Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
81/20.0PAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
DESCRIÇÃO DE FACTOS INDICIADOS E NÃO INDICIADOS
NULIDADE
Nº do Documento: RP2022112381/20.0PAPVZ.P1
Data do Acordão: 11/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Com relação à decisão de não pronúncia, a exigência de fundamentação por reporte ao artigo. 283.º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal tem um alcance acentuadamente restrito, pois que tal decisão assenta precisamente na pressuposição contrária à do citado artigo.
II - Em caso de não pronúncia não se exige a discriminação também dos factos que se tenham por indiciados, pois que necessariamente (de acordo com a conclusão indiciária do juiz de instrução) os mesmos não são suficientes para determinar a “aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, e, logo, não devem ter–se por abrangidos pela remissão do artigo 308.º, n.º 2, para a alínea b) do n.º2 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 81/20.0PAPVZ.P1

Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal de Aveiro, Juiz 2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto


Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo nº 81/20.0PAPVZ foi oportunamente pelo Ministério Público proferido despacho determinando a notificação do assistente AA (como tal admitido a intervir a fl. 29), para os efeitos do disposto no art. 285º/1 do Cód. de Processo Penal, relativamente ao denunciado crime de difamação, indicando que foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime.
Veio então o aludido assistente, a fls. 98 e segs., deduzir acusação particular contra a arguida BB, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, que indica como «previsto e punido pelo art. 285º do Código Penal».
De seguida, o Ministério Público formulou também acusação contra a mesma arguida, nos termos exarados a fls. 107, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, que indica como «p.p. pelos arts. 180 e 183/1/a do C.P.».
A arguida requereu a abertura de instrução (a fls. 114 e segs.), propugnando em síntese pelo seguinte :
a) que seja rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público, por falta de legitimidade deste ;
b) caso assim não se entenda, que seja declarada nula uma tal acusação, em virtude de a mesma importar uma alteração substancial dos factos ;
c) que seja declarada nula a acusação particular, por violação do art. 283º/3 c) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 285º/3 do mesmo diploma.
d) sem prescindir, que seja proferido despacho de não pronúncia da arguida pelo crime de que vem acusada.
Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal de Aveiro - Juiz 2, e realizada a fase de instrução com debate instrutório, veio a ser, em 05/05/2022, proferida pelo Juiz de Instrução decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos – através de despacho que, na sua parte decisória, é nos seguintes termos :
« Pelo que antecede, decidimos:
A) Julgar improcedente a invocada falta de legitimidade do Ministério Público para formular a acusação de fls. 103;
B) Julgar improcedente a arguida nulidade das acusações particular e pública;
C) Determinar a desconsideração dos pontos 4º e 7º da acusação particular;
D)Não pronunciar a Arguida, determinando o oportuno arquivamento dos autos.»

É inconformado com esta decisão que dela ora recorre, por requerimento apresentado em 22/06/2022, o assistente AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões :
I. Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória que decidiu pela não pronuncia da arguida.
II. Contudo, e salvo o devido respeito que é muito, não pode o recorrente concordar com o despacho que ora se coloca em crise, pois senão vejamos,
III. De acordo com o artigo 308º do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respetivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.
IV. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.
V. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação.
VI. Os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
VII. O Juiz de Instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo.
VIII. Ora in casu, é patente e conforme resulta do auto de denúncia que a arguida através das redes sociais, enviou mensagens em privado, onde refere "o vosso presidente das ..., é um traidor, ladrão, vigarista, chupista, trais ex-mulher por um homem por isso fãs tenham cuidado ele. É GUEY."
IX. O assistente forneceu todas as informações como facultou o link de onde recebeu tal mensagem, e se verifica que tal página corresponde ao perfil da arguida pois constam dados pessoais como fotos e descrição da mesma.
X. Certo é que mal andou o tribunal em não verificar a quem corresponde o URL ora fornecido em não esgotar todos os meios de prova para averiguar o episódio em causa, protegendo como é seu dever, os cidadãos.
XI. De todo o modo, indícios suficientes para a prossecução dos presentes autos a julgamento existem.
XII. Ora, para fundamentar uma decisão de pronúncia não se exige uma certeza da existência da infração, sendo suficiente que existam factos indiciários cuja conjugação e relacionação lógica leve a concluir pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
XIII. Assim, os indícios são suficientes, quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
XIV. Sobre esta matéria, pode ler-se in Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05.07.2010, publicado in www.dgsi.pt "para que os indícios sejam suficientes, ou seja, para que os indícios tenham um valor probatório que possa conduzir, através do esquema subsuntivo, à aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, é necessário que sejam precisos, graves e concordantes.
XV. De referir ainda, que o despacho de não pronuncia, enferma em nulidade (ou irregularidade) do despacho de não pronúncia que não proceda a tal descrição e especificação de factos suficientemente indiciados ou não.
XVI. A jurisprudência divide-se quanto à qualificação do vício em questão: irregularidade ou nulidade, nulidade sanável ou insanável, de conhecimento oficioso ou não. Será de aplicar ao despacho de pronúncia, como sustenta o recorrente no caso em apreço, a nulidade (não simples irregularidade) decorrente do artigo 283.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal (para que remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo Código). Não vemos motivo para aplicar tal regime de nulidade ao despacho de pronúncia e já não ao despacho de não pronúncia. Por outro lado, a relevância sistémica do princípio do caso julgado material impõe que se considere tal nulidade insanável e de conhecimento oficioso. Uma tão relevante consequência como é a da força de caso julgado material não poderá ficar dependente de arguição.
XVII. Deveria o despacho recorrido especificar os factos que considera, ou não, suficientemente indiciados (questão sobre a qual terá tal despacho força de caso julgado material), independentemente da questão (a analisar de seguida) de saber se eles configuram, ou não, o crime de violência doméstica por que vem o arguido acusado. Essa especificação será necessária para suprir a nulidade de que padece o despacho recorrido.
XVIII. Ocorre nulidade (ou irregularidade) do despacho de não pronúncia que não proceda a tal descrição e especificação de factos suficientemente indiciados ou não.
XIX. Atento o exposto, e salvo melhor opinião, o Mm. Juiz de Instrução deveria ter concluído pela verificação de indícios suficientes, consubstanciados na factualidade alegada, quanto aos elementos objetivo e subjetivo do tipo legal do crime em causa, e, em consequência proferir a competente decisão de pronúncia- cf artigo 308.º n.º 1, do Código Processo Penal;
XX. Deste modo, a douta decisão em mérito, também violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto, entre outros, no citado artº 180.e 183/1º do C.P, e no artº308º, nº 1, la parte, do C.P.P.
XXI. Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e ser em sua substituição proferido despacho de pronúncia nos moldes supra assinalados,.

O recurso, em 05/07/2022, foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público em 05/09/2022, defendendo a improcedência do mesmo, pronunciando–se nos seguintes termos :
«É patente que no despacho recorrido não é nulo pois o mesmo indica os factos que considera como não indiciado, conforme supra transcrito.
Quanto aos indícios recolhidos contra a arguida estes limitam-se à versão apresentada pelo assistente e ao print que o mesmo juntou a fls. 37.
A PJ não conseguiu aceder a qualquer mensagem rececionada através do link hllps://... a que corresponde o print que o assistente _juntou e não foi possível obter o ... de Facebook de BB.
Na queixa o assistente referiu que o comentário que recebeu na página do referido perfil de Facebook foi enviada em conversa privada, o que significa que apenas esteve acessível a sua leitura ao ofendido.
Neste caso, a factualidade descrita integra a prática de um crime de injúria e não de um crime de difamação.
E será que os indícios recolhidos são suficientes para a pronúncia?
Nesta fase processual não se exige o juízo de certeza que a condenação impõe, mas apenas essa probabilidade dominante,
"Para a pronúncia. como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido da certeza moral da infracção. bastando-se com os indícios da sua prática, de onde se possa formar a convicção de: que existe uma possibilidade razoável de ter sido cometido um crime pelo arguido (...) tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido" ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe uma·· alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que absolvição (ver nesse sentido acórdão do SJ, de 2 l /07/2008, proferido no proc. 3230/07, 3° Secção, in www.stj.pt).
Para termos um facto incriminador como suficientemente indiciado, não exigimos a «mera possibilidade», de ele vir a ser dado como provado em julgamento, mas também não exigimos que exista uma «forte probabilidade» de tal suceder - o que exigimos é que seja maior a probabilidade de vir a dar-se o facto como provado que a de o mesmo vir a ser dado como não provado.
Assim, quanto à probabilidade de a arguida ser condenada com base num documento que o assistente juntou. por força do princípio in dubio pro reu, tendemos a concordar pela menor probabilidade de tal acontecer.
Apesar de a mensagem ter sido enviado pelo perfil de facebook alegadamente pertença desta, tal não impossibilita que tenha sido outra pessoa a enviar a mensagem deste, quer do circulo familiar que com a arguida reside (marido e duas filhas conforme a mesma declarou), quer mesmo de um terceiro.
Nestes termos. deve ser negado provimento ao presente recurso. ».

A este recurso respondeu também a arguida BB em 26/09/2022, defendendo a improcedência do mesmo, formulando as seguintes conclusões :
1.- A presente resposta vem das motivações de recurso oferecidas pelo Assistente, o qual se mostra inconformado com o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal a quo.
2.- Salvo o devido respeito por melhor opinião, a douta decisão não merece qualquer reparo.
Vejamos,
3.- Da investigação levada a cabo nos presentes autos, não resultou da mesma qualquer indício da verificação dos factos imputados à Arguida.
4.- Já que, da mesma, não foi possível apurar a existência da mensagem, bem como a· quem pertencia tal perfil da dita rede social e, muito menos, que tal perfil pertença à Arguida e que terá sido a mesma a remetente de tal conteúdo.
5.- Uma vez que as investigações levadas a cabo pela polícia judiciária revelaram-se infrutíferas, não tendo resultado da mesma qualquer indício da prática do crime.
6.- Por tais motivos, não deveriam sequer terem sido deduzidas as acusações particular e pública.
Isto dito,
7.- Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade.
8.- Assim, no que respeita à apreciação da suficiência, ou não, dos indícios, o n.º 2 do art. 283.º do Código de Processo Penal preceitua que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
9.- Destarte, na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento.
10.- Mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação.
Aqui chegados,
11.- Não constando dos autos quaisquer elementos que sugerissem a veracidade dos factos descritos nas acusações particular e pública, entendemos que bem andou o Tribunal a quo ao ter proferido despacho de não pronúncia, determinando o arquivamento dos autos, por ausência de indiciação de factos que pudessem integrar a práticas dos ilícitos imputados à Arguida, devendo tal decisão ser confirmada, o que se requer.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 05/10/2022, no parecer que conclui nos seguintes termos :
«a) O recurso merece provimento, creio, no que respeita à arguição da invalidade devendo remeter-se os autos à 1.ª instância para sanação deste vicio nos termos supra expostos.
b) Caso assim se não entenda e considere que o despacho recorrido não padece daquela mácula, face à falta de indiciação suficiente insuprível da prática pela arguida dos factos investigados, deverá manter-se a decisão revidenda e negar-se provimento ao recurso.»

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*

II.APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.

À luz das considerações que acabam de se enunciar, as questões a conhecer e decidir no âmbito do presente acórdão são, pois, as de saber :
1. se a decisão instrutória se mostra afectada de nulidade por falta de especificação dos factos que considera, ou não, suficientemente indiciados;
2. se existem indícios suficientes para pronunciar a supra identificada arguida pelo crime que lhe era imputado em sede de acusação do assistente, e que foi objecto de decisão de não pronúncia.
Comecemos, antes de mais, por fazer presente o teor da decisão instrutória de não pronúncia, da qual ora se recorre, e que é o seguinte :
«Declara-se encerrada a instrução.
*
Por despacho proferido a fls. 93, o Ministério Público determinou a notificação do Assistente AA, como tal admitido a intervir a fls. 29, para os efeitos do disposto no art. 285º/1 do Código de Processo Penal, relativamente ao denunciado crime de difamação, indicando que foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime.
Veio então o Assistente a fls. 98 e seguintes deduzir acusação particular contra a Arguida BB, de nacionalidade portuguesa, casada, natural da freguesia ..., concelho ..., nascida a .../.../1962, doméstica, filha de CC e de DD, titular do cartão de cidadão nº ... ... e residente na Rua ..., ... ..., imputando-lhe a prática de um crime de difamação, que indica como «previsto e punido pelo art. 285º do Código Penal».
De seguida, o Ministério Público formulou também acusação contra a mesma Arguida, nos termos exarados a fls. 107, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, que indica como «p.p. pelos arts. 180 e 183/1/a do C.P.».
A Arguida requereu a abertura de instrução a fls. 114 e seguintes.
Pugna em síntese pelo seguinte:
a) Que seja rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público, por falta de legitimidade deste;
b) Caso assim não se entenda, que seja declarada nula uma tal acusação, em virtude de a mesma importar uma alteração substancial dos factos;
c) Que seja declarada nula a acusação particular, por violação do art. 283º/3 c) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 285º/3 do mesmo diploma;
d) Sem prescindir, que seja proferido despacho de não pronúncia da Arguida pelo crime de que vem acusada.
A fls. 124 foi proferido despacho declarando aberta a Instrução.
Nesta fase realizou-se o debate instrutório.
***
Não há questões que obstem a uma apreciação do mérito do requerimento de abertura de instrução.
***
Primeira questão que a Arguida suscita: a da nulidade da acusação do Ministério Público, na medida em que nos autos está em causa um crime de natureza particular, circunstância em que o Ministério Público não tem legitimidade para acusar.
Vejamos.
Com exceção dos casos previstos no art. 188º/1 do Código Penal, dos quais aqui se não cuida, é inequívoco que o crime de difamação, seja o previsto no tipo-base do art. 180º, seja o do tipo-agravado do art. 183º, ambos daquele mesmo diploma, tem natureza particular, o que significa, entre o mais, que o Ministério Público não tem legitimidade originária para acusar – essa legitimidade cabe ao Assistente, competindo em seguida ao Ministério Público «acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles», nos termos previstos pelo art. 285º/4 do Código de Processo Penal.
No caso concreto, o Ministério Público não tomou a iniciativa de acusar; reconheceu que essa iniciativa cabia ao Assistente, notificando-o para que este deduzisse acusação – e foi na sequência da acusação particular entretanto deduzida que o Ministério Público formulou a sua.
O problema que em boa verdade se nos põe, e que vai ao encontro do segundo ponto que a Arguida levanta no seu requerimento de abertura de instrução, é no fundo o de saber se, ao ter lavrado a acusação de fls. 107, o Ministério Público atuou dentro dos limites previstos pelo art. 285º/4 do Código de Processo Penal, ou se porventura os excedeu em alguma medida; a este respeito tudo está então em saber, no fundo, se a dita acusação de fls. 107 ainda é «pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial», em relação aos da acusação particular de fls. 99/100.
Dito isto, vejamos.
Na acusação particular de fls. 99/100 as expressões que se imputa ter a Arguida redigido são as seguintes: «Estimados fãs do ..., informo que o vosso presidente das ..., é um traidor, ladrão, vigarista, chupistas, traiu a ex mulher por um homem por isso fãs, tenham cuidado. Ele é GUEY».
Na acusação formulada pelo Ministério Público a fls. 103, o que se imputa à Arguida é ter redigido o seguinte: «Estimados fãs do ..., informo que o vosso presidente das ..., é um traidor, ladrão, vigarista, chupista, traiu a mulher por um homem por isso fãs, tenham cuidado, Ele é GUEY».
Comparando um e outro deste conjunto de expressões, percebe-se que onde na acusação particular se alude a «...» e «ex mulher», na acusação pública já constam as referências «...» e «mulher».
Estas diferenças são todavia de detalhe e na sua base estarão ao que tudo indica nada mais que lapsos na transcrição dos dizeres que figuram no print de fls. 37vº.
Confrontando este print com os textos das acusações particular e do Ministério Público, percebe-se que a acusação formulada pelo Assistente, a esse nível literal, é a que retrata de forma mais fiel as expressões daquele print.
Em todo o caso, é inequívoco que as expressões em si que constam da acusação do Ministério Público são as mesmas que figuram na acusação particular, como a autoria de tais expressões é apontada à mesma pessoa (a aqui Arguida), como é o mesmo o visado por tais expressões (o aqui Assistente), como, por fim, são as mesmas a data e a hora de referência para os factos (5 de dezembro de 2019, pelas 9:12).
A única aparente diferença com potencial relevo entre a narrativa que consta da acusação particular e a que consta da acusação pública é a que a Arguida sinaliza no requerimento de abertura de instrução: enquanto na acusação particular se lê que as expressões foram rececionadas «no Messenger da página de facebook da associação do rancho folclórico do qual [o Assistente] é presidente», na acusação do Ministério Público lê-se que as expressões foram postadas «na página daquela rede social [facebook] intitulada “...”».
Também aqui estamos, segundo nos parece, diante uma diferença de detalhe, ou melhor, diante uma diferença que é mais aparente que real.
Com efeito, com o sentido que a Arguida lhe dá no requerimento de abertura de instrução, pareceria que o Assistente lhe imputara ter-lhe dirigido em privado uma mensagem, não acessível a terceiros; mas não é exatamente isso o que lemos na acusação particular, já que aí não só não consta a alusão a que o Assistente recebera a mensagem «em privado» (na queixa, sim, isso está dito, mas não na acusação particular), como também constam as referências a que a mensagem surge na página de facebook da associação do rancho folclórico e a que a Arguida «tinha o propósito de que tal mensagem fosse vista por terceira pessoa».
Do conjunto do que vimos de dizer resulta então que a acusação do Ministério Público não se distancia com relevo do âmbito fáctico delimitado pela acusação particular, não vislumbrando nós, em suma, violação do preceituado pelo art. 285º/4 do Código de Processo Penal [cfr. ainda o art. 1º/f) do mesmo diploma].
E à mesma conclusão chegaremos, embora por caminhos diversos, no que toca ao enquadramento jurídico encetado pela acusação do Ministério Público.
Porquê?
Da acusação particular consta, em termos jurídico-substantivos, a referência a um crime de difamação, o qual, se bem que aí apontado erroneamente para o art. 285º do Código Penal (fls. 100), não pode deixar de ser feito radicar na difamação «simples» do art. 180º do Código Penal.
E acrescente-se que não parece que deva rotular-se o apontado vício, como o faz a Arguida, com a ideia da nulidade por violação do art. 283º/3 c) do Código de Processo Penal, aplicável por via do art. 285º/3 do mesmo diploma. Na verdade, aquele primeiro preceito não comina de nula a acusação que erra nas disposições legais aplicáveis; comina de nula a acusação que não contém a indicação das disposições legais aplicáveis, o que é coisa diversa - o erro nessa indicação, como qualquer erro, deve por norma ser objeto de correção, seja a impulso de quem o cometeu, seja no quadro de uma interpretação hábil do conjunto do texto, à semelhança do que pode fazer-se em relação aos atos decisórios, nos termos previstos pelo art. 380º/1 e 3 do Código de Processo Penal, e em linha com um princípio geral do sistema jurídico estabelecido nesta matéria, de que são evidência aquela norma processual e o art. 249º do Código Civil.
Em suma, pela economia geral da acusação particular e pela referência explícita à expressão «crime de difamação», percebe-se que o que a Assistente pretende imputar à Arguida é esse mesmo, um crime de difamação, sobejamente conhecido como previsto pelo art. 180º do Código Penal.
Aqui chegados, na acusação pública já se faz menção a uma forma «agravada» de difamação, que é a prevista pelo art. 183º/1 a) do mesmo diploma.
Todavia, conforme decorre do que atrás deixámos dito, a factualidade imputada à Arguida nas acusações particular e pública, ressalvados aspetos de detalhe neste domínio irrelevantes, é a mesma; o que o Ministério Público faz na acusação pública, em termos jurídicos, é operar uma qualificação criminal diversa, o que não atinge a dimensão da «alteração substancial de factos» com o sentido para que aponta o art. 1º f) do Código de Processo Penal – os factos são os mesmos (ainda que descritos numa e noutra das acusações em termos não exatamente coincidentes); a leitura jurídica que deles é feita é que difere. Se por hipótese de raciocínio o Ministério Público, a partir da mesma factualidade, tivesse imputado à Arguida um crime de difamação «simples» e, no contexto da presente Instrução, nós entendêssemos que a difamação, a partir, insista-se, dos mesmos factos, deveria ser «agravada», o tratamento processual a seguir a esta diversa configuração jurídico-substantiva seria o previsto pelo art. 303º/1 e 5 do Código de Processo Penal.
Em suma, a alteração da qualificação jurídica no sentido de agravar os limites máximos das sanções aplicáveis pode cair no vício da alteração substancial dos factos, mas apenas se uma tal alteração estiver apoiada em factos diversos, o que não é o caso.
Com o devido respeito para com quem perfilhe posição diversa, não nos parece destarte que ocorra a nulidade apontada pela Arguida.
*
Alega a Arguida que na acusação particular o Assistente faz menção a factos que não constam do objeto do processo, pretendendo associar a primeira a atos de vandalismo dos quais até desconhece a autoria.
Refere-se ao alegado sob os pontos 4º e 7º da acusação particular.
Tem razão o Assistente.
Os factos mencionados naqueles pontos não são mencionados na queixa apresentada (fls. 3vº), nem em qualquer aditamento à mesma ou em alguma declaração ou depoimento; nessa medida, pode mesmo dizer-se que não houve inquérito algum quanto a semelhante matéria, nem tinha sequer que haver, diga-se, pois tais factos relevariam em tese de criminalidade semi-pública ou particular, em qualquer caso carecida de queixa, que não existiu (cfr. arts. 180º/1, 188º/1 e 212º/1 e 3 do Código Penal).
Para além disso, sempre se diga ainda que a acusação contra alguém não pode deixar de fazer-se na base da afirmação positiva de determinados factos, que o mesmo é dizer, na imputação concreta de um dado comportamento ao/à arguido/a, não sendo pois suficiente a alusão à possibilidade de esse comportamento ter existido; aliás, essa «outra» factualidade nem tão pouco se encontra concretizada e circunstanciada em termos espácio-temporais, como sempre o exigiria o art. 283º/3 b) do Código de Processo Penal.
Em suma, seja por falta de verificação do pressuposto de procedibilidade «queixa», seja pela ausência de alegação suficiente e concreta de factos positivos imputados, determina-se a desconsideração da matéria descrita nos pontos 4º e 7º da acusação particular.
*
Alega ainda a Arguida que não praticou os factos de que se acha acusada, dos quais não há indícios.
Pergunte-se então: há ou não indícios suficientes da prática, pela Arguida, dos factos descritos nas acusações particular e pública?
Colocando-se-nos problemas ao nível da matéria de facto, cumpre começar por precisar o critério de análise da prova que seguimos, para o que se justifica sublinhar que a instrução é uma fase processual que em geral «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286º/1 do Código de Processo Penal - CPP). Importará por isso apurar se até ao encerramento da instrução se encontram ou não «recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança» (art. 308º/1 do CPP).
O problema que naturalmente se nos põe é então o de saber o que vem a ser isto de «indícios suficientes», que o legislador refere genericamente em dado passo como existindo, «sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança» (art. 283º/2 do CPP).
Fazendo uma brevíssima exposição sobre as alternativas existentes a este nível, dir-se-á o seguinte:
- uma primeira posição defende que a suficiência de indícios basta-se com a mera possibilidade de futura condenação em julgamento, abordagem esta que rejeitamos prontamente, por um lado por contrariar o elemento literal da lei, visto que esta não fala apenas em «indícios», mas antes em «indícios suficientes», o que sugere um grau de exigência superior, e por outro lado porque contraria ainda o princípio da presunção de inocência do arguido (art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa), particularmente na vertente do tratamento processual a conferir-lhe, na medida em que o ato de submissão de alguém a julgamento não é inócuo, devendo portanto ter na base uma indiciação efetiva, e não uma possibilidade como que teórica de condenação ulterior;
- uma segunda posição, que entendemos ser excessivamente exigente, tendo em vista a fase processual em que nos encontramos e a finalidade da Instrução, cuja decisão apenas visa confirmar ou infirmar o juízo emitido pelo Ministério Público no despacho de encerramento do Inquérito, posição essa que advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, falando-se aqui de «possibilidade particularmente qualificada» ou de «probabilidade elevada» de condenação;
- e uma terceira posição, conhecida como «teoria da probabilidade dominante», que temos hoje por generalizadamente difundida e seguida, e a que também nós aderimos, que considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição (sobre esta matéria vide, por todos, o Ac. da RP de 07/12/2016, relatado por Manuel Soares, in www.dgsi.pt e a doutrina e a jurisprudência nele citadas).
Assentemos pois nesta ideia: para termos um facto incriminador como suficientemente indiciado não exigimos a «mera possibilidade» de ele vir a ser dado como provado em julgamento, mas também não exigimos que exista uma «forte probabilidade» de tal suceder – o que exigimos é que seja maior a probabilidade de vir a dar-se o facto como provado que a de o mesmo vir a ser dado como não provado.
Será então este o caso?
Parece-nos que não.
A Arguida não quis prestar declarações (fls. 77 a 79), postura esta que é probatoriamente neutra.
O Assistente não chegou a ser ouvido nos autos.
E nenhuma testemunha foi indicada ou ouvida.
No sentido de sugerir a veracidade dos factos descritos nas acusações apenas temos a própria queixa de fls. 3 e o documento de fls. 37vº, o qual, seja em si mesmo, seja concatenado com outros elementos dos autos, não contém qualquer dado que consistentemente permita dizer que foi a aqui Arguida quem redigiu o texto que aí se lê.
Note-se que, feita a competente pesquisa no perfil facebook do «...», o texto não foi aí encontrado (fls. 43 a 45).
E não resultou apurado que pertença à Arguida o URL a partir do qual a postagem teria alegadamente sido feita (fls. 46 a 48).
Nestas circunstâncias, não nos parece que possa dizer-se com um mínimo de conforto que existem indícios suficientes dos factos descritos nas acusações particular e pública, a saber:
(i) Que no dia 5 de dezembro de 2019, pelas 9h12, a Arguida, utilizando um perfil da rede social Facebook intitulado «BB», acessível através do link ..., tenha postado na página daquela rede social facebook intitulada «...», os seguintes comentários, referindo-se ao Assistente: «Estimados fãs do ..., informo que o vosso presidente das ..., é um traidor, ladrão, vigarista, chupistas, traiu a ex mulher por um homem por isso fãs, tenham cuidado. Ele é GUEY»;
(ii) Que nesses dia e hora o Assistente tenha recebido no Messenger da página de facebook daquela associação mensagem com aquele teor.
(iii) Que a Arguida tenha agido de forma voluntária, livre e consciente, com a intenção de ofender a honra e consideração do Assistente e bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
***
Face ao exposto, isto é, considerando a ausência de indiciação de factos que pudessem integrar a prática dos ilícitos imputados, será proferido despacho de não pronúncia.
*
Pelo que antecede, decidimos:
A) Julgar improcedente a invocada falta de legitimidade do Ministério Público para formular a acusação de fls. 103;
B) Julgar improcedente a arguida nulidade das acusações particular e pública;
C) Determinar a desconsideração dos pontos 4º e 7º da acusação particular;
D) Não pronunciar a Arguida, determinando o oportuno arquivamento dos autos.».

Analisemos então as questões suscitadas em sede de recurso.

1. De saber se a decisão instrutória se mostra afectada de nulidade por falta de especificação dos factos que considera, ou não, suficientemente indiciados.

Ainda que situando–a na parte final do seu recurso [1], suscita o recorrente uma questão de natureza eminentemente processual que, a revelar–se procedente, prejudicaria a apreciação do demais que é objecto do recurso.
Assim, suscita–se a nulidade da decisão instrutória, considerando o recorrente que o despacho recorrido não especifica os factos que considera, ou não, suficientemente indiciados, independentemente da questão (a analisar de seguida) de saber se eles configuram, ou não, o crime por que vem a arguida acusada. Donde, alega–se, sendo de aplicar ao despacho de pronúncia, em que assim não se proceda, a nulidade (não simples irregularidade) decorrente do artigo 283º/3/b) do Cód. de Processo Penal (para que remete o artigo 308º/2, do mesmo Código), deverá aplicar–se tal regime de nulidade também ao despacho de não pronúncia.

Vejamos.
Como, com evidente a–propósito, realça o Digno Procurador–Geral Adjunto no seu douto parecer, constitui actualmente entendimento jurisprudencial maioritário o de que a decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, deverá discriminar os factos indiciariamente provados e não provados, exigindo–se assim a clara definição da factualidade que o Mmo. Juiz de Instrução considerou (e da que não considerou) suficientemente indiciada, reportada, naturalmente, ao libelo acusatório, ou, no caso de não ter havido acusação, ao requerimento para abertura de instrução.
A exigência em causa assenta na imposição de fundamentação de facto e de direito cometida também à decisão instrutória – que, tendo a qualidade de acto decisório (cfr. art. 97º/1/b) do Cód. de Processo Penal) obedece ao dever genérico de fundamentação previsto no nº 5 desta mesma disposição processual –, e, em especial, a quanto decorre da aplicação conjugada das disposições legais previstas nos arts. 283º/3 e 308º/2 do Cód. de Processo Penal.
Donde, entende–se, só deve considerar-se cabalmente satisfeita tal exigência com a articulação clara e discriminada dos factos que se consideram indiciados e daqueles não indiciados, pois só desse modo se permitirá, por um lado, uma efectiva possibilidade de exercício do direito de recurso por parte dos sujeitos processuais que se sintam afectados com a decisão, e, por outro lado, um real e verdadeiro controlo (e possibilidade de sindicância) por parte do tribunal de segunda instância.
Ainda assim, pese embora essa quase uniformidade, a jurisprudência – como bem realça o recorrente – vem revelando cisão no que tange à concreta caracterização e regime da invalidade decorrente do desrespeito de tal exigência de fundamentação, em especial no que tange à decisão de não pronúncia:
– uma corrente jurisprudencial considera que a omissão dos factos indiciados e não indiciados fere de nulidade a decisão de não pronúncia, entendendo ainda aqui uns que se trata de uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, e outros que se trata uma nulidade sanável e, portanto, dependente de arguição – cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 17/06/2014 (proc. 456/11.8GEALR.E1)[2], do Tribunal da Relação de Évora de 06/01/2015 (proc. 119/10.0JASTB.E1)[3], do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/05/2015 (proc. 303/13.4PGDL.L1-3)[4], do Tribunal da Relação do Porto de 26/04/2017 (proc. 719/16.4T9PRT.P1)[5], do Tribunal da Relação do Porto de 28/11/2018 (proc. 626/13.2TAAGH.P1)[6], ou do Tribunal da Relação do Porto de 22/09/2021 (proc. 84/20.5GAVNG.P1)[7] ;
– outra corrente jurisprudencial considera que a falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados constitui uma irregularidade, e também aqui, se dividem entre os que consideram que se está perante uma irregularidade sujeita ao regime geral do art. 123° do Cód. de Processo Penal, só podendo ser conhecida mediante atempada arguição e os que afirmam ser uma irregularidade que influi no conhecimento da causa e por isso advogam o seu conhecimento oficioso nos termos do artigo 123º/2, do Código de Processo Penal – cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 16/12/2009 (proc. 568/07.0GFVNG.P1)[8], do Tribunal da Relação do Porto de 12/10/2016 (proc. 276/11.8TAVLC.P2)[9], do Tribunal da Relação de Évora de 29/11/2016 (proc. 884/13. 2 TAMTA.E1)[10], do Tribunal da Relação de Guimarães de 27/05/2019 (proc. 134/17.2T9TMC.G1)[11], do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/12/2021 (proc. 4818/19.2T9CBR.C1)[12], do Tribunal da Relação do Porto de 21/09/2022 (proc. 1021/12.6JAPRT.P1)[13], do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/02/2022 (proc. 7308/19.0T9LSB.L1-9)[14], ou do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/05/2022 (proc. 2176/18.1T9FNC.L1-9)[15];
Adiantando razões, desde já se consigna que se sufraga o entendimento no sentido de não considerar aplicável a mesma solução para todas as decisões instrutórias, mas antes considerando que a falta de descrição dos factos imputados ao arguido importa nulidade insanável se acontecer no despacho de pronúncia, mas consubstancia tão apenas mera irregularidade se ocorrer no despacho de não pronúncia – neste sentido referência para o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/06/2017 (proc. 5726/14.9TDPRT.P1)[16] –, e ainda assim, e no que respeita ao despacho de não pronúncia, apenas por reporte à não referenciação dos factos que não se têm por indiciados de considera a invalidade em causa.
E assim se entende relativamente ao despacho de não pronúncia pelos motivos adiante melhor enunciados.

Para já, e independentemente da categorização do vício decorrente da omissão suscitada pelo ora recorrente, centremo–nos na devida caracterização da mesma, por forma a, antes de mais, aquilatar se efectivamente estamos perante tal omissão.
Porque, adianta–se, é nosso entendimento que assim não sucede.
Como acima se deixou enunciado, a exigência aqui em causa assenta essencialmente em quanto decorre da aplicação conjugada das disposições legais previstas nos arts. 283º/3 e 308º/2 do Cód. de Processo Penal.
Este art. 308º/2 do Cód. de Processo Penal determina a aplicação à decisão instrutória do disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 283º do Cód. de Processo Penal, onde, por sua vez, se consigna o seguinte:
2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
i) A data e assinatura.
4 - Em caso de conexão de processos, é deduzida uma só acusação.

Ou seja, ali se comina com nulidade o despacho de acusação que não contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”.
É nesta linha de raciocínio, que comumente se entende que qualquer decisão instrutória – e, portanto, também o despacho de não pronúncia – deve ser fundamentado, no sentido de que deve incluir a especificação dos factos indiciados e não indiciados, admitindo-se que a mesma possa ser feita por remissão (cfr. art. 308/2 in fine e 307º/1 do Cód. de Processo Penal).

Porém, a mera consideração daquele que é, afinal, o teor do citado nº2 do art. 283º do Cód. de Processo Penal – nomeadamente na parte em que se prevê a “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” – já deixa antever que, com relação ao despacho de não pronúncia, a exigência de fundamentação por reporte a tal disposição processual deve ser encarada com um alcance acentuadamente restrito.
E assim é pela singela circunstância de que a decisão de não pronúncia assenta precisamente na pressuposição contrária, isto é, na de que, até ao encerramento da instrução, não foram afinal recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. parte final do nº 1 do art. 308º do Cód. de Processo Penal).
Donde, e desde logo, não será sequer conceptualmente possível elencar quaisquer factos indiciariamente provados que sustentam a viabilidade de “aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”.
Não se perca de vista, complementarmente, que o que a decisão instrutória aprecia – e esta instância é chamada a sindicar, se o for – é, prima facie, se deve considerar–se existirem indícios suficientes de determinados factos (por sua vez vinculadamente delimitados e discriminados numa acusação ou requerimento de abertura de instrução anterior), e não desde logo se determinado conjunto de factos preenche ou não os pressupostos de um tipo de ilícito criminal – embora também o possa (e deva) fazer a jusante daquele prévio juízo de apreciação probatória indiciária.
Neste conspecto, não se julga na verdade que, em caso de não pronúncia, se exija a elencação e discriminação também dos factos que se tenham por indiciados, pois que necessariamente (de acordo com a conclusão indiciária do juiz e instrução, claro está) os mesmos não são suficientes para determinar a “aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, e, logo, não devem ter–se por abrangidos pela remissão para a alínea b) do nº2 do art. 283º do Cód. de Processo Penal (assim como, de forma aliás clarividente, não terão de se referenciar todas as demais exigências formais previstas nos restantes segmentos da mesma alínea b) e nas demais alíneas da mesma disposição).
Ou seja, tal exigência apenas faz sentido relativamente a decisão instrutória de pronúncia. Por isso que se considera, como acima se indicou, que a omissão do elenco, em despacho de não pronúncia, dos factos que se tenham por indiciados, não consubstancia afinal qualquer invalidade processual.

O que significa também, portanto, que em caso de decisão instrutória de não pronúncia, será suficiente para satisfazer a exigência de fundamentação aqui em causa, e assim permitir o adequado controle da decisão pelos sujeitos processuais (e pela via de recurso, se for o caso), que se indiquem de forma clara quais os factos não indiciados (porque de uma não pronúncia se trata) e que seriam susceptíveis de determinar o preenchimento pelo arguido dos pressupostos típicos do crime imputado e da sua punibilidade – e, naturalmente, os fundamentos do juízo dessa sua não indiciação.
Exigir que, além disso, se elencassem específicos factos que, ainda que indiciados, serão inócuos (face ao concomitante juízo instrutório de não indiciação daqueles outros) para a demonstração dos pressupostos de tipicidade e punibilidade criminal, irrelevaria para a decisão a adoptar.
Sempre se dirá, reiterando consideração acima efectuada, que o objecto processual sob escrutínio está necessariamente delimitado na acusação ou no requerimento de abertura de instrução oportunamente deduzidos, sendo sempre apenas e só esses que podem estar em causa na instrução e na ponderação decisória em sede de eventual recurso. O que vale por dizer que, mostrando-se clarificados os factos essenciais não indiciados em sede de despacho de não pronúncia, ainda que depois, em instância de recurso, se venha a considerar ser de inverter tal juízo negativo, sempre o objecto factual relevante estará circunscrito pelo teor da acusação (ou do requerimento de abertura de instrução) que foi submetida ao crivo da instrução, inexistindo assim qualquer insegurança na respectiva objectivação.

Pois bem, revertendo enfim ao concreto caso dos autos, temos que, de acordo com o entendimento que assim propugnamos, se mostra liminarmente afastada a verificação da invalidade/nulidade tal como configurada pelo recorrente, visto que não se considera que a falta de referência a factos que se tenham por indiciados seja exercício que integre a fundamentação exigível e imposta no caso de um despacho de não pronuncia, como é aquele aqui recorrido.
E mais se dirá que não se considera que o despacho de não pronúncia recorrido padeça igualmente da alegada falta de fundamentação por falta de menção dos factos não indiciados.
Na verdade, entende–se que o mesmo permite conhecer, de forma adequada e suficiente, os factos não indiciados – que seriam, afinal, os essenciais à configuração do objecto criminal imputado –, e cuja referência se mostra ali efectuada de forma perfeitamente perceptível, nomeadamente nos termos do seguinte recorte em especial da mesma decisão :
«Nestas circunstâncias, não nos parece que possa dizer-se com um mínimo de conforto que existem indícios suficientes dos factos descritos nas acusações particular e pública, a saber:
(i) Que no dia 5 de dezembro de 2019, pelas 9h12, a Arguida, utilizando um perfil da rede social Facebook intitulado «BB», acessível através do link ..., tenha postado na página daquela rede social facebook intitulada «...», os seguintes comentários, referindo-se ao Assistente: «Estimados fãs do ..., informo que o vosso presidente das ..., é um traidor, ladrão, vigarista, chupistas, traiu a ex mulher por um homem por isso fãs, tenham cuidado. Ele é GUEY»;
(ii) Que nesses dia e hora o Assistente tenha recebido no Messenger da página de facebook daquela associação mensagem com aquele teor.
(iii) Que a Arguida tenha agido de forma voluntária, livre e consciente, com a intenção de ofender a honra e consideração do Assistente e bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»
Esta formulação é, a nosso ver, perfeitamente suficiente para que se possa considerar cumprido o dever de fundamentação de facto, pois que contempla, de modo cabal, uma referenciação específica daqueles factos imputados à arguida que afinal «fundamenta[ria]m a aplicação … de uma pena ou de uma medida de segurança».
Ou seja, de todo se considera que o recorrido despacho de não pronúncia seja omisso quanto à descrição dos factos considerados não indiciados.

Em conclusão, não se julga verificada a invocada invalidade processual da decisão recorrida, improcedendo, assim, esta parte do recurso interposto.

2. De saber se existem indícios suficientes para pronunciar a supra identificada arguida pelo crime que lhe era imputado em sede de acusação do assistente, e que foi objecto de decisão de não pronúncia.

Vejamos agora quanto respeita à questão relativa à sindicância da decisão de não verificação de indícios suficientes da prática pela arguida do crime que lhe vinha imputado em sede de acusação particular, e que esteve na base do despacho de não pronúncia ora recorrido.

A ponderação daqueles que são os fins e os objectivos da fase de instrução em processo penal, orienta-se desde logo a partir dos termos consignados no art. 286º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se dispõe que “A instrução visa a comprovação da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem em submeter ou não a causa a julgamento”.
Assim, enquanto fase jurisdicional, e citando Paulo Pinto de Albuquerque (in ‘Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem’, 2ª ed., pág. 737) «A instrução consiste na fase de discussão da decisão de arquivamento ou de acusação tomada pelo MP no final do inquérito. Mas o âmbito desta discussão é limitado pela lei, ou melhor, pelo objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artigo 308, n.º 1). Portanto, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do MP de existência de indícios suficientes».
Não se configurando como um complemento da investigação feita em inquérito, mas antes contemplando a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento, tal significa que em sede de fase instrutória caberá ao juiz investigar o caso submetido a instrução, de forma autónoma, e sempre “tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução” a que se refere o art. 287º/2 do Cód. de Processo Penal, conforme expressamente exigido no art. 288º/4 do Cód. de Processo Penal.
Os procedimentos da Instrução culminam com o proferimento de despacho de pronúncia ou de não pronúncia – consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento –, conforme estipulado no art. 308º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se determina precisamente que, “se até ao encerramento de instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Resulta, por sua vez, do artigo 308º/2 do Cód. de Processo Penal, por via imediata da remissão aí efectuada para o art. 283º/2 do mesmo diploma, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança”.
Tem–se aqui em vista uma “probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal”, cfr. Germano Marques da Silva (in ‘Curso de Processo Penal, II’, 2ª edição, págs. 99 e 100); ou, como ensina Figueiredo Dias (in ‘Direito Processual Penal’, 1.º volume, pág. 133) “os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”.
Constitui, em suma, indiciação suficiente a presença de um conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado. Assim, o juiz que dirige a fase de Instrução deve, a final da mesma, proferir despacho de pronúncia do arguido quando os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior e seja de concluir, com uma probabilidade razoável, que tais elementos se manterão em julgamento, ou quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação.
Em síntese, só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas. Tudo está em saber se os factos recolhidos em sede de inquérito/instrução são suficientes indícios (seguros), capazes de fundar a jusante o juízo de certeza por sua vez exigível em sede de audiência de discussão e julgamento.
A decisão instrutória assenta, pois, num juízo de prognose, devendo apenas ser remetidos para julgamento os casos em que seja manifesta uma acentuadamente maior probabilidade de uma futura decisão condenatória – por relação à (possibilidade sempre presente) de o desfecho vir a ser absolutório.
Donde, no recurso da decisão instrutória de não pronúncia do que se trata, é precisamente de sindicar o juízo sobre as provas (indiciárias) efectuado pelo juiz de instrução, ou seja, de sindicar a decisão proferida na ponderação de todos os indícios recolhidos nas fases de inquérito e de instrução do processo, para se decidir sobre a possibilidade de entre o mais existir uma probabilidade grande de condenação futura.
O despacho de pronúncia terá que ser devidamente ponderado, pois a simples sujeição de uma pessoa a julgamento, mesmo que venha a ser absolvida, quase sempre lhe acarreta consequências gravosas.
O que ademais convoca, em reforço de quanto acaba de ser afirmado, a referência a que em qualquer fase do processo penal – logo, também em sede de fase instrutória – manter plena pertinência a aplicação do princípio in dubio pro reo.
Cumpre relembrar a este propósito que o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 439/02, de 23/10/2002 (proc. 56/2002)[17], considerou que a interpretação normativa dos artigos 286.º, n.º 1, 298.º e 308.º, n.º 1, do CPP que exclua o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no artigo 32º/2 da Constituição da República Portuguesa. A favor da aplicação do princípio em qualquer fase do processo, nomeadamente no inquérito e na instrução, está, também, Maia Costa (em ‘Revista do Ministério Público’, nº 92, pág. 71), pois entende que o enunciado normativo contido no art. 283º/1/2 do Cód. Proc. Penal “demonstra uma inquestionável similitude entre a posição do magistrado do Ministério Público que aprecia a prova do inquérito e a do juiz que analisa a prova da audiência de julgamento: em qualquer dos momentos, cada um daqueles magistrados, caso se confronte com uma dúvida inultrapassável sobre as provas produzidas, deve fazer funcionar a (mesma) regra (in dubio pro reo), arquivando o inquérito o Ministério Público, proferindo sentença absolutória o juiz. Considerações idênticas são válidas evidentemente para o juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo portanto lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra in dubio pro reo, no caso de se encontrar perante idêntica situação de dúvida quanto às provas.”.

Começando a nortear a presente análise para o caso concreto dos autos, é objecto da presente decisão, portanto, descortinar se a matéria indiciária constante dos autos é de molde a fundar a prolação de despacho de pronúncia (assim revertendo a decisão recorrida) relativamente à prática pela arguida BB de 1 (um) crime de difamação, previsto e punível desde logo tipicamente no artigo 180º/1 do Código Penal.
Pretende o assistente AA (ora recorrente) que se verifica a existência de suficientes indícios do cometimento pela arguida do crime supra referido – e que era, afinal, aquele constante da acusação deduzida –, donde que o despacho de não pronúncia deveria ser no sentido da pronúncia daqueles, e consequentemente revogado neste sentido.
Ora, tendo presentes as supra efectuadas considerações jurisprudenciais e doutrinais, e analisados de forma detalhada os presentes autos, julga-se que a decisão recorrida não merece censura, quer quanto à decisão em si, quer quanto aos respectivos fundamentos de facto e de direito.

Como bem analisa a decisão recorrida e também dá nota o Ministério Público, quer em sede de resposta ao recurso, quer, inclusive, no parecer emitido pelo Digno PGA nesta instância, o que em última derradeira análise estava em causa era apurar se os elementos indiciários dos autos permitiam concluir pela circunstância de que teria sido a arguida a publicar, e a assim publicitar, por via de aplicação informática e em ambiente internet (em específico, na rede social Facebook), o texto atentatório da honra e consideração do assistente que consta referenciado e descrito nos autos.

Pois bem, atentos os elementos probatórios recolhidos no processo, afigura-se na verdade que em sede de decisão instrutória o Juiz a quo efectuou uma análise fundada da factualidade em causa, mormente desde logo na perspectiva de que quanto daqueles primeiros pudesse extrair–se no que respeita à liminarmente imprescindível indiciação da autoria dos actos de execução de uma tal actuação.
É desde logo com relação exactamente à própria verificação de tal primário elemento típico objectivo que a decisão instrutória configura uma avaliação que se tem por colocada a coberto de qualquer reparo.

De facto, analisados os (escassos) indícios que se mostram objectivamente recolhidos nos autos, e que se mostram elencados em sede de decisão recorrida, não se julga que os mesmos possam alicerçar com uma segurança indiciária suficiente – muito menos para aquilo que se mostraria necessário em sustento de uma futura condenação – a demonstração de uma actuação da arguida que integre os pressupostos de tipicidade criminal imputados na acusação.
Como bem resume a decisão instrutória, e os autos permitem comprovar, depois de apresentada a queixa de fls. 3, temos apenas o documento de fls. 37vº, ou seja, uma cópia/vulgo print, daquela que terá sido a mensagem/texto publicado na rede social referenciada na acusação.
Tal texto e documento, em si mesmo, apenas tem de ligação à arguida a referência a que teria origem num perfil da aludida rede social cuja denominação correspondente ao seu nome; de resto, inexiste qualquer dado probatório que, relacionado com tal circunstância, permita indiciar com adequada suficiência que foi a pessoa da aqui arguida quem redigiu e/ou publicou o texto em causa.
Na verdade, além de que feita a competente pesquisa no perfil da rede social Facebook do «...», o texto não foi sequer aí encontrado (cfr. fls. 43 a 45) – a Polícia Judiciária não conseguiu aceder a qualquer mensagem recepcionada através do link ... a que corresponde o print que o assistente juntou –, e não foi possível obter o URL/ID do perfil de Facebook de BB, isto é, não resulta apurado que pertença à arguida o URL a partir do qual a publicação teria alegadamente sido feita (fls. 46 a 48).
Nenhum outro elemento de prova se mostra recolhido nos autos, sendo que, manifestamente, e em contrário de quanto parece entender o recorrente, não possui tal valência quanto resulte do conteúdo do auto de denúncia apresentado pelo próprio assistente.
Na verdade, e como será consabido, tal elemento processual não consubstancia meio de prova relativamente à materialidade dos “factos” que no mesmo se consignam. O auto em causa apenas demostra documentalmente, além da sua própria existência, que determinados factos foram objecto de notícia, comunicada em determinadas circunstâncias de modo, tempo e lugar, e por qualquer motivo – mas não é suficiente, em si mesmo, para a prova dos factos noticiados, a qual deve ser efectivada no âmbito do processo subsequente, e segundo os princípios (correspondentes a um processo de estrutura acusatória) da produção e apreciação da prova, consagrados desde logo nos arts. 124º a 127º do Cód. de Processo Penal.

Ao contrário do que se afigura propugnado pelo recorrente, não basta extrair da prova produzida uma mera possibilidade de condenação em julgamento para justificar e legitimar a decisão de pronúncia da arguida – como acima se disse, tal só poderia verificar-se caso dessa valoração fosse viável extrair uma acentuadamente maior probabilidade de uma futura decisão condenatória.
Ora, in casu, da ponderação dos elementos de prova coligidos, relacionados e conjugados entre si, resulta que os indícios recolhidos não são, de todo, suficientes para a decisão de submeter a causa a julgamento, já que se assim fosse, a absolvição da arguida seria mais provável do que a condenação.
Concluindo-se que os indícios são, assim, manifestamente insuficientes para sujeitarem a arguida a julgamento, inevitável é a consideração de que a posição expressa na decisão instrutória de não pronúncia é aquela que se julga a adequada no presente caso, devendo a mesma ser confirmada.

Não merece, pois, procedência o recurso interposto pelo assistente.
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III. DECISÃO

Nestes termos, e em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.
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Porto, 23 de Novembro de 2022
Pedro Afonso Lucas

Maria do Rosário Martins, com a seguinte declaração de voto:[Acompanho inteiramente a decisão, esclarecendo apenas que considero que o despacho de não pronúncia que conhece do mérito da causa (como é o caso presente) deve conter, ainda que de forma sintética, a narração dos factos indiciados e não indiciados e que a falta de narração desses factos consubstancia uma nulidade sanável conforme posição sufragada no acórdão por mim relatado recentemente em 09.11.2022 (Processo 2901/19.3T9AVR.P1).
Porém, como é evidente, a decisão instrutória que conhece de mérito (pronúncia ou não pronúncia) não tem que conter todo e qualquer facto narrado no requerimento de abertura de instrução e/ou na acusação, mas tão somente os factos – indiciados e/ou não indiciados – que se mostrem relevantes para a apreciação dos elementos constitutivos do(s) crime(s) imputado(s) ao(s) arguido(s).
No presente recurso, resulta do despacho impugnado que o Mmo. Juiz identificou claramente os factos não indiciados considerados preponderantes para responsabilidade criminal imputada à arguida, sendo sobre estes factos que incide o efeito do caso julgado.
Já quanto aos factos indiciados, sendo certo que os mesmos não constam do despacho de não pronúncia, não se vislumbra qualquer outra factualidade (para além dos factos não indiciados) que importaria enunciar atento o tipo legal imputado à arguida.
Por isso, neste caso, entendo que o despacho de não pronúncia não padece de qualquer vício na sua estrutura.]

Lígia Trovão, com a seguinte declaração de voto:[Subscrevo a Declaração de voto proferida pela Exmª Sra. Desembargadora Dra. Rosário Martins, quanto à necessidade de o despacho de não pronúncia conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos indiciados e não indiciados, entendendo também que a falta de narração destes últimos, consubstancia uma nulidade sanável por força da remissão do art. 308º nº 2 para o art. 283º nº 3 do CPP, sendo que, enquanto 1ª Adjunta da mesma, assinei o Acórdão por ela relatado no processo 2901/19.3T9AVR.P1, remetendo para o mais exarado na referida Declaração de voto.]


(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente – sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
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[1] E aí aludindo, seguramente por mero lapso, à indiciação de um “crime de violência doméstica por que vem o arguido acusado” – menção que, naturalmente, não se relevará.
[2] Relatado por João Amaro, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[3] Relatado por Felisberto Proença da Costa, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[4] Relatado por Maria Elisa Marques, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[5] Relatado por Maria Ermelinda Carneiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[6] Relatado por Joaquim de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[7] Relatado por Pedro Vaz Pato, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [8] Relatado por Francisco Marcolino, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[9] Relatado por José Carreto, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[10] Relatado por Maria Leonor Botelho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[11] Relatado por Fátima Furtado, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf
[12] Relatado por Maria José Nogueira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[13] Relatado por Liliana de Páris Dias, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[14] Relatado por Abrunhosa de Carvalho, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[15] Relatado por Abrunhosa de Carvalho, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[16] Relatado por Eduarda Lobo, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[17] Relatado por Fernanda Palma, acedido em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos