Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3388/12.7TBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CURA MARIANO
Descritores: FIANÇA
EXTINÇÃO
IMPOSSIBILIDADE DE SUB-ROGAÇÃO
Nº do Documento: RP201701303388/12.7TBMTS.P1
Data do Acordão: 01/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º642, FLS.62-69)
Área Temática: .
Sumário: I - O regime consagrado no artigo 653.º do Código Civil tem aplicação nos casos de perda de garantias associadas ao crédito, como as hipotecas que, por culpa do credor, se extinguem.
II - É admissível que um deficiente exercício da garantia pelo credor possa também integrar a previsão do artigo 653.º do Código Civil, quando esse mau exercício esteja na origem da insatisfação total ou parcial do crédito garantido.
III - Se o resultado da venda do imóvel hipotecado beneficiou o credor hipotecário, que o adquiriu por um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado, e prejudicou os fiadores que viram o crédito afiançado não ser totalmente satisfeito através do acionamento da hipoteca, estamos perante uma situação que poderá ser equacionada, à luz das regras da boa fé, se a Ré vier a exigir dos fiadores o pagamento da parte do crédito que ainda não se encontra satisfeita, mas não é motivo para que se declare extinta a fiança, nos termos do artigo 653.º do Código Civil.
IV - O facto do credor não ter informado oportunamente os fiadores da existência de uma situação de incumprimento da obrigação afiançada e da venda do imóvel, cuja hipoteca também garantia essa obrigação, traduz-se numa violação de um dever acessório de informação, podendo a consequência desse incumprimento residir na reparação dos prejuízos dele resultantes para os fiadores ou no não agravamento da posição destes, em consequência da omissão de informação, não havendo, contudo, razões para que tal omissão determine a completa liberação da obrigação assumida pelos fiadores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3388/12.7TBMTS.P1 - Comarca do Porto – Póvoa do Varzim – Instância Central – 2.ª Secção Cível – J4
Relator: João Cura Mariano
Adjuntos: Maria José Simões
Abílio Costa
Autores: B…
C…
: D…, S.A.

Os Autores propuseram a presente ação declarativa, com processo comum, contra a Ré, pedindo que fosse declarada extinta a fiança por eles prestada em que se responsabilizaram pelo pagamento de tudo quanto fosse devido por E… e F…, em consequência do contrato de empréstimo que estes celebraram com a Ré, nos termos do artigo 653.º do Código Civil.
Invocaram como fundamento para o peticionado a adoção de comportamentos e omissões da Ré que, no seu entendimento, os impedem de ficar sub-rogados no direito hipotecário que estava associado ao crédito da Ré, caso venham a satisfazer os valores em dívida dos afiançados.

A Ré contestou, impugnando alguns factos invocados pelos Autores e discordando que o seu comportamento integre a previsão do artigo 653.º do Código Civil.
Concluiu pela improcedência da ação.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença que absolveu a Ré do pedido contra ela formulado.

Os Autores interpuseram recurso desta decisão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
I- Entendem os Recorrentes que, ao contrário do decidido na Douta Sentença, deve ser dado como provado que: “os Autores desconheciam que o contrato de mutuo estava em incumprimento desde janeiro de 2008 e que o imóvel que servia de garantia ao contrato havia sido vendido num processo de execução fiscal contra os mutuários”; e que “ os autores foram informados pela E… que esta e seu marido já nada deviam à ré do valor do empréstimo que haviam contraído, porquanto o imóvel tinha sido entregue ao banco”.
II- Bem como deve ser dado como provado que: “a Ré não comunicou aos Autores a existência de incumprimento do contrato ocorrida após fevereiro de 2008 nem a venda do imóvel em execução fiscal.”
III- E tais factos devem ser dados como provados com base na experiência comum, e conjugando os depoimentos da testemunha G… - que foi ouvida na audiência de julgamento de 31 de março de 2016, com início pelas 10.12 horas e términus pelas 10:51 horas, e cuja duração foi de 38 minutos e 39 segundo, nas passagens da gravação áudio entre os minutos 34:16 a 35:01 e 38:18 a 35:40 - com as declarações de parte do Autor, prestadas na audiência de julgamento de 19 de abril de 2016, com início pelas 10.14 horas e términus pelas 10.55 horas e cuja duração foi de 41 minutos e 30 segundos conforme respetiva ata, na passagem da gravação entre os minutos 01:29 e 03:34, 15:39 a 17:54, 18:07 a 18:25, 36:53 a 37:18 - e os restantes factos dados como provados - que permitem presunções judiciais - e a posição assumida pela Ré.
IV- Na verdade, o depoimento da testemunha G… e as declarações do Autor, aos minutos 18:07 a 18:25, 36:53 a 37:18 do seu depoimento prestado na audiência 19 de abril de 2016- quanto ao desconhecimento do incumprimento do contrato, devem ser conjugados com os factos provados, designadamente com o facto de, em 2007, após o conhecimento de um incumprimento de pequeno montante, os Autores, terem, imediatamente, contactado a Ré, para o resolverem. (Ponto 37 da Douta sentença)
V- E a mora cessou, pois, como resulta da reclamação de créditos apresentada pela Ré no processo de execução fiscal, o novo incumprimento dos mutuários só aconteceu a partir de fevereiro de 2008. (Cfr documentos juntos com o requerimento de 05 de julho de 2013 e também Ponto 28 da Douta Sentença)
VI- Acresce que, em 2011, logo que foram informados pelo Banco de Portugal da existência de um incumprimento do contrato, os Autores procuraram, incansavelmente, que a Ré definisse a sua situação, conforme resulta dos Pontos 27.º a 33.º da Douta Sentença.
VII- A própria Ré não alega -como devia- que comunicou aos fiadores qualquer incumprimento dos mutuários após a reunião tida com estes em novembro de 2007, sendo certo que não os interpelou para pagamento de qualquer quantia referente ao
VIII- Acresce ainda que a existência de relações cordiais e de parentesco entre os mutuários e fiadores, não traz a probabilidade de aqueles terem informado estes da existência de incumprimentos do contrato, como entende o Tribunal, pois é precisamente neste tipo de situações, que surgem os maiores problemas para os fiadores.
IX- Acresce que, o depoimento da testemunha G… - que foi ouvida na audiência de julgamento de 31 de março de 2016, com início pelas 10.12 horas e términus pelas 10:51 horas, e cuja duração foi de 38 minutos e 39 segundo, nas passagens da gravação áudio entre os minutos 34:16 a 35:01 e 38:18 a 35:40- conjugado com as declarações do Autor, prestadas na audiência de julgamento de 19 de abril de 2016, na passagem da gravação entre os minutos 01:29 e 03:34- no que se refere à informação prestada pela mutuária E… de que os Autores tinham deixado de ser fiadores, nada tem de estranho, muito pelo contrário: é natural que a Ré E… tenha querido justificar a sua mudança de casa.
X- E para os Autores era uma noticia importante, dada a existência de anteriores incumprimentos em 2007.
XI- Quanto ao desconhecimento da venda em processo de execução fiscal, a eventualidade da existência de editais – que no caso não se sabe onde, como e se foram afixados e por quanto tempo- também não é premissa suficiente para se considerar não provado o desconhecimento da venda por parte dos Autores e colocar em causa o depoimento da testemunha G… e as declarações do Autor.
XII- Por outro lado, a Testemunha H…, funcionária da Ré, no seu depoimento prestado em 19 de abril de 2016, com início pelas 09.43 horas e términus pelas 10:09 horas, e cuja duração foi de 27 minutos e 5 segundos, conforme respetiva ata, entre os minutos 22:59 e 23:33, afirmou que a Ré não informou nem tinha que informar da venda do imóvel em sede de processo executivo.
XIII- Dando como provados estes factos, a questão que se coloca nestes autos é saber se, face ao comportamento da Ré, os Autores podem pedir a extinção da fiança.
XIV- Os Autores entendem que sim, porquanto a conduta da Ré agravou exponencialmente os riscos da fiança por aqueles prestada, quer em termos objetivos quer em termos subjetivos, pois, conforme dado como provado no Ponto 10 da Sentença, os autores aceitaram ser fiadores porque o valor do imóvel hipotecado era suficiente para pagar o valor emprestado, o que provaram também, conforme Ponto 24 da Sentença.
XV- E o comportamento da Ré subdivide-se em várias condutas: Uma conduta omissiva quanto à comunicação da mora do contrato aos fiadores, aqui autores; Uma conduta omissiva quanto à informação da venda do imóvel em sede de execução fiscal; Uma conduta positiva de adjudicação do imóvel hipotecado por valor bastante inferior ao seu valor real.
XVI- Em consequência, os Autores foram confrontados, em 2011, com informação de uma dívida de milhares de euros, sendo que tal dívida não tem já qualquer imóvel a garantir o seu cumprimento, tudo com o seu total desconhecimento.
XVII- Ou seja, a Ré não procedeu de modo a assegurar ao fiador uma situação tão favorável como a sua, contra o devedor - citando Vaz Serra -, comportamento esse a que estava vinculada, violando, por isso, o disposto no artigo 644.º e o artigo 653.º do Código Civil, e deste modo, permitindo que os Autores peticionem a extinção da fiança.
XVIII- Mas, mesmo que se entenda não ser de aplicar o regime específico dos normativos citados - o que não se concede mas que se coloca para efeitos de raciocínio hipotético não se pode deixar de considerar que a Ré violou o princípio da boa-fé e atuou com abuso de direito.
XIX- Citando Manuel Januário Costa Gomes, na obra já referida, página 933: “Ademais, o sistema jurídico encontra-se munido de meios de defesa contra atuações que, conquanto formalmente corretos, se revelem intoleráveis, avultando neste particular os princípios da boa-fé e da proibição do abuso de direito.”
XX- Devendo, pois, ser considerada extinta a fiança prestada pelos autores.
XXI- Violou, pois, a Douta Sentença os artigos 644.º, 653.º e 334.º do Código Civil.
Termos em que, considerando procedente o presente recurso e revogando a Douta Sentença e declarando extinta a fiança, se fará justiça”.

A Ré contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido.
*
1. Do objeto do recurso
Encontrando-se o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) Devem ser considerados provados os seguintes factos:
- os Autores desconheciam que o contrato de mútuo estava em incumprimento desde janeiro de 2008 e que o imóvel que servia de garantia ao contrato havia sido vendido num processo de execução fiscal contra os mutuários”;
- os Autores foram informados pela E… que esta e seu marido já nada deviam à Ré do valor do empréstimo que haviam contraído, porquanto o imóvel tinha sido entregue ao banco.
- a Ré não comunicou aos Autores a existência de incumprimento do contrato ocorrida após fevereiro de 2008 nem a venda do imóvel em execução fiscal?
b) Dos factos provados resulta um comportamento da Ré que preenche a previsão do artigo 653.º do Código Civil?
c) Verifica-se uma situação de abuso de direito?

2. Dos factos
2.1. Da impugnação da matéria de facto
Os Recorrentes pretendem que se considerem provados os seguintes factos:
- os Autores desconheciam que o contrato de mútuo estava em incumprimento desde janeiro de 2008 e que o imóvel que servia de garantia ao contrato havia sido vendido num processo de execução fiscal contra os mutuários”;
- os Autores foram informados pela E… que esta e seu marido já nada deviam à Ré do valor do empréstimo que haviam contraído, porquanto o imóvel tinha sido entregue ao banco.
Alegam que a prova dos mesmos resulta da conjugação dos depoimentos do Autor e da testemunha G…, filho dos Autores.
Relativamente a estes depoimentos, a sentença recorrida teceu as seguintes considerações:
- G…, filho dos autores.
O depoimento desta testemunha relevou na medida em que esclareceu a situação económica dos pais e a razão pela qual estes aceitaram ser fiadores da tia. Mais relevou quando esclareceu que os pais já em 2006 ou 2007 tinham tido conhecimento de que os tios estavam com dificuldades económicas, tendo para tal sido alertados pela ré.
No restante o seu depoimento não foi atendido, por manifestamente interessado e contraditório, nomeadamente em si mesmo e com a prova documental dos autos.
Com efeito não foi atendido este depoimento quando veio dizer que em data que não se recorda mas em 2010 ou 2011, a sua tia E… foi a casa dos pais dizer para se não preocuparem mais, pois a casa tinha sido entregue ao banco. E não foi atendido por não existir qualquer razão para que a sua tia tal fosse dizer aos seus pais, pois que de acordo com as suas próprias declarações, os pais desconheciam em absoluto que os tios estavam a incumprir o contrato celebrado. Ora, se não havia qualquer problema, não havia também qualquer razão para que a tia fosse a casa dos pais dar essa informação. Acresce que, de acordo com as próprias declarações desta testemunha, o imóvel em causa situa-se muito próximo da casa dos autores (nas traseiras), sendo que estes e os seus cunhados (E… e F…, os mutuários) mantinham uma relação cordial, sendo visitas de casa uns dos outros. Assim, não se mostra lógico nem merecedor de credibilidade que os autores não tivessem tido conhecimento do incumprimento dos cunhados em data anterior, e não tivessem tido conhecimento da anunciada venda da fração em causa (nomeadamente com a afixação dos editais).
Por outro lado também se não considerou este depoimento quando afirmou que se tivessem tido conhecimento da venda da casa teriam procedido ao pagamento da quantia em dívida na execução. Com efeito, resultou do próprio depoimento da testemunha que os pais são pessoas de parcos rendimentos, sendo que, a quantia a ser paga para evitar a venda não era apenas a quantia exequenda na execução onde a venda foi realizada, mas ainda as quantias em dívida nas outras duas execuções que corriam contra os tios da testemunha.
Face a tal, o depoimento desta testemunha apenas foi atendido na medida do acima referido.

Para além da prova documental e testemunhal acima referida, o tribunal considerou as declarações de parte do autor B…, apenas na medida em que esclareceu as discrepâncias nos valores em dívida que lhe foram sendo informadas pela ré, e na medida em que confirmou ter já tido conhecimento em 2007, de outros incumprimentos por parte dos cunhados.
No restante as suas declarações não foram atendidas, por manifestamente interessadas e tendenciosas, bem como contraditórias com a restante prova produzida em audiência de julgamento e a que se deu credibilidade…”.
Dado o Autor ser parte interessada no desfecho da presente ação e a testemunha G… ser seu filho, os seus depoimentos, no sentido de corresponderem à realidade os factos que os Autores pretendem ver provados, não são suficientes para que se adquira a certeza que os mesmos correspondem ao ocorrido, até porque eles contrariam a normalidade da vida, uma vez que os Autores tinham relações familiares próximas com os devedores, pelo que o tribunal de 1.ª instância agiu corretamente ao considerar esses factos como não provados.
Já quanto à não comunicação pela Ré da existência de incumprimento do contrato ocorrida após fevereiro de 2008 e da venda do imóvel em execução fiscal, não só a impugnação deduzida pela Ré desses factos formulada nos artigos 41.º a 43.º da contestação não afasta a ocorrência deste facto, como o depoimento prestado pela testemunha H…, funcionária da Ré, reforça a convicção que a Ré não comunicou aos Autores o incumprimento do contrato iniciado em 2008, nem a existência do processo de execução fiscal e a venda nele efetuada, apenas tendo reunido com os Autores em 23-5-2011, onde lhes foi só então efetuada a comunicação desses factos.
Assim sendo, deve esse facto integrar a lista dos factos provados.

2.2. Os factos
São os seguintes os factos provados:
1.º. A Ré é uma instituição bancária que tem como objeto social, entre outras atividades, a concessão de crédito.
2.º. No dia 21 de julho de 1999 foi celebrado entre I… e mulher J…, como primeiros outorgantes; E… e marido F…, como segundos outorgantes; a ré, como terceira outorgante e os autores, como quartos outorgantes, um contrato de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, como decorre da cópia da escritura pública celebrada no extinto 1.º Cartório Notarial de Matosinhos de fls. 118 a fls. 120 verso do livro de notas Quarenta - H junto aos autos como documento nº 1 com a petição inicial e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
3.º. Nos termos do referido contrato a ré concedeu à E… e ao F… um empréstimo no montante global de 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos) ou €74.819,68 (setenta e quatro mil e oitocentos e dezanove euros e sessenta e oito cêntimos), pagável em 360 prestações mensais e sucessivas através de débito na conta à ordem dos devedores nº …../… aberta na agência da ré em Matosinhos (conforme cláusulas 1.ª, 8.ª e 10.ª do Documento Complementar anexo à escritura junta como doc. nº 1 com a petição inicial e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido).
4.º. Empréstimo esse que se destinou à aquisição da fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma habitação de rés do chão frente, com entrada pelo nº .. da Rua …, lugar de aparcamento … com o nº … do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua … nº …, e que se encontra descrita na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº ……/…… … e destinada a habitação própria dos mutuários.
5.º. A E… e o F… constituíram uma hipoteca sobre o imóvel por si adquirido a favor da D…, que foi registada pela apresentação 24 de 16/06/1999. (cfr. doc. nº 2 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido)
6.º. Tal hipoteca assegurava o pagamento do montante máximo de 21.694.800$00 (vinte e um milhões seiscentos e noventa e quatro mil e oitocentos escudos) ou €109.559,96 (cento e nove mil quinhentos e cinquenta e nove euros e noventa e seis cêntimos).
7.º. No contrato referido em 2. dos factos provados, os Autores declararam que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à ré em consequência do empréstimo concedido aos devedores afiançados, dando, desde já o seu acordo a quaisquer modificações de taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extrato de conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança (cfr. já citado doc. nº 1 junto com a petição inicial).
8.º. A E… é irmã da Autora C… e pediu-lhe, bem como ao Autor, o favor de lhe prestarem fiança, a si e ao seu marido, por forma a que a Ré lhes concedesse o empréstimo para habitação própria.
9.º. A Ré conhecia, na data da celebração do contrato, a relação familiar entre fiadores e mutuários.
10.º. Os Autores aceitaram ser fiadores porque o valor do imóvel hipotecado era suficiente para pagar o valor emprestado.
11.º. A Ré sabia, na data da celebração do contrato, que os autores não tinham outros bens para além do ordenado do autor marido, de cerca de €650,00 e um veículo automóvel com cerca de 12 anos.
12.º. Atualmente o Autor marido está desempregado desde fevereiro de 2012 e a Autora mulher está reformada por invalidez desde junho de 2007.
13.º. O Autor frequentou o ensino público até ao 8º ano de escolaridade e a Autora frequentou o mesmo ensino até ao 4º ano de escolaridade.
14.º. Por força de uma dívida de Imposto Municipal sobre Imóveis ao Serviço de Finanças de Matosinhos 2 no montante de €2.143,32 foi instaurado, por aquele serviço, um processo de execução fiscal contra a E… e o F… com o nº ……………… e apensos e no qual foi penhorado o imóvel hipotecado a favor da ré.
15.º. A Ré foi citada como credora com garantia real no referido processo para reclamar os seus créditos, o que fez em 03/06/2008, sendo a única credora a reclamar créditos.
16.º. O respetivo processo de verificação e graduação de créditos corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto com o nº 2598/10.6BEPRT, não tendo ainda sido proferida sentença.
17.º. A Ré foi também notificada pelo Serviço de Finanças de Matosinhos da data da venda do imóvel hipotecado em 19/05/2008 bem como do respetivo valor base, no montante de €48.340,00 (quarenta e oito mil trezentos e quarenta euros).
18.º. A Ré não reclamou contra a decisão das Finanças que fixou o valor base para venda.
19.º. A modalidade de venda utilizada foi a proposta em carta fechada tendo a Ré oferecido o valor de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) para aquisição do imóvel.
20.º. Em 19 de julho de 2010, o imóvel hipotecado foi adjudicado à Ré pelo Serviço de Finanças de Matosinhos no referido processo executivo pelo valor de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), tendo a Ré depositado o preço em 26 de junho de 2010.
21.º. O registo de hipoteca voluntária foi cancelado pela apresentação .... de 30/09/2010 e a aquisição a favor da Ré foi registada pela apresentação …..
22.º. O valor patrimonial do imóvel calculado nos termos do CIMI era, à data da venda judicial, de €48.340,00 (quarenta e oito mil trezentos e quarenta euros).
23.º. O valor de mercado do imóvel à data da notificação da venda judicial à Ré, em 19/05/2008, era de 79.000,00 (setenta e nove mil euros).
24.º. O valor de mercado do imóvel à data da venda judicial em 19/07/2010 era de €79.000,00 (setenta e nove mil euros).
25.º. Em 26/05/2011, a Ré vendeu o imóvel ao Fundo de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional Caixa Arrendamento, pelo preço de €52.000,00 (cinquenta e dois mil euros).
26.º. O referido Fundo é um património autónomo com 5 participantes do Grupo D…, sendo a respetiva sociedade gestora detida indiretamente pela D…, SA e esta é a depositária do Fundo.
27.º. Os autores consultaram o Banco de Portugal e obtiveram a informação de que o contrato de mútuo referido no artigo 1º da PI, estava em situação de incumprimento e que se deviam dirigir à ré para obter mais detalhes sobre a referida situação.
28.º. No dia 23 de maio de 2011, a pedido dos Autores, foram estes informados pela Ré que o contrato de mútuo estava em incumprimento desde janeiro de 2008, e que o imóvel que servia de garantia ao contrato havia sido vendido num processo de Execução fiscal instaurado contra os mutuários.
29.º. Foram ainda informados que o valor em dívida pelos mutuários à Ré era de cerca de €40.000,00, correspondente ao remanescente em dívida depois de descontado o valor da venda do imóvel hipotecado que ainda não havia sido devolvido à Ré.
30.º. Pouco tempo depois, os Autores dirigiram-se novamente aos balcões da D… em 27/06/2011 para obter informações sobre o valor concretamente em dívida, mas, desta feita, foram informados que esse valor era de €63.825,63.
31.º. Face às discrepâncias de valores, e a conselho do funcionário que os atendeu e a quem explicaram a situação, os Autores voltaram a contactar a ré, na pessoa da sua funcionária Srª Drª H…, com quem o autor marido falou por telefone, tendo obtido a informação que o valor em dívida rondava os €30.000,00.
32.º. Resolveram, então, contactar as subscritoras da petição inicial, que enviaram à Ré a carta registada que junta como doc. 6 com a p.i. e que se dá por integralmente reproduzida, solicitando informações sobre o valor que a Ré considerava em dívida respeitante a capital e juros bem como sobre as circunstâncias da compra e venda do imóvel hipotecado.
33.º. Em resposta, foram os autores informados que, segundo a ré, o capital em dívida à data da venda judicial era de €63.825,63 (sessenta e três mil oitocentos e vinte e cinco euros e sessenta e três euros), que os juros remuneratórios calculados até essa data eram de €7.625,04 e os moratórios de €1.790,26, e que as despesas e comissões eram no valor de €564,46, no total de €73.805,39.
34.º. E que, considerando que o valor da dívida em 19/07/2010 era de €73.805,39 e deduzido o valor estimado a receber dos Serviços de Finanças referente ao depósito do preço feito pela ré no valor de €40.664,00, o capital em dívida estimado à data de 19/07/2010 era de € 33.161,39 ao qual acresceriam juros contratuais à taxa de 10,246% até efetivo e integral pagamento.
35º. À data da reclamação de créditos na execução fiscal, o crédito da Ré ascendia a 72.005,17€, sendo 63.825,63€ de capital, 7.609,94€ de juros, 547,69€ de despesas e comissões e 21,91€ de imposto de selo.
36.º. Os autores sabem que a Ré já havia sido citada no âmbito da execução 824/2002 a correr termos no 4º Juízo 3ª Seção dos Juízos Cíveis do Porto na qual era Exequente a K… SA, em 2007.
37.º. Nessa altura os Autores acompanhados da mutuária reuniram no dia 12/11/2007 no escritório do mandatário da Ré, que acompanha o referido processo, tendo sido informados da situação e dos valores em atraso à data, que ascendia apenas a 355,74€.
38.º. Em 23/05/2011 os fiadores, aqui Autores voltaram a ser atendidos pelo mandatário da Ré no seu escritório tendo sido novamente informados de toda a situação, nessa altura pretendiam os fiadores saber do valor do remanescente em dívida após a venda da garantia.
39.º. Em 20/06/2011 ocorreu uma nova reunião.
40.º. Os Autores sabem que para evitar a venda não precisavam apenas de liquidar o crédito da Fazenda de 2.143,32€, mas também as custas do processo, bem como o crédito da K… de 2.432,91€ e mais um crédito da Fazenda no valor de 1.965,23€.
41.º A Ré só comunicou aos Autores a existência de incumprimento do contrato ocorrida após fevereiro de 2008 e a venda do imóvel em execução fiscal, no momento referido no ponto 28.º.

3. O direito aplicável
Os Autores, fiadores dos mutuários, num contrato de mútuo bancário, pretendem ser desonerados da obrigação de garantia por eles assumida, alegando que o credor adotou comportamentos que os impedem de ficar sub-rogados nos direitos do credor.
O direito à liberação por impossibilidade de sub-rogação encontra-se previsto no artigo 653.º do Código Civil. Aí se dispõe que os fiadores ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.
Na verdade, o fiador que cumpre a obrigação do afiançado fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes forem por ele satisfeitos.
Ora, numa solução que remonta ao direito romano – benefitium cedendarum actionum - se é o credor o responsável pela “perda” dos direitos que lhe assistem é razoável que o fiador se possa desonerar da obrigação assumida, uma vez que se a vier a cumprir, já não vai dispor dos meios necessários para obter do afiançado o que despendeu, uma vez que, por culpa do credor, se perderam os direitos em que deveria ficar subrogado.
No presente caso, os Autores imputam à Ré o facto do acionamento da hipoteca que garantia o pagamento do crédito afiançado, não ter logrado satisfazê-lo na sua totalidade, mas apenas numa parte, tendo os Autores deixado de dispor daquela garantia, caso venham a pagar a parte do crédito por satisfazer.
Se é certo que o regime consagrado no artigo 653.º do Código Civil tem aplicação nos casos de perda de garantias associadas ao crédito, como as hipotecas que, por culpa do credor, se extinguem (v.g. por falta de registo, por renúncia ou por prescrição) [1], neste caso, a garantia da hipoteca não se extinguiu, antes foi acionada pelo credor para obter a satisfação do seu crédito sem que tenha recorrido à garantia pessoal da fiança.
Os fiadores deixaram, pois, de dispor daquela garantia real, caso venham a ficar subrogados no direito principal do credor, não porque essa garantia se tenha extinto, mas sim porque ela já foi utilizada com vista à satisfação do crédito afiançado.
É certo que se provou que o imóvel hipotecado foi alienado numa venda executiva, tendo sido adjudicado à Ré pelo preço de €45.000,00, quando ele, no momento da venda, tinha o valor de €79.000,00.
Se é admissível que um deficiente exercício da garantia pelo credor possa também integrar a previsão do artigo 653.º do Código Civil, quando esse mau exercício esteja na origem da insatisfação total ou parcial do crédito garantido, no presente caso não se apurou qualquer deficiência no exercício do direito hipotecário, tendo o desfasamento entre o valor obtido na venda judicial na modalidade de propostas em carta fechada do imóvel dado em garantia e o valor deste, resultado de uma ausência de melhor oferta.
Se o resultado da venda do imóvel hipotecado beneficiou a Ré, que o adquiriu por um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado, e prejudicou os fiadores que viram o crédito afiançado não ser totalmente satisfeito através do acionamento da hipoteca, estamos perante uma situação que poderá ser equacionada, à luz das regras da boa fé, se a Ré vier a exigir dos fiadores o pagamento da parte do crédito que ainda não se encontra satisfeita, mas não é motivo para que se declare extinta a fiança, nos termos do artigo 653.º do Código Civil.
Quanto à circunstância da Ré não ter informado oportunamente os Autores da existência de uma situação de incumprimento da obrigação afiançada e da venda do imóvel, cuja hipoteca garantia essa obrigação, tal omissão traduz uma violação de um dever acessório de informação, podendo a consequência desse incumprimento residir na reparação dos prejuízos dele resultantes para os fiadores ou no não agravamento da posição destes [2], em consequência da omissão de informação, não havendo, contudo, razões para que tal omissão determine a completa liberação da obrigação assumida pelos fiadores.
Os Autores invocam ainda que a conduta da Ré configura uma situação de abuso de direito.
O artigo 334.º do Código Civil dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ora, no presente caso, a Ré ainda não exerceu qualquer direito contra os Autores, tendo sido estes que interpuseram a presente ação, tendo em vista a sua liberação da garantia de fiança por eles prestada, pelo que tal alegação é extemporânea, não podendo ser declarado abusivo o exercício de um direito que não foi efetivado.
Por estas razões deve improceder o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
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Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelos Autores, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas do recurso pelos Autores.
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Porto, 30 de Janeiro de 2017
Cura Mariano
Maria José Simões
Abílio Costa
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[1] Januário Gomes, em Assunção Fidejussória de Dívida. Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, pág. 929, ed. 2000, Almedina.
[2] Sobre as consequências da violação deste dever de informação, Januário Gomes, ob. cit., pág. 941 e seg.
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Sumário:
(da responsabilidade do relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.):
I – O regime consagrado no artigo 653.º do Código Civil tem aplicação nos casos de perda de garantias associadas ao crédito, como as hipotecas que, por culpa do credor, se extinguem.
II - É admissível que um deficiente exercício da garantia pelo credor possa também integrar a previsão do artigo 653.º do Código Civil, quando esse mau exercício esteja na origem da insatisfação total ou parcial do crédito garantido.
III - Se o resultado da venda do imóvel hipotecado beneficiou o credor hipotecário, que o adquiriu por um preço substancialmente inferior ao seu valor de mercado, e prejudicou os fiadores que viram o crédito afiançado não ser totalmente satisfeito através do acionamento da hipoteca, estamos perante uma situação que poderá ser equacionada, à luz das regras da boa fé, se a Ré vier a exigir dos fiadores o pagamento da parte do crédito que ainda não se encontra satisfeita, mas não é motivo para que se declare extinta a fiança, nos termos do artigo 653.º do Código Civil.
IV – O facto do credor não ter informado oportunamente os fiadores da existência de uma situação de incumprimento da obrigação afiançada e da venda do imóvel, cuja hipoteca também garantia essa obrigação, traduz-se numa violação de um dever acessório de informação, podendo a consequência desse incumprimento residir na reparação dos prejuízos dele resultantes para os fiadores ou no não agravamento da posição destes, em consequência da omissão de informação, não havendo, contudo, razões para que tal omissão determine a completa liberação da obrigação assumida pelos fiadores.

Cura Mariano