Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1637/14.6PBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AIRISA CALDINHO
Descritores: PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL
AUSÊNCIA DE DEFENSOR
CONSEQUÊNCIAS
ACTOS AFECTADOS
Nº do Documento: RP201801171637/14.6PBMTS.P1
Data do Acordão: 01/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 744, FLS.353-356)
Área Temática: .
Sumário: I - A ausência de defensor nos casos em que a lei exige a respectiva comparência constitui nulidade insanável – artº 119º al. c) CPP.
II - A ausência de defensor no interrogatório do arguido constitui nulidade insanável.
III - A nulidade insanável do interrogatório do arguido por falta de defensor tem apenas como efeito não poder tal interrogatório ser objecto de reprodução em julgamento (artº 257º n.º2 CPP), na ausência de afectação de outros actos subsequentes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1637/14.6PBMTS.P1
2ª Secção Criminal
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Penafiel
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Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal:
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I. No processo comum singular n.º 1637/14.6PBMTS do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Criminal de Penafiel, o Ministério Público recorre do despacho que, declarando a nulidade insanável do interrogatório do arguido em inquérito, declarou nulos todos os actos subsequentes, ordenando o reenvio do processo ao Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões:
- “…
A) Por Douto Despacho de fls. 485 e 486, datado de 26/06/2017, considera a M.ª Juiz "a quo" que o arguido foi submetido a interrogatório perante autoridade judiciária - Magistrado do Ministério Público - tendo prescindido de advogado para o ato e que sendo a assistência do arguido por defensor neste interrogatório obrigatória nos termos do art. ° 64, n. ° 1 aI. c) do c.P.P. não está na disponibilidade do arguido dispensar tal acompanhamento pelo que padece o processo de nulidade nos termos do disposto nos art. ° 119, aI c) e 64°, n,º 1, aI b) do C.P.P. razão pela qual declarou a nulidade do interrogatório do arguido efectuado em sede de inquérito no dia 21/04/2016 bem como de todos os actos praticados posteriormente (art.° 122 do C.P.P.).
B) Se em face do quadro legal, podemos concordar que o interrogatório de 21/04/2016 padece de nulidade, nulidade essa insanável, já não podemos concordar, contudo, com o efeito que a M.a Juiz "a quo" extraiu ao considerar como nulos todos os actos praticados posteriormente, nem que tal equivale à falta, ou inexistência do interrogatório do arguido.
C) A ocorrência de tal nulidade não implica de forma automática e imediata a invalidade de todos os actos praticados em sede do processado posteriormente.
D) Isso decorre da mera leitura do estabelecido no artigo n.o 122, n.º 1 do C.P.P. ao preceituar que as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
E) Cabe à M.a Juiz "a quo", no caso concreto, e nos termos do n.º 2 do art.º 122 do C.P.P. determinar quais os actos que podem e devem ser considerados inválidos, aproveitando todos aos actos que ainda puderem ser salvo dos efeitos daquele, cfr. art.° 122, n.º 3 do C.P.P ..
F) E qual é o pressuposto para tal análise?
G) Tem que de existir entre o acto nulo e os posteriores, relativamente aos quais se considere estarem feridos de invalidade, uma necessária relação de causalidade entre a função do acto nulo e os efeitos e as consequências nos restantes actos do processo, aquilo a que se pode chamar de causalidade processual.
H) Essa relação de causalidade do acto declarado nulo com qualquer dos actos posteriores que os contamine de invalidade não ocorre no caso concreto.
I) Na realidade, tudo o demais que foi feito, enquanto actos processuais, que constam dos autos podiam e podem ser determinados em sede processual sem o contributo do que possa ter resultado daquele interrogatório.
J) Todos os actos que foram posteriormente realizados, em função da factualidade a apurar em sede indiciária, são actos normais a praticar quer em sede investigatória, quer após em sede de instrução e que em nada dependem daquele interrogatório.
K) A recolha de autógrafos do arguido, ainda que não tenha permitido a realização de exame grafológico atentos a argumentação que constam de tis. 127, cuja recolha foi ordenada no fim daquele interrogatório, mostra-se válida porquanto sempre poderia ser determinada e coligida a qualquer momento, não dependendo a sua realização do que o arguido possa ter referido no interrogatório ou da própria realização deste com a prévia constituição daquele como arguido.
L) De que forma depende aquele acto - recolha de autógrafos - ou qualquer dos outros, realizados posteriormente, daquele interrogatório para podermos afirmar que entre pelo menos dois deles existe um nexo funcional que faz depender a validade de um da validade do outro?
M) De forma alguma.
N) Qual a relação daquele interrogatório nomeadamente com a inquirição das testemunhas realizadas em sede de instrução, assim como de documentos cuja sua junção foi ordenada?
O) Nenhuma, já que em nada decorrem ou dependem daquele momento, ou seja, nenhuma relação funcional têm com o mesmo, já que sempre seriam indicadas e efectuada a sua inquirição ainda que aquele não tivesse sido interrogado como tal, ou seja, ainda que este não tivesse ocorrido, assim como os documentos seriam juntos.
P) Ao considerar feridos de invalidade os actos posteriores ao interrogatório do arguido, efectuado na presença de autoridade judiciária, sem ser assistido por Ilustre Defensor a M.a Juiz "a quo" interpretou incorrectamente o art.º 122, n.º 2 e 3 do C.P.P. já que o espírito daquela norma não implica só por si e automaticamente a invalidade de todos os actos posteriores, mas tão somente aqueles que se encontram numa relação de causalidade processual com aquele, sendo que no caso dos autos não se verifica com qualquer um.
Q) Não pode a M.ª Juiz "a quo" pela ocorrência daquela nulidade interpretar no sentido que todos os actos posteriores são nulos, já que tal interpretação é contrária à leitura daquele preceito que deve ser interpretado no sentido que apenas o podem ser aqueles - actos - que estiverem numa dependência funcional do acto nulo, o que não se verifica no caso, nem aquela nulidade equivale à inexistência do interrogatório para efeito daquele se ter por não efectuado mas tão só que é nulo, o que é bem diferente. Note-se, que uma coisa é ser realizado, mas nulo, outra coisa é nem sequer ter sido efectuado o interrogatório (o que tem consequências processuais bem diferentes).
R) Muito embora sendo aquele interrogatório nulo, o mesmo, no caso concreto, tem como única consequência processual a circunstância de que as declarações por prestadas pelo arguido não podem ser valoradas processualmente.
S) Ao determinar a nulidade de todos os actos praticados posteriormente ao interrogatório do arguido de 21/04/2016 violou o Tribunal a quo o disposto no art.º 122, n.º 2 e 3 do C.P.P..
T) Deve pois o Douto Despacho de fls. 485 e 486 ser substituído por outro que muito embora declarando a nulidade do interrogatório do arguido ocorrido no dia 21/04/2016 considere válidos todos os actos praticados posteriormente e designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento.”
O arguido respondeu pela improcedência do recurso.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pela procedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre agora apreciar e decidir.
II. Como é entendimento da doutrina e da jurisprudência e resulta do art. 412.º, n.º 1, do CPP, são as conclusões que delimitam e definem o objecto e âmbito do recurso (cfr.: “Curso de Processo Penal” de Germano Marques da Silva, 2.ª ed., vol. III, pág. 335; ac. do STJ de 28.04.1999, CJ/STJ de 1999, ano VII, tomo 2.º, pág. 196).
No caso a única questão colocada à apreciação desta instância prende-se com o efeito da declaração de nulidade insanável do interrogatório do arguido em inquérito.
É do seguinte teor o despacho recorrido:
- “...
O arguido, B…, veio, a fls. 439 e seguintes invocar uma nulidade insanável alegando, em síntese, que no dia 21/04/2016 foi sujeito a interrogatório presidido por Magistrado do Ministério Público e, nesse interrogatório, mão teve assistência de defensor. Entende que, assim, se verifica a nulidade prevista nos artigos 119°, al c) e 64°, nº1, al b) do C.P.P.
O Ministério Público e o assistente já se pronunciaram. Cumpre apreciar.
O artigo 119°, al c) do C.P.P. qualifica como nulidade insanável "a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência".
Por sua vez, o artigo 64°, nº1, al b) do mesmo diploma legal, com as alterações introduzidas pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro refere que "é obrigatória a assistência do defensor nos interrogatórios feitos por autoridade judiciária". Antes da entrada em vigor daquela lei, a obrigatoriedade de assistência por defensor abarcava apenas os interrogatórios de arguido detido. Porém, porque esta lei também alterou o disposto no artigo 357° do C.P.P., passando a ser permitida a leitura, em audiência, das declarações do arguido prestadas perante autoridade judiciária, a obrigatoriedade de assistência por defensor passou a abarcar todos os interrogatórios feitos por autoridade judiciária.
Ora, de fls. 109 e 110 resulta que o arguido foi submetido a interrogatório perante autoridade judiciária - Magistrado do Ministério Público - tendo prescindido de advogado para o ato. Sucede, porém, que a assistência do arguido por defensor neste interrogatória é obrigatória, nos termos da disposição supra referida, não estando na disponibilidade do arguido dispensar tal acompanhamento.
Assim sendo, concluímos que, de facto, o processo padece da nulidade invocada pelo arguido, nos termos do disposto nos artigos 119°, al c) e 64°, nº1, al b) do C.P.P., o que se declara.
Esta é uma nulidade insanável, que deve ser conhecida em qualquer fase do processo – artigo 119° do C.P.P.
Nos termos do disposto no artigo 122°, nº1 do C.P.P., "as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar ", sendo que a declaração de nulidade determina quais os atas que passam a ser considerados inválidos.
Ora, dúvidas não há que o interrogatório do arguido efetuado no dia 21/04/2016 é nulo, bem como entendemos serem nulos todos os atas posteriores, pois trata-se do único interrogatório do arguido em fase de inquérito, sendo que a sua nulidade equivale à falta do mesmo.
Assim sendo, ao abrigo das disposições supra citadas, declaro a nulidade do interrogatório do arguido em sede de inquérito do dia 21/04/2016 bem como de todos os atos praticados posteriormente.
Notifique.
Após trânsito em julgado, reenvie o processo ao M.P. para que proceda nos termos tidos por convenientes.
…”
Dos autos resulta que, em sede de inquérito, no dia 21.04.2016, o arguido foi sujeito a interrogatório perante Magistrado do Ministério Público, sem a presença de defensor.
Na mesma ocasião, procedeu-se à recolha de autógrafos, tendo em vista exame pericial que não pode ser realizado (fl.s 127).
Sem mais diligências de prova realizadas, foi proferido despacho de arquivamento (fl.s 150-151).
O assistente C… requereu a abertura da instrução e, realizadas diligências, foi proferida decisão instrutória com pronúncia do arguido B… pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al.s a) e c), do CP.
Designada data para o julgamento, o arguido suscitou a nulidade insanável do seu interrogatório de 21.04.2016, por não ter sido, como devia, assistido por defensor, sobre o qual veio a recair o despacho de que ora se recorre.
Dispõe o art. 272.º, n.º 1, do CPP:
“Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.”
Por sua vez, dispõe o art. 64.º, n.º 1, al. b), do CPP:
“É obrigatória a assistência do defensor:
- Nos interrogatórios feitos por autoridade judiciária.”
A ausência do defensor nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência constitui nulidade insanável, nos termos do art. 119.º, al. c), do CPP, pelo que não subsiste qualquer dúvida de que o interrogatório do arguido nos termos em que foi efectuado padece de nulidade insanável. Questão é saber que actos são afectados pela referida nulidade de forma a torná-los, por sua vez, inválidos, nos termos do art 122.º, n.º 1, do CPP, bem como aqueles que ainda podem ser salvos do efeito daquela, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.
Ora, tendo em conta a resenha que atrás se deixou do histórico processual, verificamos que nenhum acto foi afectado pela nulidade insanável do interrogatório, a qual apenas tem como efeito não poder ser o dito interrogatório objecto de reprodução em julgamento, nos termos do art. 257.º, n.º 2, do CPP.
E nem sequer se pode dizer que a nulidade insanável do interrogatório “equivale à falta do mesmo”. Se se pretende referir falta de inquérito, tal não corresponde a qualquer preceito que o determine e a falta de interrogatório apenas constitui uma nulidade dependente de arguição, nos termos do art. 120.º do CPP, o que não foi o caso.
De resto, a decisão recorrida também não fundamenta a razão da invalidade de todos os actos subsequentes que, como se viu, podem sobreviver autonomamente.
III. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que considere válidos os actos subsequentes ao referido interrogatório e, se for o caso, designe data para o julgamento.
Elaborado e revisto pela primeira signatária.

Porto, 17 de Janeiro de 2018
Airisa Caldinho
Cravo Roxo