Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0634785
Nº Convencional: JTRP00039629
Relator: SALEIRO DE ABREU
Descritores: DIVÓRCIO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
CASO JULGADO
Nº do Documento: RP200610260634785
Data do Acordão: 10/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 689 - FLS. 178.
Área Temática: .
Sumário: É admissivel a alteração, através do processo de jurisdição voluntária, do acordo sobre o destino da casa de morada de família, homologado por sentença transitada em julgado, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…….. deduziu incidente para alteração da atribuição da casa de morada de família contra a sua ex-mulher, C……., alegando, em síntese, que:
Por sentença de 12.12.2002 foi decretado o divórcio do Requente e da Requerida;
Ficou então acordado – acordo que foi homologado por sentença transitada em julgado – que “a casa de morada de família é atribuída à Ré até à partilha sem qualquer contrapartida”;
Tal acordo teve em vista a necessidade dos menores D…… e E…….., filhos do casal, cuja guarda foi confiada à mãe; porém,
Os menores encontram-se, de facto, à guarda do pai desde Março de 2003 e, em acordo homologado por sentença de 14.2.2006, transitada em julgado, ficou exarado que “os menores ficam entregues à guarda e cuidados do seu pai, o qual sobre os mesmos exercerá o respectivo poder paternal”;
Os menores encontram-se, hoje em dia, a morar provisoriamente em casa dos avós paternos;
A requerida não necessita da habitação – que é do requerente - para sua morada.
Pede que se altere o estabelecido e se atribua ao requerente o direito à utilização da casa de morada de família, com fundamento nas necessidades próprias e dos filhos menores.
O pedido foi liminarmente indeferido, com os seguintes fundamentos:
- Existe caso julgado formal, uma vez que a questão ora colocada pelo requerente foi já objecto de apreciação pelo Tribunal da Relação do Porto em acórdão proferido no âmbito do apenso I, em que se entendeu que “o acordo quanto à utilização da casa de morada de família obsta a que a requerente venha instaurar acção a modificar o mesmo, porquanto existe trânsito em julgado da sentença judicial homologatória daquele acordo”, acordo que “não é susceptível de ser alterado com fundamento em circunstâncias supervenientes”;
- Mesmo que não se tivesse formado caso julgado formal, “a homologação do acordo quanto à atribuição da casa de morada de família gerou caso julgado material, nos seus precisos termos, não podendo as partes alterá-lo sem violar a respectiva sentença homologatória “.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs o requerente o presente recurso, tendo terminado a respectiva alegação com as seguintes
conclusões:
A decisão recorrida que indeferiu o requerimento de alteração do acordo quanto ao destino da casa de morada de família formulado pelo Recorrente com fundamento em alteração das circunstâncias de facto determinativas do acordo viola os princípios e disposições normativas aplicáveis em sede de processos de jurisdição voluntária.
Ao decidir o requerimento sem sequer dar à Requerida a oportunidade de se pronunciar quanto ao requerimento a decisão recorrida viola o principio da contradição, consagrado no art. 3/1 do CPC, que impede o Tribunal de se pronunciar liminarmente sobre o decidido.
Sendo distintas as causas de pedir e o pedido formulados nos Apensos I e K, e sendo conhecido que o caso julgado se forma sobre o pedido, viola o regime dos art. 498/3, 671/1 e 673 do CPC a decisão que, contra os factos, declara verificada a excepção do caso julgado, para a qual não há suporte legal.
A homologação de acordos em processos de jurisdição voluntária não obsta à apresentação de pedidos de modificação, por expressamente consagrado na lei o principio da sua modificabilidade em caso de alteração das circunstâncias determinativas da celebração do acordo, por ser essa a solução expressamente consagrada pela lei no art. 1411 do CPC, assim violado pela decisão recorrida.
A unidade do sistema exclui que se afirme excepcionalmente a imodificabilidade do acordo quanto ao destino da casa de morada de família, contra a solução legal da ampla modificabilidade dos demais acordos previsto na lei civil e processual civil em matéria de divórcio por mútuo consentimento.
Deve revogar-se a decisão recorrida e ordenar-se o prosseguimento do processo com vista à sua instrução e julgamento, por forma que se apreciem efectivamente os pressupostos de facto relativos à alteração das circunstâncias de vida dos membros da família carecida de tutela.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi proferido despacho de sustentação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

II.
Sendo o âmbito do objecto do recurso balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, temos que as questões de que cumpre conhecer são as seguintes:
- violação do princípio do contraditório;
- inexistência de caso julgado;
- modificabilidade da decisão homologatória do acordo sobre a utilização da casa de morada de família.
A) Quanto à primeira questão:

Estatui o nº 2 do art. 3º do CPC que “só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida”. E o nº 3 do mesmo artigo preceitua que não é lícito ao juiz, salvo caso de manifesta desnecessidade, “decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a oportunidade de sobre elas se pronunciarem”.

No caso em apreço não foi tomada qualquer providência contra a requerida.
E, não sendo ela atingida pelo indeferimento do requerimento inicial, não se vislumbra motivo para que o Sr. Juiz a devesse ter auscultado.
A tese do recorrente conduziria a que não fosse possível o indeferimento liminar de uma petição ou requerimento. O que não faz sentido.
Dir-se-á, de resto, que o recorrente careceria de legitimidade para arguir a nulidade – se nulidade existisse, o que não é o caso – decorrente da omissão em causa. Só a requerida seria parte interessa na observância da formalidade omitida e, assim, só ela teria legitimidade para a arguir (art. 201º, nº 1 e 203º, nº 1 do CPC).
Não era caso, portanto, de cumprir o audiatur et altera pars, ou seja, o princípio do contraditório.

II. Segunda questão:

Ao contrário do tribunal recorrido, é nosso entendimento de que, com o acórdão desta Relação proferido no apenso I, aresto de que consta cópia a fls. 70 e segs., não se formou caso julgado formal sobre a questão que ora se discute: saber se é admissível, ou não, a alteração, com fundamento em circunstâncias supervenientes, do acordo sobre o destino da casa de morada de família celebrado em acção de divórcio por mútuo consentimento.
Com efeito, e por um lado, diferentes são os pedidos formulados num e noutro incidente; por outro lado, e sobretudo, o que estava em causa naquele recurso era conhecer da falta (ou não) de um pressuposto processual – o interesse em agir. Concretamente: tendo a primeira instância decidido que a requerente não tinha interesse em agir, e indeferido, com esse fundamento, o respectivo requerimento para atribuição do direito à utilização da casa de morada de família (pois que já lhe estava atribuído), apenas estava em causa a confirmação, ou não, desse despacho. E sobre essa questão se debruçou a Relação, confirmando o que havia sido decidido a quo.

É certo que, no mesmo aresto, a Relação também exprimiu o seu entendimento sobre uma questão que tem sido bastante discutida, qual seja a da possibilidade, ou não, da alteração do acordo sobre o destino da casa de morada de família. E pronunciou-se pela negativa.
Mas, e como decorre dos termos do próprio acórdão, a sua pronúncia sobre aquele tema foi-o a latere, em jeito de um obiter dictum, já que, como vimos, não era esse propriamente o objecto do recurso.
Ora, se “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga” (art. 673º do CPC), não se poderá dizer que no invocado acórdão houve decisão expressa sobre a referida questão, ou até que a abordagem que dela se fez constituiu fundamento, ou sequer um dos fundamentos, da confirmação do despacho ali posto em crise.
Concluindo: inexiste caso julgado formal, como sustenta o ora agravante.

III. Terceira questão:

Duas são as correntes jurisprudenciais que sobre o tema da admissibilidade, ou não, da alteração, através do processo de jurisdição voluntária, do acordo sobre o destino da casa de morada de família, homologado por sentença transitada em julgado, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento.

No sentido da inadmissibilidade pronunciaram-se, entre outros, os Ac.s do STJ, de 15.2.2005, 2.10.2003 (com um voto de vencido) e de 19.3.2002, publicados in www.dgsi.pt, procs. 04A3621, 03B1727 e 02B555; da RP, de 22.11.2005, 0525693; da RL, de 12.7.2001, 2.2.94 e 18.2.93, www.dgsi.pt, proc.s 0052456, 0075761 e 0071432; e da RG, de 7.5.2003, CJ, 2003, III, 279.
Decidiram-se pela admissibilidade da alteração, os Acs. da RP, de 3.3.2004 e de 30.9.2002, www.dgsi.pt, procs. 0322808 e 0250994; da RL, de 27.5.2003, www.dgsi.pt, proc. 00106767 e CJ, 2003, III, 91; e da RE, de 2.12.99, CJ, 1999, V, 275.

Por nossa parte, e não obstante a muita consideração que nos merecem os defensores da corrente contrária, nestes se incluindo os subscritores do já falado acórdão proferido no apenso I, julgamos que a razão está do lado daqueles que entendem que a modificação é admissível.

Ninguém põe em causa que estamos perante um processo de jurisdição voluntária.
Ora, “Nos processos de jurisdição voluntária as resoluções podem ser alteradas (...), com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração” (art. 1411º, nº 1 do CPC).

Sendo embora certo que a lei prevê expressamente que o acordo sobre os alimentos e o exercício do poder paternal pode ser alterado (arts. 2012º do CC e 182º da OTM), não existindo idêntica disposição quanto ao acordo sobre o destino da casa de morada de família, não vislumbramos qualquer razão para que o não possa ser. O citado art. 1411º, nº 1 não proíbe a alteração, antes a permite.

Nuno de Salter Cid, no seu livro “A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português”, Almedina, 1996, invocando, para tanto, se necessário, o disposto no art. 437º, nº 1 do CC, inclinou-se para a admissibilidade da alteração, quando houver alteração substancial das circunstâncias tidas em consideração aquando da celebração e homologação do acordo em causa (vd. pp. 314/316). E aponta, como exemplo, “o caso de o factor determinante do sentido do acordo em causa ter sido a salvaguarda do interesse dos filhos, e de o ex-cônjuge que ficou na casa (...) ter perdido a guarda daqueles”.

Mais recentemente, o mesmo autor aprofundou o tema, sobre ele dissertando em conferência proferida a propósito das “Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”. E o seu trabalho está publicado em livro com o mesmo título – vol. I – pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Aí, a pp. 275- 318, defende, de forma para nós convincente, a possibilidade da alteração.
E, respondendo à questão do silêncio do legislador sobre a expressa admissibilidade da alteração do acordo em causa (contrariamente ao que sucede com os alimentos e poder paternal), escreve:
“Prescindindo de grandes considerações, pode dizer-se tranquilamente que o argumento do silêncio está longe de ser decisivo, sobretudo por se tratar do legislador da «Reforma de 1977». Um legislador «sábio, previdente, racional e justo» (...) não teria querido negar a possibilidade de, em qualquer caso, se alterar um acordo sobre o destino da casa de morada da família. Não, decididamente não teria! E se um caso como o destes autos não bastasse para convencer - a nós parece-nos sobrar -, poderia imaginar-se a hipótese extrema, mas não inverosímil, de o progenitor titular do direito a habitar a casa, aquele a quem os filhos tivessem ficado confiados, perder a guarda destes por conduta voluntária censurável e o outro progenitor não ter outra morada onde se acolher com eles. É injusto apontar tamanha falta ao legislador da «Reforma de 1977»; esta teve os seus defeitos - está por criar obra humana integralmente perfeita -, mas esse não foi seguramente um deles.
E no entanto, uma pergunta subsiste: porque não previu o legislador expressamente a possibilidade de se alterar o acordo sobre o destino da casa, à semelhança do que fez a respeito dos outros acordos? A resposta, a nosso ver, terá de ser esta: porque achou desnecessário fazê-lo, face ao disposto no art. 1411º, nº 1, do CPC !”

Data venia, fazemos nossas as palavras de Salter Cid.

Não se poderá aceitar que, como no caso, estando os menores confiados à guarda do pai, aqui recorrente, por acordo homologado por sentença, e se vier a provar a factualidade alegada no requerimento inicial, designadamente que o acordo celebrado aquando do divórcio - em que a casa de morada de família foi atribuída à Ré até à partilha sem qualquer contrapartida - teve como razão de ser as necessidades dos menores, então confiados à sua mãe, e que esta agora não necessita da casa, seria um absurdo, uma imoralidade mesmo, manter-se o status quo, não se sabe até quando, apenas em obediência a um pretenso “caso julgado”.
Pergunta-se: se, por mera hipótese, a requerida tivesse emigrado, ou ido viver para uma outra casa, por razões de trabalho ou outra? Como justificar, então, que a casa que foi “morada do casal” continuasse vazia, não se sabe por quanto tempo, à espera da concretização da partilha?

Vem a propósito deixar aqui transcrita uma curta passagem do voto de vencido exarado no Ac. do STJ, de 2.10.2003, supra citado:
“Nas condições expostas desnecessariamente se preocupará o intérprete partindo em busca de especial permissão para o efeito.
Bem ao invés, preocupante seria a existência de normação que interditasse uma similar alteração, cuja conformidade com os ditames da autonomia privada, e com os princípios de acesso à justiça, da jurisdição e do Estado de direito democrático não poderia então deixar de se questionar”.

A lei deve ser utilizada como instrumento de realização da justiça e não sacralizada em seu detrimento.
Ora, e como se escreveu no citado Ac. desta Relação de 30.9.2002, “a casa (...) deve ser atribuída a quem dela precisa, ponderando-se a necessidade de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos”.
E só o entendimento que sufragamos – de admissibilidade de alteração do acordo sobre o destino da casa de morada de família, se circunstâncias supervenientes o justificarem - permite prosseguir tal desiderato.

Embora para já sem relevância, mas porque futuramente poderá vir a ter algum interesse, deixamos aqui apontado o critério geral que julgamos ser de adoptar para se avaliar se a alteração das circunstâncias é tal que justifique uma modificação do acordo.
Para o efeito, servimo-nos de novo de Salter Cid (última obra citada, pp. 298/299), que, por sua vez, reproduziu um autor espanhol (F.J. Fernández Urzainqui), para quem a alteração deverá assentar, em termos gerais, nos seguintes pressupostos cumulativos:

«a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do 'cenário' contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...);
b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...);
c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...);.
d) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).»
E acrescenta:
«A alteração substancial das circunstâncias justificativas da modificação das medidas pode (...) ser motivada tanto pela ocorrência de factos novos, como pelo conhecimento de factos anteriores de significativa transcendência ignorados na sua adopção.»

IV.
Em face do exposto, no provimento do recurso, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que dê seguimento à normal tramitação do incidente.
Sem custas.

Porto, 26 de Outubro de 2006
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
Gonçalo Xavier Silvano