Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1352/16.6T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: REAPRECIAÇÃO OFICIOSA DE DECISÃO DE FACTOS
MANOBRA DE RECURSO
CONDUTOR NORMALMENTE DILIGENTE
Nº do Documento: RP201809271352/16.6T8OVR.P1
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 145, FLS 247-257)
Área Temática: .
Sumário: I - A. Relação deve reapreciar oficiosamente a decisão sobre factos que não são objecto do recurso da decisão sobre a matéria de facto, desde que tal seja necessário para eliminar contradições entre os factos provados ou que resultem provados em função do conhecimento da impugnação.
II - A demonstração de que determinada manobra geradora dos danos foi uma manobra de recurso pressupõe a demonstração das razões objectivas que obrigavam à realização da manobra e que impediam a execução da manobra em condições de segurança.
III - Numa situação em que um veículo que segue à frente na auto-estrada se despista e sai para fora da faixa de rodagem e um veículo que segue atrás se desvia para a esquerda, se despista e sai para fora da faixa de rodagem, sem haver colisão entre eles, para responsabilizar a seguradora do primeiro veículo pelos danos sofridos pelo segundo é necessário demonstrar a relação de causalidade entre a movimentação do primeiro veículo e a reacção do condutor do segundo.
IV - Para o efeito é necessário demonstrar factos que revelem que a movimentação daquele veículo criou uma situação de facto em função da qual qualquer condutor normalmente diligente, cuidadoso e apto teria realizado as manobras que o condutor deste realizou e cuja execução colocaria normalmente em risco a estabilidade do veículo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1352/16.6T8OVR.P1
Juízo Local Cível de Ovar
Comarca de Aveiro
Recurso de Apelação

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B..., contribuinte fiscal n.º ........., residente em ..., Vila Nova de Gaia, instaurou acção judicial contra C..., S.A., pessoa colectiva n.º ........., com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €4.964,90, correspondente ao custo da reparação do seu veículo, ou €4.000 correspondente ao valor do mesmo à data do acidente dos autos, e a quantia de €10.674 a título de privação de uso do veículo até à data da instauração da presente acção e a que entretanto se vencer até ao momento em que lhe seja disponibilizado o seu veículo, quantias acrescidas de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.
Para o efeito alegou que no dia 22.11.2014, pelas 16,15 horas, ao km 31,150 da A29, o veículo matrícula ..-..-TD, conduzido por D..., ao circular no sentido norte/sul despistou-se, levando o condutor do veículo matrícula ..-..-XB, pertencente ao autor e conduzido pelo seu filho, que circulava atrás daquele, no mesmo sentido, a realizar manobras para evitar o embate dos veículos, acabando por sair da faixa de rodagem e embater no talude, onde se imobilizou, danificado, devendo a seguradora daquele suportar a indemnização desses danos identificados na petição inicial.
A ré contestou, negando a existência de relação causal entre o primeiro e o segundo despistes e defendendo que ocorreram dois acidentes distintos, sem conexão entre si, e os danos no veículo do autor se devem a culpa exclusiva do respectivo condutor. Impugnou ainda os danos.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando a ré a pagar ao autor €4.964,90 para reparação do seu veículo, €5.930,00, de indemnização pela privação do uso do veículo desde o acidente até à instauração da presente acção, a quantia diária de €10,00, desde a instauração da acção até pagamento da primeira quantia referida, e juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Do assim decidido, a interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Ao contrário do que resulta da sentença em crise, foi produzida prova para que os seguintes factos fossem dados como provados:
e) ao assistir ao despiste do TD, o condutor do XB decidiu accionar os órgãos de travagem deste;
f) ao mesmo tempo que mudou de direcção para a esquerda;
g) com esta sucessão de manobras, o condutor do XB acabou por perder o controlo deste;
h) que passou a circular desgovernado em direcção ao separador central;
i) perante a possibilidade eminente de embate neste, e como manobra de recurso, o condutor do XB tornou a mudar de direcção, desta feita, para a direita, completando assim um "S";
j) altura em que o mesmo perdeu definitivamente o controle sobre o XB;
k) circulando desgovernado em direcção ao talude existente fora da faixa de rodagem, do lado direito, que subiu, após o que se imobilizou;"
2. A prova quanto a dinâmica do acidente assentou no depoimento da testemunha, E..., condutor do veículo XB.
3. Do referido depoimento resulta a dinâmica alegada pela recorrente e que por sinal a Mma. Juíza do tribunal a quo julgou como não provada.
4. A testemunha E..., prestou depoimento que ficou gravado em acta no dia 28.06.2017, entre as 09:55:53 e as 10:16:18 horas tendo ao minuto 05:45 referido que: "Direccionei-me para a faixa de rodagem mais à esquerda", e ao minuto 05:50 diz: “começo a perder também o controle do meu veículo" para logo de seguida ao minuto 05:55 a 06:03 confirmar que "e para evitar o embate no separador central, curvo para outro lado e despisto-me também para o lado direito, para a berma e para o talude";
5. O relato confirma na íntegra o alegado pela recorrente e confirma os factos que erroneamente foram considerados como não provados nas al. e), f), g), h), i), j) e k), da fundamentação de facto pelo que devem, porque a prova assim o obriga, ser tais factos considerados como provados.
6. O acidente do veículo XB eclodiu não porque o veículo TD se despistou, mas porque o condutor do XB executou uma serie de manobras que levaram ao despiste do mesmo.
7. Do depoimento do condutor do veículo XB, verificamos que o veículo não colide com o veículo TD em momento algum, tendo-se tratado de um despiste pelo facto do veículo, em virtude das manobras do seu condutor, ter entrado em descompensação, perdendo aderência ao pavimento, aliás, à semelhança do que aconteceu com o veículo TD.
8. O veículo XB despistou-se por imperícia do seu condutor, tanto que não há nenhuma prova nos autos que ateste que os veículos, não fossem as manobras realizadas pelo condutor do veículo XB, acabariam por embater.
9. Estamos perante dois sinistros distintos, sendo sintomático desse facto, a elaboração de duas participações de acidente de viação distintas por parte da GNR.
10. Inexiste, face à prova produzida quanto à dinâmica do sinistro do veículo XB, qualquer nexo de causalidade entre este e o despiste do veículo TD.
11. Nenhuma violação às normas estradais pode ser assacada ao condutor do veículo TD, fazendo inclusivamente disso nota a Mma. Juíza do Tribunal " a quo".
12. No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, designadamente nos termos do art. 483º do CC, é necessário que, entre outros requisitos, se verifique a ilicitude e o nexo de causalidade, o que a própria Mma. Juíza do Tribunal "a quo" afasta, pelo menos de forma taxativa no caso da ilicitude.
13. O simples facto de não se verificar um dos 5 requisitos cumulativos da responsabilidade civil extracontratual, não permite que a recorrente seja obrigada a pagar qualquer indemnização.
14. Caso se entenda que o acidente se ficou a dever à imperícia do condutor do veículo TD, semelhante raciocínio terá de ser feito quanto à conduta do condutor do veículo XB o que sempre nos levaria à aplicação ao caso concreto do estribado no art. 506º, nº 2, do CC.
15. Em ultima ratio, sempre seria de considerar que a conduta do condutor do veículo XB concorreu para a produção dos danos peticionados e, como tal, sempre seria de aplicar o disposto no art. 570º, nº 1, do CC.
16. Resulta da prova produzida que os danos no veículo XB foram orçamentados em cerca de €4.964,90, tendo resultado provado que o veículo tinha como valor venal a quantia de €4.000,00, sendo o seu salvado foi avaliado em cerca de €600,00.
17. Perante este cenário, o veículo XB, nos termos do disposto no art. 41 ° do DL 291/2007, está em situação de perda total, sendo que no mui modesto entendimento da Recorrente, deveria ser essa a norma aplicável e não o princípio geral da indemnização estatuído no art. 562º do CC.
18. Havendo como há uma normal especial que regula a situação de perda total, deveria ser esta a aplicada, uma vez que a normal especial derroga a norma geral.
19. A aplicação do artigo 562º do CC origina à improcedência do pedido formulado pelo recorrido, uma vez que, não estando o veículo XB reparado, jamais o pedido poderia ser feito com vista a uma indemnização em dinheiro no valor da reparação, na medida em que há a hipótese da reconstituição natural (reparação), não tendo sido alegado e provado pelo Recorrido, nenhum facto que obrigue a aplicação do disposto no artigo 566º do CC
20. Do acervo factual não resultou nenhum facto que confirme a existência de qualquer dano decorrente da impossibilidade de uso do veículo XB por parte do Recorrido.
21. Não há por isso qualquer fundamento fáctico que ateste a existência de qualquer dano para o Recorrido com a privação do uso
22. A sentença ora em crise faz uma incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 24º, nº 1, do Código da Estrada, 483º, 506º, nº 2, 562º, 566º, 570º do Código Civil e artigo 41º do DL 291/2007.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se deve ser alterada a decisão de julgar não provados os factos dos pontos e) a k).
ii) Se está provado que a manobra do condutor do veículo do autor foi uma manobra de recurso forçada pelo despiste do veículo que seguia à sua frente.
iii) Se a ré é responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor.
iv) Em quanto deve ser fixada a indemnização dos danos no veículo – custo da reparação ou valor venal.
v) Se existem elementos para fixar indemnização pelo dano da privação do uso do veículo.

III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente impugna a decisão do tribunal recorrido de julgar não provados os seguintes factos que pretende sejam julgados provados:
«e) ao assistir ao despiste do TD, o condutor do XB decidiu accionar os órgãos de travagem deste;
f) ao mesmo tempo que mudou de direcção para a esquerda.
g) Com esta sucessão de manobras, o condutor do XB acabou por perder o controlo deste;
h) que passou a circular desgovernado em direcção ao separador central.
i) Perante a possibilidade eminente de embate neste, e como manobra de recurso, o condutor do XB tornou a mudar de direcção, desta feita, para a direita, completando assim um “S”;
j) altura em que o mesmo perdeu definitivamente o controle sobre o XB;
k) circulando desgovernado em direcção ao talude existente fora da faixa de rodagem, do lado direito, que subiu, após o que se imobilizou»
O fundamento da impugnação é, curiosamente, o mesmo depoimento que o tribunal recorrido utilizou para motivar a sua decisão, mais concretamente o depoimento do condutor do veículo do autor, E.... A recorrente defende que a correcta interpretação das declarações deste condutor deve levar a que se considerem provados também estes factos por os mesmos reflectirem melhor a dinâmica dos veículos contada por este condutor.
Ouvida a gravação dos depoimentos deste condutor, do condutor do outro veículo e dos soldados da GNR que se deslocaram ao local, é fácil concluir que apenas o primeiro desses depoimentos é útil para a prova dos factos relativos à movimentação dos veículos e reacções dos respectivos condutores.
O condutor do outro veículo praticamente não tem qualquer recordação do que se passou e as poucas afirmações que fez são hesitantes e inseguras e parecem fruto do que lhe terá sido contado posteriormente ou o depoente presumiu a partir do pouco de que se recorda. Acresce que seguindo este condutor à frente do veículo do autor lhe era de todo o modo absolutamente impossível conhecer e descrever a movimentação do veículo do autor enquanto o por si tripulado entrou em despiste e saiu para fora da faixa de rodagem!
Também os soldados da GNR que chegaram ao local depois de os veículos se terem imobilizado pelo que se limitaram a realizar medições e ouvir os condutores para elaborarem as participações que elaboraram – duas por não ter havido contacto entre os veículos –, razão pela qual mais que os seus depoimentos valem as respectivas participações, as quais não mencionam a existência de vestígios ou rastos de travagem na faixa de rodagem que ajudassem a compreender a movimentação dos veículos.
O único meio de prova é assim o do condutor do veículo do autor. Trata-se de um meio de prova que possui características que não podem ser ignoradas pelo tribunal e que condicionam a avaliação do respectivo valor probatório. Referimo-nos ao facto de se tratar do filho do autor, e, segundo os dados da participação da GNR, de um jovem que tinha acabado de fazer 20 anos e que tinha carta de condução há pouco mais de um ano.
Tais características revelam, por um lado, o interesse do depoente na versão que conta e, por outro lado, a sua pouca experiência na condução automóvel. É certo que na avaliação da prova não se pode descurar que não há - e não tinha de haver - outros meios de prova a que o autor pudesse recorrer para fazer a demonstração dos fundamentos da acção, pelo que a relação paternal entre o condutor e o autor não pode justificar sem mais a desvalorização total desse meio de prova.
Como devem então ser decididos os factos objecto da impugnação?
1. Alíneas e) e f): «Ao assistir ao despiste do TD, o condutor do XB decidiu accionar os órgãos de travagem deste ao mesmo tempo que mudou de direcção para a esquerda
Foi julgado provado nos pontos 15) e 16) que o condutor do XB accionou o sistema de travagem do seu veículo e desviou-se para a via da esquerda. Não há pois nenhuma razão para que os mesmos factos – a travagem e o desvio da direcção – fossem, em simultâneo, julgados provados e não provados.
Quanto à travagem, as partes alegaram ambas que o condutor travou mas, em rigor, o que o depoente afirmou foi «não me recordo se travei». É, no entanto, uma afirmação inverosímil porque se o condutor afirma ter pretendido de imediato evitar um embate o mais provável era que essa manobra compreendesse uma travagem brusca (e capaz de colocar em risco a estabilidade do próprio veículo).
Como os factos foram já julgados provados, o que há agora que fazer é afinal eliminá-los do elenco dos não provados, o que aqui se decide, sem prejuízo do que mais adiante se verá.
2. Alíneas g) e h): «com esta sucessão de manobras, o condutor do XB acabou por perder o controlo deste que passou a circular desgovernado em direcção ao separador central?»
Foi julgado provado no ponto 17 que «acto contínuo, e para evitar o embate no separador central, virou para a direita …». Por outras palavras, foi julgado provado que na sequência da travagem e mudança de direcção para a esquerda o veículo XB ficou em risco de embater no separador central. O facto não explica porquê. Essa explicação foi dada pelo condutor: ele começou a perder o controlo do veículo.
Deve por isso alterar-se a decisão proferida pela 1.ª instância, dando-se ao facto do ponto 17 dos factos provados a seguinte nova redacção destinada a absorver o que não se havia julgado provado:
«Em virtude das manobras que realizou, o condutor do veículo XB começou a perder o controlo do veículo e este dirigiu-se para o separador central».
3. Alíneas i) e j): «perante a possibilidade eminente de embate neste [no separador central], e como manobra de recurso, o condutor do XB tornou a mudar de direcção, desta feita, para a direita, e perdeu definitivamente o controle sobre o XB?»
Este facto foi afirmado pelo condutor e deve ser julgado provado. Acrescenta-se pois à matéria de facto um novo ponto (17.ºA) com a seguinte redacção:
«Para evitar o eminente embate contra o separador central, o condutor do XB guinou a direcção para a direita e perdeu em definitivo o controlo do veículo
4. Alínea k): «[o XB passou a circular] desgovernado em direcção ao talude existente fora da faixa de rodagem, do lado direito, que subiu, após o que se imobilizou?»
Já estava julgado provado que na sequência das manobras do seu condutor, o XB cruzou a hemi-faixa de rodagem (parte final do ponto 17) e acabou por ficar imobilizado no talude do lado direito (18). A única alteração que pode resultar do alegado na referida alínea é assim a menção de que tal sucedeu com o veículo a movimentar-se descontrolado, em despiste. Isso foi afirmado pelo respectivo condutor e deve ter-se como provado por ser a única explicação possível (se o condutor tivesse o controlo do veículo não quereria que o mesmo fosse para a berma e talude e aí sofresse danos).
Por conseguinte, a redacção do facto do ponto 18 deve passar a ser a seguinte:
«O XB passou então a movimentar-se descontrolado, em despiste, para a direita, atravessou a faixa de rodagem e depois a berma e foi-se imobilizar no talude do lado direito

Existe um aspecto em que é necessário ir mais longe na análise.
Referimo-nos ao facto de a recorrente ter alegado e pretender agora no recurso que se julgue provado que a atitude do condutor do XB de empreender a mudança de direcção para a esquerda (na sequência da qual o seu veículo se despista) foi uma decisão deste - alínea e) dos factos não provados -.
Embora isso não transpareça exactamente da alínea e) que pretende que seja julgada provada, a «decisão» surge neste contexto como oposição a «reacção», isto é, como expressão de uma escolha voluntária entre as opções disponíveis e não como resposta a uma necessidade que não deixava alternativa.
Por outras palavras, o autor alegou que o condutor do seu veículo foi obrigado a encetar essa manobra como manobra de recurso (leia-se, embora tal não seja explicado, como forma de tentar evitar o embate dos veículos que se não fosse isso ocorreria), enquanto a ré alegou que o condutor realizou essa manobra por seu livre arbítrio, já que a posição e o movimento do outro veículo não o obrigava a isso, sendo as consequências da manobra que escolheu fazer totalmente imputáveis à sua escolha e perícia.
Esta situação suscita uma dificuldade: a recorrente impugnou a decisão de julgar não provado o facto da alínea e) – onde está que foi uma decisão (escolha voluntária) -, não impugnou a decisão de julgar provado o facto do ponto 15 – onde está que foi uma manobra de recurso para evitar o embate dos veículos (uma necessidade) -. Quid iuris?
A matéria de facto não pode conter factos contraditórios. Havendo contradição, a Relação tem a obrigação de ao alterar a decisão sobre a matéria de facto rever todos os pontos onde houver contradição e alterar a decisão proferida sobre eles na medida do necessário para evitar ou eliminar a contradição.
Segundo prescreve o artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, essa contradição deve ser eliminada pela Relação mesmo oficiosamente, isto é, mesmo que os pontos de facto atingidos pela contradição não estejam incluídos no objecto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Para tanto, basta que a Relação tenha à sua disposição a totalidade dos meios de prova que permitam a alteração; caso contrário, anulará a decisão.
No caso essa condição está verificada, pelo que caso se venha a apurar que o facto objecto da impugnação da recorrente deve ser julgar provado, estará criada a contradição com o facto do ponto 15, cuja decisão deve assim ser igualmente reapreciada para sanar a contradição gerada.
Na acção descreve-se um acontecimento em que um veículo que circula à frente se despista, passando da faixa da esquerda para a faixa da direita da auto-estrada e depois para a respectiva berma e talude, e o condutor de outro veículo que circula atrás reage à movimentação do da frente, acabando também ele por perder o controlo do veículo e se despistar, não havendo em momento algum colisão entre os veículos, terminando o primeiro imobilizado à frente e o segundo imobilizado atrás.
Num acontecimento destes a questão essencial para a determinação da responsabilidade dos condutores é assim a relação causal entre a movimentação do primeiro veículo e a reacção do condutor do segundo.
Em tese, a movimentação do primeiro pode ser inesperada mas desenvolver-se a uma distância e com trajectória e velocidade tais que permitam ao condutor que circula atrás, respeitando a velocidade adequada à via e às condições, seguindo normalmente atento e possuindo a aptidão apropriada, evitar a colisão. Ao contrário, a movimentação do primeiro pode ocorrer em condições tais que qualquer condutor teria a reacção defensiva de forçar a deslocação da trajectória do seu veículo de um modo que conduz a que perca o controlo do seu veículo.
Por isso, para imputar a culpa ao condutor do veículo da frente torna-se fundamental conhecer a distância os veículos se encontravam quando o primeiro perdeu estabilidade, a direcção da trajectória do veículo da frente (com um sentido constante – v.g. da esquerda para a direita – ou com sentidos diversos – v.g. em zizezague -), as restantes condições da via (se havia outros veículos perto ou a estrada estava livre), etc.
Na petição inicial o autor alegou que o veículo da frente entrou em despiste, cruzou a hemi-faixa de rodagem onde seguia o veículo do autor, invadindo-a, e cortando a linha de trânsito deste, perante o que o condutor do veículo de trás numa manobra de recurso e para evitar o embate no veículo da frente travou, desviou-se para a via da esquerda e, acto contínuo, para evitar o embate no separador central, virou para a direita, cruzou a hemi-faixa de rodagem e foi imobilizar-se no talude do lado direito onde já se encontrava o outro veículo.
Como se constata facilmente, esta alegação deixa de fora aspectos decisivos, substituindo-os pela alegação conclusiva de se ter tratado de uma manobra de recurso. Não foi alegada a distância que separava os veículos quando o da frente se despistou. Não foi alegado que este tenha feito sucessivas trajectórias com direcções diferentes em plena faixa de rodagem.
Diz-se que ele cruzou a faixa da direita, mas depois revela-se que o veículo prosseguiu a marcha desgovernada para o talude, o que implica que ele deixou a faixa de rodagem totalmente livre para o veículo que circulava atrás.
Refere-se que o condutor do veículo do autor se desviou para a esquerda mas não se explica porque perdeu ele o controlo do veículo quando a faixa da esquerda estava totalmente livre (o outro veículo já estava na faixa da direita) e não consta que houvesse outros veículos a circular que impedissem o veículo do autor de passar da faixa da direita para a faixa da esquerda em condições de segurança quando, alegadamente, circulava a cerca de 90km/h.
No seu depoimento o condutor incorreu no mesmo erro. Limitou-se a dizer que realizou uma manobra de recurso para evitar bater no outro veículo, esquecendo que afirmou em simultâneo que este veículo circulava a velocidade superior à sua[1], que a distância entre os veículos seria pouco superior à da sala de audiências (distância que na motivação da decisão a Mma. Juíza a quo quantificou em cerca de 20 metros por conhecimento directo do comprimento da sala)[2] e que o veículo circulava na hemi-faixa da esquerda quando se despistou na sequência do que começou a deslocar-se para a direita, atravessando a totalidade da faixa de rodagem e da berma. Nesse contexto, o veículo da frente abandonou a hemi-faixa da esquerda mas não ficou a obstruir a hemi-faixa da direita, cruzou-a, atravessou-a e saiu para a berma e depois para o talude.
Era necessário conhecer as razões objectivas que obrigavam à realização da manobra de mudança para a hemi-faixa da esquerda e, sobretudo, as razões objectivas pelas quais a realização de tal manobra impediu o condutor do veículo do autor de manter o controlo do seu veículo, sendo certo que em inúmeras condições e situações os veículos que circulam numa auto-estrada mudam de hemi-faixa (da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita) sem perderem o controlo do veículo e este ficar na iminência de colidir com os separadores centrais (como referiu o depoente para justificar que depois tivesse feito outra guinada no volante para a direita e perdido em definitivo o controlo do veículo).
O depoente não forneceu essas informações ou explicações, refugiando-se na afirmação de que a sua intenção foi evitar a colisão – o que não se coloca em dúvida já que não havia outro motivo para a manobra – quando o que importava conhecer não era a sua intenção, mas as condições objectivas que tornavam necessária a manobra e a rapidez e precipitação com que a mesma foi feita, as quais permitiriam estabelecer o nexo de causalidade entre o movimento do veículo da frente e a resolução de actuação do condutor do veículo de trás.
Segundo o depoente, o veículo da frente circulava «na via mais à esquerda» e de repente o seu condutor «perde o controlo» do veículo, o qual começou a deslocar-se da esquerda para a direita e «cruzou a minha faixa», passando «à minha frente». Isto significa que o veículo não se imobilizou na faixa da direita, não passou a ocupá-la, atravessou-a em movimento com destino à berma.
Afirmou ainda o depoente de seguida que tentou «evitar o embate contra o outro veículo» e para o efeito «desacelerei» e «tentei fugir para a faixa da esquerda», ao fazer isso «começo a perder também o controlo do meu veículo» e «para evitar o embate contra o separador central curvo para o outro lado e despisto-me também para o lado direito, para a berma e para o talude».
Não foram pois alegados ou referidos no depoimento do condutor as circunstâncias de facto necessárias para determinar se se tratou realmente de uma manobra de recurso (manobra necessária para evitar um mal maior) ou apenas de uma opção do condutor do veículo de trás que correu mal.
Se o veículo que seguia à frente circulava a uma velocidade superior ao de trás, o condutor deste dispunha de algum tempo de reacção, que seria maior ou menor consoante a distância a que estava este veículo quando o da frente entrou em despiste (a velocidade não nos dá a distância mas permite presumir que ela existia).
Não vindo alegado que o veículo da frente andou aos ziguezagues pela faixa de rodagem mas sim que teve uma trajectória definida da esquerda para a direita no sentido da berma e depois para o talude confinante com a berma, em condições normais, ao sair da hemi-faixa onde circulava quando entrou em despiste deixou essa hemi-faixa livre para os restantes condutores que circulavam atrás. O mesmo sucederia, afinal, se em vez de se despistar o veículo tivesse retomado normalmente a hemi-faixa da direita por onde devia circular, situação em que ocuparia a hemi-faixa onde circulava o veículo do autor sem que por esse facto o condutor pudesse argumentar que foi obrigado a mudar para a esquerda (lá está: a não ser que essa manobra fosse realizada a tão curta distância que tivesse criado o risco de colisão entre os veículos, o que é improvável se o da frente continua a uma velocidade superior – em cerca de 30 km/h – ao de trás).
Nesse contexto, parece que nada impedia o condutor do veículo de trás de mudar de direcção para a hemi-faixa da esquerda e prosseguir a sua marcha nesta hemi-faixa que estava livre (não foi alegado que no momento e local houvessem outros veículos em movimento e com cuja posição houvesse que interagir na manobra).
Porque entrou então o veículo do autor de imediato em perda de controlo, ao ponto de criar o risco de colisão com os separadores centrais, levando o condutor a virar de novo para a direita e perder por completo o controlo do seu veículo? O mais provável é que tenha sido porque este não foi suficientemente hábil (recordamos a sua pouca experiência na condução automóvel) na realização dessa manobra e a realizou de forma brusca e desadequada às características do veículo (recordamos que segundo ele assim que guinou para a esquerda começou logo a perder o controlo do veículo).
O depoimento do condutor não consegue, pelas razões, já apontadas reverter esta probabilidade decorrente das regras da experiência que a escassez de elementos permite invocar. Para tal constatação acrescem ainda duas razões relacionadas com a participação do acidente junta aos autos.
Em primeiro lugar, dessa participação não consta a existência no local de quaisquer rastos de travagem ou vestígios de realização de uma manobra súbita. Não é um elemento muito importante porque a estrada estava molhada (embora não estivesse a chover, segundo o condutor) e nessas condições é difícil detectar os rastos de travagem. Porém, essa ausência não permite encontrar qualquer corroboração física da alegada necessidade de uma manobra de recurso.
Em segundo lugar, constam da participação as declarações que o soldado da GNR colheu do condutor na altura do evento em discussão. E nessas declarações o condutor afirma que o veículo que seguia à sua frente se despistou e «ao ver o acidente travei, perdendo o controlo do meu veículo, tendo-me despistado também». Por outras palavras, este condutor não declarou na altura que foi obrigado a travar, que travou por necessidade de evitar colidir com o outro veículo, tal como não declarou ter feito as manobras de mudança da direcção que na acção são referidas (no seu depoimento em juízo, por outro lado, não confirmou a travagem que declarou à GNR). Trata-se igualmente de um elemento probatório a que não pode ser dada muita importância, atentas as condições e circunstâncias em que são colhidas estas declarações e depois reduzidas a escrito na participação policial e que podem conduzir a erros, lapsos, incorrecções ou insuficiências. Todavia, tal como o anterior, é mais um elemento probatório que não permite, pelo contrário, reverter a insuficiência do depoimento do condutor (e da alegação).
Por todas essas razões, concluímos que não foi feita prova de que o condutor do veículo do autor foi obrigado a travar e mudar para a hemi-faixa da esquerda para evitar a colisão com o outro veículo ou de que foi por essa necessidade que as suas manobras colocaram em risco a estabilidade do veículo por si conduzido e causaram o seu despiste. Em consequência, decide-se julgar provada a manobra – que pressupõe a decisão de a realizar – mas não que a mesma tenha constituído uma manobra de recurso.
Os factos dos pontos 15 e 16 passarão assim a ter a seguinte redacção:
«15) Ao ver o despiste do TD, o condutor do XB decidiu travar o veículo por si conduzido…
16) … e desviar-se para a hemi-faixa da esquerda.»

IV. Os factos:
Em conformidade com o supra exposto os factos definitivamente provados são os seguintes:
1) Em 22.11. 2014, pelas 16,15 horas, os veículos ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-XB, marca “Toyota”, propriedade do A e conduzido por E... (doravante “XB”), e o ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-TD, marca “Alfa Romeo”, propriedade de F..., conduzido por D... (doravante “TD”),
2) …circulavam na A29, na freguesia ..., concelho de Ovar, no sentido Porto-Aveiro;
3) Naquele dia e hora, estava bom tempo, embora o piso estivesse molhado.
4) Sensivelmente ao km 31,150, a hemi-faixa de rodagem está dividida em 2 vias de circulação, atento o sentido de ambos os veículos.
5) O veículo XB [seguia] na via da direita,
6) … a uma velocidade de cerca de 90km/h.
7) O TD seguia pela via da esquerda,
8) … a uma velocidade não apurada, mas superior à do XB.
9) A dada altura, sensivelmente ao km 31,150, da referida auto-estrada, e ao descrever uma curva à direita,
10) o TD, inopinada e repentinamente, entrou em despiste,
11) … dirigindo-se para o seu lado direito,
12) … tendo, após cruzar a via da direita, saído da faixa de rodagem,
13) … e embatido num talude ali existente, aí se imobilizando.
14) Aquando do referido de 9) a 12), o TD cortou a linha de trânsito por onde circulava o XB.
15) Ao ver o despiste do TD, o condutor do XB decidiu travar o veículo por si conduzido…
16) … e desviar-se para a hemi-faixa da esquerda.
17) Em virtude das manobras que realizou, o condutor do veículo XB começou a perder o controlo do veículo e este dirigiu-se para o separador central.
17-A) Para evitar o eminente embate contra o separador central, o condutor do XB guinou a direcção para a direita e perdeu em definitivo o controlo do veículo.
18) O XB passou então a movimentar-se descontrolado, em despiste, para a direita, atravessou a faixa de rodagem e depois a berma e foi-se imobilizar no talude do lado direito.
19) … a escassos metros atrás do TD.
20) No local do acidente, a velocidade máxima permitida é de 100Km/h.
21) O condutor do TD conduzia-o com autorização da sua proprietária, a citada F....
22) Em consequência do acidente, o veículo XB sofreu danos cuja reparação ascende, pelo menos, à quantia de € 4.964,90,
23) … e ficou impossibilitado de circular.
24) Até à data, o XB não foi reparado.
25) No XB o A. fazia todas as suas deslocações, nomeadamente no âmbito da sua vida particular e profissional, de casa para o trabalho e vice-versa, em passeio, etc..
26) Um veículo com as mesmas características do XB, à data de 22.11.2014, custava cerca de €4.000,00.
27) Desde a data do acidente, o A. teve de se socorrer de transportes alternativos, nomeadamente, recorrendo à boleia de amigos e de familiares, e utilizando transportes públicos.
28) À data do acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação do TD encontrava-se transferida para a R., mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ........, válido e eficaz.
29) Aquando do referido em 9), o TD começou a perder a aderência nos pneumáticos traseiros, perdendo o seu condutor, por isso, o controlo sobre o mesmo e entrando em despiste.
30) Os veículos ficaram imobilizados no referido talude, a cerca de 30 metros um do outro, não chegando sequer a tocar-se.
31) O condutor do XB conduzia-o com autorização do seu proprietário, o aqui A.
32) O valor do XB após o acidente (salvado) ascende a €600,00.

V. matéria de Direito:
Em regra, quem sofre um prejuízo no seu próprio património suporta o dano que daí resulta. A imputação a um terceiro da obrigação de suportar esse prejuízo, ressarcindo o dano, é a excepção que depende de requisitos específicos. A função do instituto da responsabilidade civil é precisamente essa, a de distinguir entre os danos que devem ser suportados pelo lesado e os danos que devem ser suportados por terceiros atenta a sua relação com a verificação dos danos e as características da sua actuação.
No caso, uma vez que os veículos automóveis não colidiram entre si, está excluída a possibilidade de fazer apelo ao artigo 506.º do Código Civil, relativo à repartição dos danos em caso de colisão de veículos, para atribuir à ré, na qualidade de seguradora para a qual estava transferida a responsabilidade civil pela circulação do veículo TD, a responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo veículo XB, do autor, e a medida dessa responsabilidade.
Outrossim, porque não é possível afirmar que o condutor do veículo TD cometeu qualquer infracção rodoviária que faça presumir a culpa no despiste deste veículo, também não é possível responsabilizá-lo a título de responsabilidade subjectiva ou por culpa, nos termos do artigo 483.º do mesmo diploma. O autor alegou é certo que o outro condutor circulava em excesso de velocidade mas isso não se provou. O atravessamento da hemi-faixa da direita onde circulava o autor também não é em si mesma uma fracção porque qualquer das duas faixas de rodagem se destina à circulação rodoviária e se esse veículo circulava à frente podia – e devia – passar a circular precisamente nessa hemi-faixa.
Resta-nos então a possibilidade da responsabilidade pelo risco prevista no artigo 503.º do Código Civil. Nos termos desta norma, aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
Entre estes riscos contam-se, naturalmente, os riscos da perda de controlo do veículo por parte do seu condutor, seja por razões inerentes ao factor humano – imperícia, descuido, falha, etc. – seja por razões inerentes ao factor mecânico – avaria, desajustamento do veículo às condições do terreno, etc. –. Por isso, o despiste de um veículo ao circular numa auto-estrada está compreendido nos riscos próprios do veículo, qualquer que seja a causa que lhe dá origem – e sem prejuízo de essa causa poder excluir a responsabilidade pelo risco –.
Todavia, para se afirmar a responsabilidade pelo risco não basta afirmar que estamos perante um risco próprio do veículo, é ainda necessário que se demonstrem os restantes pressupostos da responsabilidade civil, com excepção da culpa de que a responsabilidade pelo risco prescinde e substitui: o facto voluntário, a ilicitude do facto, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso, o pressuposto que está em discussão e sem o qual não é possível imputar à ré o dever de indemnização é o do nexo de causalidade.
Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, a obrigação de indemnização a cargo do autor do facto ilícito culposo compreende apenas os danos que forem resultantes do evento lesivo. O artigo 563.º do mesmo diploma concretiza que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Por detrás desta simplicidade, as expressões da lei (ser resultado de; que provavelmente não teriam ocorrido) escondem a imensa e difícil questão da causalidade.
Ninguém aceita que as citadas normas legais tenham em vista a causalidade natural, isto é, que a causa se possa afirmar por aplicação de critérios puramente naturalísticos ou relativos às regras de sucessão dos acontecimentos próprios da natureza das coisas. A mera simultaneidade ou sequência espácio-temporal não é suficiente para se afirmar a existência de uma relação de causa efeito entre um evento e uma consequência para outrem.
A regra legal é antes de mais uma regra de actuação humana ou que pretende funcionar como tal, daí que nos elementos da sua previsão deva estar reflectida a lógica das actuações humanas, ponderando, designadamente, aquilo com que a pessoa, no caso concreto, pode ou deve contar, porque é esse factor (humano) espoletador dos acontecimentos e suas consequências que a regra estigmatiza e torna responsável (por que danos, é a questão a que responde a teoria da causalidade).
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 5.ª edição, Vol. I, pág. 845, nota 1, citando as teses de Trimarchi aparentemente divergentes da teoria da causalidade adequada, acentua que «verdadeiramente útil e exacta é a ideia de que a causalidade (jurídica) se não resolve forçosamente por uma fórmula unitária, válida para todos os casos. A formulação que mais convém à responsabilidade baseada nos factos ilícitos pode, com efeito, não ser a que melhor se adapta à responsabilidade baseada no risco ou na prática dos factos ilícitos danosos
Defendendo que a teoria da causalidade adequada é o “rumo certo” para a resolução da causa (jurídica) relevante este autor (loc. cit., pág. 846) ensina que «O pensamento fundamental da teoria é que, para impor a alguém a obrigação de reparar o danos sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (s.q.n.) do dano; é necessário ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja uma causa adequada do dano. Há que escolher, entre os antecedentes históricos do dano, aquele que, segundo o curso normal das coisas, se pode considerar apto para o produzir, afastando aqueles que só por virtude de circunstâncias extraordinárias o possam ter determinado. Que o facto seja condição do dano será requisito necessário; mas não é requisito suficiente, para que possa ser considerado como causa desse dano. (…) Tudo está, entretanto, em saber quando é que um facto pode, abstractamente considerado, ser apontado como causa de certo dano. (…)»
Este autor prossegue enunciando a formulação positiva (a relação de causalidade afirma-se quando de acordo com as regras da experiência e o devir normal das coisas o acto for de molde a provocar o dano, for um consequência normal, natural ou típica daquele) e a formulação negativa da causalidade adequada (a relação de causalidade é excluída quando o facto que actuou como condição do dano for em geral de todo em todo indiferente para a verificação do dano, o qual só sobreveio em virtude de circunstâncias excepcionais, anormais ou extraordinárias), e interroga-se sobre as circunstâncias que devem intervir na formulação do juízo de prognose sobre a capacidade do facto para em abstracto, de acordo com a sua natureza em geral, provocar um determinado dano (defendendo que as circunstâncias a incluir nesse juízo são apenas as circunstâncias reconhecíveis à data do facto por um observador experiente e ainda as circunstâncias efectivamente conhecidas pelo agente, ainda que ignoradas por outras pessoas), para depois afirmar o seguinte quanto à melhor formulação do conceito de causa adequada: “Em condições regulares, desprendendo-nos da natureza do evento constitutivo da responsabilidade, dir-se-ia que um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituam uma consequência normal, típica, provável dele. (…) Mas já não será assim relativamente aos casos … em que a obrigação de indemnização pressupõe um facto ilícito culposo do agente (quer se trate de responsabilidade aquiliana, quer se trate de responsabilidade contratual). Desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano, compreende-se a inversão do sentido normal dos acontecimentos. Já se justifica que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano. Esta inversão só deixa de ser razoável a partir do momento em que o facto ilícito se pode considerar de todo em todo indiferente na ordem natural das coisas, para a produção do dano registado. Só quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais …».
Afirmando que o nosso sistema jurídico optou definitivamente pela teoria da causalidade adequada, mas sem optar expressamente pela sua formulação positiva ou negativa, deixando essa tarefa ao julgador, e que quando a lesão procede de facto ilícito «a posição que, em princípio, deve reputar-se adoptada no nosso direito constituído” é a formulação negativa, este autor sistematiza assim os corolários da teoria da causalidade adequada: 1.º “para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano”; 2.º “para que um dano seja considerado como efeito adequado de certo facto, não é necessário que ele seja previsível para o autor desse facto. (…) Essencial é apenas que o facto constituía, em relação a estes [os danos subsequentes ao facto], uma causa (objectivamente) adequada.” 3.º “a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. É esse processo concreto que há-de caber na aptidão geral ou abstracta do facto para produzir o dano
Para Pessoa Jorge, in Direito das Obrigações, 1976, pág. 569, “para saber se certo prejuízo decorre do acto ilícito em termos de ser indemnizável pelo autor deste, é necessário averiguar. 1.º se o acto ilícito foi conditio sine qua non do prejuízo, e não o será se estes se tivesse dado mesmo sem aquele; Se o acto ilícito é, abstractamente considerado, causa adequada do prejuízo; 3.º Se, concretamente, o prejuízo resultou do acto ilícito pelo processo ou forma que atribui a este abstractamente a natureza de causa adequada”.
Como vimos, não houve colisão entre os veículos, os quais circulavam um à frente do outro, despistaram-se ambos em momentos diferentes e acabaram no talude da auto-estrada, separados um do outro, sendo os respectivos danos decorrentes exclusivamente da movimentação que cada um fez e não de um contacto entre ambos.
Numa situação destas, a afirmação do nexo de causalidade pressupõe que se possa estabelecer uma relação entre a movimentação do veículo que primeiramente se despistou e a movimentação do outro, que se possa afirmar que a movimentação dum foi espoletada pela movimentação do outro mas, sobretudo, que se possa dizer que a movimentação do veículo da frente criou uma situação de facto em função da qual qualquer condutor normalmente diligente, cuidadoso e apto teria realizado as manobras que o condutor concreto realizou com o veículo de trás e cuja execução colocaria normalmente em risco a estabilidade do próprio veículo podendo desencadear o seu despiste.
Não é suficiente a constatação de que o condutor que seguia atrás só conduziu da forma que fez por ter visto o despiste do veículo da frente, de maneira que, numa perspectiva puramente naturalística, se esse despiste não tivesse ocorrido ele continuaria a sua marcha a direito.
É necessário apurar que o condutor que seguia atrás foi confrontado com uma situação na qual qualquer condutor normalmente cuidadoso e apto teria actuado como ele actuou, bem como que a perda de estabilidade do seu veículo que se seguiu de imediato foi o resultado da necessidade de realizar essas manobras tal qual ele as realizou.
Nenhuma destas situações se provou. Apenas resultou que o condutor de trás reagiu à dinâmica do outro veículo travando e desviando para a esquerda e que imediatamente a seguir começou a perder o controlo do seu veículo, após o que virou de novo para a direita e não mais retomou o controlo do veículo. Não resultou nem que tivesse necessidade de fazer essas manobras ou que essa fosse a alternativa que seria comummente aceite, nem que um condutor normal actuasse da mesma forma, nem que a perda de controlo do seu veículo se tivesse devido a causas alheias ao próprio condutor e sido tornada inevitável pela necessidade das manobras que realizou.
Não sendo possível afirmar a existência de um nexo de causalidade adequada entre a condução do condutor do veículo da frente e a condução do veículo de trás é impossível atribuir àquele condutor a responsabilidade pelo risco pelos danos sofridos por este veículo na sequência do respectivo despiste.
A ré deve pois ser absolvida do pedido, procedendo o recurso. Tal conclusão prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso para a hipótese de se atribuir responsabilidade à recorrente, pelo que as mesmas não serão conhecidas.

VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida, absolvendo a ré do pedido.
Custas do recurso pelo recorrido.

Porto, 27 de Setembro de 2018.
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
____________
[1] O filho do autor quantificou a diferença em cerca de 30 km/hora a mais, dizendo que o outro veículo circulava a cerca de 110/120km e o por si conduzido a cerca de 80/90km, velocidade que num momento posterior do seu depoimento já disse ser de 90/100km, numa demonstração clara de que, como era expectável que sucedesse, em rigor ele não sabe mesmo qual era a velocidade dos veículos para além de que a do outro era superior à do seu (os valores alegados estão, sintomaticamente, ajustados ao limite – 100 – no local: o outro veículo seguia em excesso de velocidade; o filho do autor respeitava o limite da velocidade).
[2] O depoente afirmou que o veículo da frente atravessou a faixa de rodagem e a berma e saiu para a terra acabando no talude, deixando a ideia de que viu isso. Se assim foi, entre os veículos tinha de haver uma boa distância (espacial e/ou temporal) porque, em princípio, se depois de ele ter guinado primeiro para a esquerda e depois de imediato para a direita para evitar colidir com os rails centrais, o veículo conduzido pelo depoente entrou igualmente em despiste, a partir desse momento o depoente não tinha mais condições para estar a ver ou estar concentrado a ver o que nesse momento se estava a passar com o outro veículo!