCIEDADE
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP202205118910/17.0T9PRT.P1
Data do Acordão: 05/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA RECORRENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Tradicionalmente a jurisprudência considerava que o artigo 68.°, n.° 1, alínea a) do CPP consagrava um conceito restrito de ofendido, segundo o qual ofendido é o titular do interesse “direta”, “imediata” ou “predominantemente” protegido pela incriminação.
II – O acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.° 1/2003 proferido a propósito do crime de falsificação, defendendo a tese do acórdão do STJ de 29/03/2000, rompeu com o entendimento tradicional e alargou o conceito da legitimidade para a constituição de assistente à pessoa cujo prejuízo seja visado para além do interesse que a norma visa proteger especialmente, ao considerar que o vocábulo especialmente usado na lei (alínea a) do n°1 do art.° 68° do CPP) significa particular e não exclusivo, de sorte que “quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares... a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir assistente”.
III – É sabido e pacífico que só ao titular do interesse jurídico tutelado pela norma penal é reconhecida capacidade e legitimidade para intervir no processo penal como assistente.
IV – Para a decisão sobre a legitimidade da constituição como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução e não pela prova resultante do inquérito.
V – O crime de abuso de confiança não estabelece qualquer protecção, directa ou indirecta, à posição individual do sócio quando a propriedade lesada é pertença de uma sociedade comercial, não estando ínsita na previsão da norma uma qualquer protecção da continuidade do funcionamento daquela pessoa colectiva ou da saúde financeira dos sócios.
VI – A propriedade do património que se protege é a da sociedade e não a dos sócios, distinguindo a lei a personalidade jurídica e judiciária de uma e de outros, pelo que a violação de bens jurídicos da sociedade não se reflecte na esfera individual dos sócios.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 8910/17.0T9PRT.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 8910/17.0T9PRT, a correr termos na 9.ª Secção do DIAP do Porto, por despacho de 04-06-2021, foi determinado o arquivamento dos autos iniciados com a denúncia apresentada por AA, na qualidade de sócia gerente da empresa D..., Lda, contra BB, por se ter entendido que das diligências probatórias realizadas não resultaram indícios suficientes de que a arguida tenha praticado os factos denunciados.
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Por requerimento de 30-04-2021, veio AA requerer a sua constituição como assistente e a abertura de instrução.
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Por despacho de 07-07-2021, a Senhora Juiz de Instrução do Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 2, não admitiu a constituição da queixosa como assistente e, consequentemente, por inadmissibilidade legal, não recebeu o requerimento para abertura da instrução.
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Inconformada, a queixosa AA interpôs recurso desta decisão, solicitando a respectiva revogação e a sua substituição por uma outra que lhe reconheça legitimidade para requerer a abertura da instrução.
Apresenta em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1. O presente processo iniciou-se com a denuncia de factos que consubstanciam, no entender da ofendida, a prática de um crime de abuso de confiança por parte da arguida, p. e p. pelo artigo 205º do CPP.
2. A ofendida constituiu a sociedade D..., Lda em 29/10/2009 com a atividade principal de representação de marcas têxteis, sendo que, posteriormente, a arguida passou a deter parte do capital social da sociedade e a exercer funções na qualidade de trabalhadora dependente da D... e, de seguida, como gerente da sociedade.
3. A arguida cessou funções de gerente em março de 2017, tendo sido a ofendida nomeada gerente em sua substituição, tendo feito a denuncia na dupla qualidade de sócia e gerente da D..., e como forma de proteção dos seus próprios interesses e os da sociedade.
4. A legitimidade para a constituição de assistente deve ser aferida na valoração casuística da possibilidade de ao mesmo tempo ser também imediatamente protegido um interesse passível de ser materializado num sujeito concreto.
5. Acontece que, deverá ser dada relevância além do elemento literal, sendo uma tendência da sociedade uma maior proteção e participação processual da “vítima” no âmbito do processo penal.
6. Nos crimes de abuso de confiança o bem jurídico “particularmente” visado é património social, sendo de realçar um outro elemento que também entra na conformação do bem jurídico tutelado pelo crime sub judice, ou seja, a relação de confiança existente entre o agente e o proprietário da coisa ou entre o agente e a própria coisa, e que o agente viola com o crime.
7. Ora, o abuso de confiança é um crime contra o património que afeta indubitavelmente os sócios da sociedade D..., como a ofendida, pois que a mesma lesada de forma a ser quase impossível a manutenção da sua atividade, sendo que era esta a fonte de rendimento e atividade profissional da ofendida.
8. Até porque, esta foi uma sociedade constituída pela ofendida tendo sido esta sempre titular do respetivo capital social, tendo convidado a arguida para fazer parte do seu projeto de empresa, primeiro na qualidade de sócia e depois mesmo de gerente.
9. Existindo, assim, uma manifesta relação de confiança entre as sócias da sociedade, confiança essa que foi manifestamente violada pela arguida com o comportamento da mesma melhor descrito na denúncia e no requerimento de instrução.
10. Por outro lado, como se disse acima e resulta dos autos, a ofendida foi nomeada gerente da D... em março de 2017, sendo, desta forma, a legitima representante da empresa e dos respetivos interesses patrimoniais.
11. Desta forma, existe um interesse determinado da ofendida coincidente com o interesse que a norma pretende proteger.
12. Assim, e dado o bem jurídico da confiança bem como os interesses patrimoniais, serem protegidos pelo legislador, não se deve negar à ofendida que foi atingida e prejudicado pelos comportamentos do arguido que preenchem cabalmente a norma incriminadora supra mencionada, a legitimidade para requerer a abertura de instrução.»
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A arguida BB respondeu ao recurso, pronunciando- se no sentido da sua improcedência.
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando igualmente pela respectiva improcedência e pela manutenção do despacho recorrido.
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A Senhora JIC manteve o despacho recorrido.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde sufragou o entendimento do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, defendendo igualmente a improcedência do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que a recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se lhe deve ser reconhecida legitimidade para se constituir assistente e, consequentemente, requerer a abertura da instrução.

Antes de partimos para a respectiva análise, importa ter presente o teor da decisão recorrida:
«Depois de ter sido liminarmente apreciada a constituição de assistente e de o MºPº se ter pronunciado no sentido de ser deferida a pretensão da ofendida, foi cumprido o disposto no art.º 68º nº 4, do CPP, relativamente à arguida, que se pronunciou no sentido de ser indeferida tal pretensão.
Cumpre decidir.
Além das pessoas a quem leis especiais confiram tal direito, podem constituir-se assistentes os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento e as elencadas nas demais alíneas do art.º 68º, do CPP.
O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para a constituição como assistente, coincide com o conceito adotado no C. Penal no art.° 113°, n°1 para aferir da legitimidade para apresentar queixa e foi inicialmente consagrado pelo art.° 11.° do CPP de 1929 e, posteriormente, pelo artigo 4.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 35.007, de 13 de Outubro de 1945.
Segundo Figueiredo Dias (Direito Processual Penal 1, Coimbra Editora, 1974, 504), “diz-se ofendido, em processo penal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo”.
Tradicionalmente a jurisprudência considerava que o artigo 68.°, n.° 1, alínea a) do CPP consagrava um conceito restrito de ofendido, segundo o qual ofendido é o titular do interesse “direta”, “imediata” ou “predominantemente” protegido pela incriminação.
O acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.° 1/2003 proferido a propósito do crime de falsificação, defendendo a tese do acórdão do STJ de 29/03/2000, rompeu com o entendimento tradicional e alargou o conceito da legitimidade para a constituição de assistente à pessoa cujo prejuízo seja visado para além do interesse que a norma visa proteger especialmente, ao considerar que o vocábulo especialmente usado na lei (alínea a) do n°1 do art.° 68° do CPP) significa particular e não exclusivo, de sorte que “quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares... a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir assistente”.
É sabido e pacífico que só ao titular do interesse jurídico tutelado pela norma penal é reconhecida capacidade e legitimidade para intervir no processo penal como assistente.
A posição do assistente é de colaboração com o Ministério Público, a cuja atividade subordina a sua intervenção, salvo as exceções previstas na lei.
Para a decisão sobre a legitimidade da constituição como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução e não pela prova resultante do inquérito.
Refere o MºPº na promoção que antecede, “ao contrário do que afirma a arguida a requerente da constituição de assistente é gerente da D..., Lda, como resulta de fls. 620 e v, aliás única gerente e de só a sua intervenção a que a sociedade se obriga e não só mera usufrutuária de uma quota de 5% (de que não consta de qualquer documento nos autos). Pelo exposto, deve ser proferido despacho de admissão a intervir nos autos como assistente por parte de AA, em representação da denunciante D..., Lda” .
Com todo o respeito, não concordamos com tal posição.
A ofendida denuncia no RAI factos que, na sua perspetiva, são suscetíveis de integrar a prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, do CP.
Os presentes autos iniciaram-se com a denúncia apresentada por AA, na qualidade de sócia gerente da empresa D..., Lda contra BB, sócia da mesma sociedade.
Está junta aos autos Certidão permanente da sociedade D..., Lda, com a atividade económica de comércio por grosso de têxteis, vestuário, calçado e artigos de couro (fls. 30 a 33).
A denunciante, AA, inquirida em sede de inquérito, esclareceu que a denunciada é sua sócia desde o ano de 2009, na empresa D..., Lda. Mais disse que foi a gerente desta empresa até 29/04/2016, altura em que houve uma mudança da gerência, e de órgãos estatutários, devido ao facto de ter sido pressionada pelos Bancos com quem trabalhava, na sequência de um processo de insolvência de uma empresa de família da qual a depoente era avalista e accionista. Assim, deixou de ser gerente de direito da empresa D..., Lda, mantendo-se apenas como gerente de facto, ficando a denunciada como gerente de direito
A oposição da arguida à constituição da ofendida como assistente louva-se no facto de, sendo ofendida a sociedade e não a pessoa singular, tal condição tem que ser atribuída à sociedade e não à pessoa singular, sócia, citando abundante jurisprudência nesse sentido.
Lido o RAI, concretamente o seu ponto 9º, verifica-se que a lesada refere que criou a marca ..., antes da constituição da empresa “D...”, sendo certo que as perdas que alega ter tido são da empresa, como resulta dos pontos 10º e 34º a 39º.
Como se refere no AC da RL, ACRL de 17-04-2018, Proc. 6555/17.3T9SNT-A.L1 5ª Secção, in www.pgdlisboa.pt, “Sendo os crimes em causa contra o património, a pessoa ofendida com a conduta do agente que o legislador pretendeu proteger com a incriminação é, no sentido mais amplo que vem sendo interpretado quer pela doutrina quer pela jurisprudência mais recente, o titular dos interesses patrimoniais violados que foi visado pela conduta do agente e que, em consequência da mesma, sofreu danos. Em momento algum da sua denúncia os queixosos, ora recorrentes, alegam que os alegados desvios de dinheiro das contas da sociedade N..., Lda., praticados em consequência dos atos danosos imputados aos denunciantes tenham sido suportados por algum deles individualmente. Os alegados prejuízos económicos foram sentidos, segundo os próprios denunciantes, no património da sociedade, e não por estes, e o património da sociedade não se confunde com o dos respetivos sócios, tendo aquela personalidade jurídica autónoma. Ainda que, indiretamente, enquanto sócios da sociedade, os recorrentes possam vir a ser prejudicados pelos atos danosos alegadamente praticados pelos denunciados, designadamente ao nível da repartição dos lucros, tal efeito também ocorre relativamente a estes últimos, dada a sua qualidade de sócios. Os recorrentes não têm, assim, legitimidade para, no sentido mais amplo que vem sendo admitido pela doutrina e pela jurisprudência, se constituírem como assistentes, sendo certo que a defesa dos interesses da sociedade lesada já se mostram assegurados através da constituição desta como assistente”.
No AC da RE, datado de 19/12/2019, Proc. 91/18.8T9ENT.E1, refere-se, “Ora, sendo a sociedade lesada uma pessoa jurídica, o património social pertence-lhe e não aos sócios ou gerentes, sendo que a estes cabe apenas a administração e a representação da sociedade, pelo que, ainda que queixosa TP invoque a existência de prejuízos materiais para si própria, tais prejuízos, embora confiram a tal queixosa o estatuto de lesada, não a credenciam para entrar no círculo dos ofendidos, tal como são delimitados pela acima transcrita alínea a) do nº 1 do artigo 68º do C. P. Penal”.
Concretamente, estando em causa um crime como o denunciado no RAI, abuso de confiança, diz-nos o AC da RL, de 08.05.2003, Proc. 2278/03 9(J Secção, disponível in http://ww.pgdlisboa.pt: “O interesse protegido nos crimes de burla e de abuso de confiança não é apenas o interesse público do Estado de garantia das relações jurídico-patrimoniais, abrangendo igualmente o património concreto do lesado particular. No entanto, o sócio de uma sociedade concretamente ofendida por um daqueles crimes, ainda que gerente, não tem legitimidade para se constituir assistente em seu nome pessoal e em substituição da sociedade - que é um ente jurídico autónomo -, porquanto foi o património da sociedade o diretamente prejudicado; é que os direitos aos ganhos (lucros ou dividendos), bem como o direito ao bom nome, enquanto fatores de valorização da quota são, certamente, respeitáveis e atendíveis, mas são apenas interesses mediatos ou indiretos dos respetivos sócios. No mesmo sentido, Ac. da Relação de Lisboa de 06.04.2000, Proc. 1519/2 9° Secção, disponível in http://ww.pgdlisboa.pt, “ As condutas ilícitas imputadas aos arguidos atingiram o sujeito jurídico que é uma sociedade, os seus interesses patrimoniais e não os do recorrente. Daí que o recorrente não tem legitimidade para se constituir como assistente (…) Em parte alguma do requerimento para abertura da instrução o requerente alega que o arguido se apropriou do seu próprio património (…).
Em conclusão, atento o bem jurídico protegido e tutelado pelo tipo legal em causa, e atenta a sua natureza, não tem a ofendida legitimidade para se constituir assistente, pois não é titular direta do interesse jurídico tutelado pela norma penal em causa, pelo que se indefere a requerida constituição de assistente.

Nestes termos, concordamos com todas as razões enunciadas no requerimento de oposição que antecede, que aqui consideramos reproduzidas para todos os legais efeitos e nos termos do art.º 287 nºs 1 b) e 3 do CPP, por inadmissibilidade legal, não recebemos o requerimento para instrução apresentado pela ofendida, porquanto não tem legitimidade para o efeito.
Pelo incidente, 2 Uc.s, a cargo da requerente. Notifique.
Oportunamente, arquive. DN.
Porto, ds.»

Para fundamentar o seu recurso e rebater os argumentos apresentados no despacho recorrido, a recorrente invoca que o crime de «abuso de confiança é um crime contra o património que afecta indubitavelmente os sócios da sociedade D..., como a ofendida, pois que a mesma lesada de forma a ser quase impossível a manutenção da sua actividade, sendo que era esta a fonte de rendimento e actividade profissional da ofendida.
(…)
Existindo, assim, uma manifesta relação de confiança entre as sócias da sociedade, confiança essa que foi, manifestamente violada pela arguida com o comportamento da mesma melhor descrito na denúncia e no requerimento de instrução».

Esta argumentação em nada invalida a fundamentação da decisão recorrida, com a qual concordamos e à qual se adere na íntegra, posto que é reconhecido no recurso, no fundo, que o interesse pessoal da recorrente é secundário face ao interesse directo, imediato, da sociedade, não se mostrando a sua posição fundamentada em qualquer suporte doutrinal ou jurisprudencial.

Em causa está um crime de abuso de confiança (art. 205.º do CPenal) relativamente a montantes que, na versão da recorrente, deviam ter entrado nas contas da sociedade D..., Lda, sociedade de que são sócias a queixosa e a arguida.
O bem jurídico protegido com a incriminação é a propriedade[2].
No caso dos autos, a propriedade que é directamente afectada pela conduta imputada é a propriedade da referida empresa sobre os valores de que alegadamente se apropriou a arguida, assim se enquadrando a previsão do n.º 1 do art. 205.º, segundo o qual, quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade…

Dependo a constituição de assistente da qualidade de ofendido, enquanto titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 68.º, n.º 1 al. a), do CPPenal), e tendo presente que a lei protege neste caso a propriedade da sociedade D... relativamente às quantias monetárias alegadamente apropriadas pela arguida, não é possível atribuir à recorrente um qualquer interesse pessoal directamente ligado à incriminação.
O acórdão n.º 1/2003[3], de 16-01-2003, para fixação de jurisprudência, que é mencionado na decisão recorrida, e que permitiu uma abertura na interpretação do conceito até então muito restrito de ofendido, explica de forma cristalina este raciocínio quanto à situação objecto daqueles autos, ali respeitante ao crime de falsificação, afirmando-se a dado passo:
«O crime de falsificação de documento é, como se viu, um crime contra a vida em sociedade, em que o bem jurídico segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal é prevalente ou predominantemente protegido.
Mas não é o único bem jurídico particularmente protegido com a correspondente incriminação, atendendo ao conjunto do tipo.
Já se notou que, como requisito subjectivo, se exige que o agente tenha actuado com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou Estado ou alcançar para si ou para terceiro benefício ilegítimo. O mesmo é dizer que se não estiver presente esse elemento não perfecciona o respectivo tipo.
Quando for o caso, verificados os elementos materiais do iter criminis, é essa especial direcção de vontade do agente: prejudicar outra pessoa, que dita o completamento do crime.
O que impõe a conclusão, face a este elemento subjectivo, de que o tipo em causa visa proteger aqueles valores, mas (também) em razão do prejuízo que os atentados contra eles podem causar a interesses de particulares.
Esses interesses particulares, se bem que não exclusivamente, são pois protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo um dos objectos imediatos da incriminação.
Assim, se num caso concreto o agente visou com a falsificação causar prejuízo aos interesses particulares de determinada pessoa, esta poderá constituir-se assistente».

É também este sentido do acórdão n.º 10/2010[4], de 17-11-2010, para fixação de jurisprudência, este relativo ao crime de desobediência qualificada.

Ora, contrariamente à solução encontrada nestes arestos, o crime de abuso de confiança, ilícito que está em causa nestes autos – não havendo controvérsia neste ponto – não estabelece qualquer protecção, directa ou indirecta, à posição individual do sócio quando a propriedade lesada é pertença de uma sociedade comercial, não estando ínsita na previsão da norma uma qualquer protecção da continuidade do funcionamento daquela pessoa colectiva ou da saúde financeira dos sócios.
A propriedade do património que se protege é a da sociedade e não a dos sócios[5], distinguindo a lei a personalidade jurídica e judiciária de uma e de outros, pelo que a violação de bens jurídicos da sociedade não se reflecte na esfera individual dos sócios.
Por outro lado, a relação de confiança que a recorrente alega ter tido com a arguida e ter sido quebrada com a conduta que lhe imputa, não se mostra abarcada pela protecção da norma, tanto mais que essa relação respeita, em concreto, apenas à ligação da arguida à sociedade D..., lesada directa, cuja propriedade a lei pretendeu especialmente proteger, e não também às relações entre as sócias da sociedade.

Corroborando a posição consignada na decisão recorrida, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 145/2006[6], de 22-02-2006, apreciando a dimensão interpretativa do art. 68.º, n.º 1, al. a), do Código Penal no sentido de que não tem legitimidade para ser admitido como assistente um sócio de uma sociedade comercial por quotas em processo criminal em que se indicia o cometimento de um crime de infidelidade administrativa, p. e p. pelo art. 224.º do CPenal, não se pronunciou pela respectiva inconstitucionalidade, aí se defendendo que «[u]ma determinada conduta só terá, pois, dignidade penal quando ofenda a dignidade do bem jurídico que se quer proteger com determinada norma penal e quando essa conduta se revista de danosidade social. Ora, se o bem jurídico protegido no Capítulo e Título do Código Penal onde está inserido o tipo de crime de infidelidade de que curamos, é o bem jurídico do acervo patrimonial da sociedade, há que concluir que, com o eventual preenchimento do tipo de crime em questão, o que se lesa directamente, no caso, é aquele património e não, também directamente, o património de todos os sócios dela. Esses patrimónios, a serem lesados, sê-lo-ão, mas de modo reflexo ou indirecto.
E, mais importante, o que é certo é que o ordenamento jurídico não deixa desprotegidos esses patrimónios dos sócios, que poderão socorrer-se de outros instrumentos processuais para alcançar a defesa dos respectivos interesses.»

Em suma, a posição assumida na decisão recorrida mostra-se fundamentada na doutrina e jurisprudência que sobre esta temática tem sido produzida, não tendo sido apresentados argumentos que convençam a uma alteração de sentido na solução encontrada.
Ademais, importa realçar, a recorrente, sendo gerente da sociedade, conforme acta de fls. 26 dos autos, pois, não obstante não haver registo desta deliberação, ela vincula a sociedade[7], podia ter requerido, enquanto representante legal, a constituição da sociedade lesada como assistente.
Contudo, fê-lo em seu nome próprio, enquanto pessoa singular, para salvaguarda quer do seu interesse individual enquanto sócia da sociedade, quer para defesa dos interesses da pessoa colectiva D..., Lda, não beneficiando a requerente, neste contexto, da faculdade conferida pelo art. 68.º, n.º 1, al. a), do CPPenal.
Como tal, nenhuma censura se formulada ao despacho recorrido.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pela recorrente AA e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 3,5 UC a taxa de justiça devida (art. 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

Porto, 11 de Maio de 2022
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Francisco Marcolino
__________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, anotação ao art. 205.º, págs. 94 e 95. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, anotação 2. ao art. 205.º, pág. 566.
[3] Relatado por Simas Santos e publicado no DR 49, Série I-A, de 27-02-2003.
[4] Relatado por Maia Costa e publicado no DR 242, série I, de 16-12-2010.
[5] Neste sentido, acórdãos do TRE de 02-07-2013, relatado por Martinho Cardoso no âmbito do Proc. n.º 139/10.4JAFAR.E1, e de 30-06-2015, relatado por Renato Barroso no âmbito do Proc. n.º 1067/12.4TALLE.E1, bem como do TRG de 11-11-2019, relatado por Jorge Bispo no âmbito do Proc. n.º 362/17.0T9VVD.G1, acessíveis in www.gdsi.pt.
[6] Relatado por Bravo Serra e acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[7] Cf. acórdão do TRE de 13-09-2018, relatado por Ana Margarida Leite no âmbito do Proc. n.º 3019/17.9T8STR-B.E1, acessível in www.dgsi.pt.