Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8892/13.7TBVNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
DISTRATE DOS ÓNUS E ENCARGOS
IMÓVEL PROMETIDO VENDER
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RP201710118892/13.7TBVNG-B.P1
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 786, FLS 86-97)
Área Temática: .
Sumário: I – No âmbito de um processo de insolvência, o cumprimento de contrato promessa com tradição do imóvel a que se refere o contrato prometido por parte do Administrador de Insolvência, de harmonia com o disposto no artigo 106º do CIRE, não implica, necessariamente, que este deva proceder ao distrate dos ónus e encargos que incidem sobre o imóvel prometido vender.
II – Doutro modo, seria posta em causa a função basilar da hipoteca de conferir ao credor o direito a ser pago pelo valor da coisa hipotecada, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade no registo, conforme decorre do art.º 686.º, n.º 1 do Código Civil.
III - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) apenas confere o gozo do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor entendida esta no sentido de estarmos perante um utilizador final que utiliza o imóvel prometido comprar para uso próprio e não com escopo de revenda.
IV - Em tese geral, os acórdãos de uniformização de jurisprudência não devem ser usados quando da sua aplicação decorra uma objectiva frustração de expectativas das partes; não pode, portanto, essa aplicação constituir uma “decisão-surpresa” frustradora dessas expectativas.
V – Um qualquer acórdão uniformizador decorre, necessariamente, de uma prévia querela jurisprudencial sobre o “thema decidendum”; donde não constitui decisão-surpresa a aplicação de um dado acórdão uniformizador relativamente aos efeitos de um dado contrato exarado numa data em que tal polémica jurisprudencial já era objectivamente patente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 8892/13.7TBVNG-B.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Recorrente(s): B....
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de V. N. de Gaia

I – Relatório
Declarada nos autos a insolvência de C... e D... e aberto o concurso de credores, o Senhor Administrador da Insolvência veio, nos termos do disposto no art. 129º do CIRE, apresentar a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos.
O credor B... veio impugnar a lista dos credores reconhecidos, invocando que celebrara com os Insolventes, em 5 de Abril de 2013, um contrato promessa de compra e venda com eficácia real e tradição, relativo ao prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 3528º da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia. Requereu, então, ao Senhor Administrador da Insolvência o cumprimento do contrato, optando este por proceder resolução do referido negócio em benefício da massa insolvente, com a decorrente intenção do Reclamante intentar, por apenso aos autos de insolvência, uma acção de impugnação da resolução, o que configura questão prejudicial à presente impugnação.
Caso assim não se venha a entender, alega ainda a incorrecção do montante reconhecido, que deverá ser de 331.700,00€, correspondente ao dobro do sinal entregue e a qualificação do seu crédito como garantido pelo direito de retenção sobre o aludido prédio.
A acção de impugnação de resolução do contrato promessa de compra e venda veio a ser integralmente procedente, tendo sido revogada a resolução, efetuada pelo Senhor Administrador da Insolvência em representação da massa insolvente, do contrato promessa com eficácia real relativo ao prédio urbano composto de casa de cave, rés do chão e aproveitamento de vão do telhado, sito na Rua ..., nºs ..., ... e ..., da freguesia ..., concelho de Vila Nova e Gaia, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o nº 226 – ... e inscrito na respectiva matriz, como já dito, sob o artigo 3528º.
O Impugnante veio então exigir o cumprimento do contrato promessa, pretendendo comprar o imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, conforme prometido, mas o credor hipotecário, E..., SA só aceita distratar a hipoteca se lhe for paga a totalidade do seu crédito. Donde o Senhor Administrador da Insolvência veio informar que, face a esta posição do Banco, não lhe é possível cumprir o contrato nos seus termos, ou seja, com uma transmissão livre de ónus e encargos.
Após a tentativa de conciliação a que alude o art. 136º, n. 1 do CIRE, foi proferida sentença decisória a qual, no essencial, alem de proceder à graduação dos créditos, determinou no que ao presente recurso concerne:
- quanto à eventual apreensão do imóvel para a massa insolvente entendeu o tribunal que “a garantia hipotecária não poderá ser aniquilada em função do cumprimento do contrato promessa pelo Administrador de Insolvência” e, por conseguinte, “sendo cumprido o contrato-promessa em questão, o imóvel nele contemplado teria necessariamente que ser transmitido no estado em que se encontra, mormente com a oneração da hipoteca que incide sobre o mesmo, cabendo apenas ao adquirente, se mantiver interesse no cumprimento da promessa e o AI o aceitar, diligenciar pela extinção da hipoteca e sub-rogar-se nos direitos do credor hipotecário, se ainda estivesse em tempo de o fazer. Contudo, o Impugnante não aceita a transmissão com o ónus da hipoteca e pretende, para o caso de assim não venha a ser entendido, que se reconheça o seu crédito no valor correspondente ao dobro do sinal e se gradue como garantido, em virtude do direito de retenção que invoca.
Pelo exposto, deverá o imóvel em questão ser apreendido para a massa insolvente – o que se determina;
- quanto ao reconhecimento do crédito e sua qualificação, decidiu que “não pode o Impugnante ser considerado consumidor, o que implica a impossibilidade de lhe ser reconhecido o invocado direito de retenção sobre o imóvel prometido vender”, no mais, decidindo que “o seu crédito deverá, consequentemente, ser considerado como comum e terá o valor correspondente ao dobro do sinal, no montante de 331.700,00€, nos termos do disposto no art. 442º, n. 2 do Código Civil.”
*
Inconformado, o credor B... interpôs o recurso de apelação ora em apreciação cujas conclusões são as seguintes:
A. Vem o presente recurso da circunstância do ora Apelante não se conformar com a douta sentença, com a Ref.ª Citius 381539447 (de 19/06/2017), proferida nos presentes autos de apenso “B”, porquanto na mesma se decidiu, em primeiro lugar, singelamente, que “a garantia hipotecária não poderá ser aniquilada em função do cumprimento do contrato promessa pelo Administrador de Insolvência” e, em segundo lugar, quanto ao reconhecimento do crédito e sua qualificação, considerou que «não pode o Impugnante ser considerado consumidor, o que implica a impossibilidade de lhe ser reconhecido o invocado direito de retenção sobre o imóvel prometido vender», no mais, decidindo que «o seu crédito deverá, consequentemente, ser considerado como comum e terá o valor correspondente ao dobro do sinal, no montante de 331.700,00€, nos termos do disposto no art. 442º, n. 2 do Código Civil».
B. Assim, tendo por base a factualidade tida como provada, a que já supra se aludiu, e transcreveu nos seus precisos termos, pretende o aqui Apelante impugnar a(s) decisão(ões) proferida(s), quer no que respeita à questão do cumprimento do contrato promessa (com ou sem ónus e encargos) quer, sem prescindir, quanto à graduação do crédito reconhecido (por ter sido afastado o reconhecimento do direito de retenção).
COM EFEITO,
i) Da decisão quanto ao cumprimento do contrato promessa:
C. Primeira questão a colocar a este Venerando Tribunal prende-se com o facto de tendo o aqui Apelante exigido do Ex.mo Senhor Administrador de Insolvência, nos termos do art.º 106.º do CIRE, o cumprimento do contrato promessa “sub judice”, pretendendo comprar o imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, conforme prometido, conclui o Dign.º Tribunal recorrido que para o efeito o Ex.mo Senhor Administrador de Insolvência, porque não consentido pelo Credor Hipotecário, não tem de “distratar” os ónus e encargos que incidem sobre o imóvel prometido vender.
D. Sendo, pois, precisamente aqui que radica a razão de discordância do aqui Recorrente e motiva o presente recurso, pois, ao contrário do defendido pela Meret.ª Juiz “a quo, que considerou que «no cumprimento do contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, a acção do AI limita-se à substituição subjectiva da pessoa do promitente-vendedor (o insolvente) no acto translativo da propriedade do imóvel (a escritura pública de compra e venda)» defende o aqui Recorrente que mesmo neste âmbito – cumprimento de contrato promessa de compra e venda com eficácia real – cabe ao AI, porque investido de poderes para tanto, proceder pela obtenção do distrate, e/ou, extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos com fundamento no disposto no art. 824º, nº. 2 do Código Civil.
E antes, com o devido e merecido respeito, perfilhamos do entendimento de que os efeitos jurídicos da declaração de insolvência, mesmo nos negócios em curso, é a da liquidação da massa insolvente; e, como tal, sendo indubitável que o imóvel em causa se encontra apreendido nestes autos – cf. ponto 32. da matéria dada como assente – teria que fazer o Ex.mo Senhor Administrador de Insolvência que cumprir a sua prestação mediante o exercício das suas funções de liquidatário dos bens da Massa.
F. Neste sentido, vide douto Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação do Porto de 16/03/2010, proferido nos autos de processo n.º 2384/08.3TBSTS, disponível em www.dgsi.pt, «I - No presente caso, perante a celebração de contratos-promessa de compra e venda de diversas fracções prediais pela insolvente, na posição de promitente vendedora, em data anterior à declaração de insolvência, após deliberação da comissão de credores nesse sentido, o Administrador optou pelo seu cumprimento. II - Com o cumprimento desta prestação o Administrador, agindo como representante da massa insolvente, procede à alienação de bens que já a integravam, uma vez que pertenciam ao património da insolvente à data da declaração de insolvência — art. 46°, do CIRE. III- Daí que esta venda não possa deixar de ser encarada como uma venda judicial, feita no âmbito da liquidação da massa insolvente para beneficio de todos os credores — apenas os promitentes compradores vêem satisfeitos os seus créditos sem participarem no concurso falimentar. IV- Assim sendo, as hipotecas que afectavam os imóveis prometidos vender, caducam com a venda, nos termos do art. 824°, do C. Civil, como acima se explicou, pelo que não há qualquer necessidade de proceder à sua expurgação, uma vez que elas não acompanham os imóveis sobre que recaíam após a sua venda aos promitentes compradores. V- E o preço da venda deve ser depositado à ordem da administração da massa, nos termos impostos pelo art. 167°, do CIRE, transferindo-se as preferências concedidas pelas hipotecas aos respectivos credores para o produto da venda.».
G. O caso do aqui Recorrente não é diferente daquele que foi julgado nos autos de insolvência supra referidos no Aresto citado; só porque o aqui Recorrente nada mais tinha a pagar (nada sobrando para o credor hipotecário desta venda em concreto), decidiu o Dign.º Tribunal “a quo” que não havia o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência de cumprir o contrato promessa em causa, nos precisos termos contratados, ou seja, com o imóvel livre de ónus e encargos;
H. Coarctando, aliás, a possibilidade do aqui Recorrente lançar mão da execução específica do mesmo, em clara e manifesta violação do art.º 830.º do CC.
I. Até porque, existindo demais património apreendido à ordem dos presentes (sem qualquer ónus que atribua prioridade de pagamento a qualquer outro credor) autos de insolvência não cuidou sequer o Dign.º Tribunal “a quo” de averiguar se existe, ou virá a existir, quantitativo na Massa, produto da liquidação de tal património, que permita ao Exmo. Senhor Administrador de Insolvência prover pelo pagamento do valor garantido ao Credor Hipotecário.
J. Tanto mais que, a opção pelo cumprimento, ou não, dos contratos promessa de compra e venda deve, pois, ter em conta o custo/beneficio que cada uma dessas opções traz para a massa insolvente e respectivos credores.
K. Ora, na situação em apreço, a opção pelo cumprimento dos contratos promessa de compra e venda faz operar a redução do passivo da Massa Insolvente a dois níveis: a) “eliminação” de um eventual direito de crédito do aqui Recorrente; b) “pagamento” ao Credor Hipotecário mediante o produto da venda do outro imóvel apreendido à ordem dos presentes autos (verba n.º 1) uma vez que inexiste qualquer crédito reclamado que detenha prioridade no pagamento; por outro lado, a opção pelo não cumprimento dos contratos-promessa de compra e venda faz aumentar consideravelmente os créditos sobre a Insolvente e, portanto, o passivo desta, atendendo ao montante, de €: 331.700,00, que veio a ser reconhecido ao Credor, aqui recorrente, nos termos do disposto no art.º 442.º, n.º 2 do CC.
L. Donde, decidindo, como decidiu, o Dign.º Tribunal recorrido fez, salvo o devido respeito, inadequada aplicação do Direito, por violação dos artigos 106.º do CIRE e do art.º 824.º do CC.
M. O Recorrente está, por isso, convicto que Vossas Excelências, reapreciando a questão “sub judice” e subsumindo-a nos comandos normativos aplicáveis, não deixarão de revogar a decisão recorrida, e ordenar a sua substituição por outra que estabeleça que previamente, ou concomitantemente, com o cumprimento do contrato promessa de compra e venda, celebrado pela Insolvente e não concluído à data da declaração de insolvência, deve o Administrador da Insolvência expurgar as hipotecas que incide sobre o imóvel objecto do contrato promessa, quer seja nos termos legais, por efeitos de aplicação do art.º 824.º do CC, quer seja por força de um qualquer pagamento que possa ser realizado com dinheiro da Massa.
OUTROSSIM - SEM PRESCINDIR,
ii) Do reconhecimento do crédito e a sua qualificação
N. Sem prejuízo de tudo quanto supra exposto, caso assim não venha a ser o entendimento deste Dign.º Venerando Tribunal, importa então ao aqui Recorrente discordar da decisão tomada por este Dign.º Tribunal “a quo” no que respeita à graduação do seu crédito, por violação do disposto no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC e errada aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2014, de 20/03/2014, publicado no D.R. - 1ª Série, nº. 95, de 19/05/2014.
O. Assim, devidamente demonstrado – e reconhecido, aliás, como frisamos supra - que o credor, aqui Apelante, detém um crédito de €: 331.700,00 (Trezentos e Trinta e Um Mil e Setecentos Euros), certo é que ao mesmo deveria ter sido reconhecido que goza do direito de retenção sobre o identificado imóvel.
P. Isto, por força de aplicação do disposto no art. 755º, nº 1, al. f) do Código Civil, que estipula que «o beneficiário da promessa de transmissão de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza do direito de retenção, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.»;
Q. Não obstante, socorrendo-se o Dign.º Tribunal “a quo” do referenciado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, conclui que «não pode o Impugnante ser considerado consumidor, o que implica a impossibilidade de lhe ser reconhecido o invocado direito de retenção sobre o imóvel prometido vender».
R. O que, com o devido respeito, não se aceita.
S. Pois, «Voltando ao caso em apreço, resultou provado que desde que o imóvel foi entregue pelos Insolventes, o Impugnante vinha usando o mesmo de forma contínua, fruindo do mesmo, conforme melhor lhe aprazia, acondicionando no mesmo bens de sua pertença, nomeadamente móveis e eletrodomésticos, tendo permitido que seus trabalhadores vivessem no imóvel, o que fez à vista de todos, como se seu proprietário fosse e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém e convicto de que não prejudicava direitos de outrem. Mais se provou que o impugnante perspetivou esta aquisição como uma oportunidade de investimento.».
T. Menosprezando o que ora se encontra a negrito e sublinhado, entendeu o Tribunal “a quo” por dar relevo apenas e só ao facto de o aqui Recorrente ter perspectivado a aquisição como um investimento e ter destinado o imóvel prometido comprar para habitação dos seus trabalhadores (durante quanto tempo, e em que condições, não foi apurado), retirando de tal único facto que, assim, o destino conferido ao imóvel foi um uso comercial ou profissional, e nessa conformidade, afastado o reconhecimento do direito de retenção.
U. Ora, no que respeita ao referido AUJ, para o qual remete a douta decisão recorrida, no sentido de fazer extrair de um tal Acórdão a inaplicabilidade do direito de retenção ao aqui Apelante, sempre se dirá que, quanto à inclusão da referência a “consumidor” no texto uniformizador, não se vislumbra uma qualquer distinção entre uso comercial ou profissional, ou sequer, uma definição daquele preceito.
V. Por outro lado, não se vislumbra no texto da alínea f) do n.º1 do artigo 755.º do Código Civil o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso a que alude o artigo 9.º, n.º 2 do mesmo Diploma Legal, no sentido de distinguir os “consumidores” dos “não consumidores”.
W. Entendendo-se sempre que o direito de retenção aqui reconhecido se deve estender, tal como resulta da letra do disposto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil, ao credor que se encontre na situação prevista nesta alínea, sem a restrição de ter de revestir a qualidade jurídica de consumidor.
X. Até porque, em qualquer caso, dos factos aqui em causa não resulta que o Apelante seja ou não “consumidor”, discussão essa que não foi suscitada pelas partes e como tal não pode ser apreciada.
Y. Na verdade, tendo o crédito reclamado nos autos sido constituído, em data muito anterior à prolação da douta sentença em causa, ou sequer, à discussão que subjaz a prolação da mesma, não cabia, por isso, às partes – neste caso, ao aqui Apelante -, fazer prova da condição ou não de consumidor, já que tal situação não tinha sido alegada, nem sequer considerada por qualquer das partes naquela altura.
Z. Tal como é entendido no Acórdão da Relação de Coimbra de 02-02-2016, e aqui sufragado: “Ainda que a jurisprudência uniformizada do STJ deva ser respeitada pelos Tribunais e ainda que a doutrina firmada pelo Acórdão supra citado – que assenta numa interpretação restritiva do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, no sentido de que o direito de retenção aí previsto apenas abrange o promitente-comprador que seja consumidor – seja, em princípio, aplicável a qualquer processo que se encontre pendente, ela não deverá ser aplicada a reclamações de créditos que foram formuladas (no âmbito de um processo de falência) dezoito anos antes e no decurso das quais não foram trazidos aos autos, por nenhuma das partes, os factos que seriam pertinentes para concluir se os credores reclamantes (promitentes-compradores) eram ou não consumidores, por não ser, então, previsível a exigência desse requisito que não estava previsto na lei e cuja relevância/necessidade só mais tarde começou a ser suscitada na doutrina e jurisprudência e por não ser exigível que as partes ponderassem ou admitissem a pertinência desses factos em termos de poderem, agora, ser responsabilizadas pelas consequências da sua não alegação. III – Daí que, nessa situação e não obstante a aludida jurisprudência uniformizada, deva ser reconhecido o direito de retenção aos credores que o invocaram, ao abrigo do disposto no art. 755º, nº1, al.), do CC, com base na sua qualidade de promitentes-compradores de determinadas fracções, cuja tradição obtiveram, para garantia do crédito emergente do incumprimento desse contrato”. (negrito e sublinhado nossos) – Cfr. Acórdão TRC no âmbito do proc. 1516/14.7TBCLD-B.C1, disponível em www.dgsi.pt.
AA. Assim, olvida, com o devido respeito, o Dign.º Tribunal “a quo” que a jurisprudência uniformizada, apesar de poder ser aplicada a processos pendentes, apenas deverá ser aplicada a situações semelhantes à do processo em que tal Acórdão foi proferido.
BB. Como bem realça o Supremo Tribunal em Acórdão datado de 29-07-2016, «Se o contrato-promessa tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, tiver entrado na fase do incumprimento definitivo não há, pois, que aplicar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, mais precisamente os artigos 755.º n.º 1 alínea f) e 442.º do Código Civil. A aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor. Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência, como decorre do artigo 97.º do CIRE. “ (negrito e sublinhados nossos) – Cfr. Acórdão do STJ de 29-07-2016, proferido nos autos de processo n.º 6193/13.0TBBRG, disponível em www.dgsi.pt.
CC. Donde, e voltando ao caso dos presentes autos, o contrato-promessa celebrado entre o promitente-comprador, o Apelante, e os Insolventes já tinha sido incumprido/resolvido antes da declaração de insolvência, nos termos já supra expostos, pelo que, dúvidas não restam que não será por isso de se lhes aplicar a disciplina da jurisprudência fixada no Acórdão n.º 4/2014 de 20-03-2014.
DD. Em todo o caso, não interessa tentar determinar se os Apelados têm ou não a qualidade de consumidores, uma vez que, como vimos, tal materialidade não foi colocada em crise nos autos.
EE. Assim e em conclusão, verificando-se como sucede no caso presente, todos os pressupostos do direito de retenção ora em apreço, designadamente, a traditio, nada mais resta que não seja concluir pela verificação de um tal direito real de garantia a favor do aqui Apelante, relativamente ao seu crédito reclamado e reconhecido.
FF. Assim, nestes termos, por tudo o quanto neste trecho exposto, deverá este Venerando Tribunal considerar que o crédito de €: 331.700,00, reconhecido ao aqui Recorrente, beneficia de garantia real e que prevalece sobre a hipoteca constituída a favor do credor hipotecário, com a consequente revogação da douta decisão recorrida.
Termina o apelante peticionando que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença nos termos expostos e substituindo-a por outra
a) que estabeleça que previamente, ou concomitantemente, com o cumprimento do contrato promessa de compra e venda, celebrado pela Insolvente e não concluído à data da declaração de insolvência, deve o Administrador da Insolvência expurgar as hipotecas que incide sobre o imóvel objecto do contrato promessa, quer seja nos termos legais, por efeitos de aplicação do art.º 824.º do CC, quer seja por força de um qualquer pagamento que possa ser realizado com dinheiro da Massa;
ou, na hipótese de assim não se conceder,
b) que reconheça que o crédito de €: 331.700,00 (Trezentos e Trinta e Um Mil e Setecentos Euros), reconhecido ao aqui Recorrente, beneficia da prevalência que lhe é conferida pelo “direito de retenção” sobre o imóvel apreendido nos autos sob a verba n.º 2, devendo ser graduado acima do credor hipotecário,
Houve contra-alegações pelo E..., S.A. onde se pugna pela manutenção do decidido.

II – Factos Provados
Na primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 5 de Abril de 2013 o Impugnante celebrou com os insolventes um contrato promessa de compra e venda com eficácia real, no qual os Insolventes prometeram vender-lhe, livre de ónus e encargos, o prédio urbano - casa de cave, r/chão e aproveitamento de vão do telhado, sito no ..., Rua ..., nºs ..., ... e ... da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia – descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 277 – ... e inscrito na respetiva matriz sob o art. 3528, pelo preço de 165.850,00€ – cf. doc. junto a fls. 6 a 24, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
2. Consignaram ainda as partes contraentes que o preço total desta promessa de compra e venda se encontra “integralmente pago, em razão do crédito decorrente da resolução de contrato promessa de compra e venda anteriormente celebrado entre as partes aqui outorgantes, a treze de fevereiro de dois mil e dez, a qual operou por culpa exclusiva dos aqui primeiros outorgantes e originou a sua consequente obrigação de restituição do sinal prestado em dobro, motivo pelo qual, e pelo presente, reconhecem os primeiros outorgantes que tal valor se mostra devido e integralmente realizado” – cf. cláusula 1ª do contrato referido em 1.
3. Mais fizeram constar na cláusula 2ª desse contrato: “Em razão do aludido contrato promessa, a sete de Dezembro de 2011, procederam os primeiros outorgantes à entrega ao segundo outorgante das chaves do prédio aqui prometido vender, encontrando-se, assim, e desde então, o aqui sendo outorgante na posse do dito prédio urbano, usando e fruindo daquela habitação, e seus pertences, posse essa que assim se mantém e manterá, conforme aqui publica e expressamente reconhece o segundo outorgante”.
4. E, na cláusula 4ª: “a) A escritura de compra e venda será celebrada em Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, a designar pelos primeiros outorgantes e será realizada até ao dia vinte de Abril de dois mil e treze, data esta que constitui o limite para a celebração da escritura, limite esse que não pode ser ultrapassado em circunstância alguma, pelo que, se tal ocorrer essa falta fica a dever-se à parte que a praticar, podendo a outra parte rescindir com justa causa o contrato, com perda do sinal pago ou devolução do sinal em dobro, conforme o caso. b) os primeiros outorgantes devem avisar o segundo outorgante do dia, hora e local da escritura através de carta registada com aviso de receção remetida para a morada aqui indicada com uma antecedência mínima de cinco dias.”
5. Por contrato promessa de compra e venda celebrado em 13 de fevereiro de 2010 os Insolventes haviam prometido vender ao Impugnante, que por sua vez prometeu comprar, aquele identificado prédio, pelo preço de 350.000,00€ – cf. documento junto a fls. 28/29, que se dá por integralmente reproduzido.
6. Preço esse cujo pagamento seria efetuado, desde logo, de acordo com o convencionado pelas partes, através da entrega aos insolventes, na data da outorga daquele contrato promessa, e a título de sinal e princípio de pagamento da quantia de 25.000,00€, motivo pelo qual, deram então os insolventes dessa quantia a respetiva quitação – cf. alínea a), da 3ª Cláusula do documento junto a fls. 28/29.
7. Sendo o restante daquele preço liquidado através da entrega de um reforço de sinal e continuação de pagamento no montante de 50.000,00€, a prestar até ao dia 18 de Maio de 2010; de 20.000,00€ a prestar até ao dia 28 de Dezembro de 2010; de 20.000,00€ a prestar até ao final do mês de Agosto de 2011; de 20.000,00€ a prestar até ao dia 10 de Dezembro de 2011, bem assim, através da liquidação do remanescente de 215.000,00€ aquando do ato da celebração da escritura pública de compra e venda – cf. pontos i), ii), iii) e iv) da alínea b),da cláusula 3ª do documento junto a fls. 28/29.
8. Já no que se refere à competente escritura pública de compra e venda, e também de acordo com o convencionado pelas partes, a mesma deveria ser realizada até ao dia 29 do mês de Fevereiro de 2012, para o que se obrigaram os insolventes a informar o Impugnante da data, hora e local da escritura com 15 dias de antecedência.
9. E expressamente acordaram que a liquidação dos montantes convencionados na alínea b) da cláusula 3ª do aludido contrato, devidos a título de reforço de sinal e continuação do pagamento do preço, poderia ser efetuada através da entrega de quantias parcelares – cf. cláusula 4ª do documento junto a fls. 28/29.
10. O Impugnante cumpriu integral e pontualmente com o pagamento dos vários reforços de sinal a que se havia obrigado, com a entrega atempada das quantias em causa, motivo pelo qual lhe foram entregues pelos Insolventes os recibos juntos a fls. 30 verso a 32.
11. Na sequência de todos esses pagamentos em 7 de dezembro de 2011 o Impugnante e os insolventes acordaram na tradição imediata do prédio urbano prometido vender, para o aqui Impugnante, tendo os Insolventes investido nessa data, através da entrega das respetivas chaves, o Impugnante na posse imediata e exclusiva do prédio urbano objeto do contrato promessa celebrado, tendo feito constar tal facto no documento junto a fls. 32.
12. Os Insolventes não diligenciaram, por nenhuma forma, pela celebração, ou mesmo, marcação, da escritura pública de compra e venda, até ao dia 29 de fevereiro de 2012.
13. O Impugnante interpelou os Insolventes à realização da escritura, designadamente através de carta registada com aviso de receção, datada e enviada a 27 de abril de 2012, e recebida a 2 de maio de 2012, interpelando-os para que estes diligenciassem pela marcação de dia e hora para a efetivação da escritura pública definitiva de compra e venda referente ao contrato promessa celebrado e concedendo-lhes o prazo máximo de 20 dias para que estes levassem a cabo a marcação e efetivação da referida escritura pública, prazo esse concedido com a cominação de, não sendo respeitado, ter o Impugnante por definitivamente incumprido o contrato promessa celebrado, com base na perda de interesse da sua parte, com o consequente direito a exigir a resolução desse contrato promessa e a restituição em dobro do montante global prestado a título de sinal e de reforço de sinal – cf. doc. junto a fls. 32 verso a 33 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 14. Recebida esta missiva os Insolventes não marcaram, nem celebraram a escritura pública de compra e venda.
15. Em consequência o Impugnante instaurou ação judicial na qual peticionou a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado em 13 de fevereiro de 2010 com os aqui Insolventes, bem como a condenação destes no pagamento do montante prestado a título de sinal e reforço de sinal, em dobro, ou seja, a quantia de 270.000,00€ e ainda juros de mora desde a citação e ainda o reconhecimento do direito de retenção sobre o referido prédio urbano, pelo crédito que para se resultava do incumprimento do acordado por parte dos Insolventes, e a condenação dos insolventes no reconhecimento desse direito.
16. Essa ação correu os seus termos sob o nº 1570/12.6TBLSD, no 2º Juízo do tribunal Judicial de Lousada, a qual não foi contestada e veio a ser objeto de sentença proferida em 06/05/2013, que a julgou integralmente procedente e condenou os aí Réus no pedido, conforme documento junto a fls. 34 a 36, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
17. Antes de proferida essa sentença, os aqui Insolventes contactaram o Autor no sentido de alcançarem uma solução de compromisso, conciliatória dos interesses das partes, de forma a colocar termo ao litígio em causa.
18. Alegando que se encontravam muito perto de estar em condições de escriturar a promessa de compra e venda de fevereiro de 2010, tendo já encetado negociações com o credor hipotecário – E... -, no sentido de obter diminuição do distrate, relativo ao prédio.
19. Ao que Impugnante acedeu, por que resolveria de uma vez a querela em questão.
20. Tendo assim, os Insolventes e Impugnante celebrado o contrato promessa de compra e venda com eficácia real aludido em 1) no dia 05 de abril de 2013, com redução do montante do seu crédito de 270.000,00€ para 165.850,00€.
21. Volvida aquela data os Insolventes não cumpriram com a obrigação de marcação da escritura a que se tinham obrigado.
22. Desde que o imóvel lhe foi entregue pelos insolventes o Impugnante vinha usando o mesmo de forma contínua, fruindo do mesmo, conforme melhor lhe aprazia, acondicionando no mesmo bens de sua pertença, nomeadamente móveis e eletrodomésticos.
23. O Impugnante pagou os valores relativos à escritura, registos e IMT referente à aquisição.
24. Tendo permitido que seus trabalhadores vivessem no imóvel.
25. O que fez à vista de todos, como se seu proprietário fosse e sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém e convicto de que não prejudicava direitos de outrem.
26. O Impugnante perspetivou esta aquisição como uma oportunidade de investimento futuro.
27. A insolvência dos promitentes vendedores C... e D... veio a ser declarada, a requerimento de F..., por sentença proferida em 22 de Julho de 2014 – cf. fls. 21 a 24 dos autos principais.
28. O Impugnante, em 20/08/2014, apresentou junto do Senhor Administrador da Insolvência nomeado nos autos, interpelação para cumprimento do contrato promessa de compra e venda referido em 1) – cf. documento de fls. 18 verso a 20 verso, que se dá por integralmente reproduzido.
29. Recebida tal interpelação o Senhor Administrador da Insolvência comunicou que “o seu crédito reclamado no montante global de 175 850,00€ não foi reconhecido como garantido, pois que o contrato promessa de compra e venda foi resolvido em benefício da Massa Insolvente, nos termos do art. 120º, nº 4, do CIRE. Como tal apenas reconhecemos o montante relativo ao valor do contrato promessa de compra e venda como crédito comum.
30. E fez constar na lista de credores reconhecidos o crédito do ora Impugnante como crédito comum, pelo valor de 175 850,00€, constituído em 05/04/2013 e vencido em 20/04/2013, sendo tal crédito proveniente de contrato promessa de compra e venda e fez constar na relação de créditos não reconhecidos que o crédito do Impugnante não foi reconhecido como garantido, por força do direito de retenção sobre o prédio urbano sito na freguesia ..., descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 227 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 3528º por se considerar que o contrato promessa de compra e venda do qual o ora Autor é titular foi resolvido em benefício da massa insolvente – cf. documento junto a fls. 6.
31. Por carta de 02/09/2014, dirigida ao Mandatário do Impugnante, e por ele rececionada em 04/09/2014, o Senhor Administrador da Insolvência veio resolver a favor da massa insolvente o contrato promessa de compra e venda celebrado em 05/04/2013, por o considerar prejudicial à massa insolvente nos termos do art. 120º, nº 5, b) do CIRE, conforme cf. documentos de fls. 26 verso a 27 verso que se dão por integralmente reproduzidos.
32. O Senhor Administrador da Insolvência elaborou o auto de apreensão de bens imóveis, em 12/08/2014, no qual arrolou os seguintes bens: Verba nº 1 – ½ prédio urbano – fração autónoma designada pela letra B, destinada ao comércio, com uma divisão, sita na Rua ..., nº ..., ..., ....-... Vila Nova de Gaia, da União de Freguesias ..., concelho de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 552/19920527-B e inscrito na matriz sob o art. 7398-B com o valor patrimonial de €51.060,00, com penhora a favor da G... e Verba nº 2 – Prédio urbano - Prédio em propriedade total, sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, composta por cave, r/ch, vão do telhado e logradouro, tipologia T3, sito na Rua ..., nº ..., ....-... ..., Vila Nova de Gaia, freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº 227/19851218 e inscrito na matriz sob o art. 3528 com o valor patrimonial de 165.850,00€, com hipoteca a favor do H... no valor de 283.000,00€ e penhora registada em 20/06/2013, a favor desse banco no valor de € 196372,78 – cfr doc. junto a fls. 11 do apenso A, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
33. Acha-se registada na Conservatória do Registo Predial competente, através da inscrição AP. 2128 de 2013.04.09 a promessa de alienação referida no ponto 1) e através da inscrição 2555 de 20.04.2009 a hipoteca a favor do H..., SA referida no ponto anterior – cf. certidão permanente de fls. 24 verso a 25 verso.
34. O Impugnante intentou, por apenso aos autos de insolvência a ação de impugnação da resolução do contrato promessa referida em 15), a qual foi julgada totalmente procedente tendo sido revogada a resolução, efetuada pelo Senhor Administrador da Insolvência em representação da massa insolvente, do contrato promessa referido no ponto 1).
35. O Impugnante veio então exigir o cumprimento do contrato promessa, pretendendo comprar o imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, mas o Credor hipotecário, E..., SA só aceita distratar a hipoteca se lhe for paga a totalidade do seu crédito.
36. O Senhor Administrador da Insolvência veio, a fls. 91, informar que tem pugnado pelo cumprimento do contrato em causa, mas o Credor/Impugnante só aceita celebrar a escritura se o prédio for transmitido livre de ónus e encargos e o Credor hipotecário não está na disposição de distratar a hipoteca, não lhe sendo consequentemente possível cumprir o contrato nos seus exatos termos, ou seja, com uma transmissão livre de ónus e encargos.
37. Teve lugar a tentativa de conciliação a que alude o art. 136º, n. 1 do CIRE, no decurso da qual as partes envolvidas e o Senhor Administrador da Insolvência mantiveram as suas posições já vertidas nos autos:
O Sr. Administrador de Insolvência disse que está na disposição de cumprir o contrato de promessa, mas com a transmissão do imóvel com os ónus que o mesmo tem e que mantém o valor do crédito reconhecido ao Credor Impugnante B..., bem como a sua natureza.
O Ilustre Mandatário do Credor B... disse que o seu constituinte só tem interesse na celebração de escritura de compra e venda se for feita sem ónus e, caso tal não venha a suceder, ou não seja possível, deverá considerar-se incumprido o contrato com o reconhecimento do direito de retenção e o crédito correspondente ao dobro do sinal prestado conforme o peticionado.
A Ilustre mandatária do Credor Reclamante E..., SA disse que o seu constituinte não distrata a hipoteca se não lhe for pago o valor do seu crédito, sendo que o imóvel não se encontra apreendido, pelo que qualquer venda que venha a ser efetuada apenas poderá ser realizada no âmbito externo à própria insolvência funcionando o Senhor Administrador Judicial apenas e só como representante dos insolventes.

III – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado, no essencial, pelas conclusões das alegações dos recorrentes; assim, as questões colocadas a esta Relação prendem-se com:
- apurar se cabe ao administrador de insolvência, no âmbito do cumprimento de um contrato promessa de compra e venda com eficácia real, proceder pela obtenção do distrate, e/ou, extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos com fundamento no disposto no art. 824º, nº. 2 do Código Civil;
- apurar, caso seja negativa a resposta à questão acima colocada, se o crédito reconhecido ao recorrente beneficia da prevalência que lhe é conferida pelo “direito de retenção” sobre o imóvel apreendido nos autos, devendo ser graduado acima do credor hipotecário.

IV -Fundamentação de direito.
Tendo o aqui apelante exigido do Ex.mo Senhor Administrador de Insolvência, nos termos do art.º 106.º do CIRE, o cumprimento do contrato promessa “sub judice”, pretendendo comprar o imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, entendeu o tribunal “a quo” que o Administrador de Insolvência, atento o não consentimento do credor hipotecário, não teria de “distratar” os ónus e encargos que incidem sobre o imóvel prometido vender.
O recorrente alega que teria de ser oposta a solução encontrada. Argumenta, no essencial, que Administrador de Insolvência deveria cumprir o contrato promessa em causa, nos precisos termos contratados, ou seja, com o imóvel livre de ónus e encargos uma vez que, nomeadamente, a opção pelo cumprimento dos contratos promessa de compra e venda faria operar a redução do passivo da Massa Insolvente com ganhos nesse âmbito em termos de custo/benefício.
Cumpre decidir. A nosso ver, perfila-se um argumento factual que, desde logo, prejudica a alegação do recorrente. É que, como decorre do facto provado 33. a promessa de alienação invocada foi registada na Conservatória do Registo Predial competente, através da inscrição AP. 2128, em 9 de Abril de 2013 (o contrato-promessa data de quatro dias antes, 5 de Abril) ao passo que a hipoteca a favor do Banco consta da inscrição 2555 e é claramente anterior – data de 20.04.2009. Donde, como se alcança, a garantia constituída a favor do E..., SA é anterior á promessa de transmissão com garantia real constituída a favor do Recorrente o que, à luz do disposto no artigo 824, nº2 “in fine” do C.Civil, prevê que, mesmo nas vendas em execução, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, mas sempre com a excepção prevista nesse preceito daqueles direitos que forem constituídos em data anterior e que, como é o caso, produzam efeitos em relação a terceiros. Na verdade, o promitente-comprador tomou conhecimento, por força do registo, de que o bem em causa se encontrava onerado com uma hipoteca independentemente do contrato aludir a que o bem seria transaccionado livre de ónus ou encargos. Uma vez incumprido pelos promitentes vendedores ora insolventes a obrigação de proceder á liquidação do crédito garantido pela hipoteca, com vista ao seu cancelamento e á transmissão do bem livre de ónus e encargos, caberia ao recorrente, na qualidade de promitente-comprador expurgar a hipoteca nos termos do art. 721 do C.Civil. E esta obrigação mais resulta incontornável na medida em que, no caso dos autos, não resulta do cumprimento do contrato qualquer contrapartida pecuniária para a massa insolvente – na medida mais haveria a pagar pelo promitente-comprador - e, por isso, não seria o credor hipotecário, ou qualquer outro, ressarcido pela venda do imóvel quando concretizada.
Por outro lado, conforme se aventa na decisão recorrida, o cumprimento pelo administrador de insolvência deste contrato-prometido não pode ser visto como constituindo uma venda no âmbito da liquidação do activo do devedor uma vez que o dito contrato foi celebrado anteriormente à declaração de insolvência e, por isso, não poderá, como exaramos acima, assumir a virtualidade de extinguir os direitos reais de garantia que onerem os bens transmitidos nos termos do disposto no art. 824º, nº. 2 do Código Civil.
Doutro modo, seria posta em causa a função basilar da hipoteca de conferir ao credor o direito a ser pago pelo valor da coisa hipotecada, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade no registo conforme decorre do art.º 686.º, n.º 1 do Código Civil.
Nesta conformidade, a cumprir o contrato-promessa em questão, o imóvel nele contemplado teria que ser transmitido no estado em que se encontra, onerado, pois, com a hipoteca que nele incide. O promitente-comprador não aceitou a transmissão com o ónus da hipoteca pelo que o imóvel deve ser apreendido, como foi, para a massa insolvente sem prejuízo do reconhecimento e graduação do crédito do apelante, como igualmente foi feito, no valor correspondente ao dobro do sinal.
Uma nota final: o recorrente invoca, a favor da sua tese, um acórdão desta Relação de 16/03/2010, proferido nos autos de processo n.º 2384/08.3TBSTS, disponível em www.dgsi.pt. Porém, importa sublinhar que a essa decisão assentou, desde logo, na outorga ao administrador da insolvência da ponderação, em concreto, da opção a tomar relativamente ao cumprimento, ou não, desses contratos, consoante fosse mais conveniente para a massa, nos termos do art.102º do CIRE; ora, no caso, como vimos, nenhum valor adicional entraria, a crédito, na massa insolvente pois o preço já fora integralmente prestado, o que determinou a posição assumida pelo administrador.
Improcede, pois, esta parcela do recurso deduzido.
*
A segunda questão em litígio prende-se com a graduação do crédito do apelante defendendo este que o seu crédito de €: 331.700,00 beneficia de garantia real e prevalece sobre a hipoteca constituída a favor do credor hipotecário.
Argumenta, para tanto, em síntese que lhe deveria ter sido reconhecido o direito de retenção sobre o imóvel nos termos do disposto no art. 755º, nº 1, al. f) do Código Civil.
A recusa de tal reconhecimento pelo tribunal “a quo” decorreu de não poder o impugnante ser considerado consumidor, o que o apelante não aceita quer porque dos factos não resulta que o Apelante seja ou não “consumidor”, discussão essa que não foi suscitada pelas partes e como tal não pode ser apreciada, quer porque a jurisprudência uniformizada do STJ que restringiu a aplicação do art. 755º, nº 1, al. f), do CC, no sentido de que o direito de retenção aí previsto apenas abrange o promitente-comprador que seja consumidor, não deverá ser aplicada ao presente caso.
Vejamos. “Prima facie” entendemos que o tribunal apelado podia, e devia, apreciar de que modo o crédito do impugnante deveria ser graduado, designadamente apurando se goza de garantia legal. Tal apreciação pressupõe a aferição da existência, ou não, do direito de retenção e esta, por sua vez, exige a ponderação dos pressupostos respectivos nos quais, por força da uniformização jurisprudencial encetada nesta matéria, se inclui a qualidade de consumidor deste credor; donde, não existe qualquer obstáculo à actuação do tribunal apelado neste contexto.
Cumpre, pois, apreciar a questão de fundo.
O art.º 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil estabelece que goza do direito de retenção «o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.
Por outro lado, o art.º 106º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) diz-nos que «no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.»
Discute-se justamente se, uma vez recusado – qualquer que seja o motivo - o promitente-comprador que tenha a tradição da coisa conserva o direito de retenção que a lei civil comum lhe atribui para a defesa do seu crédito. Sobre esta questão, perante a diversidade de entendimentos, o Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”
Temos, pois, a necessidade para que o promitente-comprador, em graduação de créditos em processo de insolvência, goze de direito de retenção que incluir este no conceito de consumidor.
A fundamentação exaustiva do Acórdão Uniformizador fornece na nota 10 elementos que permitem vislumbrar o que se quis incluir e excluir quando se inseriu o conceito de consumidor na parte da uniformização. Assim, pode ler-se: “…não sofre dúvida que o promitente-vendedor é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para o seu uso próprio e não com escopo de revenda”.
Neste sentido, entendemos, em consonância com o decidido em primeira instância, que os factos apurados permitem concluir, com certeza bastante, que não estamos perante um consumidor; o credor em causa alojava trabalhadores seus no imóvel e via a compra como um investimento, com o escopo de revenda.
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De ponderar com mais cuidado uma outra alegação segundo a qual o tribunal recorrido não teria que apurar da qualidade de consumidor deste credor por estarem em causa situações que se verificaram em data anterior ao citado Acórdão Uniformizador apenas a partir da qual surgiu esta imposição necessidade de indagação da qualidade de utilizador final por parte daquele que promete adquirir um dado imóvel.
Neste sentido, anote-se recente Acórdão desta Relação em que a propósito de uma reclamação de créditos datada já de 2007 entendeu que, embora nesse ano fosse já reconhecida uma significativa divergência jurisprudencial quanto à concessão de direito de retenção e prevalência do crédito respetivo sobre crédito garantido por hipoteca, nos casos de incumprimento de contrato-promessa, em que houve tradição da coisa, com decisões em sentido afirmativo e negativo, a questão desse direito de retenção ser, nestes casos, concedido apenas ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor só principiou a ser mais profundamente colocada jurisprudencialmente com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.6.2011 (proc. nº 6132/08.0TABRG-J.G.A1, disponível in www.dgsi.pt.).
Nesse acórdão, porém, o motivo pelo qual esta circunstância de não estarmos perante promitentes-compradores veio a ser desconsiderada assentou, em concreto, na circunstância de não existir factualidade alegada, nem provada sobre a qualidade de consumidores dos credores reclamantes, tratando-se de uma questão que só foi suscitada, nesse outro processo, em sede de recurso. Configuraria, portanto, uma autêntica questão nova, que não é estritamente jurídica, cujo conhecimento estaria vedado ao tribunal de recurso; não ocorre tal condicionante nestes autos.
Em causa estará assim, no rigor dos princípios, a questão da aplicação no tempo dos acórdãos de uniformização de jurisprudência. Em tese geral, os acórdãos de uniformização não devem ser aplicados quando da sua aplicação decorra uma objectiva frustração de expectativas das partes; não pode, portanto, essa aplicação constituir uma “decisão-surpresa” frustradora dessas expectativas.
Não cremos, porém, que seja essa a situação em apreço.
Note-se que a interpelação do ora apelante para cumprimento do contrato promessa de compra e venda junto do Administrador da Insolvência nomeado nos autos é de 20/08/2014 (cf. documento de fls. 18 verso a 20 verso) já após inclusive a prolacção do acórdão uniformizador que existe, justamente, em função de uma polémica jurisprudencial que, como vimos, delineia-se já em 2011; o próprio contrato promessa na origem do pretendido direito de retenção é de Abril de 2013. Por outra via, a questão não surge como nova aquando da instância recursal na medida em que foi previamente abordada, com detalhe, pela sentença impugnada.
Concluímos pois por uma tripla adesão ao acórdão apelado. A questão podia e devia ser dirimida pois era fulcral à luz da evolução jurídica e doutrinal existente nesta matéria, implicando uma prévia indagação factual; foi-o de modo assertivo na medida em que o apelante não tem, à luz da factologia apurada, a qualidade de comerciante; não estava o tribunal coarctado, em sede de aplicação do atinente acórdão uniformizador no tempo, na medida em que o próprio contrato que fundaria o direito de retenção data de 2013 numa altura em que já decorria a controvérsia jurisprudencial solucionada pelo dita decisão uniformizadora do STJ.
Improcedendo o recurso igualmente nesta sede, decorrerá a confirmação da sentença impugnada com fundamentos que dela não diferem.
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Resta proceder à sumariação prevista pelo art.663º, nº7 do Código do Processo Civil):
I – No âmbito de um processo de insolvência, o cumprimento de contrato promessa com tradição do imóvel a que se refere o contrato prometido por parte do Administrador de Insolvência, de harmonia com o disposto no artigo 106º do CIRE, não implica, necessariamente, que este deva proceder ao distrate dos ónus e encargos que incidem sobre o imóvel prometido vender.
II – Doutro modo, seria posta em causa a função basilar da hipoteca de conferir ao credor o direito a ser pago pelo valor da coisa hipotecada, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade no registo, conforme decorre do art.º 686.º, n.º 1 do Código Civil.
III - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) apenas confere o gozo do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor entendida esta no sentido de estarmos perante um utilizador final que utiliza o imóvel prometido comprar para uso próprio e não com escopo de revenda.
IV - Em tese geral, os acórdãos de uniformização de jurisprudência não devem ser usados quando da sua aplicação decorra uma objectiva frustração de expectativas das partes; não pode, portanto, essa aplicação constituir uma “decisão-surpresa” frustradora dessas expectativas.
V – Um qualquer acórdão uniformizador decorre, necessariamente, de uma prévia querela jurisprudencial sobre o “thema decidendum”; donde não constitui decisão-surpresa a aplicação de um dado acórdão uniformizador relativamente aos efeitos de um dado contrato exarado numa data em que tal polémica jurisprudencial já era objectivamente patente.

V – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso formulado, confirmando-se a decisão proferida pela primeira instância.
Custas pelo apelante.

Porto, 11 de Outubro de 2017
José Igreja Matos
Rui Moreira
Lina Baptista