Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
43/13.4JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: VIOLAÇÃO
VIOLÊNCIA
AMEAÇA GRAVE
CONSENTIMENTO
Nº do Documento: RP2016113043/13.4JAPRT.P1
Data do Acordão: 11/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1036, FLS.69-84)
Área Temática: .
Sumário: O facto de a vítima ter "facilitado a penetração" anal não pode confundir-se com consentimento, aceitação ou tolerância num contexto em que o arguido depois de ter baixado as calças e as cuecas disse ao ofendido "é hoje, é hoje", tirou-lhe a toalha que este tinha enrolada ao corpo, disse-lhe por duas vezes "anda lá se não dou-te uma coça" e com pujança física superior agarrou-o pelo abdómen e inclinou-o ligeiramente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 43/13.4JAPRT.P1

Comarca do Porto
Porto – Instância Local – Secção Criminal – J6
(Processo nº 43/13.4JAPRT)

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
1. No âmbito presentes autos de Processo Comum (Singular) em que é arguido B… (devidamente identificado nos autos), após realização da audiência de julgamento, no dia 01.04.2016 foi proferida sentença (constante de fls. 379 a 403, mas depositada apenas no dia 15.04.2016 - cfr. declaração de depósito de fls. 407), onde se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial na parte relevante):
“I - Condenar o arguido, B…, pela prática, em autoria material, de um crime de violação, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 164.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, em conjugação com o disposto no artigo 4.º do DL n.º 401/82, de 23/09, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão.
*
II - Nos termos do estabelecido no artigo 50.º, nºs 1, 4 e 5, do Código Penal, suspendo, pelo período 1 (um) ano e 10 (dez) meses, a execução da pena de prisão aplicada ao arguido.
Tal suspensão será acompanhada, nos termos dos artigos 50.º, 52.º, 53.º e 54.º, do Código Penal, por um regime de prova, mediante a imposição, além de outras que venham a mostrar-se necessárias, das subsequentes obrigações e regras de conduta:
a) - cumprir um plano individual de readaptação social, a elaborar, no prazo de 2 meses, pelos serviços de reinserção social;
b) - manter a consulta de adultos no Departamento C1… do Centro Hospitalar C… ou noutro departamento C1…;
c) - procurar e exercer ocupação profissional adequada às suas qualificações e aptidões;
d) - realizar, durante o período de suspensão, entrevistas com um técnico da DGRS, com a periodicidade por este definida;
e) - receber visitas do técnico de reinserção social ou apresentar-se à DGRS, quando para tal for convocado, e prestar quaisquer esclarecimentos sempre que necessário; e
f) - informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência.
(…)”
2. Inconformado, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 409 a 428 – correio electrónico, o original consta a fls. 429 a 438), extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Há erro notório na apreciação da prova (art 410°-2 c) CPP) quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado daquela forma.
2. Na Douta Sentença aqui em crise, o Mmo Juiz a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova quando considerou que o acto sexual entre o Recorrente e o D… não foi consensual.
3. Incorreu em erro notório na apreciação da prova quando considerou que o Recorrente teria ameaçado o D….
4. Incorreu em erro notório na apreciação da prova quando considerou que tal ameaça causou medo no D….
5. Incorreu em erro notório na apreciação da prova quando considerou que tal ameaça e o medo por ela causado constrangeu o D… a suportar ser sodomizado contra a sua vontade.
6. Incorreu em erro notório na apreciação da prova quando considerou que tal ameaça foi uma ameaça grave.
7. Incorreu em erro notório na apreciação da prova quando considerou que o Recorrente agiu com dolo.
8. Tais erros decorrem de uma simples análise crítica, feita à luz das regras da experiência comum e à lógica normal da vida, e posem ser imediatamente percepcionados pela simples leitura da matéria de facto dada como provada e da sentença proferida.
9. Corrigidos tais erros o Recorrente não pode deixar de ser absolvido, desde logo, por ausência de dolo - cfr. art. 13°-1 do CP.
10. Ainda que assim se não entenda, o que se não concede, igualmente se teria de absolver o arguido por falta do requisito objectivo essencial para que haja violação que é o do constrangimento.
11. Para a remota possibilidade de tal ainda assim se não entender, jamais se poderá entender a frase alegadamente ameaçatória como uma "ameaça grave", pelo que aqui, para além do erro notório na apreciação da prova, teria ainda o Mmo Juiz a quo violado o disposto no art. 164°-1 e 2 do CP,
12. Devendo, consequentemente, reformular-se na parte decisória a qualificação penal a qual, não podendo ultrapassar a da previsão do art. 164°-2 do CP, com uma moldura penal claramente inferior, o que implicará que a pena seja recalculada.
TERMOS EM QUE
REQUER A V. EXA.:
Que, por tempestivo e legal se digne admitir o presente recurso com efeito suspensivo, e, a final, seja o mesmo julgado procedente por provado com as respectivas consequências legais,
Tudo com o que
Como sempre, Vas Exa.s farão JUSTIÇA!

3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 450.
4. O Ministério Público (a fls. 543 a 464), respondeu ao recurso, concluindo no sentido da sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.
5. Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta (a fls. 473 a 476), emitiu douto parecer no sentido da total improcedência do recurso.
6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
7. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso, seguindo uma ordem de precedência lógica, as questões a conhecer são as seguintes:

1ª. Saber se a sentença recorrida padece do erro notório na apreciação da prova (vício a que se reporta o artigo 410º nº 2 alínea c) do Código de Processo Penal).
2ª. Erro de Julgamento
3ª. Qualificação jurídica dos factos (defendendo o recorrente que não se mostra verificado/preenchido o nº 1 do artigo 164º do Código Penal).

Vejamos, desde já o que na sentença recorrida consta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto à fundamentação da matéria de facto (transcrição):
“FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
O arguido, B…, nascido a .. de junho de 1996, encontrava-se inserido, em janeiro de 2013, em meio institucional, no Centro E… e residia numa das casas daquela Instituição - a E1… -, destinada apenas a rapazes, localizada no …, na Rua …, no Porto;
Nessa mesma data, D…, nascido a … de março de 1995, também estava inserido na referida Instituição e residia igualmente, de domingo a sexta-feira, na mencionada E1…;
No dia 6 de janeiro de 2013, cerca das 19 horas, o D…, pretendendo tomar banho, dirigiu-se ao seu quarto na E1…, despiu a roupa, embrulhou-se numa toalha e encaminhou-se para a casa de banho;
Após, tomou banho, secou-se e enrolou novamente a toalha ao corpo;
De seguida, o arguido abriu a porta da divisão do chuveiro, baixou as calças e as cuecas e disse ao D…: "é hoje, é hoje!"; diante disso, o D… empurrou-o;
O arguido tirou então a toalha ao D… e disse-lhe, por duas vezes: anda lá, senão dou-te uma coça;
Após, com as mãos, usando para tal a pujança física que possuía, o arguido agarrou o D… abdómen, inclinou-o ligeiramente e introduziu-lhe o seu pénis ereto no ânus;
O D…, com medo de que o arguido lhe batesse na altura e posteriormente, acabou por facilitar a penetração;
A dada altura do ato, o D… começou a chorar e, perante tal, o arguido deixou então de o penetrar;
A conduta do arguido causou dor ao D…;
Antes de abandonar a casa de banho, o arguido dirigiu-se ao D… e disse-lhe que, se contasse o sucedido aos monitores, lhe dava uma sova e que o abafava;
Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito, concretizado, de praticar cópula anal com o D… e de satisfazer, assim, os seus instintos libidinosos, o que fez contra a vontade daquele, tendo, para o feito, usado a robustez física de que era portador;
O arguido, apesar de saber que punha em causa o direito à autodeterminação sexual do D…, não se absteve de tal conduta;
O arguido sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei;
O D…, atualmente, é homossexual e, na ocasião dos factos, já manifestava essa tendência;
O D… tem limitações cognitivas relevantes e faz tratamento psiquiátrico, desde pequeno, no Hospital F…;
Na altura, era uma pessoa timorata e com capacidade física limitada;
No domínio do Relatório de perícia médico-legal, referente ao arguido, B…, elaborado pelo Gabinete Médico-Legal G… em ../12/2015, consta o seguinte:
"A observação clínica do examinando, a informação facultada pela mãe e a consulta dos elementos processuais disponibilizados pelo Tribunal, permitem concluir:
1 - Nasceu de termo, parto eutócico, numa instituição hospitalar. Integra uma fratria de seis irmãos e cresceu em ambiente familiar descrito como amistoso;
2 - Completou o 2.º Ciclo do Ensino Básico aos 14 anos, tendo revelado dificuldades a nível da aprendizagem "não tinha interesse pela escola ... fazia asneiras ... era agressivo com os colegas e os professores" (sic). Sabe ler e escrever, mas hesita na execução das operações aritméticas básicas. Conhece o valor facial e aquisitivo do dinheiro;
3 - Sem atividade ocupacional estruturada;
4 - História de relações amorosas esporádicas, sendo que a atual aparenta ter alguma consistência;
5 - A partir dos 8 anos de idade consumos regulares de álcool, haxixe e tabaco, sobretudo em contexto grupal. Registo de furtos em cafés, lojas e na sua casa. Esteve internado em várias instituições, o último dos quais ocorreu na "E…" situada no Porto. Voltou há um ano para o seio da família biológica. Mantém hábitos tabágicos e consumo ocasional de haxixe. Manifestou vontade em arranjar trabalho;
6 - A narrativa sobre a trajetória existencial deixou transparecer um indivíduo impulsivo, emocionalmente instável, com baixa autoimagem, fragilidades na interiorização das normas e regras sociais, infradotação e tendência a externalizar a culpa. Evidenciou possuir conhecimentos básicos sobre o que representa o sexo e a sexualidade, bem como as suas implicações e objetivos,
7 - Negou liminarmente o facto que lhe é imputado. Em abstrato, disse que "não achava bem essas coisas" (sic);
8 - Teve acompanhamento em Pedopsiquiatria desde maio de 2009, encontrando-se no presente na consulta de adultos do Departamento de C1… do CH C…;
9 - Ao exame apresentou-se vígil, atento, reservado, com semblante sombrio e orientado auto e alopsiquicamente. Mímica e motórica em sintonia com humor neutro;
10- Linguagem sem alterações da articulação. Falou quando solicitado, com discurso coerente, pobre em conteúdo, debitado com vocabulário restrito e construção sintática pouco diferenciada. O raciocínio revelou algum embotamento de acordo com debilidade intelectual. No pensamento abstrato identificaram-se algumas fragilidades na formulação dos conceitos. Capacidades mnésicas preservadas. Nível de conhecimentos gerais apurado em consonância com o grau de escolaridade e o contexto sociocultural;
11 - Ausência de atividade alucinatória ou delirante. Juízo crítico presente; 12 - Compreendeu o objetivo do exame a que foi submetido;
13 - O examinando padece de Atraso Mental Ligeiro e Transtorno da Personalidade (Impulsiva).
Resposta às questões colocadas pelo digníssimo Tribunal:
1.º - À data da prática dos factos o arguido era portador de anomalia psíquica, não devendo ser em virtude da mesma penalmente irresponsável;
2.º - Padecia e padece de Atraso Mental Ligeiro e de Transtorno da Personalidade;
3.º - A patologia que afeta o arguido tem caráter permanente;
4.º - Em síntese, as hipóteses de melhoria dependem sobretudo de tratamento psiquiátrico e/ou psicológico adequados, de um contexto sociofamiliar estruturante, e de uma atividade prática profissionalizante criadora de competências que possam facilitar a sua integração no mundo do trabalho. A ausência parcial ou total das condições mencionadas, pode tornar a situação clínica mais vulnerável a um eventual agravamento;
5.º A sua patologia é passível de ter interferido na capacidade de avaliação da ilicitude dos factos imputados, sem que contudo a tenha anulado;
(...)
7.º - Pensamos que o arguido deve ser considerado imputável. Se o Tribunal tal entender, pode ser admitida atenuante da sua imputabilidade a limitação cognitiva que o afeta, dado ser a mesma susceptível de perturbar a apreciação consistente da consequência dos seus atos. Acresce ainda as características de personalidade, bem como a idade do arguido aquando da prática do ilícito e o contexto em que o mesmo ocorreu;
8.º - Pelos elementos disponíveis não parece existir fundado receio sobre a prática de novos factos idênticos aos que lhe são imputados nos autos."
O arguido é solteiro e não tem filhos;
Está desempregado, conquanto mostre vontade de trabalhar, e não beneficia de nenhum subsídio ou regalia social;
Vive com os seus pais, numa casa arrendada por estes, sendo a renda de 35 C mensais;
Na referida casa vive ainda um irmão, de 21 anos de idade;
Os seus pais estão ambos desempregados e o arguido ignora se recebem algum subsídio ou regalia social;
O seu irmão trabalha, na qualidade de costureiro, numa fábrica;
O arguido, os seus pais e o seu irmão não têm veículo motorizado; O arguido tem o 6.º ano de escolaridade;
Do certificado de registo criminal do arguido consta que não tem antecedentes criminais.
*
MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA.
Não se provaram outros factos.
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MOTIVAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
A factualidade positiva resultou da convicção do Tribunal, formada com base no conjunto da prova produzida.
Sendo certo que as declarações e os depoimentos prestados foram objeto, nos termos legais, de gravação magnetofónica, limitar-nos-emos a sobrelevar os aspetos essenciais da pertinente prova.
A título de antelóquio, interessa destacar que o arguido não prestou declarações relativamente aos factos que lhe são irrogados.
Firmado o antedito reparo, anote-se que considerámos, concretamente, o depoimento das seguintes testemunhas: D…, vítima da ação do arguido; H…, que era diretora técnica, desde janeiro de 2013, da E1…; I… e J…, que eram monitores, na E1…, respetivamente, desde 2004 e desde 26/01/2012; K… e L…, que também estavam institucionalizados, à data dos factos, na E1…; e M…, médico que acompanhava o arguido, em consultas, desde 26/05/2009.
De pronto, saliente-se: que as testemunhas H…, I…, J…, K… e L… conheciam o arguido, B…, e o D…; e que as referidas testemunhas, tirante a testemunha K…, não assistiram aos factos.
As citadas testemunhas, mediante visões fracionadas e de forma conjugada e persuasória, descreveram os factos nos termos dados como assentes.
Concretizando, no primacial, os sobreditos depoimentos, observe-se que a testemunha D…, como vítima, relatou os factos em articulação com o que foi dado como assente.
Com valência, clarificou ainda: o arguido não lhe chegou a bater, mas foi agressivo consigo e disse-lhe que, se não colaborasse, lhe dava uma coça; por tal razão, com receio/medo de que ele lhe pudesse bater na ocasião e posteriormente, acabou por facilitar a ação do arguido; tinha medo do arguido, que tinha mais capacidade física do que o depoente; e não sentiu que o arguido, no âmbito da penetração, tenha ejaculado.
Por sua vez, a testemunha H…, com utilidade, aduziu: estava em funções há pouco tempo e, quando lhe telefonaram, a comunicar o facto, estava em casa; dirigiu-se então à Instituição e, após, levou o D… à Polícia e ao IML; o D… estava muito assustado/perturbado; o arguido, após os factos, foi para o quarto onde estavam o L… e o K…; já houve duas outras ocasiões em que o D… efabulou sobre ocorrências de natureza sexual, mas, nesses casos, a sua versão era facilmente extricada/desmontada, visto que não era minimamente consistente, e ele – D… - acabou por admitir a mentira; nesta situação, porém, a versão do D… sempre foi constante e muito mais consolidada.
Ajuntou ainda: o arguido tinha muito mais força física do que o D…; o D… não tem nenhuma força física; e o arguido, quando se exaltava, era muito de difícil de conter/controlar.
Atentemos agora no depoimento das testemunhas J… e I….
A testemunha J…, com primazia, relatou: na altura, ainda não conhecia o arguido B…, dado que ele estava de férias; o arguido era, nesse período, mais forte fisicamente do que é hoje; o D…, na oportunidade, referiu que o arguido o havia advertido de que, se dissesse algo aos monitores, lhe dava uma coça; ele (D…) estava nervoso, alterado, ansioso e muito atrapalhado; e, sendo certo que, tanto o arguido como o D… têm limitações cognitivas, o D… é um menino (sic) diferente.
De outro lado, a testemunha I…, com ressalto, concretizou: nesse dia, o D… chamou-o e queixou-se que o tinham violado; ele estava muito nervoso e a chorar; no quarto ao lado, estava o K…, o L… e o arguido; depois, o depoente e o D… foram para a cozinha, e o arguido, de seguida, apareceu para lá; não achou normal essa atitude do arguido, mas aí não ocorreu nada de particular, ou seja, não houve nenhuma reação do D… a exigir que o arguido saísse da cozinha; o arguido e o D… têm limitações cognitivas e problemas de autocontrolo, mas havia uma tendência para se aproveitarem/abusarem do D…; o D…, por vezes, costuma fazer uns filmes (sic) e gosta de falar das suas tendências sexuais e de exprimir as suas fantasias; o depoente não considera o K… um mentiroso, a ponto de acusar um colega sem razão (tratar-se de uma postura que não se articula com ele); nesse aspecto, o L… é parecido com o K…; o arguido era superior fisicamente (mais capaz fisicamente) aos outros jovens que estavam na E1…; e o arguido é impulsivo e, por isso, às vezes, adotava uma determinada conduta e só após é que refletia sobre ela.
Cabe agora assuntar no depoimento, terminante, da testemunha K…, que ingressou na E1… em 26/04/2010. Releva aqui sobrelevar que o depoimento da citada testemunha foi mais linear, mais amplo e mais concreto após o Tribunal ter determinado a sua inquirição (rectius. o prosseguimento da sua inquirição) sem a presença do arguido.
A testemunha K…, com prevalência, enunciou: viu o D… a sair do quarto para ir tomar banho; o D… tinha uma tendência homossexual; o quarto do depoente era próximo da casa de banho, que é mesmo em frente; o depoente estava no quarto do L…; a dado momento, o depoente foi buscar uma pen ao rés do chão; quando voltou, ao passar pela casa de banho, viu então o arguido com as calças e com os boxers em baixo e com o pénis ereto; diante disso, encostou-se à parede e ouviu o arguido a dizer ao D… o seguinte: se não deixares, bato-te; em face dessa advertência, o D… colaborou no ato sexual; na ocasião, dava-se melhor com o arguido do que com o D… (nesta faceta, agregou que, se se desse melhor com o D…, teria ido em socorro dele) o B…, no fim, ao sair da casa de banho, disse ao D… que, se contasse o ocorrido, lhe batia; de seguida, o depoente dirigiu-se ao quarto onde estava o L… e contou-lhe o que havia visto; pouco tempo após, o arguido apareceu nesse quarto e disse ao depoente e ao L… que tinha ido ao cu ao D…; e à custa disso, houve uma risada geral.
Asseverou ainda que o seu relato corresponde inteiramente à verdade e adicionou que o arguido tinha mais força do que o D… e do que todos os outros jovens que residiam, na altura, na E1….
Relativamente à testemunha L…, cabe dizer, em jeito preambular, que o seu depoimento, em várias passagens, se configurou alinear, cauteloso, atomizado e fragmentário.
Com benefício, além do mais, esclareceu: conhecer o arguido e o D…, mas não manter contacto com nenhum deles; o D… aparentava gostar de rapazes e, por isso, era alvo de bocas (de chacota); não viu o que se passou entre o arguido e o D…; a certa altura, o arguido aparece no seu quarto e disse que tinha tido um envolvimento sexual com o D… (que lhe tinha ido ao cu); na ocasião, o depoente estava acompanhado (não se recorda se se tratava do K…, mas é possível que sim); perante a afirmação do arguido, riram-se todos; e, na ocasião, ficou na dúvida se tal asserção correspondia à verdade. Mais disse: não ter ouvido barulho na casa de banho; e que, para si, o arguido era um rapaz normal.
Perante tal depoimento, a testemunha L… foi confrontada, nos termos do estabelecido no artigo 356.º, n.os 2, alínea b), e 5, do Código de Processo Penal, com o respetivo depoimento, prestado, a fls. 152, na fase de inquérito.*
Neste alinhamento, interessa atentar, de pronto, nas subsecutivas considerações, tecidas por José Damião da Cunha (O Regime Processual De Leitura De Declarações Na Audiência de Julgamento (arts. 356.º e 357.º, do C.P.P., na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fase. 3.º, Julho-Setembro de 1997, pp. 417-418), com as quais concordamos em absoluto: "no caso de discrepâncias ou contradições entre as declarações ou o depoimento prestados, por intervenientes processuais, em audiência de julgamento e os anteriormente prestados, aduz o seguinte: "esta leitura tem apenas por finalidade suprir lacunas por parte da pessoa que preste declarações na audiência de julgamento (art. 356.º-3 a)); ou então servem para averiguar da credibilidade das declarações prestadas em audiência de julgamento (aI. b)). Naturalmente que daqui decorre que esta leitura não permite uma utilização directa das declarações anteriormente prestadas (finalidade que, como vimos, é atribuída às anteriores declarações), mas uma utilização em associação com as declarações efectivamente prestadas em audiência de julgamento (a leitura visa, antes, uma prova crítica das declarações efectivamente prestadas). Ou seja: a admissão desta leitura visa comprovar a veracidade das declarações prestadas na audiência de julgamento, não, evidentemente, comprovar se as declarações anteriormente prestadas são (as) verdadeiras - visa, pois, «esclarecer» o depoimento efectivamente prestado. As anteriores declarações não são objecto de prova e, neste sentido, não são provas verdadeiramente produzidas na audiência de julgamento."
Conclui-se, assim, que são objeto de valoração os depoimentos prestados na audiência de julgamento.
Destaque-se, neste átimo, que, na fase de inquérito, a testemunha L…, a fls. 152, disse, nomeadamente, o seguinte:
- "... estava no seu quarto com o K… e N…, quando o B… entrou e disse: "nem sabem o que fiz agora ... fui ao cu ao D…" ... na altura, todos se riram, tendo o depoente pensado que ele estava a brincar. No entanto, o B… acabou por dizer que estava a falar a sério, o que deixou o depoente na dúvida";
- "... o B… tem um historial grande destas situações, sendo conhecidas algumas histórias, nomeadamente uma ocasião em que foi ao cu ao O… (sic) e nutra em que o B… lhe fez um bico (sic) ... o B… é deficiente, tem uma paragem cerebral (sic)"; - "o B… não é gay ... no entanto, é meio tolinho da cabeça (sic)";
- "... o D… é assumidamente gay, sendo este facto conhecido de toda a residência; no entanto desconhece se ele teria relações sexuais de livre vontade com o B…"
Em face do confronto com tal depoimento, a testemunha, posto que de forma mais mitigada, continuou a mostrar-se algo evasiva. Contudo, referiu que, se disse isso na altura, é porque corresponde à verdade. Aclarou ainda o seguinte: o arguido era o maior de todos, o mais impulsivo; a sua referência ao arguido ser meio tolinho da cabeça concerne à agressividade e à impulsividade dele e ao facto de o arguido fazer coisas diferentes; e não se recorda de o K… lhe ter dito que tinha visto o arguido a manter um relacionamento sexual com o D….
Por fim, a testemunha M…, notadamente, clarificou o seguinte: acompanhava o arguido, em consultas, desde 26/05/2009, no Centro Hospitalar P…; o arguido tem um atraso cognitivo marcado e tinha um comportamento desviante (com situações de furto, consumo de haxixe e fugas da instituição); ele tem dificuldade em controlar impulsos; era reportada a desinibição sexual do arguido; em janeiro de 2013, foi à consulta, numa altura em que ele estava em casa; apesar das limitações cognitivas, o arguido consegue discernir o certo e o errado e as consequências dos seus atos (neste quadrante, aditou que, no contexto duma perícia médica a que o arguido foi submetido, o resultado obtido apontou para uma limitação cognitiva do arguido, todavia com capacidade de distinguir o lícito do ilícito); e que a impulsividade do arguido não se manifesta se ele estiver medicado.
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Valorizámos também os seguintes documentos: o exame médico-legal de ff. 20-22 (nesta parcela, conquanto se conclua pela ausência de vestígios compatíveis com uma agressão sexual, releva enfatizar a sequente referência aí ressaltada: "a ausência de vestígios físicos e/ou biológicos não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios" (haja ainda em vista, na situação sub examine, a colaboração do ofendido e a singularidade de este já ter tido, na forma passiva, relacionamentos sexuais anteriores); o relatório de psicologia forense de ff. 45-48, o relatório médico-legal psiquiátrico de ff. 85-89 (cf., ainda, ff. 156-160) e o relatório de perícia de natureza sexual de ff. 99-102 (cf., ainda, ff. 171-174), no excerto que se reportam às limitações cognitivas e à idiossincrasia do D…; as informações clínicas de ff. 298 e 320, alusivas ao arguido; e o relatório de perícia médico-legal psiquiátrica de ff. 348-351, respeitante ao arguido.
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Em concatenação com os anteditos depoimentos e com a prova documental, ponderámos igualmente as regras de experiência e os critérios de normalidade (no tocante ao recurso a presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou à regra geral da experiência, cf. os Acórdãos da Relação do Porto, de 23/02/1983, de 16/01/1985 e 23/01/1985, todos no BMJ, respetivamente, n.º 234, pág. 620, n.º 343, pág. 377, e n.º 343, pág. 376. Na doutrina espanhola, veja-se T.S. Vives Antón, Boix Reig, Orts Berenguer, Carbonell Mateu e González Cussac, Derecho Penal, Parte Especial, 3ª Edição, Tirant lo Blanch, pág. 374. A propósito das regras de experiência, vide, ainda, José Manuel Aroso Linhares, Regras da Experiência e Liberdade Objectiva do Juízo de Prova, Separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1988).
Observem-se ainda as subsecutivas especificidades:
- em primeiro lugar, convém avultar, de forma imperativa, que o depoimento da testemunha D… se conformou plenamente persuasivo. Na verdade, não obstante a testemunha evidenciar uma personalidade imatura e algo infantil/pueril, mostrou-se sempre totalmente segura no que concerne à verificação dos factos e sem refletir nenhum ressaibo mitómano ou efabulatório. Vale ainda ajuntar que a credibilidade do seu depoimento surge, sobremodo, reforçada pela circunstância de ele, sendo interessado no resultado da causa, se ter pronunciado, relativamente aos factos, de forma sensata, correta, razoável e sem extrapolações;
- de outro lado, releva protrair a apostura do arguido no momento imediatamente seguinte aos factos, ufanando-se/jactando-se, diante dos colegas, do que havia feito; nesta fração, incumbe também sobressair que esse comportamento patenteia nitidamente o sobrepujar de um obstáculo ou oposição; com efeito, na hipótese de uma relação sexual consentida, aprioristicamente, tal atitude do arguido seria algo impertinente;
- é também oportuno registar que o arguido, após os factos, se dirigiu para a cozinha da E1…, visto que nesse espaço se encontravam então o D… e o monitor I… - tratou-se, naturalmente, de uma ação de fiscalização/controlo por banda do arguido, a fim de aferir se o D… havia comunicado algo ou com o desígnio de reforçar, pela sua presença, a advertência que lhe havia feito;
- por derradeiro, cabe protrair a superior capacidade/aptidão física do arguido relativamente ao D… (tal circunstância foi sinalizada por todas as testemunhas que conheciam ambos).
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À vista do exposto, emerge que a prova obtida, na sua dimensão holística/poliédrica, afastou/expungiu, de forma inequívoca, qualquer dúvida relativamente aos factos dados como assentes.
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Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido, aceitou o Tribunal as respetivas declarações.
Por fim, no que concerne aos antecedentes criminais, atentámos no certificado de registo criminal dos arguidos.
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MOTIVAÇÃO DOS FACTOS NÃO PROVADOS
A convicção negativa assentou na circunstância de não ter sido feita prova que convencesse, sem margem para dúvidas, da verificação dos factos não provados.

Considerámos, nomeadamente, a materialidade exposta na motivação dos factos provados.”

1. Passemos então à análise da primeira questão que consiste em saber se a sentença recorrida padece do erro notório na apreciação da prova (vício a que se reporta o artigo 410º nº 2 alínea c) do Código de Processo Penal).
Apreciemos tal questão.
Ao invocado vício, que é de conhecimento oficioso (tal como o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mencionados mas alíneas a) e b) do artigo 410º nº 2 do CPP), alude a alínea c) do nº 2 do artigo 410º Código de Processo Penal[1], o qual, conforme decorre do corpo do nº 2 de tal artigo, tem de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.” Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
O erro notório na apreciação da prova é um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
O “erro notório na apreciação da prova” verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada e/ou das legis artis (sobre os vícios de conhecimento oficioso, como é o caso do erro notório da apreciação da prova, ver Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pags 61 e seguintes).
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Como assim que, ao erro notório, vem sendo, de igual modo, entendimento das Doutrina e Jurisprudência que apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias. Tal vício nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida, ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respectiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida – cfr., entre outros, os Acórdãos do S.T.J., de 09/07/1997 (proc. 562/97) e de 20/03/1999 (Proc. 176/99).
E importa ter também presente que através do erro notório da apreciação da prova se visa atacar a factualidade que o tribunal deu como provada ou não provada (pois o erro notório constitui um dos vícios intrínsecos da sentença), mas não propriamente a credibilidade que foi dada a um meio de prova (aqui estaríamos em algo extrínseco à sentença que estará por detrás da valoração da prova feita pelo tribunal).

In casu, lendo e relendo a decisão recorrida, e analisando os fundamentos expressos pelo tribunal a quo no cotejo das provas produzidas em audiência decorrentes das declarações do arguido e prova testemunhal e documental elencada na motivação da matéria de facto, com as estruturadas razões em que se fundamentou para dar como provados os factos da forma como o fez, não vislumbramos qual ou quais factos provados notoriamente estivessem errados.

Não pondo em causa que tenha ocorrido coito anal, o que o recorrente discorda é do facto do tribunal não ter considerado que esse coito anal não tenha sido consensual, consentido ou pelo menos tolerado pelo ofendido D….
Mas isso não se encaixa no vício da sentença, mas sim no âmbito da valoração da prova feita pelo tribunal a quo para dar como provados determinados factos e dar como não provados outros, valoração essa em relação à qual o recorrente discorda. Porém, esta questão enquadra-se não no âmbito dos vícios da sentença, mas sim no âmbito do erro de julgamento que trataremos adiante.
Assim, para além de não descortinarmos que o tribunal a quo se tivesse alicerçado em provas proibidas (e aqui chamamos a atenção que, conforme resulta da respectiva acta da audiência de julgamento, nessa mesma sede, foram lidas as declarações que pela testemunha L… tinha sido prestadas em sede de inquérito – cfr. acta da quarta sessão da audiência de julgamento constante de fls. 339 e 340), consideramos que face às provas produzidas e mencionadas na fundamentação da matéria de facto e aos fundamentos/argumentos utilizados para através delas espelhar os factos provados e não provados, não se verifica uma violação das regras da experiência, pelo que a sentença recorrida, não enferma dos apontados vícios a que aludem as alíneas do artigo 410º nº 2, nomeadamente do invocado erro notório da apreciação da prova.
2ª Questão - Erro de julgamento.
No âmbito da impugnação ampla (e já não restrita ao texto da decisão recorrida como acontece com a indagação dos vícios do artigo 410º nº 2), a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º, nos quais é expressamente estabelecido:
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
São estes os passos a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto. Na especificação dos factos o recorrente deverá indicar os concretos pontos de facto (ou os factos individualizados ou segmentos dos factos) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado(s). Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar qual o concreto documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação.
A exigência da lei ao estabelecer os requisitos da impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, apesar de incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento. Se estivéssemos perante um novo julgamento as especificações/requisitos seriam, obviamente, destituídos de fundamento. Mas, sendo o recurso um remédio, então o que se pretende é corrigir concretos erros de julgamento respeitantes à matéria de facto. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstrem tais erros estejam também elas concretizadas e localizadas, tanto mais que segundo estabelece ainda o nº 6 de tal artigo 412º que “No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Ora, apesar de, embora sob o invocado cometimento do erro notório na apreciação da prova, concluiu o recorrente que o Mmo Juiz a quo incorreu em erro:
- quando considerou que o acto sexual entre o Recorrente e o D… não foi consensual;
- quando considerou que o Recorrente teria ameaçado o D….
- quando considerou que tal ameaça causou medo no D….
- quando considerou que tal ameaça e o medo por ela causado constrangeu o D… a suportar ser sodomizado contra a sua vontade
- quando considerou que tal ameaça foi uma ameaça grave.
- quando considerou que o Recorrente agiu com dolo.
O certo é que, com vista à pretendida alteração da matéria de facto, o recorrente deveria ter dado cumprimento ao ónus de especificação a que alude o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal. E não o fez.
Com efeito, não especificou que concretos pontos de facto foram incorrectamente julgados (como provados e/ou não provados); não especificou nem indicou que concretas provas imporiam decisão diversa (em termos de factos provados e não provados) da recorrida; e não especificou/concretizou quais as provas que deviam ser renovadas.
Não deu, pois, o recorrente cumprimento às exigências assinaladas no já mencionado artigo 412º nºs 3 e 4 para que este tribunal ad quem pudesse sindicar a matéria de facto fixada na primeira instância. O ónus de especificação a que alude o mencionado artigo 412º nº 3 – desde logo quanto aos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme exige a alínea a) de tal nº 3 – tal como se pode ver das conclusões do recurso supra transcritas, não foi observado/acatado/cumprido pelo recorrente.
Do que se constata do seu recurso é que o recorrente manifesta uma posição diversa daquela a que o tribunal a quo chegou, considerando que o tribunal recorrido deveria ter chegado a uma conclusão diversa daquela a que chegou; ou ainda por outras palavras, que o tribunal recorrido deveria ter formulado a mesma convicção ou partido do mesmo entendimento do recorrente.
Ora, salvo o muito devido respeito por opinião contrária, uma mera discordância de factos ou dos meios de prova que o tribunal teve em consideração para dar como provados os factos é totalmente o inverso da legalmente exigida concretização dos factos e/ou da concreta indicação dos meios de prova que imponham decisão diversa. E o ónus de impugnação especificada sobre os concretos factos a sindicar e das concretas provas que imporiam decisão diversa impendia sobre o recorrente, não cabendo ao tribunal nem a faculdade/direito nem o ónus/dever/obrigação de se substituir ao recorrente.
Se ao menos na motivação os tivesse concretizado poder-se-ia fazer operar o convite ao aperfeiçoamento a que alude o nº 3 do artigo 417º. Todavia, sendo inalterável a motivação e não podendo as conclusões exceder os limites definidos pela motivação (cfr. nº 4 do artigo 417º), o convite para a correcção traduzir-se-ia num acto inútil, o que a lei proíbe.
O recorrente (apesar de discordar da valoração que o tribunal fez da prova) não cumpriu, como lhe competia, o ónus de impugnação especificada.
A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso» (- Acórdão do STJ de 31/10/2007, disponível em www.dgsi.pt/jstj.).
Neste sentido se pronunciou também o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 259/2002, ao referir “quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 412º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.”(Acórdão de 18/6/2002, publicado no D.R., II Série, de 13/12/2002.).
A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
E seguindo as orientações do atrás mencionado Acórdão do TC nº 259/2002 (acórdão esse em que recorrente era um assistente), já perante uma situação em que o recorrente é o arguido, o mesmo Tribunal Constitucional (apesar de se reportar à aliena b) do nº 3 do artigo 412º, mas cujo raciocínio se pode seguir quanto também à alínea a) do mesmo nº 3), no seu Acórdão nº 140/2004, de 10 de Março (publicado no Diário da República II Série, de 17 de Abril de 2004, o mesmo TC foi bem claro ao decidir “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências”
E a jurisprudência deste acórdão veio a ser perfilhada nos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 488/2004 e 342/2006 e nas decisões sumárias nºs 58/2005, 274/2006 e 88/2008 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Saliente-se que de acordo com o disposto no artigo 431.º, b), havendo documentação da prova, a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, o que, como vimos, não ocorre no caso em apreço.
Na circunstância do não acatamento do ónus de impugnação especificada, tem-se entendido, como decorrência da sua própria noção (um ónus consiste na necessidade de observância de determinado comportamento como pressuposto de obtenção de determinada vantagem, que até pode cifrar-se em evitar a perda de um benefício ou faculdade, no caso, a de viabilizar o recurso sobre a matéria de facto), não ocorrer o condicionalismo referido na alínea b) do artigo 431.º, tornando-se inviável a modificabilidade da decisão em relação à matéria de facto.
Em suma, por tudo o que acaba de ser dito, perante a falta de concretização dos factos fixados pelo tribunal a quo e que o recorrente, em termos genéricos e conclusivos considera que não deveriam ser dados como provados, quer também pela falta de especifica indicação das provas que (obviamente em relação a esses factos que não concretizou minimamente) imporiam decisão diversa, coarctada ficou a possibilidade deste tribunal ad quem sindicar a matéria de facto que havia sido fixada pelo tribunal a quo, matéria essa que, assim, se tem por assente.
Improcede, assim, também esta pretensão do recorrente.

3ª Questão: Qualificação jurídica dos factos (defendendo o recorrente que não se mostra verificado/preenchido o nº 1 do artigo 164º do Código Penal).
Quanto a esta questão, desde já avançamos, a mesma terá que improceder, por duas ordens de razões:
a) por um lado, verificamos que a suscitação desta questão tinha por base o êxito da pretendida alteração da matéria de facto, alteração essa que, como supra exposto, não veio a ter acolhimento por este tribunal ad quem.
b) Por outro lado, adianta-se ainda que, face à inalterabilidade da matéria de facto e perante os factos provados, a qualificação jurídica dos factos provados encontra-se correcta e detalhadamente fundamentada na sentença recorrida, da qual decorre que a apurada conduta do arguido/recorrente preenche os elementos constitutivos (a nível objectivo e subjectivo) do crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º nº 1 a) do Código Penal, sem que se tenham verificado quaisquer causas de exclusão quer da ilicitude quer da culpa.
A este respeito, passemos a transcrever o que foi dito na sentença recorrida na parte respeitante ao enquadramento jurídico dos factos:
“ENQUADRAMENTO JURíDICO-PENAL
A conduta do arguido, B…, foi subsumida, pelo Ministério Público na prática, em autoria material, de um crime de violação, previsto e punível pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Em jeito exordial, destaque-se que o instinto sexual humano se estriba, antropologicamente, em duas características que o distinguem dos seres animais: de um lado, a periodicidade, isto é, o seu carácter permanente; de outro turno, a possibilidade de dissociação entre a união física e a função de reprodução.
"O comportamento sexual humano apresenta uma plasticidade quase universal, tão vasto é o âmbito das suas manifestações (que vão desde as formas de comportamento mais «aberrantes» às mais «sublimes» criações artísticas), encontrando-se praticamente todos os órgãos dos sentidos humanos ao serviço da sexualidade ... " (cf. Karl Prelhaz Natscheradetz, O Direito Penal Sexual: Conteúdo e Limites, Almedina, 1985, pág. 73). Assim sendo, facilmente se compreende que a conduta do homem, no plano sexual, tenha sempre constituído domínio privilegiado do controlo social. O instinto sexual humano "tem de ser estabilizado «em interesses concretos e contínuos, numa super-estrutura cultural de instituições»" (ver H. Schelsky, Sociologia da Sexualidade, tradução portuguesa, Livros do Brasil, Lisboa, s.d., pág. 22). Na verdade, a cultura pressupõe a sublimação do mais desordenado de todos os instintos - a sexualidade -, do mesmo modo que a convivência entre as pessoas expostula o primado do princípio da realidade pragmática diante do princípio do prazer associai e a consequente abdução/renúncia de satisfações instintivas, maiormente de natureza sexual e erótica (cont. Sigmund Freud, El malestar en la cultura, tradução espanhola, Alianza Editorial, Madrid, 8.ª edição, 1981, pág. 47).
Vale isto por dizer que qualquer sociedade carece de um conjunto de normas ao serviço de tal desígnio, adstringindo-se a nossa perspectiva às de carácter ou natureza penal, isto é, àquelas que, reversamente às de cariz ético-moral lato sensu, aspiram unicamente a obter um padrão mínimo de convivência social, limitando-se à protecção das necessidades básicas da vida coletiva humana, em ordem a possibilitar aos cidadãos o livre desenvolvimento das suas potencialidades humanas na interação social (para considerações amplas, vide Karl Prelhaz Natscheradetz, ob. cit, pág. 89 e ss.)
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Cabe também destacar que o direito penal sexual não se confunde/congloba com a moral sexual. Com efeito, nem todos os atos que corporificam uma violação da moral sexual, hoje reconhecida, se mostram cominados no Código Penal. a direito penal tem uma área muito menos extensa do que a da moral e, nesta esfera singular da vida sexual, não pode almejar a impor a observância de todos os deveres proclamados pela ética sexual, mas somente aqueles cujo cumprimento considere necessário para uma convivência social ordenada, sancionando-se apenas os factos que lesam gravemente bens jurídicos individuais e coletivos e põem em perigo a vida social.
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Nos termos do predito artigo 164.°, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de violação:
"Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) - A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) - A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de três a dez anos".
No caso em avaliação, interessa tão só a mencionada alínea a).
Do referido normativo emerge, de pronto, que o crime de violação pretende tutelar a liberdade e a autodeterminação sexual e que, por esta via, não se protege o pudor ou a moral sexual (cf., e.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/05/1999 e o Acórdão da Relação do Porto de 12/04/2000, respetivamente, em www.dgsi.pt/jstj e www.dgsi.pt/jtrp).
Da disposição legal sobredita, derivam-se também, linearmente, os elementos, objetivo e subjetivo, do crime de violação.
Fixemo-nos, para já, no elemento objetivo.
O tipo material ou objetivo do crime em tela concretiza-se em o agente:
- constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem cópula, coito anal ou oral; e
- que tal constrangimento se opere por meio de violência, ameaça grave, ou após ter tornado a vítima inconsciente ou tê-la posto na impossibilidade de resistir.
O agente deste crime pode ser uma pessoa do sexo masculino ou feminino, com mais de 16 anos. Na verdade, se a introdução do pénis somente pode ser efetuada por um homem, que força/coage outrem à cópula ou ao coito anal ou oral, é também inconcusso que na ocorrência/ato, sob qualquer forma de comparticipação, pode intervir uma mulher (haja em vista o sequente segmento normativo - "praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral").
De outro lado, a sujeito passivo do crime pode ser, igualmente, uma pessoa do sexo masculino ou feminino, maior ou menor de idade, sendo a menoridade da vítima ressaltante para efeitos do agravamento da moldura penal e da fixação da natureza do procedimento criminal (a este propósito, cf.: M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, com Notas e Comentários, Almedina, 2014, pág. 693; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 448; e Jorge Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 471)
No pertinente ao conceito de cópula, o Código Penal ratifica o percurso do membro viril dentro da vagina. A cópula é constituída pela introdução, total ou parcial, do membro viril na vagina (ver Luís Osório, Notas ao Código Penal, Volume III, pág. 241); é a conjunção sexual normal entre homem e mulher, isto é, a união dos órgãos sexuais do homem com os da mulher, mediante a introdução do pénis, ainda que por forma parcial, ou seja, com a simples intromissão entre os grandes e os pequenos lábios, mesmo sem atingir o hímen (v. Leal Henriques/Simas Santos, O Código Penal de 1982, Volume III, pp. 564 e 59-60; e Leal Henriques-Simas Santos, Código Penal Anotado, 2.º Volume, 1996, Rei dos Livros, pág. 238). "Para a consumação da cópula basta a conjunctio membrorum, não sendo necessária nem a emissio seminis, nem que a imissio penis seja completa (Rodrigues Devesa, Derecho Penal Español, 11.ª Edição, 1988, Dykinson, Madrid, pág. 177 e ss.; veja-se ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 5/2003, de 24 de Setembro de 2003, que firmou o seguinte: «Para o preenchimento valorativo do conceito de acto análogo à cópula a que se refere o artigo 201.º, n.º 2, do Código Penal de 1982, versão originária, é indiferente que tenha havido ou não emissio seminis»).
Releva ainda sinalizar que a designada cópula vulvar ou vestibular não constitui cópula para efeito do artigo 164.º (na doutrina, conf.: M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, ibidem, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 449; e Jorge Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 472; na jurisprudência, por amostra, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20/10/2005, na CJ - Acórdãos do STJ -, 2005, Tomo 3, pág. 190).
Na esfera deste crime, a cópula está equiparada ao coito anal e ao coito oral: o primeiro corporifica-se na introdução, total ou parcial, do pénis de um homem no ânus de outra pessoa, do sexo masculino ou feminino, com ou sem emissio seminls, ao passo que o segundo se consubstancia na introdução, total ou parcial, do pénis de um homem, com ou sem ereção, na boca de outra pessoa, do sexo masculino ou feminino (além dos autores indicados na precedente nota, ver ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/09/2004, na CJ - Acórdãos do STJ -, 2004, Tomo 3, pág. 164).
Saliente-se, outrossim, que a cópula e o coito anal ou oral conformam sempre o crime de violação, quer a vítima assuma uma posição ativa ("praticar, consigo ou outrem"), quer adote uma posição passiva ("sofrer") na relação sexual.
No contorno do crime em pauta, expostula-se que a conduta do do agente se materialize ou corporize em constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou oral.
Constranger significa coagir, compelir, forçar, impor, obrigar (cf.. Victor Sá Pereira, Código Penal, Notas e Comentários, Horizonte Jurídico, pág. 208). O coagido deixa de agir livremente, fazendo ou sofrendo o que não quer; a sua conduta passa a não ser voluntária, mas, antes, imposta, ficando assim afastada a respetiva liberdade de autodeterminação.
Tal constrangimento há de exercer-se aqui, imperiosamente, mediante o uso de violência ou de ameaça grave ou depois de, para realizar a cópula, coito anal ou oral, ter tornado a vítima inconsciente ou tê-la posto na impossibilidade de resistir - significa isto que a cópula, o coito anal e o coito oral, para que sejam punidos, têm de ser praticados contra ou sem a vontade da vítima.
Neste ensejo, insta então delimitar/particularizar os meios executivos do crime de violação, sendo certo que estamos diante dum crime de execução vinculada, porquanto, além dos meios especificados, nenhum outro determina o preenchimento do tipo.
A conduta típica transverbera-se aqui num ato de coação imediatamente dirigido à prática, ativa ou passiva, de um ato sexual (no vertente caso, o coito anal). A coação é, pois, caracterizada pela sua finalidade e deve existir entre ela e o ato sexual uma relação meio/fim. A fórmula para esse fim, utilizada na norma, é válida para todos os meios de constrangimento, e não exclusivamente para o de tornar a vítima inconsciente ou a ter posto na impossibilidade de resistir (ver Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 452, referindo-se ao crime de coação sexual, para o qual remete - ver pág. 473 -, a propósito dos meios típicos de ação no crime de violação).
A violência é, neste perímetro, apenas o uso da força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva) ou hostilidade idónea a levar a cabo o desiderato a que o agente se propôs e destinada a vencer a resistência oferecida ou esperada da vítima - põe-se aqui em causa a liberdade da pessoa (de ação e decisão e/ou de movimentos) e a integridade física. Aparta-se, assim, o uso de violência psíquica ou violência moral (in hoc sensu, ver Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 453-454, e Paulo Pinto de Albuquerque pág. 443 (na anotação 11 ao artigo 163º, porém aplicável, mutatis mulandis, à tipização do crime de violação); com orientação opósita, admitindo a violência moral, ver Sénio Manuel dos Reis Alves, Crimes Sexuais, Notas e Comentários aos artigos 163.º a 179.º do Código Penal, Almedina, 1995, pp. 31-32).
Releva, hic et nunc, enfatizar que a violência, conquanto deva envolver uma qualquer corporalidade do meio de coação, não impõe que a força usada seja capitulada de pesada ou grave - será, todavia, imperioso que se configure apta a sobrepujar a resistência efetiva ou aguardada da vítima. A idoneidade da violência exercida para alcançar o fim ilícito deve ser aferida segundo as circunstâncias do caso, ocorrendo que, "sob certas circunstâncias concretas, nomeadamente em função da debilidade, física ou psíquica, do caráter temeroso ou assustadiço de uma vítima pode bastar, v.g., uma bofetada, o fechá-la contra a sua vontade num quarto ou mesmo num automóvel, o transportá-la de um lugar para outro: é aqui decisiva em principio a perspectiva da vítima... A violência pode ocorrer em simultaneidade com o ato sexual. Uma resistência efectiva não se toma indispensável, bastando que devesse contar-se com ela e o uso da violência se destine a vencê-la" (ver Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 454).
Neste item, mostra-se plenamente válido o entendimento, basicamente, uniforme da jurisprudência, de acordo com o qual é suficiente, para firmar a violência, a inexistência de vontade livre da vítima para a prática do ato, ou seja, a violência corporiza a ação exercida sobre a vítima que contrarie a sua vontade, nela se incluindo o aparente assentimento oferecido como meio de evitar um mal superior (cf., ad exemplum, os seguintes Acórdãos: do STJ, de 14/03/2002 e de 22/02/2006, ambos em www.dgsi.pt/jstj; e da Relação do Porto de 06/03/1991. (.CJ. II. 287) e da Relação de Coimbra, de 17/02/1993, ambos na Coletânea de Jurisprudência, respetivamente, Ano XVI, tomo II, pág. 287, e Ano XVIII, tomo I, pág. 70).
Efetivamente, "não pode deixar de se levar em consideração o caráter estático ou passivo da liberdade sexual, que consiste na proteção do aspeto defensivo de tal liberdade, no direito de não sofrer qualquer espécie de intromissão física ou moral dirigida para a realização de atos sexuais Este entendimento amplo do conceito de violência para efeitos da concretização do crime permite, desde logo, que nos casos em que haja, porventura, algum «consentimento» da vítima no desenrolar do acto, tão só e apenas para evitar o mal maior de ser brutalizada com agressões físicas, sejam, mesmo assim, considerados como situações de violação. É ainda a concretização do bem jurídico em causa no tipo - a liberdade sexual - que está em causa e importa tutelar.
Trata-se no fundo de impedir a valoração do consentimento da vítima quando este não é totalmente livre. Daí que, quando perante uma situação de coação, moral ou física, que leve a vítima a aderir à cópula, ainda assim se estará perante uma situação de violência e, como tal, passível de integrar o crime (conf. José Mouraz Lopes, "Os Crimes Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal", 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1998, pág. 35 e ss.).
Presumir o consentimento por uma quebra na resistência da vítima é, pois, solução que não tem respaldo naturalístico ou legal. A capacidade de resistência física depende de diversos fatores intrínsecos ao agente e à vítima (ver Sénio Alves, ob. cit., pág. 34). As violências físicas, posto que, em determinado momento, sustem, podem ter ocasionado uma intimidação tão forte e intensa sobre a vítima que esta, com sério receio de que prossigam ou se superlativem, pode deixar de resistir, sem que por isso mostre que consentiu (cf.. Beleza dos Santos, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 58, pág. 372).
Neste diapasão, Vítor António Duarte Faveiro (Código Penal Português Anotado, Coimbra Editora, 1951, pág. 611), pelo tocante à violência física, expendeu, de forma inteiramente translúcida e com total acerto, o seguinte"... não se deve interpretar este elemento do crime como significando que só existe violação, neste sentido, quando a mulher resiste até à consumação. A boa doutrina satisfaz-se com o facto de a coacção física ser de tal modo que a mulher, embora sem querer a cópula, se veja obrigada a suportá-la, abandonando-se ao violador ou adaptando-se mesmo corporalmente para facilitar a entrada do pénis, quando esse abandono seja a consequência do cansaço da luta, ou da emoção resultante da ofensa, ou quando essa adaptação corpórea seja o único modo que a ofendida vê para evitar ou sustar o mal, em curso ou iminente, para si ou para outrem".
Atentemos, neste comenos, na ameaça grave, como meio coativo típico.
A ameaça consiste numa ação que afeta a segurança e tranquilidade da pessoa a quem se dirige, demandando-se, ademais, que seja suficientemente séria para produzir o resultado pretendido. Ameaçar é anunciar a intenção de causar um mal futuro, que não tem, porém, de consubstanciar um crime, pois basta que seja idóneo a influenciar a vontade; é anunciar a um indivíduo um grave e injusto dano ou castigo; é o gesto, o sinal, a palavra cujo escopo é amedrontar ou atemorizar.
Na particularidade deste ilícito, a ameaça carece de ser entendida como a manifestação de um propósito de causar um mal ou um perigo se a pessoa não consentir no ato sexual, podendo, nesta medida, reentrar, parcialmente, no conceito de "violência psíquica". A ameaça deve ter por conteúdo um mal importante e tem de ser grave não apenas relativamente ao seu conteúdo, mas também no que tange à sua medida e intensidade (ver Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 454-455). Trata-se de posicionar vítima ante a iminência da verificação de violência, provocando-lhe tal temor que a determine à cópula, ao coito anal ou ao coito oral (cf. Sénio Alves, ob. cit., pp. 32-33). Há assim grave ameaça "quando o agente procura incutir na vítima, por forma invencível, a consciência de que, se não anuir aos seus propósitos de relacionamento sexual, ele exercerá um mal maior sobre si ou sobre alguém da sua particular afeição" (conf. Leal Henriques/Simas Santos, ob. cit. - 2.º Volume, 1996 -, pp. 239-240).
A gravidade da ameaça deve ser aferida objetivamente e adquirir uma natureza iminente na sua realização que, na prática, não dê alternativa à pessoa intimidada que não a de se submeter à prática do ato sexual: De outro lado, que aqui também intervêm fatores conexos com a concreta pessoa da vítima - daí que a idade do sujeito passivo e o contexto social e familiar que o rodeiam sejam fatores a considerar pelo julgador para valorizar se a intimidação tem a medida suficiente para incorporar este meio típico de coação.
Ademais, requisita-se que a ameaça tenha uma relação de causalidade direta (adequada e suficiente) com o acometimento sexual.
Cumpre, ainda, sobressair, no que concerne aos meios de atuação, que à violência e à ameaça grave se equiparam as situações em que o agente, para realizar a cópula, o coito anal ou oral, torna a vítima inconsciente ou coloca-a na impossibilidade de resistir. Significa isto que a inconsciência ou impossibilidade de resistência física são causadas pelo agente, com vista a atingir os fins pretendidos (cópula, coito anal ou coito oral).
À vista do exposto, emerge não ser necessária a verificação simultânea da violência, da ameaça grave, da inconsciência da vítima e da impossibilidade de resistir efetivamente, tais formas de atuar são alternativas.
Por último, refira-se que o crime de violação se estrutura num crime de resultado, num crime material, de dano ou de lesão, tanto quanto é certo que, para a respectiva consumação, se demanda que o ofendido, em resultância do uso dos meios típicos indicados, pratique uma ação que não deseja ou, então, seja compelido a suportar uma atividade alheia (cópula, coito anal ou coito oral).
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Curemos agora do elemento subjetivo do crime em apreciação.
Nesta esfera, sendo certo que este crime apenas é punível a título de dolo, o dolo genérico consubstancia-se:
- na consciência ou conhecimento, por parte do agente, do seguinte: de que emprega violência ou ameaça grave contra a vítima, que a torna inconsciente ou que a coloca na impossibilidade de resistir; de que, por efeito da respetiva ação, constrange outra pessoa a praticar ou a sofrer cópula, coito anal ou coito oral; e de que, por isso, a cópula, coito anal ou coito oral ocorre contra a vontade da vítima ou que o consentimento por ela eventualmente prestado não é livre e, consequentemente, relevante (elemento intelectual); e
- na vontade, livre e consciente, por parte do agente, de praticar o ato de que resulta o constrangimento supradito, isto é, na sua espontânea determinação de usar violência ou ameaça grave contra a vítima ou de torná-la inconsciente ou colocá-la na impossibilidade de resistir, visando obter dela a prática ou a sujeição a cópula, coito anal ou coito oral (elemento volitivo), sabendo ele que tal facto é ilícito e sendo tal vontade determinada pelo conhecimento ou representação das circunstâncias do pertinente tipo legal de crime.
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Assim gizado o quadro teórico-jurídico enformador do crime de violação, apreciemos agora os factos dados como provados.
Destes extrata-se, com linearidade, que, o arguido, B…, nascido a ../06/1996, se encontrava inserido, em janeiro de 2013, em meio institucional, no Centro E… e residia numa das casas daquela Instituição - a E1…-, destinada apenas a rapazes, localizada no …, na Rua …, no Porto; nessa mesma data, D…, nascido a ../03/1995, também estava inserido na referida Instituição e residia igualmente, de domingo a sexta-feira, na mencionada E1….
Mais se consolidou:
- que, no dia 06/01/2013, cerca das 19 horas, o D…, pretendendo tomar banho, se dirigiu ao seu quarto na E1…, despiu a roupa, embrulhou-se numa toalha e encaminhou-se para a casa de banho; após, tomou banho, secou-se e enrolou novamente a toalha ao corpo;
- que, de seguida, o arguido abriu a porta da divisão do chuveiro, baixou as calças e as cuecas e disse ao D…: "é hoje, é hoje!"; diante disso, o D… empurrou-o;
- que o arguido tirou então a toalha ao D… e disse-lhe, por duas vezes: anda lá, senão dou-te uma coça;
- que, após, com as mãos, usando para tal a pujança física que possuía, o arguido agarrou o D… pelo abdómen, inclinou-o ligeiramente e introduziu-lhe o seu pénis ereto no ânus;
- que o D…, com medo de que o arguido lhe batesse na altura e posteriormente, acabou por facilitar a penetração;
- que, a dada altura do ato, o D… começou a chorar e, perante tal, o arguido deixou então de penetrá-lo;
- que a conduta do arguido causou dor ao D…; e
- que, antes de abandonar a casa de banho, o arguido se dirigiu ao D… e disse-lhe que, se contasse o sucedido aos monitores, lhe dava uma sova e que o abafava.
*
Do exposto, verifica-se o seguinte:
- que a conduta do arguido, atendendo à sua superior capacidade física, atemorizou/amedrontou de imediato o ofendido; e
- que o arguido logrou, no consectário da sua ação, que foi adequadamente intimidativa e violenta, constranger o D… a sofrer consigo coito anal.
Mostra-se também assente:
- que o arguido, ao atuar da forma descrita, agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito, concretizado, de praticar cópula anal com o D… e de satisfazer, assim, os seus instintos libidinosos, o que fez contra a vontade daquele, tendo, para o feito, usado a robustez física de que era portador;
- que o arguido, apesar de saber que punha em causa o direito à autodeterminação sexual do D…, não se absteve de tal conduta; e
- que o arguido sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Estão, pois, reunidos, os elementos, objetivo e subjetivo, que tipificam o crime de violação, previsto e punível pelo artigo 164.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
(…)”

Como se acaba de ler, dificilmente poderia o tratamento conceptual do ilícito em jogo ter sido mais aprofundado e mais relacionado com a factualidade apurada, da qual resulta, inequivocamente, a prática pelo arguido do crime de violação p. e p. no artigo 164º nº 1 a) do Código Penal, tal qual lhe era imputado, sendo certo que a negação desse enquadramento pelo recorrente se baseia, no essencial, ou na premissa de que o acto de coito anal foi consensual, aceite ou tolerado, ou na premissa de que não ocorreu nem violência nem ameaça grave no contexto envolvente a esse coito anal.
Pela forma minuciosa e fundamentada como o tribunal a quo analisou o tipo legal de crime e procedeu ao respectivo enquadramento jurídico dos factos (com apoio em pertinente doutrina e jurisprudência que foi citada, pouco mais haverá a acrescentar, sob pena de redundância, mas, sempre se deixará ainda consignado o seguinte:

Dispõe o artº 164º nº 1 do Cód. Penal, na parte em que aqui interessa, que “quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois, para esse fim, o ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral;
(…)
é punido com pena de prisão de três a dez anos”.
Tal como referido na decisão recorrida, o crime de violação é um crime de execução vinculada na medida em que o tipo exige, para a realização do evento que descreve, certos meios ou formas específicas de atuação.
No caso do nº 1 do artº. 164º do Código Penal (o que tem relevância para a questão em apreço), os meios de execução são a violência, a ameaça grave ou colocação da vítima em estado de inconsciência ou em situação de impossibilidade de resistir.
Os meios de execução que aqui importa analisar sumariamente são os da violência e da ameaça grave.
E quanto as estes dois meios é bem eloquente o Acórdão desta Relação do Porto de 10.09.2014 (Proc. nº 1054/13.5JAPRT.P1, in www.dgsi.pt) quando refere:
Classicamente, nesta área dos crimes sexuais, o conceito de “violência” é restringido ao uso de força física sobre a vítima, de modo a coagi-la à realização do ato pretendido.
Modernamente, o conceito de violência (mesmo nos crimes sexuais) deve ser integrado não só de forma a incluir o uso da agressão física, mas também o uso da agressão psíquica, abrangendo-se qualquer manifestação de uma conduta ativa ou omissiva, adequada a obter o resultado pretendido, o qual é conseguido contra a vontade do sujeito passivo (traduzindo-se numa pressão anímica exercida sobre a vítima), anulando, ainda que parcialmente, a sua vontade ou colocando-o numa situação de inferioridade que o impede de reagir como queria.
Claro que se pode dizer que a agressão psicológica já é intimidação, ameaça. Mas, o entendimento de um conceito alargado de violência tem subjacente a lesão de direitos que estão garantidos à pessoa, na sua dimensão jurídica, devendo aqui ser aferida por referência ao bem jurídico em causa, que é a liberdade sexual da vitima, liberdade que, por aquele meio, é constrangida ou limitada de forma eficaz.
Poderá, assim, configurar-se violência mesmo que não haja reação ou resistência por parte da vítima – o que importa é que sejam utilizados meios que impedem a formação da vontade ou a liberdade de determinação da vítima.
Sempre se deverá ter presente que, um conceito mais ou menos alargado de violência, não deve afastar o bem jurídico, isto é, há que ter em atenção que o direito penal apenas tem legitimidade para atuar, nesta área, relativamente a condutas coativas da liberdade sexual da vitima por, aí, nessas situações, se tratar de uma lesão insuportável das condições comunitárias essenciais da livre auto-realização sexual.
Por seu turno, “ameaçar” é anunciar o propósito de fazer mal a alguém, sendo certo que a ameaça grave cria no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, injusto ou justo, capaz de, no caso concreto, paralisar a reacção.
A ameaça supõe também a coação psicológica e traduz-se na perturbação da liberdade interior de decisão e da liberdade de ação da vítima. A gravidade objetiva do mal radica na sua idoneidade para provocar na vítima um estado de temor tal, que seja induzida a escolher, como saída menos gravosa, a realização da cópula, coito anal ou coito oral pretendido pelo agente.”

In casu, perante a factualidade dada como provada não há dúvidas que o arguido dolosamente, através de ameaça grave (que consistiu precisamente em, depois de ter baixado as calças e as cuecas e de ter dito ao ofendido D… “é hoje, é hoje!” e de ter tirado a toalha que este ofendido tinha enrolado ao corpo depois de se ter secado, dizer-lhe, por duas vezes: “anda lá, senão dou-te uma coça”) e através da violência (que consistiu em, com as mãos, usando para tal a pujança física que possuía, ter agarrado o D… pelo abdómen e inclinado este ligeiramente) conseguiu perturbar a liberdade interior de decisão e de acção do ofendido D… que, com medo que o arguido lhe batesse na altura e posteriormente, acabou por facilitar penetração, dessa forma conseguindo o arguido realizar coito anal com o ofendido.
Não fora essa ameaça, que foi grave, atenta a aptidão para afectar a vontade da vítima, seguida de uma conduta de violência (agarrar a vítima pelo abdómen), o arguido não conseguiria realizar o subsequente coito anal sobre o ofendido.
Perante as circunstâncias em que o arguido actuou perante a vítima, não há dúvida que a ameaça por ele usada foi grave e adequada, seguida da actuação com força física, a obter o resultado pretendido (coito anal).
O “facilitar a penetração” por parte do arguido, naquele contexto - tendo-se ficado a dever ao medo que o arguido lhe batesse na altura e posteriormente - jamais se pode confundir com qualquer consentimento, aceitação ou tolerância, como propugna o recorrente, tanto mais que em lado algum da materialidade apurada decorre que o ofendido tivesse adoptado um comportamento activo de colaboração no acto sexual que pudesse evidenciar qualquer anuência. Antes e pelo contrário, também ficou provado que, “o arguido deixou então de o penetrar [ao ofendido] quando o ofendido “começou a chorar”.
Não ocorrendo assim qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa do arguido, pelo que se verificam todos os pressupostos do crime de violação p. e p. pelo nº 1 a) do artigo 164º do Código Penal pelo qual o arguido foi condenado.
Nessa decorrência, e porque o residual nº 2 do mesmo artigo 164º apenas se preenche quando o constrangimento não é precedido de qualquer um dos meios elencados no nº 1, falece também a residual pretensão do recorrente em que a sua conduta apenas se subsumiria ao artigo 164º nº 2 do Código Penal.
Improcede, pois, e sem necessidade de mais considerações, também esta pretensão do recorrente.

Assim, e em síntese conclusiva, naufragando todas as pretensões do recorrente - e não se mostrando violados quaisquer preceitos legais ordinários, designadamente os invocados no recurso - terá o recurso que improceder.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s (arts. 513º nº 1 do Código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, conjugado este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).
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(Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1º signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Porto, 30 de Novembro de 2016
Luís Coimbra
Maria Manuela Paupério
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[1] Diploma a que se reportarão as demais disposições citadas sem menção de origem ou apenas com a sigla CPP.