Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0420688
Nº Convencional: JTRP00036891
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: TESTAMENTO
HERDEIRO
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
Nº do Documento: RP200405180420688
Data do Acordão: 05/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - O testador pode indicar como beneficiários do testamento pessoas não concretamente determinadas.
II - Na pendência da condição, que se configura como suspensiva, os legatários podem acautelar o seu direito condicional, nomeadamente através do registo em seu nome dos seus bens imóveis legados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B....., casada, residente na Rua....., ....., ....., e C....., casada, residente na Rua....., ....., propuseram, no Tribunal Judicial de....., contra D....., residente na Rua....., ....., a presente acção declarativa de simples apreciação, sob a forma sumária, pedindo que se declare que:
1. As requerentes B..... e C..... são as únicas e actuais filhas da requerida D.....;
2. A requerida D....., atenta a respectiva idade e por razões biológicas e naturais está impedida de ter mais filhos;
3. As requerentes B..... e C..... são as únicas e legítimas legatárias da raiz ou nua propriedade dos imóveis de que foi titular E....., a que alude o testamento celebrado em 13 de Novembro de 1963, do ..º Cartório Notarial do....;
4. As requerentes B..... e C..... têm direito a registar a seu favor, junto da conservatória do registo predial de....., a raiz ou nua propriedade dos seguintes imóveis:
a) casa de habitação e jardim com a área de 190 m2, sita no lugar e freguesia de....., concelho de....., confrontando a norte com rua...., a sul com herdeiros de E....., a nascente com F.....e a poente com herdeiros de G....., descrita na conservatória do registo predial de..... sob o n.º 05/905, e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 10º;
b) casas térreas com quintal com a área de 350 m2, sita no lugar e freguesia de...., concelho de...., confrontando a norte com rua....., a sul com caminho, a nascente com F.....e a poente com G....., descrita na conservatória do registo predial de..... sob o n.º 01/505 e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o art. 11º.

A Ré foi citada mas não contestou.

Por despacho proferido em 04.04.2003, foram considerados confessados os factos articulados pelas autoras.

Cumpriu-se o disposto no art. 484º, n.º 2, do CPC.

Foi proferida a sentença que julgou procedentes os pedidos formulados nos pontos 1. e 2. do petitório, julgando, porém, improcedentes os pedidos enunciados em 3. e 4.

As Autoras interpuseram recurso dessa decisão, recurso esse que foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – v. fls. 48.

Nas alegações de recurso, as Autoras formulam as seguintes conclusões:
A) A lei admite a existência de disposições testamentárias a favor de parentes de terceiros, mesmo que indeterminados;
B) É possível a realização de inscrição predial, na competente descrição predial de imóveis, de disposição testamentária a favor de beneficiários indeterminados;
C) Nos presentes autos existe uma disposição;
D) Subjacente aos presentes autos encontra-se precisamente uma disposição testamentária a favor dos filhos da filha do testador, seus netos, que erma indeterminados na data da respectiva realização;
E) Da matéria de facto considerada assente nos autos resultou a determinação concreta dos beneficiários dessa disposição testamentária, ou seja, a determinação das filhas da filha do testador, por isso nesta deste, que o mesmo visou beneficiar através do legado instituído no competente testamento;
F) Ocorrendo essa determinação, por via judicial, é possível fazer constar do registo predial a correspondente factualidade, nos termos do disposto no art. 93º, n.º 3 do Código do Registo Predial, por argumento de maioria de razão.
G) Uma coisa é a condição estabelecida para se operar a transmissão estabelecida no testamento junto aos autos e coisa totalmente distinta é a possibilidade de fazer constar tais factos do registo predial competente;
H) Actualmente, do registo predial dos respectivos imóveis consta apenas a R. Dª D..... como titular do usufruto dos correspondentes imóveis, sendo esse registo predial OMISSO no que respeita à indicação dos titulares ou beneficiários da raiz ou nua propriedade dos mesmos.
I) Cabendo esse direito às aqui AA., têm estas todo o direito de reclamarem a respectiva inclusão no competente registo predial, uma vez comprovada judicialmente as suas qualidades de legatárias, com as condições constantes do testamento em presença.
J) A decisão recorrida violou o disposto no art. 93º, n.º 3, do Código do Registo Predial e artigo 2226º, n.º 1, do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.
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Como é sabido, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões das recorrentes – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC. Sendo assim, as questões a debater no recurso são…
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Está provado que:

1. A Ré D....., que também usa o nome de D....., é a única e universal herdeira de seu pai E....., falecido em 26 de Dezembro de 1963 – doc. fls. 5 a 9, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
2. O E..... foi dono e legítimo proprietário dos seguintes imóveis:
a) Casa de habitação e jardim com a área de 190 m2, sita no lugar e freguesia de...., concelho de....., confrontando a norte com rua....., a sul com herdeiros de E....., a nascente com F.....e a poente com herdeiros de G....., descrita na conservatória do registo predial de..... sob o n.º 05/905, e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 10º;
b) casas térreas com quintal com a área de 350 m2, sita no lugar e freguesia de....., concelho de....., confrontando a norte com rua...., a sul com caminho, a nascente com F..... e a poente com G....., descrita na conservatória do registo predial de..... sob o n.º 01/505 e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o art. 11º.
3. Em 13 de Novembro de 1963, o E..... realizou o seu testamento, nos termos do qual instituiu legatária do usufruto vitalício de todas as suas casas de habitação sua mulher, H....., que também usava o nome de H......
4. Nesse mesmo testamento o E..... instituiu legatários da raiz desses imóveis os seus netos, filhos da sua filha D....., que existirem ao falecimento desta – doc. fls. 10 a 13, cujo teor se dá aqui por transcrito.
5. A Ré D..... adquiriu, por compra, à referida H....., o usufruto que a esta foi legado, designadamente sobre os imóveis identificados em 2., fazendo inscrever essa aquisição em seu nome na respectiva conservatória – docs. fls. 14 a 19 e 20 a 26, cujos teores se dão aqui por reproduzidos.
6. As Autoras são as únicas e actuais filhas da Ré D..... – docs. fls. 27 a 29, que aqui se dão por reproduzidos.
7. A Ré D..... nasceu em 18 de Outubro de 1936 – doc. fls. 29.
8. Atenta a sua idade e por razões de natureza física e biológica, a Ré está impedida de dar à luz mais filhos.

O DIREITO

Testamento é o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles – art. 2179º, n.º 1, do CC.
O testador pode dispor a favor dos parentes ou de terceiro, sem designação de quais sejam. Nessa hipótese a disposição considera-se feita a favor dos que seriam chamados por lei à sucessão, na data da morte do testador, sendo a herança ou legado distribuído segundo as regras da sucessão legítima – art. 2226º, n.º 1. De igual se procederá, se forem designados como sucessores os herdeiros legítimos do testador ou de terceiro, ou certa categoria de parentes (p. ex. tios, sobrinhos, primos, etc.) – n.º 2 do citado artigo.
Desta norma de natureza interpretativa resulta com toda a evidência que o testador pode indicar como beneficiários (herdeiros os legatários) do testamento pessoas não concretamente determinadas.
Mas não é bem esta a questão que se nos coloca.
O testador legou a raiz da propriedade de determinados bens imóveis aos seus netos, filhos da sua filha D....., que existirem ao falecimento desta – v. 4. Este excerto do testamento não requer qualquer esforço de interpretação, sendo claro, através do próprio contexto declarativo, o propósito do testador – v. art. 2187º, n.º 1, do CC.: se, à data do falecimento da Ré existirem filhos desta, é-lhes deixada a raiz da propriedade dos bens imóveis referidos em 2.
Configura-se, assim, aquilo que se designa por aponibilidade de condição, que constitui um limitação acidental do conteúdo normal do negócio ou acto jurídico.
Na definição dada por Cabral da Moncada, “Lições de Direito Civil”, 4ª edição, pág. 674, condição é a cláusula acrescentada por acordo entre as partes ao conteúdo de um contrato, ou pelo autor de qualquer acto jurídico, mesmo unilateral, à sua declaração de vontade pela qual a eficácia do acto é tornada dependente da verificação dum acontecimento futuro e incerto.
A condição pode ser suspensiva ou resolutiva. A condição é suspensiva quando a sua verificação importa a produção dos efeitos do negócio, não tendo estes lugar doutro modo; é resolutiva, quando a verificação da condição importa a destruição dos efeitos negociais – v. art. 270º do CC e Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição, pág. 559.
No caso de a condição ser suspensiva, o que fica suspenso não é o próprio acto ou negócio jurídico em si, mas sim os seus principais efeitos; o acto, esse, fica desde logo existindo, desde que foi praticado, ainda antes de a condição se verificar. O mesmo se diga se a condição for resolutiva: nesta hipótese também o acto já existe e vai produzindo todos os efeitos antes de se verificar a condição; simplesmente, esses efeitos são precários e incertos, bastando que se verifique a condição para aqueles serem imediatamente destruídos.
No caso dos autos, a eficácia jurídica da deixa testamentária foi deixada na dependência de uma condição futura e incerta: a existência de descendentes da Ré, filha do testador.
Esta condição é, bem vistas as coisas, suspensiva ou resolutiva, consoante a produção ou não do evento condicionante. Se à morte da Ré esta deixar descendentes, a condição, entretanto e até lá, tem eficácia suspensiva; mas se não houver descendentes da Ré na data em que esta falecer, resolve-se a condição, cessando os efeitos da deixa testamentária.
Ora, na fase da pendência da condição suspensiva o negócio já produz alguns efeitos na esfera jurídica dos titulares desse direito condicional. Prova-o que assim é o que vem disposto nos arts. 272º a 274º do CC. Com efeito, o credor condicional pode praticar actos conservatórios e alguns actos dispositivos sobre os bens ou direitos que constituem objecto do negócio condicional, ainda que votados à ineficácia se a condição suspensiva se não verificar – v. arts. 273º e 274º. Por isso, o negócio pendente de condição suspensiva produz os chamados efeitos prodrómicos ou cautelares, que têm vista garantir a integridade dos efeitos finais, por forma a evitar que estes venham a ser meramente platónicos – v. Mota Pinto, ob. cit., pág. 569/570. Inclusivamente, como defende esse ilustre professor, o adquirente ‘sub conditione’ pode fazer registar o seu direito, o que lhe dará preferência sobre qualquer direito incompatível que venha a surgir posteriormente sobre os mesmos bens, por acto do devedor condicional.
No presente, a Ré - actualmente com 67 anos - tem duas filhas, as aqui Autoras, e está provado que mais nenhuma descendência terá – cfr. 7. e 8. São elas, indiscutivelmente, as legatárias beneficiárias do testamento, embora se reconheça que à data do falecimento da Ré pode essa situação ocorrer ou não, produzindo-se validamente, na primeira hipótese, os efeitos dessa deixa testamentária ou destruindo-se automática e retroactivamente esses mesmos efeitos, na hipótese de a Ré não deixar qualquer descendente. Todavia, na pendência da condição que actualmente se configura como suspensiva, as legatárias podem acautelar o seu direito condicional, nomeadamente através do registo em seu nome dos bens imóveis legados.
Não vemos, por isso, qualquer óbice a que se dê provimento aos pedidos formulados pelas apelantes em 3. e 4. do ponto I.
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III. DECISÃO

Face ao exposto, decide-se:
Julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida, declarando-se que:
A. As Autoras B..... e C..... são as únicas e legítimas legatárias da raiz ou nua propriedade dos imóveis de que foi titular E....., a que alude o testamento celebrado em 13 de Novembro de 1963, do -º Cartório Notarial do.....;
B. As referidas Autoras têm direito a registar a seu favor, junto da conservatória do registo predial competente, a raiz ou nua propriedade dos seguintes imóveis:
a) casa de habitação e jardim com a área de 190 m2, sita no lugar e freguesia de....., concelho de....., confrontando a norte com rua...., a sul com herdeiros de E....., a nascente com F.....e a poente com herdeiros de G....., descrita na conservatória do registo predial de ..... sob o n.º 05/905, e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 10º;
b) casas térreas com quintal com a área de 350 m2, sita no lugar e freguesia de....., concelho de....., confrontando a norte com rua...., a sul com caminho, a nascente com F..... e a poente com G....., descrita na conservatória do registo predial de ..... sob o n.º 01/505 e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o art. 11º.

Custas nas duas instâncias pelas apelantes – art. 446º, nºs 1 e 2. do CPC.
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PORTO, 18 de Maio de 2004
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge