Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0210597
Nº Convencional: JTRP00034311
Relator: COSTA MORTÁGUA
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RP200207030210597
Data do Acordão: 07/03/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J MATOSINHOS
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS.
Legislação Nacional: CP95 ART152 N1 N2.
Sumário: O âmbito punitivo do tipo de crime do artigo 152 ns.1 e 2 do Código Penal, inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade humana, compreendendo a ratio deste normativo, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (por exemplo humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc), perfilando-se a saúde como o bem jurídico nele protegido - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental.
A respectiva incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas por uma só vez, sempre ocorrerá quando a gravidade intrínseca das mesmas se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psicológicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Na comarca de ....., julgado em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, mediante acusação do Ministério Público - a que aderiu a assistente Maria Cristina ..... -, o arguido Luís Filipe ....., com os sinais dos autos, foi condenado:
a) como autor material de um crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152º, nº 2º, na pena de 2 anos de prisão;
b) como autor material de um crime de ameaças, previsto e punível pelo artigo 153º, nºs 1º e 2º, na pena de 4 meses de prisão;
c) como autor material de 2 crimes de dano, previstos e puníveis pelo artigo 212º, nº 1º, todos do CP, nas penas de 3 meses de prisão e 2 meses de prisão;
d) em cúmulo jurídico na pena única de 2 anos e 1 mês de prisão; e,
e) na procedência parcial do pedido de indemnização civil contra ele deduzido pela ofendida-assistente Maria Cristina a pagar-lhe a quantia de 6.000 € (1.202.892$00), acrescida de juros à taxa anual de 7% desde a data da notificação do pedido até integral pagamento.
A decisão observou os pertinentes preceitos tributários, determinando, ainda, que o arguido, nos termos dos artigos, 204º, al. c), 201º e 193º, do CPP, e até ao seu trânsito em julgado, passasse a estar sujeito à obrigação de permanência na habitação que indicou como sua residência.
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Inconformado o arguido interpôs recurso.
Na motivação apresentada formula as seguintes conclusões:
1. Afigura-se ao recorrente que nenhuma prova se fez em audiência de julgamento que pudesse conduzir à referida condenação, senão por um crime de ameaças e por três crimes de ofensas corporais simples.
2. São inaceitáveis as conclusões que o Tribunal retira dos depoimentos quer da ofendida, quer de seus pais e até do Adelino, pois como se demonstrou em cima e uma leitura atenta das suas declarações permite apreender as muitas incoerências dos seus testemunhos - pelo que houve erro notório na apreciação da prova e da matéria de facto dada como provada e violação do disposto no artigo 410º, nº 2º, alíneas, a) e c) do CPP.
3. O Tribunal integrou mal a factualidade descrita na hipótese legal, porque atenta a prova produzida - e as suas contradições -- certo é que estas situações não configuram um crime de maus tratos até porque, não se provaram que as ofensas à honra fossem apenas do arguido, como a própria ofendida o admitiu!
4. Acresce que, em nenhuma dessas situações - que serão certamente reprováveis, não se está aqui a querer escamotear esse facto - houve agressões graves, basta de resto verificar os relatórios periciais do IML que constam do processo nomeadamente a fls. l07, 245 e 472!
5. Ora, no caso em apreço só existem provas evidentes dessa agressões das situações referidas no dia 2/6/99, em 14/3/00 e em 17/6/00, até porque o arguido as admitiu, mesmo que limitadamente, pois que nenhuma testemunha assistiu a qualquer outra agressão que não estas, tendo inclusive a testemunha Sandra afirmado, que aquela do dia 15/3/00 foi a única agressão que presenciou - sendo que em todas as vezes existiam insultos recíprocos ou seja as ofensas à honra eram mútuas!
6. Repete-se nenhuma prova foi produzida que sem margem para dúvidas permita extrair a conclusão que antes do casamento até o nascimento da filha do casal existiam quaisquer agressões, sendo certo que como se disse ambos se insultavam quando discutiam.
7. Mesmo os tiros referidos que consubstanciam de facto um crime de ameaças, surgem no decurso de uma situação especial, em que o exagero de reacção do arguido, surge após ter sido violentamente agredido pelo Adelino ....., sendo que não se comprovou que ele visasse especificamente ameaçar a sua mulher, mas sim ambos, pois no seu entender ”estes seriam amantes”!
8. O arguido encontrava-se num estado de imputabilidade numa escala leve-moderada-acentuada, com a imputabilidade acentuadamente reduzida, ou seja fora do seu estado normal em que era nas palavras quer da ofendida quer de seus pais pessoa dócil e simpática!!!!
9. Tais crimes (as agressões) atenta a exposição apresentada e por um mero raciocínio de bom senso deveriam apenas ser punidos como ofensas corporais simples, sendo certo que apenas se provaram em três ocasiões e de modo algum configuraram uma violência desmesurada!
10. O Tribunal ”a quo” deu ainda como provada matéria de facto que é francamente contraditória violando assim o disposto no artigo 410º, nº 2º, alínea b) do CPP, conforme supra se identificou.
11. Não existem quaisquer elementos na fixação da matéria de facto e na fundamentação do Acórdão ora em crise que permitisse ao Tribunal condenar o requerente por um crime de dano alegadamente perpetrado contra o Adelino Barros, numa clara violação de um princípio fundamental em Direito Penal - in dubio pro reo,
12. Não foi apresentado documento de que o arguido fosse proprietário de tal viatura, não foi apresentada testemunha que o visse deslocar em tal carro, muito menos alguém que efectivamente o tivesse visto a atirar uma pedra à referida persiana, em suma não foi apresentada qualquer prova de que o arguido tenha cometido tal crime e o simples colocar do arguido no local nunca seria suficiente de per si para o condenar, tal constitui uma clara violação do disposto na lei e nomeadamente no artigo 410º, nº 2º, alíneas a) e c), do CPP, devendo o recorrente ser absolvido de tal crime.
13. Parece-nos por isso que no que respeita á medida da pena, dir-se-á que foi arbitrada uma pena efectiva de prisão assaz pesada em nítido desequilibro com a factualidade dada como provada, atentas as condições especiais em que se encontrava o arguido e a sua dificuldade em pautar os seus comportamentos conforme a normatividade, sendo que estas capacidades se encontram, conforme perícia médico legal, na actualidade, intactas!
14. Em nosso entender, atenta a situação especial em que tais actos ocorreram, e atentas as motivações que estiveram na génese destes comportamentos desviantes, atendendo que o arguido se encontrava incapaz de pautar a sua conduta de acordo com a avaliaçio correcta que fazia sobre o grau de ilicitude dos seus actos, parece que aquela culpa será sempre diminuta.
15. Quanto às consequências de seus actos, julgamos não ser exagero se referirmos que não foi apenas a Maria Cristina a sofrer com toda esta situação, mas também o próprio arguido e respectivas famílias e ainda a filha mais nova do casal e a mais velha do arguido.
16. Não teve o Tribunal também em conta o arrependimento do arguido, pois que a sua confissão, embora parcial é sintoma de arrependimento, ou pelo menos reconhecimento de alguma culpa o que em última instância nunca poderá levar á conclusão de que este não existiu!
17. Não teve o Tribunal em conta a perída médico legal, que ele próprio solicitou, certamente porque lhe suscitavam dúvidas sobre o estado psicológico do requerente na altura dos factos, então para quê a perícia se não era para ser levada em conta?
18. Até porque como já se frisou, o arguido estava fora do seu estado normal em que é pessoa dócil, isto significa que não estamos perante um criminoso, muito menos um psicopata, mas apenas alguém que comprovadamente se descontrolou num específico momento da sua vida!
19. E cujas capacidades para agir dentro da normatividade se encontram actualmente intactas!
20. Conforme de resto, ele com o seu comportamento a seguir ao divórcio, e mais recentemente desde que lhe foi imposta a medida de coacção anterior, cumpriu, não mais se tendo aproximado da sua ex-mulher!
21. Quanto ao arrependimento os factos que existem, são apenas a confissão objectiva e o cumprimento de todas as obrigações processuais pelo arguido donde não pode concluir-se pelo não arrependimento, antes pelo contrário, compareceu nos actos judiciais colaborou com as autoridades, apresentou-se a julgamento quando se encontrava em liberdade, e isto são factos que se não podem escamotear quando se conclui acerca da personalidade e valores morais do recorrente.
22. Foi ainda desconsiderado na medida da pena o facto de o arguido carecer de quaisquer antecedentes criminais, sendo ainda um jovem à procura de uma oportunidade de reconstruir a sua vida!
23. Também a condenação no pagamento de seis mil euros á sua ex-mulher nos parece totalmente desajustada, até porque o arguido não tem condições para a pagar, conforme o próprio Tribunal poderá reconhecer, atento ao facto, de ele ter recorrido legitimamente ao apoio judiciário, não se compreendendo que equidade foi aqui aplicada...
24. Por último e quanto aos motivos que levaram à aplicação de uma pena privativa de liberdade, entendemos que o Tribunal “a quo” avaliou mal a situação e interpretou deficientemente os factos dado como provados, pois que constam dos autos, dados que permitiam verificar que a aplicação de uma sanção não privativa de liberdade seria a mais correcta no caso sub judice, violando o disposto nos artigos 70º e 71º, do CP.
25. O Acórdão recorrido violou assim, entre outros, o disposto nos artigos, 31º, 50º, 70º, 71º, 73º, e 152º, todos do CP, e 410º, nº 2º, do CPP.
Termos em que deve ser revogado o Acórdão recorrido, revogando-se a decisão de primeira instância e absolvendo-se o arguido; ou dando-se tão só como provado que o arguido cometeu três crimes de ofensas corporais simples previstas e puníveis pelo artigo 143º do CP, um crime de ameaças e um crime de dano, condenado-se o mesmo numa pena especialmente atenuada; ou, caso assim se não entenda, sempre alterando a medida das penas aplicadas com a inevitável atenuação especial das mesmas, aplicando uma pena não privativa da liberdade; ou, finalmente, que seja determinada a suspensão da execução da pena aplicada, nunca deixando de revogar a decisão recorrida no que tocante á condenação por um dos crimes de dano.
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Respondeu o Ministério Público em ordem à confirmação do acórdão recorrido.
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Nesta Instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer, nele concluindo pela inexistência de “razões válidas e sérias para alterar o decidido, salvo quanto à execução da pena de prisão que deverá ficar suspensa por um período de três anos, nos termos do artigo 50º, nºs 1º e 5º, do CP”.
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Foi observado o disposto no artigo 417º, nº 2º, correram os “vistos”, e teve lugar a audiência designada no artigo 423º, ambos do CPP.
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É a seguinte a matéria de facto dada como PROVADA na decisão recorrida:

O arguido casou com Maria Cristina ....., no dia 06/12/97, sob o regime de comunhão de adquiridos, começando a residir com esta, na casa dos sogros, sita na R. ....., no ..... .
Logo após o casamento, o Luís Filipe, começou a envolver-se em discussões com a sua mulher, chamando-lhe "porca, vaca e puta".
Cerca de um mês após o casamento, o arguido começou a agredir a ofendida, dando-lhe bofetadas, empurrões e encontrões, sem lhe causar ferimentos que a obrigassem a receber tratamento médico.
Em Julho de 1998, o arguido e a assistente separaram-se, tendo ele saído de casa.
Apesar disso, em Agosto de 1998, cerca das 14h, o arguido procurou a sua mulher, no seu domicilio profissional, sito na R. ....., no ....., para a agredir, não o conseguindo por esta ter fugido, mas insultou-a de "puta e porca", dizendo, também que um dia a iria matar .
Por estes factos, a Maria Cristina apresentou queixa crime, que correu termos no ..... do ....., ... Secção ...../...., tendo posteriormente desistido da queixa, conforme consta de fls. 188.
O casal reconciliou-se, e o arguido voltou a viver com a sua mulher em Dezembro de 1998, cerca de uma semana antes da sua filha nascer.

Em Fevereiro de 1999, o Luís Filipe deixou de residir com a sua mulher, mas não deixou de procurar aquela, para a ameaçar, insultar e agredir.

No dia 02/06/99, cerca das 23h30m, o arguido começou a discutir com a sua mulher, na R. ....., 1º, no ....., por ter ciúmes desta.
Apesar desta estar com a filha de 5 meses ao colo, o Luís Filipe desferiu com violência um soco na face do lado direito da sua mulher e atirou-lhe com um vaso de plantas para os pés, atingindo-a no pé esquerdo.
Em virtude desta agressão, a ofendida recebeu tratamento hospitalar no Hospital de ....., tendo sofrido 5 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho

No dia 10/02/2000, cerca das 10h, o arguido procurou a sua mulher, no seu local de trabalho, nos escritórios da firma Construções A....., sito na R. ..... .
Aí chegado, o Luís Filipe dirigiu-se imediatamente à sua mulher e, após ter iniciado discussão com ela afirmando-lhe que mantinha um relacionamento amoroso com o patrão, chamou-lhe "puta, vaca e cabra" e agarrou-lhe a cabeça, pelos seus cabelos, empurrando-a contra a secretária com violência.
Nisto, o patrão da ofendida veio em seu socorro e conseguiu expulsar o arguido do escritório.
Porém, cerca de 15 minutos depois, o arguido voltou ao mesmo local, empunhando uma arma caçadeira, cujas demais características se ignoram, estando esta pronta a disparar. Entrou no espaço amplo que antecede a construção onde funciona o escritório, onde se encontravam a Maria Cristina ..... e o Adelino ......, aproximou-se desse escritório e, sem nele entrar, pela janela que dá do escritório para o espaço onde se encontrava, o arguido gritou "Vou matar-vos aos dois". De seguida, através do vidro dessa janela e para o interior do escritório onde sabia que a Maria Cristina ..... e o Adelino se encontravam, o arguido disparou dois tiros. Na altura que precedeu o disparo, o arguido viu a posição do Adelino ..... e da Maria Cristina ..... no interior do escritório, os quais se encontravam a uma distância não superior a seis metros de si. Quando ouviram o arguido a anunciar a sua declaração, o Adelino ..... e a Maria Cristina ..... atiraram-se para o chão, não tendo sido atingidos pelos chumbos disparados pela caçadeira.
Os disparos atingiram um vidro, e uma parede, causando danos estimados em 4.500$00. O arguido não possuía licença de uso e porte de arma.
Mais tarde, no dia 14/03/2000, cerca das 9 h, o arguido dirigiu-se a casa dos seus sogros, sita na R. ....., no ....., para falar com a Maria Cristina.
Aí chegado, o arguido obrigou a sua mulher a telefonar para o seu patrão, Adelino ....., para que lhe dizer que não ia trabalhar .
Quando já tinha abandonado a casa, ao passar de carro à porta dos sogros, viu que a sua mulher estava de novo ao telefone, dado que a porta da entrada ainda se encontrava aberta.
O mesmo saiu do carro e voltou a querer entrar, na altura em que a sua sogra fechava a porta.
Então, o Luís Filipe empurrou com força a porta, apercebendo-se que a sua sogra estava a fechá-la, quebrando, deste modo, as dobradiças da mesma, o que fez com que a porta caísse, causando danos avaliados em 25.000$00. Acresce que a Rosa ....., beneficiária nº ......... da ARS do ....., foi atingida pela porta, sofrendo escoriações na mão esquerda e no joelho da perna direita, lesões essas que lhe demandaram 3 dias de doença com igual período de tempo de incapacidade para o trabalho.
De seguida, o arguido dirigiu-se à sua mulher, desferindo-lhe bofetadas, ao mesmo tempo que lhe chamava “puta, cabra e vaca”. Nas mesmas circunstâncias, agarrou-a pelas orelhas e empurrou a cabeça daquela contra a parede, tendo provocado lesões que demandaram 3 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
A ofendida Maria Cristina é beneficiária nº ....... da Segurança Social.
Só a Maria Cristina recebeu tratamento hospitalar, no dia seguinte, no Hospital de ..... .
Mais tarde, no dia 17/06/2000, cerca das 16h, o arguido voltou a casa dos sogros, conseguindo de novo deitar abaixo a respectiva porta. Depois entrou na habitação e atingiu a sua mulher a murro na face direita, não tendo a ofendida recebido tratamento hospitalar, nem sido submetida a perícia médico-legal.
No dia 29/08/2000, o arguido encontrou a sua mulher, na R. da ....., quando esta ia a entrar na sua viatura de matricula XE-...-... .
O mesmo pediu para falar com aquela, alegando que tinham de conversar por causa da filha. Depois de terem iniciado uma conversa no interior de um café, nas proximidades, a Maria Cristina ..... decidiu abandonar o local, mas aceitou dar boleia ao arguido até um local onde ele havia deixado o seu veículo. Porém, pouco depois, aquele começou a chamar-Ihe "puta, cabra e porca".
A Maria Cristina parou o carro e obrigou-o a sair, o que o arguido fez, mas levando consigo vários livros de contabilidade, das empresas "B..... & F....." e "C..... V.....".
O arguido ameaçou que só devolveria a documentação, caso a ofendida desistisse das queixas, acabando por entregar a mesma no dia 31/08/2000.
A Maria Cristina divorciou-se do arguido, por sentença proferida no dia 30/11/2000, transitada no dia 14 de Dezembro de 2000.
Em data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 2001, o arguido deslocou-se à residência de Adelino ....., sita na R. ....., nesta cidade de ....., num veículo marca ....., de cor vermelha, com que habitualmente se deslocava.
Aí chegado, o Luís Filipe pegou numa pedra e atirou-a contra as persianas da referida casa, partindo uma delas, causando um dano de valor não concretamente apurado mas não inferior a 6.000$00.
Mais tarde, em data que não se pode precisar, do mês de Maio de 2001, o arguido encontrou o Adelino no interior do Hipermercado .....e, na ..... . Como o Adelino se lhe dirigiu, o arguido sacou de um objecto metálico que aquele pensou ser uma pistola e apontou-o ao peito do ofendido.
O Adelino acreditou que o arguido tivesse uma arma e fosse disparar um tiro à queima roupa, tendo receado pela sua vida, o que permitiu ao arguido fugir do local.
O arguido agiu sempre livre e conscientemente, não ignorando que o seu comportamento era proibido por lei.
Actuou com o propósito conseguido e reiterado de humilhar e de maltratar fisicamente a Maria Cristina.
Agiu o arguido com a intenção conseguida de causar danos na porta da casa da ofendida Rosa ..... e na persiana da casa do Adelino ....., com o propósito de causar um prejuízo patrimonial a estes ofendidos.
Agiu sabendo que, ao empurrar a porta por forma a evitar que a Rosa ..... a fechasse, poderia atingi-Ia na sua integridade física e decidiu actuar como actuou e, no "C....." com intenção de fazer com que o ofendido Adelino ....., receasse pela sua própria vida, ao simular um disparo de arma de fogo.
A ofendida Maria Cristina mantem-se influenciada pelos factos de que foi vítima, designadamente pelo pavor que sentiu em relação ao arguido, sentindo-se humilhada e tendo vergonha quanto aos factos de que foi vítima, perante familiares, amigos, colegas de trabalho e vizinhos. Sentiu a sua liberdade limitada e viu-se obrigada a mudar de emprego por via da actuação do arguido.
O arguido sempre demonstrou ter desconfianças e ciúmes em relação à sua mulher, mesmo antes do casamento de ambos.
Assim, iniciava discussões com ela relativamente a um namoro que ela mantivera desde os 15 anos até aos 23, e que cessara antes de começar o relacionamento consigo. Pretendia saber até que ponto chegara aquela relação e que a ofendida Maria Cristina lhe contasse os actos que praticara. Em face de recusas desta, atingi-a na sua integridade física, como se descreveu.
Foi através de um contacto proporcionado pela mãe do Luís Filipe que a Maria Cristina conseguiu trabalho como técnica de contas na empresa de Adelino ..... . Depois de ter iniciado esse trabalho, o arguido começou a desconfiar e a acusar a Maria Cristina de manter um relacionamento amoroso com o referido Adelino ....., pretendendo que ela ali deixasse de trabalhar .
Depois do telefonema de 14/3/2000, em que a ofendida Maria Cristina leu, ao telefone, um texto apresentado pelo arguido e que se dirigia ao Adelino ....., onde se afirmava que ela não voltaria a trabalhar ali, ela não mais foi trabalhar para essa empresa. Nos momentos que supra se descreveram em que o arguido atingiu a Maria Cristina e a Rosa ..... na sua integridade física, o mesmo apresentava-se extremamente excitado e fora do seu estado normal, em que é pessoa simpática. Nessas mesmas discussões, a arguida (sic) respondia ao arguido chamando-lhe "filho da puta".
No dia 10/2/2000, em que ocorreram os disparos como supra se descreveu, o arguido voltou às instalações da empresa de Adelino ..... e efectuou tais disparos por forma a intimidar a sua mulher e aquele Adelino ...., pretendendo que eles passassem a receá-lo.
No dia 17/6/2000, em que entrou na casa dos sogros, alegando pretender ver a filha e a tal não ser autorizado, agredindo a Maria Cristina na sua integridade física, ao passar junto da cozinha, o arguido foi atingido com água quente, que lhe causou queimaduras.
No dia em que encontrou o Adelino ..... no "C.....", o arguido temeu que este o agredisse, como aquele de resto pretendeu, pelo que usou um objecto que tinha no bolso, como se fosse uma pistola, do que aquele se convenceu.
O arguido, que já trabalhou como vendedor, exerce o comércio de motos usadas, num estabelecimento arrendado. Aufere rendimentos irregulares, consoante os negócios que faz. Tem duas filhas: uma do seu casamento com a Maria Cristina, de 3 anos, e outra de um relacionamento anterior, com 13 anos. Vive sozinho, num espaço adaptado, sobre o stand.
Prestou serviço militar na Escola Prática de Transmissões, tendo experiência com armas que adquiriu não só no serviço militar, mas também por via da prática de tiro aos pratos. Nesta actividade tinha boa pontaria.
A sua personalidade apresenta características de introversão, hiperestesia emocional, riqueza vivencial, fantasista, aspiração elevada designadamente no plano ético, instabilidade impulsivo/afectiva e vincados traços passionais.
Tais traços passionais e instabilidade impulsivo afectiva, paralelos a uma polarização excessiva na pessoa da Maria Cristina, interferiram na capacidade de se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude dos seus actos, que formulava adequadamente. Relativamente aos factos descritos, apresentava imputabilidade acentuadamente diminuída.
Não tem antecedentes criminais.
O arguido e a assistente estão divorciados desde 30/11/2000.
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A matéria de facto NÃO PROVADA:
Não se provou que o arguido tenha começado a insultar a assistente, após o casamento de ambos, diariamente e sem aparentar motivos, que tenha sido ele quem decidiu separar-se da mulher, em Julho de 1998; que tenha apontado à sua mulher e ao Adelino ....., quando disparou a caçadeira de que se muniu, no dia 10/2/2000, que tivesse apontado a arma à zona da cabeça dos dois ofendidos e que tivesse disparado dois tiros, estando apenas a cerca de 3 metros do ofendido Adelino ....., que os ofendidos se encontrassem no enfiamento da arma e só não tivessem sido atingidos pelos chumbos, por se terem desviado. Quanto aos factos descritos como tendo ocorrido no dia 15/3/2000, não se provou que tenham tido lugar nessa data, mas sim na véspera, isto é, 14/3.
Quanto aos factos ocorridos em 29/8, não se provou que o arguido tenha procurado a Maria Cristina ......, mas apenas que ambos se encontraram.
Não se provou que o valor dos danos da persiana da casa de Adelino ..... fosse superior a 6.000$00, nem que no interior do C...... o arguido tivesse afirmado àquele que o ia matar, nem que o objecto que empunhou fosse uma pistola ou tivesse gatilho.
Não se provou que o arguido actuou com a intenção de tirar a vida a Maria Cristina ....., sua mulher e ao ofendido, Adelino ....., só não tendo conseguido os seus intentos, pelo facto de as vítimas se terem afastado, nem que tenha pretendido atingir a Rosa ..... com a porta que empurrou, mas tão só que admitiu que isso aconteceria.
Do articulado do pedido cível, não resultou provado que a assistente tivesse perdido quaisquer retribuições em razão de baixa determinada por actuações do arguido, nem que tivesse suportado as despesas que reclamou, no valor de 80.000$00, com deslocações ao hospital, tratamentos, centro de saúde, IML, etc.
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A FUNDAMENTAÇÃO da matéria de facto:
“A convicção do Tribunal sobre a matéria provada funda-se nas declarações do arguido, que admitiu a existência de discussões entre a sua mulher, embora referindo a existência de insultos recíprocos, tendo admitido também as entradas em casa dos sogros que se descreveram, conseguidas através da aplicação de pontapés ou empurrão na porta, que cedia à sua força, uma das quais subsequente ao telefonema que obrigou a sua mulher a fazer, comunicando a Adelino ..... que não mais trabalharia para ele. Afirmou que nessa data não se apercebeu que era a sua sogra que fazia com que a porta se não abrisse, no que não se acreditou pois ele próprio declarou que a porta estava aberta quando se ausentava do local e verificou através dela que a sua mulher estava de novo ao telefone, tendo decidido ali voltar por se convencer que ela falava novamente com o Adelino ..... . Assim sendo, quem lhe ofereceu resistência, tentando fechar a porta e impedir-lhe novamente a entrada só podia ser a Rosa ......, como foi, não podendo o arguido deixar de saber que, empurrando a porta contra aquela, a iria atingir com essa mesma porta, como atingiu. O arguido também admitiu a realização dos dois disparos de caçadeira, afirmando de forma isenta e convincente que não pretendeu atingir a Maria Cristina nem o Adelino ....., mas apenas assustá-los. Aliás, sendo experiente com armas, estando a muito pouca distância e tendo-se aproximado sem que eles se tivessem apercebido - o que os mesmos confirmam, pois afirmam que viram o arguido de arma em punho apenas quando ele afirmou que os ia matar - teria podido atingi-los com facilidade, se o tivesse querido, o que não aconteceu. De resto, tinha mais cartuchos, que não usou, e que lhe teriam permitido consumar a sua intenção, se essa fosse matar os dois, mas apenas pretendia que eles passassem a ter medo de si, como se concluiu a partir das suas afirmações, nessa parte convincentes.
Das suas declarações, conjugadas com as da assistente Maria Cristina também se concluiu sobre qual era a motivação do arguido para os diversos actos descritos, construída sobre a lembrança do relacionamento anterior da sua mulher, bem como a suspeita de um novo relacionamento adúltero com o seu patrão Adelino ....., iniciando-se então discussões que culminavam com agressões, como descrito, sendo manifesta a enorme excitabilidade do arguido em tais circunstâncias, que passava então a reagir desmesuradamente em cada situação, tal como aconteceu no dia dos tiros.
Não se acreditou nas declarações do arguido quanto à negação de diversas agressões sobre a Maria Cristina, nem no facto de só ter praticado qualquer agressão para se defender, sem prejuízo de se acreditar na sua afirmação de que no dia 17/6 foi atingido com água a ferver, o que foi limitadamente admitido pela Rosa ....., e resulta do doc. junto a fIs. 571.
Da conjugação das suas declarações com as de Adelino ...... resultou o conhecimento do encontro entre ambos, no "C......", bem como o facto de o Adelino pretender ali tirar satisfações do arguido, não só em virtude do ocorrido no escritório da sua empresa, mas também do facto de o arguido ininterruptamente e a todas as horas do dia e da noite lhe dirigir telefonemas com ameaças e insultos, referindo o Adelino ....., de forma totalmente isenta e convincente, ter recebido já mais de 5.000 telefonemas do arguido. Referindo também não ter medo do arguido em caso de confronto directo - até porque a superioridade física do Adelino ...... em relação ao arguido é enorme - o Adelino não deixaria de "acertar contas" com o arguido, se o tivesse conseguido fazer, quando o encontrou no Continente. Daí a credibilidade das afirmações do arguido segundo as quais usou um isqueiro metálico, que tinha no bolso, manuseando-o como se fosse uma pistola, com o que conseguiu que o Adelino ..... deixasse de avançar para si e, assim, fugir. A esse respeito, o Adelino ..... apenas referiu que pensou que o objecto manuseado pelo arguido fosse uma pistola, mas não foi esclarecedor sobre as características desse objecto, pelo que se acreditou no arguido, quanto à inexistência de qualquer arma, nessa data.
Em relação aos actos de que foi vítima a assistente Maria Cristina, tiveram-se em conta as suas declarações, isentas e convincentes, narrando as várias agressões e insultos descritos, como começavam as discussões, como terminavam, como o arguido entrou por duas vezes na casa dos seus pais, com quem vivia, forçando a porta, como a atingiu, como deixou de trabalhar para o Adelino ..... depois de o arguido a ter forçado a telefonar-lhe e a ler um texto em que chamava diversos nomes injuriosos ao interlocutor, declarando que não mais trabalharia para ele, bem como diversas perseguições e contactos que o arguido encetava e conseguia sobre si, como na vez em que lhe subtraiu os livros de contabilidade de empresas para que trabalhava. Desse depoimento sobressaiu a ansiedade, angústia e receio que a aproximação do arguido determina à Maria Cristina ....., o facto de ter mudado de emprego por causa da actuação do arguido, o facto de este continuar a causar-lhe dissabores mesmo após a separação de ambos.
Tiveram-se também em conta as declarações de César ..... e de Rosa ....., pais da Maria Cristina, que referiram as discussões, insultos e agressões de que a filha foi vítima, as entradas do arguido em sua casa, destruindo a porta, e a forma como a Rosa ..... foi atingida pela porta empurrada pelo arguido (isto apenas declarado pela segunda, já que o César ..... se encontrava ausente. Ambos referiram a simpatia do arguido, num estado normal, mas a sua excepcional agressividade e violência quando se irrita e começa a discutir. Também referiram as lesões que a filha apresentava, depois dos actos do arguido. Atentou-se no depoimento de Martins ....., agente da PSP que esteve no escritório de Adelino ..... após os disparos do arguido e referiu como verificou impactos de chumbos de cartucho por trás da secretária onde se sentava a assistente e ao nível da cabeça de um pessoa normal que ali estivesse de pé. Encontrou duas tampas de cartuchos, o que revela terem sido disparados dois tiros, bem como a proximidade dos disparos em relação à janela através da qual foram executados.
Maria Manuela, Fernando ..... e Sandra ....., vizinhos da arguida, descreveram cenas que presenciaram, em que o arguido dirigia insultos à assistente, tendo-a visto com sinais de agressões imediatamente anteriores. A última referiu como a Maria Cristina se envergonhava das cenas feitas pelo marido e como uma vez atendeu um telefonema dirigido àquela, em que o arguido, pensando estar a ser atendido pela sua mulher, proferiu diversos insultos.
Foi irrelevante o depoimento de Maria Emília ....., que trabalha no escritório de Gaia onde actualmente trabalha a assistente Maria Cristina e descreveu ter ali visto o arguido.
Teve-se em conta o depoimento de Adelino ....., que, além do já referido, afirmou com o a persiana da sua casa foi destruída por uma pedra arremessada por alguém, tendo visto o veículo usado pelo arguido a afastar-se do local, com base no que concluiu ter sido o arguido o autor desse facto, conclusão que o tribunal teve igualmente por bem fundada. Referiu o valor desse prejuízo.
Atentou-se nos depoimentos de Carlos Alberto ..... e de Maria Odete ....., pais do arguido, que testemunharam sobre a sua personalidade e a forma como estava afectado pelas suspeitas em relação à mulher. Foram reveladores os factos de o primeiro ter recomendado à Maria Cristina - e não ao seu filho - que era melhor não se casar com este, bem como de a Maria Odete ter narrado como se encarregou de devolver os referidos livros de contabilidade á nora, após contacto da polícia, nesse sentido. Referiu também a queixa da mulher do Adelino ..... quanto a suspeitas de um relacionamento deste com a Maria Cristina. As declarações de Carlos ..... foram credíveis quanto à declarada experiência do seu filho como atirador e praticante de tiro aos pratos. Tiveram-se em conta os relatórios de exame de fls. 105 a 107, 243 a 245 e 247 a 248, o teor do CRC do arguido (fls. 551), o assento de nascimento, com averbamento de casamento e divórcio, da Maria Cristina, junto a fls. 424.
Por fim, atentou-se no teor do relatório da perícia sobre as faculdades mentais do arguido, aliás confirmador da convicção do Tribunal em face da demais prova produzida, subjacente á determinação de realização dessa perícia.
Não se provaram a perda de remunerações reclamada pela assistente nem que tenha suportado as despesas que reclamou, por isso não resultar dos documentos que ofereceu como prova (a fls. 546), não relacionáveis por si sós com os actos praticados pelo arguido, e por não ter havido outra prova sobre a questão”.
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A audiência de julgamento decorreu perante o Tribunal Colectivo, como se assinalou, tendo havido gravação da mesma.
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O Tribunal conhece de facto e de direito - artigos, 364º e 428º, nº 1º, do CPP.
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É jurisprudência assente que o âmbito dos recursos é determinado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, só abrangendo as questões nela contidas, como se infere das disposições conjuntas dos artigos, 412º, nº 1º, do CPP (cfr. artigos, 684º, nº 3º, 690º do CPC, e 4º do CPP).
Dessas questões se conhecerá.
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A matéria de facto:
Liminarmente assinale-se que do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, não se perfila qualquer dos vícios apontados no artigo 410º, nº 2º, als., a), b) e c), do CPP, igualmente se não topando qualquer inobservância de requisito cominado com nulidade e que se não deva considerar sanada.
E, nomeadamente, não se conclui pela existência de tais vícios, também, aduzidos pelo recorrente, já que o que por ele é infirmado, antes, são determinados pontos da matéria de facto assente tal como fluem no acórdão sub judice, e do que, afinal, discorda.
Vejamos:
Em relação aos citados vícios, exponencialmente alinhados na quase totalidade das decisões recorridas analisadas neste Tribunal, tem-se entendido que:
a) Estamos na presença da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os facto colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado;
b) Existe contradição insanável de fundamentação quando de acordo com um raciocínio lógico seja de concluir que não é perfeita a compatibilidade de todos os factos provados;
c) Erro notório é aquele que não escapa ao homem comum e consubstancia-se quando no contexto factual dado como provado e não provado existem factos que, cotejados entre si, notoriamente se excluem, não podendo de qualquer forma harmonizar-se.
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Como resulta evidente, não existem no acórdão recorrido os vícios apontados pelo recorrente, que, como é por demais sabido, sempre têm de resultar do “texto da decisão recorrida”, como peça autónoma, na sua globalidade, mas sem o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos.
Assim:
A matéria de facto provada é suficiente para a decisão.
Por outro lado, contrariamente ao alegado pelo recorrente, em sede de motivação - que não de conclusões -, inexiste a (única) apontada contradição entre matéria de facto provada e matéria de facto não provada.
Referencia o recorrente, nesta área, o facto de se ter dado como provado que logo após o casamento, o Luís Filipe começou a envolver-se em discussões com a sua mulher, chamando-lhe “porca, vaca e puta" e, em simultâneo, se haver dado como não provado que o arguido tenha começado a insultar a assistente, após o casamento de ambos, diariamente e sem aparentar motivos.
Como bem salienta o Exmº. Procurador-Geral Adjunto no Parecer que fez juntar aos autos, é manifesto que as frases utilizadas têm sentido bem diverso, como ressalta com alguma evidência não só da demais prova dada como provada, mas também da respectiva fundamentação. Assim, com a frase inserta no início da matéria de facto prova pretendeu afirmar-se as frequentes discussões travadas com a assistente, já na pendência do matrimónio, motivadas pela lembrança do relacionamento anterior da sua mulher, bem como a suspeita de um novo relacionamento adúltero com o seu patrão Adelino ....., iniciando-se então discussões que culminavam com agressões, como descrito, sendo manifesta a enorme excitabilidade do arguido em tais circunstâncias, que passava então a reagir desmesuradamente em cada situação, tal como aconteceu no dia dos tiros. Por isso se deu igualmente como provado que o arguido sempre demonstrou ter desconfianças e ciúmes em relação à sua mulher, mesmo antes do casamento de ambos Assim, iniciava discussões com ela relativamente a um namoro que ela mantivera desde os 15 anos... Pretendia saber até que ponto chegara aquela relação e que a ofendida Maria Cristina lhe contasse os actos que praticara. Em face das recusas desta, atingia-a na sua integridade física, como se descreveu.
O que se não provou é que o arguido tenha, após o casamento, começado a insultar a assistente diariamente e sem aparentar motivos.
Trata-se, pois de afirmações com conteúdos diferentes, que não colidem entre si.
Excluída, igualmente, de acordo com o critério exposto, a existência de erro notório na apreciação da prova.
Está hoje conceitual e definitivamente assente que o vício alinhado pelo recorrente, ínsito na referenciada alínea c) do nº 2º do artigo 410º do CPP, é um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão. Erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto provada ou excluindo dela algum facto essencial - vd., por todos, o Acórdão do STJ de 30.09.98, prolactado no Processo nº 565/98.
Ora, perante a matéria de facto dada como provada, facilmente se conclui que inexiste tal vício na decisão recorrida.
É que o recorrente invoca esse mesmo vício - e, diga-se, os demais do nº 2º do artigo 410º citado - enquanto, afinal, discorda da forma como o Tribunal apreciou a prova produzida.
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Na esteira do disposto nos artigos, 32º, nº 1º [O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso], e 205º, nº 1º [As decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei], da Constituição da República Portuguesa, o artigo 374º, nº 2º do CPP [Requisitos da sentença] exige, não só, a enumeração dos factos provados e não provados, mas ainda uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e (na redacção introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, que iniciou a sua vigência em 1 de Janeiro de 1999 - artigos 6º, nº 1º e 10º, nº 1º) exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
E tal fundamentação deverá, intraprocessualmente, permitir aos sujeitos processuais e ao Tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso (cfr. artigo 410º, nº 2º do CPP).
Por outro lado, extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença, e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade.
Temperando-se, assim, o sistema de livre apreciação das provas (artigo 127º do CPP), com a possibilidade de controle imposto pela obrigatoriedade duma motivação racional da convicção formada, evitar-se-ão situações em que se impute ao julgador a avaliação "caprichosa" ou "arbitrária" da prova, e, sobretudo, justificar-se-á a confiança no julgador ao ser-lhe conferida pela liberdade de apreciação da prova garantindo-se, simultaneamente a credibilidade na Justiça (vd. Marques Ferreira, O novo Código de Processo Penal, CEJ, 229 e segs.).
Como assinala Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 204 e segs.), a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis [v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova], e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável.
E, nesta matéria, diremos nós, que se assume, como fundamental, o princípio da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade.
Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.
(E, aqui se fará referência ao princípio 'in dubio pro reo'.
O princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2º, da CRP, integra uma norma directamente vinculante, e constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (artigo 18º, nº 1º, do mesmo Texto) - cfr. artigos, 11º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 6º, nº 2º, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14º, nº 2º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
E tem o seu campo natural e lógico na apreciação da prova (Castanheira Neves, Processo Criminal, Sumários, 56, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 312, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 90 e segs).
Com efeito, enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação.
O que quer significar que só a prova de todos os elementos constitutivos essenciais de uma infracção permite a sua punição. Mas é esse um problema de direito probatório em processo penal; como acentua Hans-Heinrich Jescheck (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edº, 127 e segs.) "serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do Direito que surjam numa situação probatória incerta".
Sendo certo que, in casu, da decisão recorrida não decorre que o Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ela, acabou por escolher a tese desfavorável ao arguido).
E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso (cfr. F. Dias, ob. cit. 232 e segs.).
*
Isto dito, concluímos, prima facie, que o recorrente, quando reporta ‘erro notório na apreciação da prova’, e, repete-se, tal vale para os demais vícios invocados, naturalmente por confusão conceitual (artigo 410º, nº 2º, al.c), do CPP), para cuja abundantíssima jurisprudência se remete, se limita a criticar o uso que o Tribunal fez do aludido princípio da livre apreciação da prova (cit. artigo 127º), em sede de julgamento de facto, pretendendo dever ser outra a matéria provada (cfr. quanto a este princípio o acórdão do Tribunal Constitucional publicado no DR, II série, nº 9, de 12 de Janeiro de 1998, 499).
Mas não menos exacto que o Tribunal a quo indicou as provas que serviram para formar a sua convicção (depoimentos prestados em audiência), nenhuma delas proibida por lei (artigo 125º), e todas da livre apreciação do julgador, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção (artigo 127º, ambos do CPP), operando detidamente a sua análise crítica, com a explicitação individualizada dos participantes que entendeu primordiais para a génese da formação da mesma.
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Dispõe aquele artigo 127º que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, princípio da livre apreciação da prova que sofre limitações, nomeadamente no que respeita às provas documental e pericial.
Por outro lado, a lei admite presunções judiciais, que são as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigos 349º a 351º do Código Civil).
Como exemplarmente se afirma em acórdão proferido no recurso nº. ..... desta Relação, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente”.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal. Assim, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª Instância, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.
*
A fundamentação da decisão - propositadamente acima reproduzida - acha-se alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum.
Nenhuma razão objectiva colhe ao recorrente ao privilegiar ou hierarquizar elementos probatórios, infirmando-os ou afirmando-os de acordo com a sua própria interpretação ou conveniência.
É esta, antes, como vimos tarefa que compete ao Tribunal, já em momento posterior, em sede de decisão.
Enfim: a matéria dada como provada é a que resulta da análise da prova produzida, temperada, como se disse, com os princípios de processo penal convergentes na área, com destaque - inevitável, e desejável sob o ponto de vista da captação psicológica - para o da imediação.
Concluindo-se que nenhum reparo merece a decisão recorrida, quanto à enumeração dos factos provados colocada em crise no recurso.
*
Estabelece o artigo 412º do CPP:
(...).
3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
(...).
*
O recorrente, como decorre, também, das ‘conclusões’ da respectiva motivação, e com o conteúdo supra precisado, não cumpriu a imposição legal prevista nos nºs 3 e 4, do citado artigo 412º.
Assim sendo, a matéria de facto dada como provada, encarada, ainda, sob este ponto de vista, apresenta-se como inatacável.
Daí que o recurso, quanto à matéria de facto, se apresente manifestamente improcedente, não se podendo conhecer do seu objecto.
Logo, devendo ser rejeitado (artigo 420º, nº 1º, do CPP), como, nesta área, tem sido decidido nesta Relação.
*
A matéria de direito:
A qualificação jurídico-criminal dos factos:
Dispõe o artigo 152º do CP:
1. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º.
2. A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges maus tratos físicos ou psíquicos. (...).
(...).
*
O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade humana, compreendendo a ratio deste normativo, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), perfilando-se a saúde como o bem jurídico nele protegido - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que, in casu, afectem a dignidade pessoal do cônjuge - cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, I, 332.
Este crime exige o dolo, e, no caso sub judice, em que se configura um crime de resultado, o dolo abrange o próprio resultado danoso da integridade física.
Discutida, a questão sobre se o crime em análise pressupõe implicitamente a reiteração dos respectivos actos ou condutas, entende-se que a respectiva incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas por uma só vez, sempre ocorrerá quando a gravidade intrínseca das mesmas se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde, nos moldes acima descritos.
Actos compreendidos na actividade do arguido consubstanciadores deste ilícito ocorreram, como resulta da matéria de facto assente, em 2 de Junho de 1999, 10 de Fevereiro, 14 de Março e 17 de Junho de 2000.
*
Estabelece o artigo 153º do CP:
1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3. O procedimento criminal depende de queixa.
*
Não discutindo no recurso a existência da sua condenação por este crime, reafirma-se que se mostram preenchidos todos os elementos essenciais do tipo legal em equação, aqui reportado ao ofendido Adelino ..... .
*
Estatui o artigo 212º do CP:
1. Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
(...).
*
Este normativo, expressamente, prevê quatro diferentes modalidades de acção típica, qualquer delas, só por si, preenchendo a correspondente conduta ilícita: destruir, danificar, desfigurar e tornar não utilizável.
A destruição implica a produção de um resultado segundo um processo causal não tipificado (execução não vinculada), podendo ser total ou parcial, distinção sem relevo do ponto de vista da factualidade típica uma vez que a destruição parcial sempre resultaria incriminada a título de danificação ou mesmo de inutilização, com algum relevo prático em sede de medida da pena (cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, II, § 32 e segs., e exemplos aí perfilados).
De acordo com a matéria de facto assente este ilícito acha-se preenchido, por duas vezes, com a descrita actividade do arguido, verificada, em 14 de Março de 2000 (com prejuízos na casa dos pais da Maria Cristina, onde vivia, quantificados no montante de 25.000$00), e em data anterior a Maio de 2001 (com prejuízos na persiana da casa do ofendido Adelino ....., quantificados no montante de 6.000$00).
*
A decisão, face aos critérios do artigo 70º do CP, optou pela aplicação de pena privativa de liberdade.
Para o efeito, considerou todo o circunstancialismo em que foram cometidos os factos integradores dos crimes de ameaça e dano, puníveis com pena de prisão ou multa, nomeadamente quanto à sua inter-relação com os factos de que foi sucessivamente vítima a Maria Cristina, o seu encadeamento, motivação, bem como a gravidade destes últimos, puníveis somente com pena de prisão, atentou no grau de ilicitude do referido crime de ameaça, que ultrapassou o nível da simples afirmação de intenções, envolvendo já a demonstração da capacidade do arguido para realizar os seus intentos homicidas, vindo a concluir que a aplicação de penas de multa não satisfaz as necessidades de protecção dos bens jurídicos concretamente atingidos, não assegura suficiente censura para os comportamentos do arguido, nem constitui igualmente suficiente advertência contra o crime, não realizando, assim, os interesses de prevenção geral e especial que devem estar subjacentes a qualquer condenação penal.
Em primeira linha, concorda-se com a opção do Tribunal Colectivo.
Igualmente se adere à medida das penas concretamente fixadas para cada um dos crimes, em obediência aos ditames legais do artigo 71º do mesmo Diploma legal.
Essencialmente tem-se em consideração o elevadíssimo grau de ilicitude dos factos criminosos, maxime no tocante aos crimes, de maus tratos, e de ameaça.
Como se expressa no acórdão, tal grau de ilicitude perfila-se, em relação ao crime de maus tratos, face ao longo período de tempo por que se estenderam os comportamentos do arguido e a violência exercida sobre a Maria Cristina (o arguido chegou a agarrar-lhe as orelhas ou os cabelos para lhe bater com a cabeça contra a parede; quanto à ameaça integrada no crime de maus tratos, regista-se um elevado valor ofensivo das expressões utilizadas para a honra e consideração da ofendida); é-o em relação ao crime de ameaça, cometido sobre o ofendido Adelino ....., consubstanciado pela declaração ‘Vou-vos matar’, seguida de dois disparos; é-o, finalmente, em relação aos crimes de dano, não obstante o escasso valor dos prejuízos causados, mas tendo em atenção o facto de terem sido cometidos sobre elementos de habitações destinados a garantir a segurança dos respectivos ocupantes.
O dolo é intenso, persistindo ao longo de todo o percurso da descrita actuação do recorrente.
Altamente censurável o modo de execução dos crimes, repete-se, com a persistente actuação do arguido ao longo do tempo.
A sua culpa é de considerar atenuada, atenta a circunstância de relativamente aos factos descritos apresentar imputabilidade acentuadamente diminuída.
A sua personalidade tem traços passionais e instabilidade impulsivo-afectiva, paralelos a uma polarização excessiva na pessoa da Maria Cristina, que interferiram na capacidade de se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude dos seus actos, que formulava adequadamente,
Contudo, agiu sempre livre e conscientemente, não ignorando que o seu comportamento era proibido por lei.
Com o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar fisicamente a Maria Cristina, com a intenção conseguida de causar danos na porta da ofendida Rosa ..... e na persiana do ofendido Adelino ....., e assim lhes causar um prejuízo patrimonial, e com a intenção de fazer com que este último receasse pala sua própria vida, ao simular o disparo de uma arma de fogo.
Não se mostra justificado, por consequência, o recurso à atenuação especial da pena, nos termos dos artigos 72º e 73º do CP.
Esta atenuação só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, seja, quando é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta escolhida pelo legislador para o tipo respectivo.
Fora desses casos, é, naturalmente, dentro dessa moldura normal que aquela adequação pode e deve se realizada.
Obviamente que a insuficiência psíquica de que o arguido padecia no momento da prática dos factos justifica a aplicação de uma pena algo inferior à que sempre seria imposta, face a idêntica situação, a pessoa normal.
Mas isso é o que acontece na decisão sub judice, em sede de medida das penas cominadas por cada um dos crimes, e na fixação da pena unitária.
Aí se ponderou, bem, as consequências dos factos para as vítimas, de enorme gravidade no caso da Maria Cristina, as condições pessoais do arguido, a ausência de antecedentes criminais e as necessidades de prevenção de futuros crimes, tudo conjugado com o período de tempo em que vigorou a sua sanha persecutória, o seu grau de imputabilidade, sendo certo que, no essencial, não confessou nem mostrou arrependimento.
Confirmam-se, pois, as penas, parcelares e unitária, aplicadas.
*
Pugna, ainda, o recorrente, pela suspensão da pena que lhe foi aplicada.
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Dispõe o artigo 50º do CP:
1. O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.
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Pressuposto material da aplicação deste instituto é que o Tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena - acompanhada ou não da imposição de deveres (ou) regras de conduta - «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade». Para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o Tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto, prognóstico esse reportado ao momento da decisão, que não ao da prática do facto.
A finalidade político-criminal que a lei visa com este instituto é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. Decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência» - cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, 342 e segs.
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Neste ponto, e contrariamente à decisão recorrida, cujos fundamentos se não acolhem, cremos estarem reunidos os pressupostos legais determinantes, e que aconselham, face às descritas finalidades do instituto, o uso da suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
O último acto criminoso relativo ao crime de maus tratos teve lugar em 31 de Agosto de 2000, sendo certo que o recorrente se encontra divorciado da assistente, por decisão transitada em julgado em 14 de Dezembro de 2000.
Trabalha e não tem antecedentes criminais.
Afigura-se positiva a conclusão de uma prognose favorável ao comportamento do recorrente, nos moldes descritos, enformadores dos enunciados critérios legais.
Entende-se adequada a fixação do período de 4 anos de suspensão da execução da pena de prisão em que o recorrente é condenado.
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Sem reparo - confirmando-o - o montante indemnizatório fixado, a título de danos não patrimoniais, de que é credor a assistente, e se acham juridicamente tutelados - artigo 496º do CC.
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Termos em que, na procedência parcial do recurso, se altera o acórdão recorrido, declarando-se a pena de prisão em que o arguido Luís Filipe ..... foi condenado suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, mantendo-o quanto ao restante.
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Cessa de imediato a medida de coacção fixada ao arguido.
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Custas nesta Instância pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs, tendo-se em atenção o apoio judiciário de que beneficia.
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Porto, 3 de Julho de 2002
António Joaquim da Costa Mortágua
Francisco Augusto Soares de Matos Manso
Manuel Joaquim Braz
Joaquim Costa de Morais