Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
566/13.5PASJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
LESÕES CORPORAIS
Nº do Documento: RP20160601566/13.5PASJM.P1
Data do Acordão: 06/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: ANULADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 680, FLS.287-300)
Área Temática: .
Sumário: I - Se o crime é exatamente o mesmo, mas o acontecimento histórico que fundamenta a condenação não coincide nem se equipara ao que lhe foi comunicado na acusação e de que teve oportunidade de se defender, ocorre alteração não substancial dos factos, relevante, a impor o cumprimento do artº 358º CPP.
II - Tal é o caso de o arguido vir acusado de ter desferido murros na cabeça e pontapés nas pernas no ofendido causando-lhe lesões corporais e se apurar que o agarrou pelo pulso do braço esquerdo levando a que caísse ao chão causando-lhe lesões corporais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 566/13.5PASJM.P1
Secção Criminal
Secção Judicial
CONFERÊNCIA
Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg
Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
Por sentença proferida a 1 de Dezembro de 2015, no processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, n.º 566/13.5PASJM, da Comarca de Aveiro, S. João da Madeira – Instância Local - Secção Competência Genérica-J1, foi o arguido B…, com os demais sinais dos autos, condenado pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art. 143º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, o que perfaz o montante global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros), por esta via se corrigindo, ao abrigo do preceituado no art. 380º, n.ºs 1, al. b) e 2, do Cód. Proc. Penal, os lapsos de escrita evidenciados no dispositivo da sentença na indicação por extenso das quantia diária e global da pena pecuniária.
Discordando, o arguido interpôs recurso rematando a motivação com as conclusões que se transcrevem[1]:
“I - A presente sentença colocada em crise ditou:
"Pelo exposto, julga-se a acusação provada e procedente e condena-se o arguido B…, pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art. 143º/1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, com o quantitativo diário de € 6,00 (cinco) euros, no total de € 540,00 (quinhentos euros).
Custas pelo arguido, fixando-se no mínimo a taxa de justiça.
Notifique-se, deposite-se e comunique-se, remetendo-se boletins à D.S.I.C."
II - No entender do aqui arguido/recorrente B… a decisão proferida não está correcta pois não praticou os factos que foram a final dados como provados, sendo por isso injusta, violadora de normas jurídicas fundamentais, que deviam ter sido interpretadas de outra forma, em virtude dos factos que efectivamente deveriam ter ficado provados imporem outra decisão.
III - A mesma padece de vícios de facto e de direito que expressamente se impugnam e se pretendem que seja alterada, abrangendo tais vícios toda a sentença e que não existindo conduziriam à absolvição do arguido.
IV - tendo sido incorrectamente julgados concretos pontos de facto sendo que as provas produzidas impunham decisão diversa da proferida devendo a prova ser reapreciada.
V - Foram ainda violadas normas jurídicas que se descriminarão, referindo-se também o sentido em que foram interpretadas e aquele que no entender do aqui recorrente o deveriam ter sido.
VI - Face à prova efectivamente produzida, devia ter sido absolvido o arguido.
VII - Considerou a MMª Juiz a quo provados os seguintes factos: "FACTOS PROVADOS
16º No dia 8 de Dezembro de 2013, pelas 00H15, na Rua …, nesta cidade de São João da Madeira, quando o arguido B… saía da viatura em que se fazia transportar, passou junto a si o mencionado C…, o qual fez o seguinte comentário: "Andam aqui estes drogados com belos carros!".
17º Ao ouvir tal comentário, o arguido B… correu em direcção ao mencionado C… e, já junto deste, agarrou-o pelo pulso do braço esquerdo, levando a que caísse ao chão.
18º Em consequência directa e necessária da descrita actuação do arguido B…, o mencionado C… sofreu, além de dores, escoriação superficial com 1,5 cm de diâmetro na região posterior do punho do braço esquerdo e edema/rubor com 1,5 cm de diâmetro na região têmpora/ esquerda.
19º Tais lesões demandaram para a sua cura, também directa e necessariamente, 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
20º Ao actuar da forma descrita, o arguido B… quis, como conseguiu, molestar fisicamente e maltratar o corpo e saúde do mencionado C… e lesá-lo na sua integridade física.
21º Agiu o mencionado arguido B… de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O arguido foi condenado no Proc. n.º 158/06.5GCOAZ pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de 15.6.2006 e sentença de 16.6.06, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de 4,00 €, e foi condenado no Proc. n.º 10/10.0GTSJM. por factos de 13.7.2010 e sentença de 23.7.2010, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão suspensa por um ano."
VIII - É relevante outro facto com interesse para a decisão e que não resultou provado: "Não se provou que o arguido B… desferiu murros na cabeça e pontapés nas pernas do ofendido." pois era este o único facto constante da acusação que imputava uma conduta ilícita ao arguido, que configurava o crime que lhe era imputado, e que ficou não provado.
IX - formou a sua convicção segundo diz nas declarações do arguido B… e nos depoimentos das testemunhas de acusação e defesa, tendo ainda em conta o exame médico legal.
X - O depoimento do arguido contraria claramente os factos provados, concretamente o referido e transcrito na motivação, tendo tal depoimento sido acolhido e tido como verdadeiro pela MMª Juiz.
XI - Dos restantes depoimentos não é possível retirar a prova dos factos pois a testemunha policial D… nada viu, chegando depois por ter sido chamada a força policial pela presença de casal estranho, o referido casal composto pelo ofendido C… e esposa E… prestou depoimento que foi completamente devastado na própria fundamentação, pelas mentiras incontornáveis em que foi apanhado, e a testemunha abonatória nada viu e nada trouxe aos autos que permitisse a prova dos referidos factos colocados em crise.
XII - Do relatório médico também nada que resulta que permita imputar tais lesões a actuação do arguido, intencional ou não.
XIII - Salvo o devido respeito o tribunal "a quo" julgou incorrectamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova.
XIV - Assim sendo a MMª Juiz "a quo" deveria ter dado como não provado os factos…
17º Ao ouvir tal comentário, o arguido B… correu em direcção ao mencionado C… e, já junto deste, agarrou-o pelo pulso do braço esquerdo, levando a que caísse ao chão.
18º Em consequência directa e necessária da descrita actuação do arguido B…, o mencionado C… sofreu, além de dores, escoriação superficial com 1,5 cm de diâmetro na região posterior do punho do braço esquerdo e edema/rubor com 1,5 cm de diâmetro na região temporal esquerda.
20º Ao actuar da forma descrita, o arguido B… quis, como conseguiu, molestar fisicamente e maltratar o corpo e saúde do mencionado C… e lesá-lo na sua integridade física.
21º Agiu o mencionado arguido B… de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
XV - tal é imposto pelo depoimento do arguido, que referira-se mereceu inteiro crédito e não foi objecto de prova em sentido contrário sequer, como resulta da fundamentação.
XVI - E consequência absolver o arguido do crime pelo qual vinha acusado.
XVII - Tal não é contrariado pelo relatório médico nem nenhum dos depoimentos referidos na sentença excepto talvez parcialmente o do ofendido, que como resulta à saciedade da própria fundamentação mentiu de forma deliberada e extensamente.
XVIII - A sentença proferida não tem cobertura na prova efectivamente produzida em audiência, A prova produzida em audiência impõe decisão diversa, concretamente a absolvição do arguido.
XIX - O relatório médico é compatível com ... agressão a murros e pontapés e só se provou que caiu ... independentemente da razão de ser da ocorrência da queda.
XX - Existe manifesta contradição entre a fundamentação e a matéria dada como provada, pois apesar de descredibilizar por completo certos depoimentos, posteriormente acolhe-os na prova e outros cujos créditos são atribuídos a final não colhem, servem propósitos contrários....
XXI - Deveria ser provado apenas a abordagem por parte do arguido ao ofendido e a queda deste, nada mais, quando mais não fosse no âmbito do princípio "in dubio pro Reo", ou seja, presunção de inocência, previsto no art. 32º da CRP, que aqui foi claramente abandonada e afastada, ao considerar-se provado algo que não o poderia ter sido pelo menos à luz da experiência comum.
Pois, no limite
XXII - Não pode deixar de subsistir a dúvida latente se efectivamente a queda resultou da actuação do ofendido ou de medo do ofendido ou de sua queda deliberada.
E além disso,
XXIII - Mesmo que se entendesse provado o facto 17º (que o arguido agarrou pelo pulso do braço esquerdo, levando a que caísse ao chão), não se poderia daí retirar ou provar os factos 18º, 20º e 21º, o que conduziria também à absolvição do arguido, pois a descrição do facto 17º não implica qualquer vontade do arguido derrubar o ofendido e tal não resulta de qualquer elemento de prova nem sequer é mencionado na fundamentação.
XXIV - Pelo que julgando-se não provados tais artigos 18º, 20º e 21º, deveria absolver-se o arguido pois a prova do art. 17º é insuficiente para condenar-se o arguido.
Sem prescindir ainda mesmo que assim não se entendesse
XXV - Ao resultar provado (art. 16º) que o ofendido se virou para o arguido e disse "andam aqui estes drogados com belos carros" e conforme resulta da fundamentação o arguido que estava a sair do café onde tinha estado a conhecer os seus futuros sogros quando escutou tal expressão injuriosa.
XXVI - Tudo se passou em segundos, não sendo expectável ou exigível outro comportamento do arguido B…, que não fosse o confrontar verbalmente o ofendido como efectivamente confrontou e como tal disse em Tribunal, e tal deveria ser dado como provado.
XXVII - O arguido B… ao confrontar verbalmente o ofendido e ao agarrar o seu braço agiu em legítima defesa, e tal tem que ser dado como provado, pois a sua actuação foi praticada como o único meio necessário para repelir uma agressão actual e ilícita da sua honra e bom nome perpetrada por um estranho.
XXVIII - E ainda que tal se considerasse - haver excesso de legítima defesa - o que não se admite, tal sempre resultaria da perturbação, medo e susto que lhe provocou a ofensa ,... "drogados".... expressa e gratuita ao seu bom nome e honra - perante os seus futuros, agora actuais sogros) e possíveis eventuais novas injurias, e tal não seria censurável nem punível.
XXIX - No presente caso confrontou em vez de fugir, para impedir que continuasse com a actuação ilícita - injúrias - e se a queda (voluntária ou involuntária por parte do ofendido) resultou de tal actuação não pode o arguido ser condenado, e nestes termos está sempre excluída a sua ilicitude e culpa nos termos dos arts. 31º n.º 2 al. a), 32º, 33º do CP.
XXX - E como tal, senão pelos motivos óbvios supra indicados, também por este - legítima defesa, mesmo que excessiva por justificada - deverá ser absolvido do crime que lhe é imputado na acusação e que foi condenado na sentença.
XXXI - Foram violadas com a decisão proferida a disposição constante do art. 32º n.º 2 da CRP (in dubio pro Reo), e ainda os arts. 97º n.º 5, 127º, 340º, 365º n.º 3, 368º n.º 2, 374º n.º 2 e alíneas a), b) e c) no n.º 2 do 410º todos do CPP, e ainda os arts. 31º, 32º, 33º, 71º e 72º, 143º n.ºs 1 e 2 do CP.
XXXII - Resulta do acórdão que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou daquela que deveria ter resultado provada nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do 410º todos do CPP
XXXIII - Não praticou o arguido qualquer facto ilícito, pelo que deve ser absolvido.
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Admitido o recurso, por despacho de fls. 305, respondeu o Ministério Público pugnando pela sua improcedência e manutenção do decidido, finalizando a sua motivação com as conclusões seguintes: (transcrição)
“1 - Ao longo da motivação, o Recorrente vai misturando diversas questões relacionadas com a decisão sobre a matéria de facto que, sendo distintas, obrigavam a tratamento diferenciado.
2 - Se pretendeu impugnar a matéria de facto, nos termos do citado art. 412º, n.º 3 e n.º 4 do Código de processo penal, a motivação parte de um equívoco: o entendimento de que o Tribunal da relação pode fazer um novo julgamento, indicando, mediante a leitura das transcrições feitas, os factos que considera provados e não provados.
3 - O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127º do Código de Processo Penal.
4 - A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed.1974, pág. 204.
5 - Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares).
6 - Por tudo isso é que o art. 412º, n.º 3 do Código de Processo Penal dispõe que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente provados (alínea a)) e as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b)).
7 - Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face a prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
8 - Quanto aos vícios previstos no art. 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal, todos eles têm forçosamente, como decorre do texto do corpo do n.º 2, que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo possível, para a sua demonstração, o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos durante o inquérito, a instrução, ou até mesmo no julgamento.
10 - O vício a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que é coisa bem diferente.
11 - Certo é que o fundamento a que se refere o vício em referência é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, o que se não pode confundir com a insuficiência da prova para a decisão de facto.
12 - Percorrendo a decisão recorrida também não vislumbramos outrossim vício de contradição a que se reporta a alínea b) do art. 410º do Código de Processo Penal, nem qualquer erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do mesmo preceito.
13 - O recorrente, em nosso entender, invoca tais vícios enquanto, afinal, discorda da forma como o Tribunal valorou a prova produzida.
14 - Com efeito, atentando quer nos fundamentos do recurso, quer na sua motivação, logo se vê que o recorrente apenas pretende que a Meritíssima Juíza a quo devia ter formado convicção em sentido diferente, ou seja, discorda, afinal e apenas, da valoração que o julgador fez da prova produzida em audiência de julgamento.
15 - Do que se trata realmente, quanto à matéria de facto é que o Recorrente valora e sopesa meios de prova, de forma diversa da levada a cabo pelo Tribunal a quo.
16 - Nenhuma censura merece a matéria de facto julgada provada e não provada, face à inexistência dos invocados vícios da sentença, ou seja, dos enumerados nas als. a), b) e c) do art. 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sendo também certo que tendo em conta o acerto quanto ao julgado de facto, porque nenhuma censura nos merece, se deve considerar ASSENTE a factualidade dada como Provada e Não Provada na sentença recorrida.
17 - Não foram, por conseguinte, violadas quaisquer disposições legais, nomeadamente os invocados arts. 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, 97º, n.º 5, 127º, 340º, 365º, n.º 3, 368º, n.º 2, 374º, n.º 2 e 410º n.º 2, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal e 31º, 32º, 33º, 71º, 72º e 143º do Código Penal.
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Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto elaborou douto parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando os fundamentos da aludida resposta.
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Cumpriu-se o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais tendo sido aduzido.
Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência, que decorreu com observância das formalidades legais, nada obstando à decisão.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. É consabido que, para além das matérias de conhecimento oficioso [v.g. nulidades insanáveis, da sentença ou vícios do art. 410º n.º 2, do citado diploma legal], são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt].
Assim, no caso sub judicio, as questões suscitadas são as seguintes:
a) Vícios da decisão
b) Erros de julgamento da matéria de facto
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2. A fundamentação de facto da decisão recorrida, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)
A) Factos Provados
“16º No dia 8 de Dezembro de 2013, pelas 00H15, na Rua …, nesta cidade de São João da Madeira, quando o arguido B… saía da viatura em que se fazia transportar, passou junto a si o mencionado C…, o qual fez o seguinte comentário: “Andam aqui estes drogados com belos carros!”.
17º Ao ouvir tal comentário, o arguido B… correu em direcção ao mencionado C… e, já junto deste, agarrou-o pelo pulso do braço esquerdo, levando a que caísse ao chão.
18º Em consequência directa e necessária da descrita actuação do arguido B…, o mencionado C… sofreu, além de dores, escoriação superficial com 1,5 cm de diâmetro na região posterior do punho do braço esquerdo e edema/rubor com 1,5 cm de diâmetro na região temporal esquerda.
19º Tais lesões demandaram para a sua cura, também directa e necessariamente, 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
20º Ao actuar da forma descrita, o arguido B… quis, como conseguiu, molestar fisicamente e maltratar o corpo e saúde do mencionado C… e lesá-lo na sua integridade física.
21º Agiu o mencionado arguido B… de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O arguido foi condenado no Proc. nº 158/06.5GCOAZ pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de 15.6.2006 e sentença de 16.6.06, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de 4,00 €, e foi condenado no Proc. nº 10/10.0GTSJM, por factos de 13.7.2010 e sentença de 23.7.2010, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão suspensa por um ano.
O arguido aufere por mês 680 €, a sua esposa está desempregada, recebendo de subsídio, 400,00 €, e têm quatro filhos menores a cargo – dois de cada um de relações anteriores – pagando de renda de casa, 250,00 €.
O arguido é uma pessoa trabalhadora, bom pai, não é conflituoso e está bem integrado.”
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B) Factos Não Provados
1º No dia 5 de Dezembro de 2013, cerca das 12H10, quando F… e o arguido G…, seu marido, abandonavam o centro comercial “H…”, nesta cidade de São João da Madeira, pela saída que dá acesso aos prédios situados na Rua …, cruzaram-se com C…, seu vizinho e com quem mantinham más relações.
2º Após breve troca de palavras entre uns e outro, envolveram-se em discussão junto às escadas ali existentes.
3º Instantes depois, vindo da referida Rua … e a subir as referidas escadas, surgiu o arguido I… e, depois, a sua progenitora E…, filho e mulher do mencionado C…, envolvendo-se também estes em discussão com F… e o arguido G….
4º No decorrer de tal discussão, o arguido I… abeirou-se da mencionada F… e desferiu-lhe uma bofetada na face, do lado esquerdo.
5º Momentos depois, não satisfeito ainda, o arguido I… desferiu um pontapé na perna esquerda da mencionada F…, por força do qual esta caiu no solo.
6º Também no decorrer de tal discussão, e quando a mencionada E… dele se aproximava, o arguido G… agarrou-lhe e apertou-lhe os braços e deu-lhe um empurrão.
7º Mercê de tal empurrão e da força empregue por aquele, a mencionada E… desequilibrou-se e foi embater contra o corrimão das referidas escadas.
8º Em consequência directa e necessária da descrita actuação do arguido I…, a mencionada F… sofreu, além de dores, escoriação e hematoma na face anterior do terço médio da pena esquerda com 3 cm por 0,5 cm de maiores dimensões e pequena equimose no hemitórax direito.
9º Tais lesões demandaram para a sua cura, também directa e necessariamente, 5 (cinco) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
10º Em consequência directa e necessária da descrita actuação do arguido G…, a mencionada E… sofreu, além de dores, 2 equimoses na face antero-lateral do terço médio do antebraço direito, uma superior com 2 cm de maior diâmetro e outra inferior com 10 cm por 5 cm de maiores dimensões e uma equimose na face anterior do terço inferior do antebraço esquerdo com 4cm por 2 cm de maiores dimensões.
11º Tais lesões demandaram para a sua cura, também directa e necessariamente, 6 (seis) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.
12º Ao actuar da forma descrita, o arguido I… quis, como conseguiu, molestar fisicamente e maltratar o corpo e saúde da mencionada F… e lesá-la na sua integridade física.
13º Agiu o mencionado arguido I… de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
14º Ao actuar da forma descrita, o arguido G… quis, como conseguiu, molestar fisicamente e maltratar o corpo e saúde da mencionada E… e lesá-la na sua integridade física.
15º Agiu o mencionado arguido G… de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Não se provou que o arguido B… desferiu murros na cabeça e pontapés nas pernas do ofendido.
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C) Motivação
Para dar como provados os factos supra enunciados tive por base as declarações prestadas pelo arguido B…, os depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa.
Não foram dados como provados os factos 1 a 15 por se referirem aos factos que eram imputados aos dois arguidos, em relação aos quais foi o procedimento declarado extinto face à homologação da desistência.
O arguido referiu não conhecer o ofendido e ter conhecimento de uma versão segundo a qual seria por conhecer o G…, vizinho do ofendido e inicialmente arguido, que este lhe teria alegadamente encomendado a agressão ao ofendido.
Do conjunto da prova produzida, nomeadamente do depoimento do agente policial, considera-se adquirido que o ofendido e o seu vizinho G… não se dão bem – os dois crimes de que houve desistência referem-se aliás a alegada agressão por parte do G… à esposa do arguido e agressão do filho do ofendido à mulher do G….
No entanto, não resultou apurada qualquer relação entre o arguido B… e G…, mas apenas que se conhecem. O G… é mais jovem que o ofendido e não parece carecer de encomendar qualquer agressão ao ofendido por terceiro, nem aparenta ter os meios económicos para a contratar, nem o arguido é conhecido ou parece ser pessoa para contratar para tal incumbência.
Referiu o arguido que estava a sair do café onde tinha estado a conhecer os seus futuros sogros quando escuta ao ofendido uma expressão injuriosa quanto a serem todos uns drogados.
Ora, apesar do ofendido o ter negado – afirmando que nunca chamou drogado ao arguido ou fosse a quem fosse, o depoimento da sua mulher veio colocar em causa a versão do ofendido, quando com a maior naturalidade referiu que é assim que ela e o marido tratam o café em questão, como “o café dos drogados”.
Referiu depois o arguido que ao escutar tal expressão foi ter com o ofendido, segurou-lhe pelo braço e este atirou-se para o chão.
Negou ter agredido o ofendido – mas reconheceu ter-lhe segurado o braço e que a seguir este cai, mesmo que fosse por se atirar para o chão.
O ofendido C… e a sua mulher E… apresentaram depoimentos com algumas contradições entre si e um com o outro, nos termos que se irão exemplificar.
O ofendido iniciou as suas declarações com uma versão bem mais grave daquela que consta da acusação quanto às agressões que teria sido vítima por parte do ofendido, sem qualquer provocação – jurou pela saúde do filho que nunca tinha chamado ao ofendido drogado nem a ninguém.
Referiu assim que depois de o ter chamado “ó manco”, tendo ido ao encontro do arguido, este mandou a sua bicicleta contra ele, deu-lhe murros na cabeça e deu-lhe pontapé nas costas.
Confrontado com o facto de tais agressões não corresponderem ao que resulta do exame médico, acabou por admitir que afinal o ofendido não lhe teria dado os murros e pontapés quando está no chão, mas que tal não teria sucedido por a sua mulher o ter segurado pelo casaco - a mulher do ofendido é uma senhora que se revela doente, teve um AVC, está com uma incapacidade para o trabalho, com alguma idade e estatura física manifestamente mais frágil que a do ofendido, mais jovem e aparentemente saudável e mais forte. Não pareceu assim credível que mais ofensas dos murros e pontapés não tivessem ocorrido somente porque a mulher do ofendido tinha segurado o arguido.
Afirma que ia lado a lado com a mulher, vindo os dois da Igreja, não obstante ele vir de bicicleta e a mulher a pé. Acabou por admitir que às vezes seguia mais à frente e depois esperava por ela. E que teria sido o que sucedeu pouco antes da agressão. Relatou o ofendido que estava a chegar à sua garagem quando ouviu chamar “ó manco” (o arguido coxeia) foi então ter com o ofendido, sendo que nesta altura a sua esposa estaria a chegar e estaria no sítio em que se encontrava o ofendido. Referiu que então o ofendido o atira para o chão e lhe atira a bicicleta para cima.
Sendo-lhe perguntado porque é que o arguido assim teria procedido respondeu que o arguido lhe disse “sabes quem sou, sou filho do J…”, mas referiu depois que ele ofendido tinha feito muito bem ao J… (o que não faz sentido).
A esposa do ofendido, E…, começou por afirmar também que vinha com o seu marido da Igreja e que seguiam lado a lado, não obstante ele vir de bicicleta e ela a pé. Acabou depois por admitir que afinal não vinham sempre lado a lado e que antes da agressão, ela até meteu por um túnel com uns degraus e o marido vinha de bicicleta à volta.
Veio depois afirmar a versão do marido quanto às agressões – murros e pontapés – foi confrontada com a versão do marido, e admitiu ter agarrado o arguido, mas pelo que percebi tal sucederia quando o mesmo já ia embora.
No entanto, vem a mulher do ofendido afirmar que o arguido vinha do “café dos drogados” como refere é conhecido aquele café e com a maior naturalidade referiu também que o marido também lhe chama assim – ou seja, ao contrário do que o ofendido tinha jurado de forma peremptória afinal sempre chamaria drogados a todos aqueles que vão ao referido café.
A testemunha D…, agente da Polícia de Segurança Pública prestou um depoimento objectivo e importante, depondo de forma que revelou recordar-se bem dos factos. Referiu assim ter sido chamado ao local não pelo ofendido, mas por alguém que ligou para a polícia por ter visto no local um casal suspeito ou com uma atitude suspeita – ora este casal eram o ofendido e a mulher. Quando chega ao local só lá estão o ofendido e a mulher, tendo-se o ofendido queixado de ter sido agredido e apresentando ferimentos que o Sr. Agente referiu considerar ser de agressão e não por exemplo de uma queda. Queixava-se de ferimentos no pescoço, face, braço esquerdo e perna. Referiu também ser o ofendido conhecido pelas queixas da vizinhança, por parte do morador em frente, o G…, e não ser conhecido por se meter em confusões. Considerei relevante a opinião do Sr. Agente, com base na sua experiência profissional quanto aos ferimentos que ao ofendido apresentava lhe parecerem de uma agressão e não de uma queda.
Depôs depoimento como testemunha de defesa abonatória, K…, amigo de infância do arguido e tive em conta o seu depoimento para dar como provados os factos apurados em abono do arguido por me parecer que foi objectivo e verosímil.
Tive em conta a prova pericial, o Exame médico-legal, com relatório a fls. 96 e ss..
Refere-se no respectivo relatório com base no exame efectuado no dia 12.12.13, que o ofendido apresentava as seguintes lesões: “no crânio, área avermelhada de 1,5 cm de diâmetro, na região temporal esquerda; no membro superior esquerdo: escoriação superficial de 1,5 cm de diâmetro, na região posterior do punho” e conclui-se que essas lesões terão resultado de traumatismo de natureza contundente compatível com a informação.
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3. Apreciando de mérito
3.1) Do recurso em matéria de facto
Como decorre das disposições conjugadas dos arts. 426º e 431º, do Cód. Proc. Penal, a modificação da matéria de facto em sede de recurso para o Tribunal da Relação é admissível, além do mais, quando:
a) Ocorreram vícios previstos no art. 410º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas, ainda assim, for possível decidir a causa;
b) A prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art. 412º, do mesmo diploma legal.
Neste último caso, tendo havido documentação da prova produzida em audiência, constitui ónus do recorrente especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida – por referência ao consignado na acta, nos termos do art. 364º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, e indicação ou transcrição[2] das concretas passagens da gravação em que apoia a sua pretensão - e as provas que devem ser renovadas.
No entanto, enquanto aqui é admissível a análise da prova disponível e atendida em audiência, embora balizada pelos pontos questionados pelo interessado, no primeiro caso, pelo contrário, visam-se apenas as incongruências da própria decisão recorrida evidenciadas no respectivo texto, sem apelo a outros dados que não os resultantes das regras de experiência, num triplo plano:
i) Lacunas da matéria de facto em segmentos essenciais ao thema decidendum [al. a) do n.º 2, do citado art. 410º];
ii) Contradições insanáveis da fundamentação ou desta com a decisão [alínea b) do mesmo normativo]; e
iii) Apreciação dos factos manifestamente ilógica, arbitrária, fora de qualquer contexto racional, imediatamente perceptível à observação e verificação comum do homem médio [al. c) do citado preceito].
Como decorre do anteriormente exposto, o recorrente fez apelo a ambas as vertentes do recurso em matéria de facto. Todavia, antes de descer ao caso concreto impõe-se a apreciação de questões incidentais relacionadas com a perfectibilização da decisão.
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QUESTÕES PRÉVIAS
3.2 Das nulidades da decisão
3.2.1 A fundamentação e o objecto do processo
§1º Implementando a exigência constitucional e legal de fundamentação das decisões judiciais, estatuída nos arts. 205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e 97º n.ºs 1 e 5, do Cód. Proc. Penal, é requisito obrigatório da sentença criminal, a “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, sob pena de nulidade, como decorre do n.º 2, do art. 374º e 379º n.º 1 a), do último diploma citado.
a.1) A enumeração da matéria de facto provada e não provada visa garantir, para além de qualquer dúvida, que o tribunal contemplou todos os factos submetidos à sua apreciação, sendo pacificamente aceite que tal obrigação se restringe aos factos essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes.
a.2) Por seu turno, a indicação e exame crítico das provas decorre da necessidade de potenciar a adesão dos destinatários e comunidade em geral ao teor da decisão criminal e de garantir a observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção. Dispensando-se o resumo de todo e cada um dos meios de prova disponíveis há-de, porém, exteriorizar-se o raciocínio lógico subjacente à convicção adquirida de molde a possibilitar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado.
Neste conspecto, pode já concluir-se que a decisão recorrida peca por excesso em sede enumeração de factos não provados porquanto, tendo ocorrido, no início da audiência de julgamento, desistências de queixa relativamente ao procedimento criminal imputado aos arguidos I… e G…, que estes aceitaram, logo aquelas foram devidamente homologadas, como decorre da acta respectiva (fls. 238 e segs.) e do próprio relatório e motivação da convicção exarados na decisão recorrida.
Em consequência, a factualidade respectiva deixou de ser objecto do processo, não tendo, pois, sequer, sido submetida a julgamento, pelo que é intrinsecamente contraditório e desnecessário referenciá-la, em sede de factos não provados, nos pontos 1 a 15. Com efeito, se os factos não foram sujeitos à apreciação do julgador nem objecto de qualquer prova, excedendo o thema decidendum, não há que enumerá-los como “não provados”[3].
Assim sendo, deve considerar-se não escrita a matéria referenciada nos pontos 1º a 15º já supra transcritos, mantendo-se apenas como não provado que: “o arguido B… desferiu murros na cabeça e pontapés nas pernas do ofendido.”
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§2º Cotejando a síntese conclusiva apresentada pelo recorrente facilmente se constata que este, sem invocar expressamente qualquer vício ou daí retirar qualquer consequência, sustenta que o tribunal a quo considerou provados factos que não constavam da acusação (conclusões VII-17º e VIII) sendo precisamente esses que determinaram a sua condenação.
De harmonia com o preceituado no art. 379º, n.ºs 1 b) e 2, do Cód. Proc. Penal, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º, devendo tal nulidade ser arguida ou conhecida em recurso.
Esta redacção do n.º 2, do citado art. 379º, introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25/8, parece ter esclarecido as dúvidas que, anteriormente, se suscitavam a propósito da possibilidade do conhecimento oficioso das nulidades da sentença criminal.
Com efeito, a jurisprudência agora dominante, à qual aderimos, é a de que este tipo de nulidade “mesmo não alegada é oficiosamente cognoscível em recurso, visto que as nulidades da sentença enumeradas naquele preceito têm tramitação própria e diferenciada do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo artigo que tais nulidades devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.”[4].
Sendo certo que nas actas relativas à audiência de julgamento (leitura da sentença incluída) que se podem ver a fls. 238 a 241, 243/244 e 251 não há registo de qualquer comunicação ao arguido, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 358º e/ou 359º, do Cód. Proc. Penal, vejamos, pois, antes de mais, se existe e em que consiste a falada divergência de factualidade e as consequências que daí devem ser retiradas.
§2º.1 Como decorre da fundamentação de facto da decisão recorrida já supra transcrita, aí se considerou provado que o arguido, no dia 8 de Dezembro de 2013, pelas 00h15m, na Rua …, São João da Madeira, após ouvir um comentário do ofendido C…, correu na direcção dele e agarrou-o pelo pulso do braço esquerdo, levando a que caísse ao chão.
Mais considerou que dessa conduta resultaram para o ofendido C…, escoriação superficial na região posterior do punho referido e edema/rubor na região temporal esquerda, ambos com 1,5 cm de diâmetro, determinantes de 5 dias de doença. E, concluiu que ao actuar dessa forma o arguido quis e conseguiu molestar fisicamente o ofendido, sabendo tal conduta proibida e punida por lei.
Por seu turno, na acusação deduzida, era também imputada ao arguido a lesão do corpo do ofendido, nas circunstâncias espácio-temporais mencionadas e com idênticas consequências, mas determinada por murros na cabeça e pontapés nas pernas do mesmo.
Nesta conformidade, forçosa é a conclusão que existe, realmente, divergência entre os factos vertidos na acusação e aqueles que ficaram a constar da fundamentação de facto da decisão recorrida, no que concerne ao modus operandi, tendo o tribunal a quo convertido a agressão a murro na cabeça e pontapés nas pernas, imputada na acusação, numa agressão consistente em agarrar o pulso esquerdo e subsequente queda no solo, convergindo as demais circunstâncias.
Todavia, como nem todas as alterações são relevantes e nem todas as modificações relevantes configuram alteração não substancial dos factos, vejamos onde enquadrar a hipótese sub judice.
§2º.2 Dispõe o art. 358º do Cód. Proc. Penal, que: “1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 – Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter resultado de factos alegados pela defesa.”
Por seu turno, estatui o art. 359º, do mesmo diploma legal que:
“1 – Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 – A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 – Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal”.
Assim, os mecanismos previstos nestes normativos legais têm a ver com a identidade do processo penal fixada na acusação, visando que ninguém seja condenado por factos ou incriminações com que não podia razoavelmente contar.
Por outro lado, uma alteração não substancial dos factos “será aquela modificação da factualidade ou da qualificação jurídica que não seja essencial, em virtude do seu substrato fundamental já se encontrar descrito na acusação ou na pronúncia”, mas já haverá alteração substancial dos factos “quando o facto novo resultante da alteração constitui: a descoberta de um outro evento; ou a violação de uma outra norma incriminadora; ou a descoberta de uma nova circunstância que agrave a pena aplicável; ou ainda a descoberta de um crime inteiramente distinto”[5].
Tendo presente o exposto e bem assim o preceituado no art. 1º f), do Cód. Proc. Penal [a alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis], é óbvio que tal hipótese não se coloca nos presentes autos, já que a infracção e sanções em causa são exactamente as mesmas que resultavam da acusação.
No entanto, conforme se constata da motivação da decisão recorrida os factos aqui controvertidos não resultaram de alegação da defesa visto que o arguido, admitindo ter segurado o braço do ofendido, referencia contexto completamente diverso, negando qualquer intenção de ofender o corpo ou saúde do seu interlocutor ou influência na queda deste ao solo.
É certo que o art. 424º n.º 3, do Cód. Proc. Penal, permite ao tribunal ad quem, notificar o arguido da alteração não substancial dos factos ou da respectiva qualificação jurídica que lhe sejam desconhecidas.
Todavia, tal faculdade reserva-se às hipóteses de alteração dos factos descritos na decisão ou da respectiva qualificação jurídica, decorrente da realização de audiência no tribunal superior, o que não é nitidamente o caso.
Com efeito, estando em causa alteração levada a cabo pelo tribunal a quo relativamente aos factos descritos na acusação, terá necessariamente que ser este a fazer a comunicação prevista no referido art. 358º, se a modificação se reportar a factos com relevo para a decisão e constituir alteração não substancial, sob pena de violação dos direitos de defesa do arguido, especialmente do direito de contraditório.
É que, independentemente do sentido da comunicação, o tribunal a quo só pode consolidar a sua convicção a propósito da matéria provada e não provada depois de possibilitar ao arguido exercitar, plena e cabalmente, o seu direito de defesa e contraditório relativamente aos novos factos, podendo este concretizar-se até na produção de novas provas que invalidarão ou não o juízo indiciário que motivou a comunicação.
Ora, como é óbvio, nestas hipóteses, não pode o tribunal de recurso substituir-se ao recorrido, notificando o arguido da alteração que este operou e sujeitando-se mesmo a ter que ponderar novos meios probatórios – indicados no exercício do direito de defesa – e a conhecer de questões que não foram conhecidas e apreciadas no tribunal a quo.
§2º.3 Em consequência, importa agora determinar se a alteração dos factos que constavam da acusação tem interesse para a decisão.
E, a resposta afigura-se-nos claramente positiva.
Na verdade, como já se referiu, a ofensa ao corpo e saúde do ofendido que terá determinado as lesões verificadas, não coincide minimamente com a imputação que delimitava o objecto do processo e do qual o arguido teve oportunidade de se defender.
Como é óbvio, perante divergência de tal relevo – que atinge mesmo o núcleo essencial do tipo incriminador - é impossível concluir que o tribunal a quo se limitou a concretizar ou complementar a factualidade descrita na acusação.
Aliás, tendo-se dado como não provado que o arguido desferiu murros e pontapés no ofendido e substituindo-se tal factualidade pela matéria aludida é inegável que a alteração tem que ser considerada relevante para a decisão da causa visto que é ela e só ela que sustenta a condenação do recorrente pelo crime de ofensa à integridade física.
Abrindo parêntesis, cumpre anotar que a fundamentação de facto neste segmento se afigura dúbia, seja em termos de enumeração factual – afinal como é que agarrar o ofendido pelo pulso esquerdo levou a que este caísse ao chão? Foi puxado? Foi aplicado golpe de arte marcial? Desequilibrou-se? E como caiu e em que embateu para sofrer o pequeno edema/rubor (1,5cm) na região temporal esquerda? – seja em sede de explicitação da convicção já que esta não exterioriza cabalmente as razões que levaram o julgador a considerar que o arguido agiu com intenção de lesar a integridade física alheia [sendo certo que o simples segurar de um braço, em termos de normalidade não tem tal conotação] parecendo até que tal conclusão assenta na opinião de um agente da PSP, D…, ouvido como testemunha, mas que, além de não ter presenciado qualquer facto, visto ter chegado depois da verificação da ocorrência, alude a ferimentos que nem sequer são os que ficaram provados.
Ora, se realmente assim for, a convicção do tribunal a quo assenta em prova inadmissível já que não se verifica qualquer das hipóteses previstas no art. 130º, n.º 2, als. a), b) e c), do Cód. Proc. Penal [a qualidade profissional de polícia não confere qualquer habilitação técnica para aferir as causas dos ferimentos. Aliás, mesmo os peritos médico-legais, a não ser em casos muito particulares e de lesões muito específicas, em regra, apenas emitem parecer no sentido da compatibilidade ou incompatibilidade das lesões observadas com determinada causa ou tipo de instrumento].
Finalmente, mal se compreende o raciocínio assim expresso pelo julgador - intrínseca e patentemente contraditório - pois extrai-se dos factos provados que, pelo menos, um dos ferimentos resultou de queda (provocada ou não é indiferente), não se percebendo, então, o crédito atribuído à opinião da testemunha de que os ferimentos que o ofendido apresentava lhe pareceram de uma agressão e não de uma queda.
Retomando agora à questão da alteração fáctica sub iudicio, resta concluir que, sendo o crime e a participação do recorrente exactamente os mesmos, o acontecimento histórico que fundamenta a sua condenação não coincide nem se equipara ao que lhe foi comunicado na acusação, único do qual teve oportunidade de se defender, já que, pese embora a alteração não substancial da factualidade atendida, não foi dado cumprimento ao estatuído no citado art. 358º.
Na verdade, o tribunal a quo seleccionou e considerou factos na decisão recorrida que alteram de forma relevante o objecto do processo, sem que previamente possibilitasse ao interessado – arguido – o direito de os discutir e contestar, omitindo o cumprimento da única formalidade que tornaria possível tal desiderato, ou seja a comunicação dessa factualidade que entendia resultar provada da audiência ao arguido, com a consequente concessão de prazo para a preparação da defesa se o mesmo o requeresse.
Neste conspecto, resta concluir que a decisão recorrida considerou, para efeitos de condenação do arguido, factos novos que constituem uma alteração não substancial dos descritos na acusação sem prévio cumprimento do ritualismo previsto no art. 358º, do Cód. Proc. Penal, circunstância que determina a sua invalidade, por força da previsão do art. 379º n.º 1 b), do mesmo diploma legal, impondo-se, para o efeito, a reabertura da audiência com vista ao cumprimento da formalidade omitida e demais trâmites atinentes [sendo certo que a comunicação deverá esclarecer o arguido (e demais sujeitos processuais), com rigor e clareza, da modificação fáctica que poderá vir a operar-se, tornando perfeitamente perceptível os contornos da agressão que se pretende imputar e suas consequências], procedendo-se depois à reformulação da decisão em conformidade, devendo ainda suprir-se, sendo o caso, a caracterização fáctica e fundamentação da convicção nos segmentos supra anotados.
Deste modo e face à necessidade de perfectibilização da decisão, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo recorrente.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em decretar a nulidade da sentença recorrida, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 379º n.º 1 b), do Cód. Proc. Penal, ordenando a reabertura da audiência pelo mesmo magistrado judicial que a ela presidiu, a fim de ser dado cumprimento ao disposto no art. 358º, do Cód. Proc. Penal, e demais trâmites legais que se mostrem necessários.
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Sem tributação – art. 513º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP]

Porto, 1 de Junho de 2016
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Sem destaques/sublinhados.
[2] Cfr., Acórdão do STJ n.º 3/2012 (Proc. n.º 147/06.0GASJP.P1-A.S1), de 8/3/2012, publicado no DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 e n.º 4, do mencionado art. 412º.
[3] Diferente seria se essa factualidade, ou parte dela, tivesse alguma conexão ou, de alguma forma, contextualizasse a conduta que foi submetida a julgamento, caso em que teria que ser apreciada e elencada, na medida do necessário, como provada ou não provada, de harmonia com o resultado probatório obtido.
[4] Acórdão do STJ de 8/10/2008, Proc. 08P3068, Cons. Pires da Graça, in dgsi.pt. Neste mesmo sentido, podem ainda consultar-se os Acórdãos desta Relação de 21/1/2009, 25/3/2009 e 10/2/2010, Procs. n.ºs 0846847, 0740063 e 41/04.9TAAMT, dos relatores Ernesto Nascimento, Cravo Roxo e Artur Vargues, todos acessíveis também in dgsi.pt.
[5] Cfr. Acs. desta RP e da RE, de 27/10/2007 e 17/5/2005, Procs. n.ºs 0712956 e 234/04-1, disponíveis in dgsi.pt