Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2282/12.6T3AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: ACUSAÇÃO
MANIFESTAMENTE INFUNDADA
DATA DOS FACTOS
Nº do Documento: RP201707122282/12.6T3AVR.P1
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 42/2017, FLS 131-135)
Área Temática: .
Sumário: Não constando da acusação a localização temporal (data) dos factos a mesma é deficiente mas passível de correcção com recurso ao artº 358º1 CP, e constituindo aquela falta uma nulidade sanável (artº 283º CPP) não pode ser rejeitada por manifestamente infundada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2282/12.6T3AVR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
Encerrado o Inquérito que correu termos na 2ª Secção do DIAP de Aveiro, Comarca de Aveiro, com o nº 2282/12.6T3AVR, o Ministério Público deduziu acusação contra B..., imputando-lhe a prática de um crime de usurpação p. e p. nos artºs. 195º nº 1 e 197º do Código dos Direito de Autor e Direitos Conexos.
Remetidos os autos à distribuição, o Sr. Juiz da Secção Criminal – J3 da Instância Local de Aveiro rejeitou a acusação pública.

Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Faltando unicamente na acusação deduzida pelo Ministério Público o tempo em que foram praticados os factos não podia o Tribunal a quo rejeitar a acusação por a mesma ser manifestamente infundada, socorrendo-se do artigo 311º nº 2 alínea a) e nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal;
2. A falta do elemento temporal no despacho de acusação configura, quando muito, uma nulidade sanável, dependente de arguição, nos termos do previsto no artigo 283º nº 2 alínea b) e 120º, ambos do Código de Processo Penal;
3. O artigo 311º nº 2 do Código de Processo Penal prevê causas que, pela sua essencialidade quanto ao objeto da acusação, determinam a rejeição da mesma;
4. A falta de indicação da data em que ocorreram os factos não constitui uma falha insuperável da acusação pois, constando da acusação os factos imputados ao arguido que impõe a aplicação de uma pena, não coarta a este o exercício do seu direito de defesa previsto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa;
5. Assim, a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 283º nº 3 alínea b), 311º nº 2 alínea a) e nº 3 alínea b) e 120º, todos do Código de Processo Penal.
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Apesar de devidamente notificado, o arguido não respondeu às motivações de recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer acompanhando a posição do Ministério Público na 1ª instância, por entender que “a circunstância de, na acusação, se mostrar deficientemente indicado o limite temporal em que os factos foram praticados, ... não é suficiente para considerar a acusação manifestamente infundada, de forma a determinar a sua rejeição”.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O despacho sob recurso é do seguinte teor: transcrição
«A acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 236 e segs. dos presentes autos não contém indicação, sequer imperfeita ou por aproximação, de possível data da prática dos factos imputados ao arguido, sendo a tal respeito referida apenas “data não concretamente apurada e na sequência de um anúncio” (data essa que, aparentemente, poderá situar-se em qualquer marco temporal compreendido entre a data de nascimento do arguido referida na acusação, 04.05.1976, e a própria data em que a acusação foi deduzida, 05.06.2016).
A ausência de mínima delimitação temporal dos factos imputados ao arguido inviabiliza a definição do objeto do processo (designadamente para indagação do regime jurídico-penal eventualmente aplicável, da (in)existência de causas legais de extinção do procedimento como a prescrição, etc.) e impede o conhecimento pelo arguido dos concretos factos que lhe são imputados (e, por consequência, a possibilidade de defesa).
Considerando o exposto e o previsto no artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa; nos artigos 283º, nº 3, al. b), 311º, nº 1, e 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. c) do Código de Processo Penal, rejeita-se a acusação deduzida nos presentes autos, por com base na mesma não poder eventualmente concluir-se por responsabilidade criminal do arguido e por a ausência de delimitação temporal dos factos imputados equivaler à falta da sua narração.
Notifique-se.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Tendo em conta as conclusões atrás formuladas pelo recorrente a única questão que importa apreciar consiste em saber se a acusação em que falte a indicação da data dos factos pode ser rejeitada por manifestamente infundada.
Dispõe o artº 283º nº 3 al. b) do C.P.P.:
«A acusação contém, sob pena de nulidade:
...
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
... »
Assim, a acusação, além de outros elementos de índole subjetiva, do respetivo enquadramento jurídico e da prova, deve, em princípio, ser precisa relativamente aos seguintes aspetos: quem cometeu o crime (questão da autoria), quando (questão da prescrição), onde (questão da competência), como (questão da qualificação) e porquê (questão da motivação).
Os factos descritos na acusação normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória a qual deve obedecer ao princípio da suficiência e clareza definem e fixam o objeto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias[3] é a este efeito que se chama vinculação temática d tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objeto do processo penal, ou seja, os princípios segundo os quais o objeto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.
Significa isto que a acusação deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efetuada descriminada e precisamente com relação a cada um dos atos constitutivos do crime, pelo que se hão-de mencionar todos os elementos da infração e quais os factos que o arguido realizou, sendo perante este quadro e esta factualidade que o mesmo arguido deve elaborar a sua estratégia de defesa.
Como sublinha António Leones Dantas[4] é essencial a descrição dos factos “que integram todos os elementos de algum crime”, já que, “para que a acusação desempenhe a sua função processual – delimitando a factualidade de que o arguido é acusado – mostra-se necessário que a descrição nela feita evidencie de uma maneira precisa e imediatamente inteligível aquilo que é imputado ao arguido”; sendo este o “destinatário da acusação, impõe-se que a entenda para que, face a ela, possa organizar a sua defesa”.
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objeto do processo, uma vez definido este pela acusação.
É assim que o Código de Processo Penal vem a estabelecer, de forma clara, o papel do Ministério Público, enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação nos artigos 48º e 53º do Código de Processo Penal (com as naturais limitações constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo diploma).
Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – restaria o papel de direção da fase de julgamento (no que ao caso concreto interessa, já que a instrução se não encontra em discussão), balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objeto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição), no que seria uma manifestação de alguma disponibilidade das “partes” na definição do que se pretenda seja apreciado pelo tribunal.
Porém, o legislador viu-se obrigado a restringir estes efeitos extremos de um processo acusatório puro, um puro “adversarial system”. Mas fê-lo de forma clara e mitigada, excluindo a possibilidade de um retorno a um sistema inquisitorial, mesmo que mitigado.
É esse o papel da al. a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. Evitar a todo o custo que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório.
E as diversas alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal definem, de forma clara, a área de atuação do juiz de julgamento, ao qual se impõe, em obediência àquele princípio, uma interpretação restritiva daquelas alíneas.
Como se escreve de forma eloquente no Ac.R. Coimbra de 21.04.2010[5] «é interessante verificar que as várias alíneas daquele nº 3 vêm a consagrar uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício.
As nulidades da acusação estão previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal. Como se sabe e em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, estão construídas como nulidades sanáveis – cfr. artigos 118º a 120º do Código de Processo Penal.
Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita - nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º. Daí que exista uma íntima conexão entre o nº 3 do artigo 283º e os números 2 e 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver ato imprestável, mas passível de correção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar.
Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.
...
Em termos práticos, se ao juiz de julgamento não é permitido, em homenagem às dimensões material e orgânico-subjetiva da estrutura acusatória do processo, imiscuir-se ex oficio, nas nulidades genericamente referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já se lhe impõe que impeça a ida a julgamento de acusações nos casos contados previstos no nº 3 do artigo 311º.»
Daí que se possa afirmar que nem todas as nulidades da acusação consagradas no nº 3 do artº 283º têm como consequência uma acusação manifestamente infundada.
Os casos integrantes da figura da acusação manifestamente infundada devem ser claros e evidentes. Daí o uso, pelo legislador, do advérbio de modo “manifestamente”.
Como se afirma no Ac. R. Lisboa de 16.05.2006[6] «Conforme jurisprudência assente, manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais».
E como acentua Paulo Pinto de Albuquerque[7] “o juiz deve apenas controlar os vícios estruturais graves da acusação referidos no artº 311º nº 3 aditado pela Lei nº 59/98 de 25.8. Já foi notado, com razão, que estes vícios se sobrepõem às nulidades sanáveis do artigo 283º nº 3 als. a), b) e c) (“sob pena de nulidade”), pelo que as ditas nulidades se convertem em matéria de conhecimento oficioso do tribunal (Germano Marques da Silva, 2000 b: 207 e 208)”.

O que dizer, então, de uma acusação que não contém a indicação das circunstâncias de tempo em que ocorreram os factos imputados ao arguido?
Será apenas um caso de nulidade sanável prevista no nº 3 do artº 283º do C.P.P. ou deverá integrar-se na previsão da al. b) do nº 3 do artº 311º?
É certo que a data dos factos se revela essencial quer para a integração normativa, quer para o direito de defesa, já que, como se diz na decisão recorrida, se mostra relevante “designadamente para indagação do regime jurídico-penal eventualmente aplicável” ou para aferir “da (in)existência de causas legais de extinção do procedimento, como a prescrição”.
E, como já afirmava o Prof. Eduardo Correia[8], “o facto criminoso, a infração, é o necessário ponto de partida do direito penal, sendo este sempre, portanto, um direito penal do facto”.
Por outro lado, de entre as nulidades sanáveis do artº 283º do C.P.P., o legislador foi claro na escolha indistinta dos “factos” como motivo da “manifesta improcedência” da acusação na al. b) do nº 3 do artº 311º do C.P.P. A falta de “factos” foi entendida pelo legislador como tendo uma dignidade normativa suficiente para merecer a sanção extrema da improcedência manifesta, não fazendo a al. b) do nº 3 do artº 311º destrinça sobre quais os factos previstos no artº 283º nº 2 que merecem tal mais exigente registo.
Contudo, parece-nos que a mera omissão de indicação da data da prática dos factos pelo arguido está longe de configurar a hipótese da alínea b) do nº 3 do artigo 311º, que deverá ser interpretada[9], de forma extrema, como de ausência total ou parcial mas grave, “manifesta”, de factos.
Como afirma Germano Marques da Silva, o arguido tem que se defender de “factos juridicamente qualificados”, com relevância normativa, e esses estão contidos na acusação, não obstante se possa afirmar que melhor estariam se contivessem a data da respetiva prática ou, não sendo absolutamente imprescindível a determinação concreta dessa data (como se extrai até do disposto na al. b) do nº 3 do art. 283º do C.P.P. - “incluindo, se possível, ... o tempo”), pelo menos, a sua localização temporal dentro de um período certo que permita a sua aferição em termos de relevância nomeadamente para a contagem dos prazos de prescrição e o exercício dos direitos de defesa por parte do arguido.
Contudo, daí não resulta – da ausência da data – que se possa afirmar que a acusação não poderá proceder ou que o arguido, de todo, se não possa dela defender.
Os factos constantes da acusação serão suficientes, mesmo que se venha a entender proceder ao seu complemento em audiência de julgamento, já que o tribunal não está impedido de o fazer, ainda que o considere como alteração não substancial, nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal.
Como se afirmava no acórdão do STJ de 7 de Maio de 1997[10]:
I - A acusação, à semelhança de qualquer outro texto, mesmo que não jurídico, não pode ser lida e interpretada setorialmente e em função de frases isoladas, mas antes globalmente.
II - É lícito ao tribunal explicar com pormenores os factos constantes do despacho acusatório e dar como assente matéria de facto que é mero desenvolvimento dos factos que dele constavam, desde que não saia do âmbito do seu conteúdo fáctico, nem com essa pormenorização agrave a posição processual do arguido”.
Estando em causa nos presentes autos, em conformidade com a descrição factual da acusação e respetiva qualificação jurídico-penal, um crime de usurpação p. e p. no artº 195º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos e não um crime de contrafação ou reprodução de obra alheia, o complemento a efetuar em fase de julgamento pode ocorrer com recurso a elementos constantes do próprio processo, pois como se diz na acusação, o arguido colocou um anúncio no OLX e vendeu 6 CD’s contendo gravações de episódios da séria televisiva “Allo, Allo”. Ora, como resulta dos documentos juntos a fls. 8 a 16, os factos ocorreram no período compreendido entre 18.10.2012 e 26.10.2012.
Ou seja, o facto normativo está exposto na acusação, faltando apenas a localização temporal, sendo certo que a mesma é determinável pelos elementos já constantes do processo. Trata-se, assim, de acusação deficiente, mas passível de correção, ainda que com recurso ao disposto no artº 358º nº 1 do C.P.P.
Paulo Pinto de Albuquerque[11] dá o exemplo de uma “acusação sem indicação de data dos factos quando no inquérito se tenha apurado essa data” como um caso de acusação sem os requisitos legais do nº 3 do artº 283º do C.P.P. e que constitui uma nulidade sanável. Também no Ac.R. Lisboa de 05.11.1996[12] se entendeu que “a data dos factos não é elemento essencial da acusação”.
Assim, no caso em apreço, embora se possa afirmar que a acusação sofre da nulidade sanável contida no artigo 283º do Código de Processo Penal (logo, não suscetível de conhecimento oficioso), não é possível concluir por uma ausência manifesta de “facto juridicamente qualificado” a incluir na previsão da al. b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não se justificando por isso a rejeição da acusação por manifestamente infundada.
Como se refere no citado ARC de 21.04.2010, não obstante “a acusação se destine a fazer-se valer de forma autónoma em julgamento, não deixa de ser uma peça provisória, a narração de “um pedaço de vida” a comprovar. É um ponto de partida factual e normativo passível de alteração ou correção, ao contrário do que acontece com uma sentença. E a alteração a proceder – a mera localização temporal dos factos – nem sequer assume a natureza de uma alteração não substancial com relevo”.
Com efeito, é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se durante a audiência surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados “ex novo” e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32º nºs 1 e 5 da Constituição[13].
Importa, porém, referir que a ausência de prova quanto a esse elemento - circunstâncias de tempo da prática do crime – sempre deverá ser valorada a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, e conduzir à respetiva absolvição, uma vez que dela depende a eventual prescrição do procedimento criminal, que constitui um pressuposto negativo de toda a condenação[14].
Impõe-se, por isso, conceder provimento ao recurso.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Mº Público e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que designe dia para realização da audiência de julgamento.
Sem tributação.
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Porto, 12 de julho de 2017
(Elaborado pela relatora e revisto por ambas as signatárias)
Eduarda Lobo
Lígia Figueiredo
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] In Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 145.
[4] In Os factos como matriz do objeto do processo, RMP, nº 70, ano 18º, Abril/Junho 1977, pág. 111 e segs.
[5] Proferido no Proc. nº 51/06.1TAFZZ.C1, relator Des. João Gomes de Sousa, e disponível em www.dgsi.pt.
[6] Proferido no Proc. nº 836/2006-5, Rel. Margarida Blasco, disponível in www.dgsi.pt.
[7] In Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 3ª ed., pág. 789.
[8] In Direito Criminal”, Vol. I, 231, Almedina, 1971.
[9] Em conformidade com o entendimento expresso no Ac.R.Coimbra de 21.04.2010, acima citado e que vimos seguindo de perto.
[10] In BMJ, 467/419.
[11] In obra cit., pág. 744.
[12] In BMJ 461/504.
[13] Cfr., neste sentido, Ac do TC nº 130/98, DR., II Série, de 07.05.1998.
[14] É assim que, sobre a prescrição do procedimento criminal, se refere o Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 702.