Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1701/15.4T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
INTERVENIENTE PRINCIPAL
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RP201706261701/15.4T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 06/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS, N.º 654, FLS.363-366)
Área Temática: .
Sumário: I - O interveniente principal assume uma posição processual que lhe atribui direitos idênticos aos da parte principal e, como associado ao réu, oferecendo articulado próprio, pode deduzir reconvenção.
II - Face ao disposto no artigo 266º, nº 2, alínea c), do C.P.C., a compensação de créditos terá sempre de ser operada por via da reconvenção, independentemente do valor dos créditos a compensar.
III - A habilitação do cessionário apenas é possível se este substituir integralmente o autor primitivo. Não é possível a habilitação do cessionário da qual resulte a manutenção na acção do primitivo autor, ainda que para apreciação de parte do seu objeto.
IV - A substituição da autora pela cessionária, em virtude da habilitação desta, inviabilizaria a apreciação do pedido reconvencional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1701/15.4T8PVZ-A.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Por apenso à ação com processo comum de declaração em que é autora A. B…, Unipessoal, Lda., e ré o Banco C…, S.A., sendo também interveniente D…, S.A., veio E…, Lda., requerer o presente incidente de habilitação de cessionário, pedindo que seja devidamente habilitada a intervir nos autos, em substituição da autora, na qualidade de cessionária e credora.

A fundamentar a requerida habilitação, alega que, por contrato de cessão de créditos, celebrado em 21 de abril de 2016, a A. B… Unipessoal, Lda., cedeu à E…, Lda., todos os créditos que detinha sobre a D…, S.A.
Tal cessão foi notificada à D…, S.A., em 2.6.2016, passando a aqui requerente, após a cessão e notificação, a ser a actual titular do crédito (artigo 577º e seguintes do C.C.).
A referida cessão incluiu a transmissão para a E…, Lda., de todos os direitos, garantias e direitos acessórios inerentes ao crédito sobre a D…, S.A., onde se inclui, naturalmente, a garantia bancária emitida pela ré e cujo pagamento é peticionado na presente acção, por via da falta de pagamento das faturas: nº ………, de 5.6.2015, no valor de €97.642,60, vencida no dia 3.9.2015; nº ………., de 28.7.2015, no valor de €12.830,92, vencida no dia 26.10.2015.

A interveniente principal, D…, S.A., contestou a habilitação, quanto aos factos alegados e relativos à cedência de créditos, bem como quanto à sua admissibilidade.

Foi proferida decisão a julgar improcedente o incidente de habilitação de cessionário, dado que, sendo admissível o pedido reconvencional deduzido pela interveniente principal, em data anterior, e tendo como demandada a autora, tal habilitação não podia admitir-se, ainda que se viesse a demonstrar a cedência do crédito.

Inconformada, a requerente E…, Lda., recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 260º, 262º, 266º, 316º, 317º, 318º, 319º e 320º, 356º, todos do C.P.C. e ainda 640º do C.C.
2. A decisão recorrida tem como base e pressuposto a decisão de admissão da reconvenção, que é decisão que a Mmª. Juiz a quo ainda não deu e não existe nos autos principais.
3. No C.P.C. de 2013, o legislador optou por circunscrever as hipóteses de intervenção principal suscitada pelo autor, aos casos de litisconsórcio, afastando assim as hipóteses de mera coligação (vide artigo 320º do C.P.C. de 95/96) do cardápio de possibilidades que o autor pode deitar mão para justificar a dedução do incidente.
4. O autor está assim impedido de utilizar o incidente de intervenção principal provocada para posteriormente demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única, ou quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou dependência (artigo 36º do C.P.C.).
5. As possibilidades de dedução do incidente de intervenção principal provocada pelo réu são agora ainda mais reduzidas do que face ao C.P.C. de 95/96. De facto, agora – e contrariamente ao que até aqui sucedia em que havia uma similitude de faculdades entre autor e réu, no que toca à dedução do incidente de intervenção principal provocada –, o réu, apenas pode deduzir intervenção principal provocada quando:
a. mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida (artigo 316º, nº 3, alínea a), do C.P.C.);
b. pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor (artigo 316º, nº 3, alínea b), do C.P.C.)
c. pretenda o reconhecimento e condenação do condevedor solidário na satisfação do seu direito de regresso, se tiver de realizar a totalidade da prestação, conforme lhe é pedido pelo autor (artigo 317º, nº1, do C.P.C.).
6. A especificidade da intervenção principal provocada suscitada pelo réu nos casos das alíneas a) e b) supra tem por natural desiderato auxiliar o réu na sua defesa.
7. Já na hipótese da alínea c), o chamamento visa não só a defesa conjunta, como também que o réu obtenha o reconhecimento do seu direito de regresso se for condenado a pagar a totalidade do débito, assim se munindo, desde logo, de um título executivo contra o chamado.
8. Mas, o certo é que a intervenção principal provocada suscitada pelo réu não tem, em nenhum dos casos supra citado, qualquer efeito na pretensão e pedido da autora. De facto, não é porque o réu congregou outros intervenientes processuais para o auxiliarem na sua defesa, que se pode impor potestativamente ao autor que o seu pedido passe a englobar e a ser deduzido contra os demais intervenientes, para além do réu!
9. Uma tal interpretação seria frontal violação da faculdade disposta no artigo 641º do C.C. e também um fatal atentado ao princípio do dispositivo, que o texto e espírito da lei não autoriza!
10. Por essa razão é que o artigo 320º do C.P.C. tem o cuidado de fixar qual o efeito da sentença em relação ao chamado, dizendo que “a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado,” assim remetendo para o artigo 619º do C.P.C. Querendo assim portanto significar que nas hipóteses do artigo 316º, nº 3, alíneas a) e b), não há qualquer condenação do interveniente, mas que este fica de futuro adstrito ao caso julgado da sentença.
11. Já nos casos do artigo 317º, nº 1, alínea c), supra mencionada) a sentença procede inclusivamente à condenação do interveniente no reembolso ao réu do que ao caso couber, em função do direito de regresso.
12. Mas, num caso e noutro, a relação do interveniente principal provocado, chamado pelo réu, está limitada ao réu e visa o escopo fundamental de auxiliar o mesmo na sua defesa.
13. E, por isso, toda a sua actividade processual há-de estar primordialmente vinculada e orientada para esse fim específico.
14. Estando esta intervenção principal provocada afirmada em função do auxílio do réu na sua defesa – como está -, mal se percebe que este interveniente tenha também o poder de lançar mão de um contra-ataque ao autor, através da reconvenção...
15. Permitir isso é deixar complexificar a demanda, permitindo a discussão de causa de pedir e de pedidos que, podendo até ter alguma conexão com a acção, são alheios à mesma, na forma como esta foi inicialmente configurada pelo autor na sua causa de pedir e pedido.
16. E note-se que este foi intuito que o legislador quis abertamente afastar do regime da intervenção principal provocada e por isso acabou até com a possibilidade do próprio autor requerer a intervenção principal provocada coligatória!
17. Ora, quanto mais não seja por maioria de razão, somos forçados a concluir que não assiste por isso ao interveniente principal provocado, chamado pelo réu, a possibilidade de deduzir reconvenção, que não tenha carácter de estrita defesa, como sucede nos casos da invocação da compensação nos termos do artigo 266º, nº 1, alínea c), do C.P.C.
18. Nesses casos, obviamente que o interveniente principal provocado pode e deve ser admitido a deduzir reconvenção, pois o seu pedido destina-se, no fundo, a paralisar o pedido do autor, sendo assim a melhor defesa em auxílio do réu.
19. Mas, já assim não será, por exemplo, quando a reconvenção se integre na segunda parte da alínea c) do artigo 266º, nº 1, do C.P.C., ou seja, quando o interveniente pretenda o reconhecimento de um crédito que excede o do autor, pretendendo assim obter a condenação no pagamento da diferença a seu favor.
20. É que, nestes casos, a intervenção do Interveniente ultrapassa o escopo da razão do seu chamamento e não está já este a coadjuvar o réu principal na sua defesa, estando antes a cuidar dos seus próprios interesses, através da dedução de pedido que apenas a este aproveita e que poderia e deveria ter deduzido em acção autónoma.
21. Ora, é exactamente isto que se passa nos presentes autos!
22. Nos presentes autos, a interveniente principal deduziu não apenas uma defesa, mas também um verdadeiro ataque à autora...
23. Ora, este pedido reconvencional, no que excede a mera compensação, não pode ser admitido, pois ultrapassa a finalidade de intervenção do interveniente principal provocado no processo, que é auxiliar a defesa do réu.
24. Para além de que, em bom rigor, não estão reunidos os pressupostos para que possa haver uma reconvenção, pois na verdade não está deduzido nesta acção qualquer pedido pela autora contra a interveniente!
25. O que sempre é pressuposto de um pedido reconvencional, por se tratar por definição de um contra-pedido!
26. Do que vimos de dizer, resulta que a circunstância de ter sido deduzido pedido reconvencional em nada obsta à habilitação do adquirente pelo cessionário.
27. Isto porque, a ser admitido o pedido reconvencional, ele está limitado à defesa do réu C… e, portanto, à invocação da compensação.
28. Compensação essa que afecta originariamente o crédito cedido à aqui recorrente e reclamado nos presentes autos.
29. E, portanto, esses direitos reconvencionais em nada são prejudicados pela substituição integral da autora primitiva do processo pela aqui recorrente!
30. Pois, a compensação pode continuar a ser oposta à aqui recorrente pela mesma forma e pela mesma razão que podia ser oposta à autora primitiva, atenta a cessão integral do crédito operada!

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Na decisão recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
1 – A requerente deduziu incidente de habilitação em 13/07/2016, alegando ter adquirido, em 21/04/2016, por cedência dos créditos que a sociedade B… Unipessoal, Lda., detinha sobre a sociedade D…, S.A., e que estão em discussão na acção principal.
2 – A acção principal foi intentada contra o Banco C… que deduziu incidente de intervenção principal provocada contra a sociedade D…, S.A., que, contestando, deduziu, em 02/05/2916, pedido reconvencional contra a então A. B… Unipessoal Lda., no qual pede a compensação de um seu crédito, no montante de €171.065,52, com a quantia que se vier a apurar ser devida por si à autora.
3 – A aqui requerida B… Unipessoal Lda., autora dos autos principais, foi dissolvida e liquidada em 02/05/2016.
4 – Por decisão proferida em 05/12/2016 foi determinada a substituição da autora pela sua única sócia, B… S.A., que deduziu já intervenção nos autos, nos termos do artigo 162º do C. das Sociedades Comerciais.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do novo C.P.C.
A questão a decidir consiste em saber se, tendo a interveniente principal deduzido pedido reconvencional na ação, o incidente de habilitação do cessionário é admissível.

I. Na acção principal, a interveniente D…, S.A., contestou e deduziu pedido reconvencional contra a então autora, A. B… Unipessoal Lda., no qual pede a compensação de um seu crédito, no montante de €171.065,52, com a quantia que se vier a apurar ser devida por si àquela.
O interveniente é admitido na acção como parte principal e, nesse sentido, não há outra forma de poder salvaguardar os seus direitos, senão a de lhe reconhecer a possibilidade de exercer todas as faculdades processuais que, por lei, lhe são conferidas, incluindo o motivo do não pagamento do crédito invocado pela autora, por via de um contracrédito que reclama sobre esta.
O interveniente principal assume uma posição processual que lhe atribui direitos idênticos aos da parte principal e, como associado ao réu, oferecendo articulado próprio, pode deduzir reconvenção.
A partir do momento em que vai a juízo fazer valer um direito seu, próprio, embora paralelo e coexistente com o de uma ou outra das partes primitivas, o interveniente, colocado do lado passivo, associado ao réu, pode deduzir pedido reconvencional contra o autor. cfr. artigos 312º e 319º, nº 3, do C.P.C.
A intervenção provocada tem como objetivo viabilizar que cada litígio deva ser solucionado num só processo por todos os intervenientes que nele tenham interesse direto e, nesse contexto, tendo presente o princípio da economia processual, deve ser admissível a formulação de pedido reconvencional pelo interveniente principal.
Além disso, ao contrário do que defende a apelante, face ao disposto no artigo 266º, nº 2, alínea c), do C.P.C., a compensação de créditos terá sempre de ser operada por via da reconvenção, independentemente do valor dos créditos a compensar.
Mas, a apelante E…, Lda., invocando um contrato de cessão de créditos, celebrado em 21 de abril de 2016, através do qual, a então autora, A. B… Unipessoal, Lda., lhe cedeu todos os créditos que detinha sobre a D…, S.A., pretende ser habilitada a intervir nos autos, em substituição da autora, na qualidade de cessionária e credora.
Recorde-se que a autora inicial, A. B… Unipessoal, Lda., foi dissolvida e liquidada e foi substituída pela sua única sócia, B…, S.A., que deduziu intervenção na acção, nos termos do artigo 162º do C.S.C.
A habilitação do cessionário apenas é possível se este substituir integralmente o autor primitivo. Não é possível a habilitação do cessionário da qual resulte a manutenção na acção do primitivo autor, ainda que para apreciação de parte do seu objeto.
O incidente de habilitação do cessionário permite apenas duas opções: «ou a cedente continua na lide, já que a habilitação decorrente da transmissão entre vivos da coisa ou direito litigioso é facultativa; ou a cessionária intervém na lide, através da habilitação e, nesse caso, substitui a cedente, adquirindo a posição processual in totum que a mesma tinha no pleito.
Não há a possibilidade de ambas permanecerem na lide, nem a possibilidade de se cindir o objeto da mesma, excluindo a apreciação do pedido reconvencional, por força da substituição do sujeito processual cedente pelo sujeito processual cessionário, quando este não adquiriu, na totalidade, por via do negócio transmissivo, a posição contratual do cedente». Acórdão da Relação do Porto, de 30.1.2012, in www.dgsi.pt.
Sendo o crédito que a interveniente principal D…, S.A., reclama sobre a autora decorrente do cumprimento de um contrato que apenas com aquela celebrou, não se vê como a cessionária/apelante poderia ser habilitada a intervir na ação, em substituição da mesma autora.
Daí que, como se refere na decisão recorrida, sendo admissível o pedido reconvencional deduzido pela interveniente principal, em data anterior, e tendo como demandada a autora, a habilitação não podia admitir-se, ainda que se viesse a demonstrar a cedência do crédito.
Na verdade, a substituição da autora pela cessionária, em virtude da habilitação desta, inviabilizaria a apreciação do pedido reconvencional.
Improcede, assim, o recurso da requerente E…, Lda.
Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Sumário:
I. O interveniente principal assume uma posição processual que lhe atribui direitos idênticos aos da parte principal e, como associado ao réu, oferecendo articulado próprio, pode deduzir reconvenção.
II. Face ao disposto no artigo 266º, nº 2, alínea c), do C.P.C., a compensação de créditos terá sempre de ser operada por via da reconvenção, independentemente do valor dos créditos a compensar.
III. A habilitação do cessionário apenas é possível se este substituir integralmente o autor primitivo. Não é possível a habilitação do cessionário da qual resulte a manutenção na acção do primitivo autor, ainda que para apreciação de parte do seu objeto.
IV. A substituição da autora pela cessionária, em virtude da habilitação desta, inviabilizaria a apreciação do pedido reconvencional.

Porto 26.6.2017
António de Carvalho
Carlos Gil
Carlos Querido