Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1857/09.5TJVNF.S1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: CADUCIDADE
FACTO IMPEDITIVO
RECONHECIMENTO DO DIREITO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: RP201311191857/09.5TJVNF.S1.P1
Data do Acordão: 11/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O reconhecimento do direito, por parte daquele contra quem o mesmo deva ser exercido, para ter eficácia impeditiva da caducidade, nos termos do n.º 2 do art.º 331.º do Código Civil, tem de ser concreto, preciso, inequívoco, sem ambiguidades ou vaguidades, antes do termo do prazo de caducidade, por forma a que torne o direito certo e faça as vezes de uma sentença judicial.
II - O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, manifesta-se pela violação do princípio da confiança e a sua proibição reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte.
III - Não existe reconhecimento eficaz, nem abuso do direito, por parte de quem invoca a caducidade duma acção fundada na venda de uma coisa com defeitos, que não aceita e cuja causa se propõe averiguar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1857/09.5TJVNF.S1.P1
Do 3.º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão
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Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró

Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:

I. Relatório

B…, Lda., com sede na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Barcelos, instaurou, em 22 de Maio de 2009, acção com processo ordinário contra C…, Lda., com sede na …, n.º .., ..º, apartado .., Vila Nova de Famalicão, e D…, S.A., com sede na Rua …, lote …, Lisboa, pedindo:
1 - que seja declarada válida e eficaz a resolução operada pela demandante, com as legais consequências ou,
2 - subsidiariamente, para o caso de a resolução praticada pela demandante não ser considerada válida e eficaz, atenta a factualidade alegada, seja o contrato em mérito declarado resolvido por via judicial;
3 - subsidiariamente ainda, atento o erro sobre o objecto mediato, seja declarada a anulabilidade do contrato de compra e venda, com as legais consequências.
Declarado resolvido e/ou anulado o contrato de compra e venda, deverão as demandadas, solidariamente ou não, ser condenadas:
a) a restituir o valor relativo à contrapartida pela aquisição do veículo, computando-se o já liquidado em € 13.795,05 (treze mil, setecentos e noventa e cinco euros e cinco cêntimos), correspondente ao valor já pago por conta do valor do veículo (referente a 20 prestações já vencidas e pagas, no valor de € 607,73 cada, bem como uma primeira prestação de € 1.640,45), bem como em igual quantia mensal de € 607,73 até cumprimento do contrato em 01/10/2001, bem como ainda na quantia de € 5.531,44 referente à venda do veículo pela locadora à demandante;
b) caso assim se não entenda, sempre será devido à demandante o preço de venda do veículo, de € 32.808,98, acrescido de juros de mora até efectivo pagamento, à taxa comercial, ascendendo os já vencidos a € 5.782,67, como restituição dos frutos civis – juros – vencidos desde o recebimento do preço e vincendos até pagamento, dado que, como a resolução depende de culpa da parte faltosa, deverá esta ser equiparada ao possuidor de má fé no que respeita à restituição dos frutos;
c) na quantia de € 5.850,00, a título de privação do uso, calculados desde a resolução até à presente data e referente ao período em que o veículo esteve nas oficinas das demandadas, e em igual quantia diária até que as demandadas restituam o valor do veículo e,
d) ainda nas despesas e encargos que a demandante suporte com a recolha, guarda e depósito do veículo – vulgo parqueamento – deverá ser suportado pelas demandadas, valor que se remete para liquidar em execução de sentença, por não ser neste momento conhecido, quantificável e líquido.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
Em 1/10/2007, celebrou um contrato de aluguer de longa duração com o E…, SA, que teve por objecto o veículo Renault …, de matrícula ..-EJ-.., adquirido, em 28/9/2007, à primeira demandada e fornecido pela segunda ré, pelo preço de 32.808,98 €, com a duração de quatro anos, ficando com a opção de compra, no fim do contrato, pelo valor de 4.609,53 €.
Tal veículo apresenta várias anomalias desde a sua aquisição, o que motivou a apresentação de reclamações junto das demandadas que providenciaram pela reparação, a última das quais em 10/11/2008, sem qualquer êxito.
Em face disso, porque persistiam as anomalias, resolveu o contrato de compra e venda por carta registada de 21/11/2008 que enviou à primeira demandada e que foi por ela recebida no dia 25 seguinte.
Em 25/11/2008, foi-lhe enviada uma carta pela 2.ª demandada informando-a de que o veículo se encontrava conforme o preconizado pelo construtor e, em 10/12/2008, interpelou-a para que procedesse ao levantamento da viatura na oficina onde se encontrava, dado estar devidamente reparada, o que não se verificou continuando a apresentar maus cheiros.
Em 11/5/2009, confirmou à 1.ª demandada a resolução já operada e deu conhecimento à 2.ª demandada, por cartas registadas por ambas recebidas, e interpelou-as para a restituição do preço, pondo à sua disposição o veículo.
Em consequência da conduta das rés, sofreu danos, correspondentes às prestações que teve de pagar à locadora e terá ainda que pagar ou ao preço do veículo.

As rés contestaram, por excepção invocando a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir, a ilegitimidade activa e passiva e a caducidade do direito de acção, e por impugnação, concluindo pela procedência das excepções e pela sua absolvição da instância ou do pedido e, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção com a consequente absolvição dos pedidos.

A autora replicou, pugnando pela improcedência das invocadas excepções e requerendo a intervenção principal provocada de E…, S.A..

Admitida a requerida intervenção, foi citada a interveniente, que fez seus os articulados da autora.

No despacho saneador foram julgadas improcedentes a invocada nulidade por ineptidão e as excepções da ilegitimidade activa e passiva, tendo sido relegada para final a apreciação da caducidade. Foi elaborada a condensação, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, por remissão, sem reclamações.
Após instrução e vicissitudes para aqui irrelevantes, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, como gravação da prova nela produzida, finda a qual foi decidida a matéria de facto controvertida nos termos constantes do despacho de fls. 444 a 456, de que não houve reclamações.
E, em 1/3/2013, foi proferida douta sentença, que decidiu julgar procedente a excepção peremptória da caducidade e absolver as rés dos pedidos.

Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de revista para o STJ, per saltum, nos termos do art.º 725.º do CPC, e assim foi admitido por despacho de fls. 551, embora apelidando-o de apelação.
Porém, o Ex.mo Conselheiro Relator, por douto despacho de 28/6/2013, entendeu que as questões suscitadas ultrapassavam o âmbito da revista – “não só porque há matéria de facto resultante da formulação de presunções”, nas alegações, como “há matéria de facto contestada pelas recorridas nas suas contra-alegações” - e determinou, ao abrigo do n.º 4 do citado art.º 725.º, que o processo baixasse à Relação.
Recebido neste Tribunal e feita a distribuição, foi a autora convidada a aperfeiçoar as conclusões que ofereceu do recurso que havia interposto, nos temos do art.º 685.º-A, n.º 3, do CPC, por se apresentarem deficientes, complexas e obscuras.
Acatando tal convite, a apelante apresentou as seguintes conclusões:
“I - O cerne do presente recurso consiste em saber se a factualidade apurada nos autos permite concluir pela não procedência da excepção da caducidade, por verificação dos pressupostos previstos no n.° 2 do art. 331º.
II - O reconhecimento, pelos recorridos, do direito da recorrente à eliminação do defeito extrai-se, amplamente, dos factos julgados.
III - Tal reconhecimento, porque feito por parte daquele contra quem o direito poderia ser exercido, tem por efeito impedir a caducidade - cfr., artigo 331.°, n.º 2, do Código Civil.
IV - Na verdade, durante mais de um ano, e segundo o que foi dado como provado, as recorridas efectuaram diversas diligências no sentido de repararem o vício existente no bem comprado.
V - Destarte, o reconhecimento consubstancia-se, em especial, na sucessão de tentativas, ainda que frustradas, de resolver um problema e no facto de ter sido solicitado prazo para apresentação de uma solução (neste sentido, vide, por exemplo, o Ac. TR Lisboa, de 20/01/2005, Proc. 9544/2004-8 e o Ac. TR Porto de 27/04/2006, relator: Fernando Manuel Pinto de Almeida).
VI - Entende a recorrente que aquele comportamento, melhor descrito na factualidade provada, demonstra que os mesmos reconheceram o vício e (assumiram) a sua obrigação de eliminação do mesmo.
VII - Concretamente, entende-se que o n° 2 do art. 331º do CC deve ser interpretado no sentido de que há reconhecimento do direito quando durante um longo período de tempo as demandadas/recorridas (a vendedora) procedem a trabalhos, intervenções e reparações, efectuando diversas promessas de resolução do problema e solicitando sempre mais tempo para a dita resolução.
VIII - No caso sub iudice, é forçoso concluir que as recorridas reconhecem amplamente a existência do problema (e assumiram a sua resolução), única razão pela qual efectuaram diversas tentativas frustradas de o resolver, (uma vez que não foi possível apurar a respectiva causa), mantendo promessas de resolução.
IX - No entender da ora recorrente, os conceitos jurídicos, - designadamente o de reconhecimento, (mas também o de denúncia, como se verá infra) - não podem deixar de ser apreciados, valorados e preenchidos casuisticamente, caso a caso, segundo o recorte do caso concreto e a dinâmica da sucessão dos factos.
X - Constitui presunção de facto, judicial e natural porquanto, se trata de facto que se funda nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos hauridos através da observação empírica dos factos, e ainda presunção judicial, simples ou da experiência, que se inspira nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, que quando o vendedor:
a) detém o veículo nas suas oficinas durante largos períodos de tempo e procede a intervenções (sem custos);
b) solicita constantemente mais prazo para a solução do problema, "solicitaram à autora que aguardasse, dado que iriam solicitar junto da Renault uma solução para o problema, fosse a eliminação do problema, fosse a substituição do veículo, fosse a restituição do preço" e,
c) promete resolver o problema em 15 dias,
e tais comportamentos, pela sua:
a) extensão ao longo do tempo;
b) forma "séria", peremptória e reiterada com que foram produzidos,
apenas poderão tem um significado: o do reconhecimento do direito.
ADEMAIS:
XI - Discute-se ainda, no presente recurso, qual a data a ter em conta como sendo a data da última denúncia, aquela a partir da qual começou o prazo para interposição da presente acção.
XII - Neste concreto aspecto, entende a recorrente que o nº 1 do art. 916º do CC tem de ser interpretado no sentido de que qualquer entrega do bem vendido nas instalações (oficina) do vendedor, para que o mesmo seja intervencionado e reparado, constitui denúncia do vício/defeito.
XIII - A denúncia, sempre para o mesmo facto/vício é dinâmica: verifica-se sempre que (de cada uma das muitas vezes que) as recorridas recepcionaram o veículo para a detecção e resolução do vício.
XIV - Esta questão revela-se, nesta parte, fundamental, porquanto a data da última denúncia (analisada nos termos supra), no caso sub iudice, é aquela em que, pela última vez, o veículo deu entrada nas instalações da 1ª Ré, em meados de Janeiro de 2009, segundo a factualidade apurada.
XV - Do encadeamento dos factos provados não pode resultar outra solução que não a de ter em conta aquela data como sendo a da última denúncia, desde logo porque está provado que foi permitida nova tentativa de eliminação do vício à segunda demandada.
Por fim:
XVI - Em última análise, entende a recorrente que, ao invocar a excepção da caducidade depois de todas as tentativas de reparação e promessas de resolução, as recorridas actuam em abuso do direito (nos termos do art. 334º do CC), na modalidade de venire contra factum proprium porquanto foi o seu comportamento que adiou a entrada da presente acção em juízo.
XVII - As recorridas criaram uma situação propícia a que a demandante/recorrente acreditasse na solução extrajudicial do litígio, tendo sido elas que prolongaram no tempo aquela situação, utilizando diversas manobras dilatórias de que querem, agora, prevalecer-se.
XVIII - As recorridas convenceram, através de uma sucessão de condutas, de factos, de actos e declarações, todos eles peremptórios e concludentes, a demandante/recorrente de que solucionariam o problema, dentro de um tempo razoável, mas não o fizeram, e agora pretendem aproveitar-se do tempo entretanto decorrido, e por elas solicitado para se esquivar às suas responsabilidades.
XIX - À demandante/recorrente, enquanto declaratária normal, não seria exigível, face ao comportamento das recorridas outra conduta que não fosse aguardar pela resolução da situação, antes de intentar a competente acção.
XX - ASSIM, NÃO SE VERIFICA A CADUCIDADE DA ACÇÃO, quer por:
- ter havido reconhecimento do direito pelas recorridas;
- o prazo para interposição da acção para tutela do direito ainda não ter decorrido e/ou,
- ser abusiva a sua invocação.
XXI - A presente sentença violou, entre outros os artigos 236°, 237º, 916°, 917°, 331º, 798°, 801°, 874°, 879°, 908°, 909°, 913°, 914° e 916°, entre outros, todos do Código Civil e 60°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa.
TERMOS EM QUE, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão sob censura, com as legais consequências, com o que se fará a acostumada JUSTIÇA!”

As rés contra-alegaram pugnando pela confirmação da sentença recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
I. Os alegados direitos do Recorrente já caducaram, pois este deixou passar mais de seis meses desde a data da última denúncia;
II. O Recorrente aceita esse facto, admitindo que não propôs a acção no prazo que era legalmente devido.
III. Argumenta o Recorrente que no entanto teria ocorrido o reconhecimento do seu direito por parte das Recorridas e que como tal a caducidade se interrompeu, nos termos do artigo 331º CC, mas tal não sucedeu;
IV. Com efeito, para que a caducidade se interrompa, pondo termo à certeza e segurança jurídicas que a caducidade tem implícita, é necessário que o reconhecimento seja concreto, preciso, sem margem de vaguidade ou ambiguidade, antes de findo o prazo de caducidade, o que não sucedeu;
V. Mais, tratando-se de prazo de proposição de uma acção, o reconhecimento deve ser tal que torne o direito certo e faça as vezes da sentença, porque tem o mesmo efeito que a sentença pela qual o direito fosse reconhecido, o que é manifesto que não sucedeu;
VI. Não é possível retirar dos FP 84 e 85 qualquer reconhecimento do direito do recorrente nos termos e para os efeitos previstos no artigo 331º CC;
VII. A pretensão desesperada do Recorrente que teria renovado a denúncia dos defeitos em Janeiro de 2009 não tem respaldo em qualquer facto dado por provado, pois nessa altura apenas o veículo é experimentado mais uma vez pelos representantes das Recorridas, sem ser detectado qualquer defeito;
VIII. Antes a última renovação da denúncia é feita pelo Recorrente em 10 de Novembro de 2008, altura em que pela última vez reclama do defeito e leva o veículo ao reparador;
IX. Finalmente invoca o Recorrente abuso de direito, pretendendo que as Recorridas lhe criaram a expectativa de virem a resolver o problema, sem qualquer razão, também;
X. Nunca as recorridas disseram ao recorrente que aceitavam a existência do problema e o iam resolver, antes sempre o disseram, inclusive por escrito, que não detectavam qualquer problema e entendiam o veículo de acordo com as especificações do fabricante, não aceitando reparar algo que não reconheciam;
XI. Não se retira dos FP 29, 30 ou 83 a 85 qualquer facto que suporte o entendimento do Recorrente, pelo contrário, acrescentando-se ainda os FP 23 e 24 e 26 a 28, donde fica evidente a permanente negação por parte das Recorridas de reconhecer o direito do Recorrente e de reparar o seu veículo;
XII. Não existiu assim qualquer abuso de direito, nem foi criada qualquer expectativa pelas Recorridas;
XIII. Diga-se ainda que o abuso de direito nunca foi alegado pelo Recorrente ao longo do processo e a douta decisão recorrida não teve oportunidade de a apreciar, sendo facto novo, o que impossibilita a sua apreciação em recurso de revista.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.ªs, deve o recurso totalmente improceder, confirmando-se a douta sentença recorrida, como é de Lei e de Justiça!”

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção é posterior a 1/1/2008 e a decisão impugnada anterior a 1/9/2013 – cfr. art.º 12.º deste diploma e art.ºs 7.º, n.º 1, e 8.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6, pelo que não tem aqui aplicação o NCPC[1]), importando conhecer as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art.º 660.º, n.º 2 do mesmo Código), e tendo presente que nele se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se não ocorre a caducidade da acção quer porque não decorreu o respectivo prazo, porque houve reconhecimento dos defeitos pelas recorridas, quer porque estas agiram com abuso de direito.

II. Fundamentação

1. De facto

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1. A 1.ª ré, como concessionária da marca Renault, é representante e distribuidora da marca Renault para os concelhos de Vila Nova Famalicão, Santo Tirso e Trofa, tendo como objecto social a comercialização, serviço pós venda e pelo comércio de peças originais da marca Renault (sítio:www.C1….pt)
2. A 2.ª ré é representante em Portugal da Renault.
3. A 2.ª ré vende os veículos a uma rede oficial de distribuidores – in casu, à 1.ª ré -, que os revendem depois em nome próprio, aos clientes finais.
4. O serviço pós venda dos veículos da marca Renault, manutenção, revisão, reparação, é realizada por uma rede oficial de reparadores autorizados – in casu, entre as quais, a 1.ª ré -, os quais, na maioria das vezes, acumulam também a qualidade de distribuidores.
5. É nesta rede de distribuidores e reparadores autorizados que se integra a actividade comercial da 1.ª ré, com ambas as qualidades.
6. Em 24-04-2008, a 1.ª ré procedeu à limpeza dos filtros de partículas do habitáculo – cfr. doc. 5.
7. Àquela data, o veículo tinha apenas 5.692 Km.
8. Em 18-09-2008, o veículo tinha 9.200 Km.
9. Em 13-10-2008 foram realizados trabalhos de limpeza de filtros e do circuito de ar condicionado.
10. O veículo tinha à data desta intervenção, apenas 9.766 Km.
11. Em 03-11-2008, o veículo apresentava 10.047 Km.
12. Passados 5 (cinco) dias, em 07-11-2008 – 6.ª feira – quando a autora foi “levantar” o veículo, foi-lhe dito que a oficina tinha procedido à desmontagem do tablier, à desmontagem dos cintos de segurança.
13. Não tendo sido detectado a causa do problema.
14. Nesta data, as intervenções da oficina F…, foram acompanhadas pelo departamento técnico da D… – cfr. doc. 12.
15. Logo na 2.ª feira seguinte, dia 10-11-2008, conforme acordado com a oficina, a autora depositou o veículo nas instalações da F… – cfr. doc. 13.
16. Àquela data, o veículo apresentava apenas 10.237 Km.
17. As rés não detectavam as causas dessas mesmas manifestações.
18. A autora, por carta registada com aviso de recepção datada de 21-11-2008, comunicou à 1.ª ré a resolução do contrato de compra e venda – cfr. doc. 14 e 15.
19. Carta esta que foi recepcionada pela ré em 25-11-2008 – cfr. Doc. 16.
20. Nessa mesma carta, a autora, invocando a cronologia das sucessivas intervenções pelas oficinas das rés,
21. A persistência dos problemas e seu agravamento e,
22. Sobretudo, as manifestações nas pessoas desses mesmos odores e cheiros de carácter tóxico, com dores de cabeça, pressão encefálica, tonturas, enjoos, hemorragias nasais, inflamações e irritações das vias respiratórias, dos olhos e das mucosas, perdas de consciência, latejar das têmporas,
23. Não tendo inclusive, segundo referiram, sequer detectado a causa do problema,
24. A 2.ª ré, posteriormente, enviou à autora uma carta com data de 25-11-2008, segundo a qual preconizava a conformidade do veículo com os requisitos do construtor – cfr. Doc. 18
25. A que a autora respondeu, por carta registada com aviso de recepção de 28-11-2008 – cfr. Doc. 19, 20 e 21
26. Posteriormente, a autora foi interpelada pela 2.ª ré, por carta de 18-12-2008, no sentido de proceder ao levantamento do veículo que se encontrava nas instalações da F… – cfr. Doc. 22.
27. Na sequência daquela enviada em 10-12-2008, segundo a qual seriam debitados €: 15,25 por cada dia que decorresse até ao levantamento do veículo.
28. O que a autor fez, procedendo ao levantamento do veículo.
29. Todavia e apesar da resolução do contrato pela autora e da posição tomada pelas rés, a 1.ª ré pretendeu ainda tentar apurar a causa dos odores e cheiros e,
30. E a sua eliminação.
31. Para o que convenceu a autora a permitir esses trabalhos,
32. Perante a ausência de resposta, por carta registada com aviso de recepção, datada de 11-05-2009, a autora confirmou à 1.ª ré a resolução já operada – cfr. Doc. 23 e 24.
33. Recepcionada pela 1.ª ré em 12-05-2009 – cfr. Doc. 25
34. Carta que foi igualmente enviada à 2.ª ré – cfr. Doc. 26 e 27
35. Recepcionada em 13-05-2009 – cfr. Doc. 28
36. Nestas cartas, atenta a resolução do contrato, a autora procedeu à interpelação das rés para procederem à restituição do preço.
37. Sendo que colocou à disposição das mesmas o veículo,
38. Interpelando-as expressamente para indicarem local, dia e hora para a entrega do veículo,
39. Além do mais, a autora adquiriu este veículo para assegurar as deslocações do seu sócio-gerente, aos clientes, fornecedores, a parceiros.
40. Na verdade, foi a autora quem escolheu o veículo, as suas características, o modelo, a cor, a potência, a cilindrada, os acessórios extras.
41. A autora tem como objecto social a instalação eléctrica de comunicações e de climatização, comércio de electrodomésticos, aparelhos de rádio e televisão – cfr. doc. 2
42. A segunda ré procede à importação para Portugal de veículos da marca Renault.
43. No dia 28-09-2007, a autora adquiriu à 1.ª ré um veículo automóvel de marca Renault, modelo …, de cor preta, com matrícula ..-EJ-.., no estado novo, pelo preço de €: 32.808,98 – cfr. doc. 3.
44. Sendo que, para financiamento da aquisição, a autora celebrou com a E…, S.A., um contrato de ALD, aluguer de longa duração, com o n.º ……..
45. Segundo o qual está assegurado, no final de duração do contrato, a opção de compra do veículo pelo valor de €: 4.609,53, sendo que a autora já optou pela compra, tendo já registado o veículo em seu nome.
46. O valor real de aquisição ascenderá aos €: 41.200,47, em resultado do preço final a pagar no cumprimento do contrato de aluguer de longa duração, celebrado entre a autora e a E…, S.A., com o n.º …….,
47. Pelo qual a locadora, após ter pago o preço de aquisição à 1.ª ré, é credora perante a autora do valor de €: 41.200,47 – cfr. doc. 4
48. A média prevista para este veículo para que se proceda aos serviços de manutenção programada é de 30.000 em 30.000 km ou de 24 em 24 meses.
49. Desde a aquisição do referido veículo que este apresentava várias anomalias e,
50. A autora foi apresentando reclamações junto da vendedora, ora 1.ª ré.
51. E posteriormente à 2.ª ré.
52. Com o que o veículo foi sendo assistido e vistoriado quer na oficina da vendedora, quer, posteriormente, na oficina da F… – ambas reparadoras autorizadas.
53. Para apuramento dos vícios, desconformidades e/ou defeitos e sua eliminação.
54. Na verdade, desde a aquisição do veículo que se nota um cheiro, um odor, sendo que o veículo apresenta uma concentração média de dióxido de carbono que ultrapassa a respectiva concentração máxima admissível (de 1.800 mg/m3), sendo os mínimos apresentados na perícia realizada de cerca de 2.500 mg/m3 e os máximos de quase 9.000 mg/m3.
55. Que a autora, inicialmente atribui ao cheiro típico de “carro novo”, eventualmente proveniente dos estofos em pele.
56. Todavia, à medida que o tempo passava, aquele cheiro foi-se agravando, a ponto de tornar insuportável a circulação dentro do veículo.
57. Dado que tais cheiros e os níveis de dióxido de carbono existente no veículo causavam, como ainda causam, grave irritação e congestionamento das vias respiratórias, dos olhos e das mucosas, enjoos e tonturas.
58. E tal irritação e congestionamento era de tal forma grave e intensa que impossibilitava a utilização do veículo de uma forma normal, atento o fim a que ele se destinava: o de assegurar as deslocações dos representantes legais da demandante e demais utilizadores do mesmo.
59. Desta vez, a 1.ª ré, na pessoa do seu director comercial, Lino Monteiro, referiu que o veículo teria de circular com o ventilador (chaufagem ou ar condicionado) ligado.
60. Com o que evitaria aquele problema.
61. O que causou à autora estranheza e insatisfação.
62. Com o que se deslocou à F… a fim de solicitar segunda opinião.
63. E porque o problema persistia, apesar de manter o ventilador accionado permanentemente, agravando-se até, a autora, mais uma vez, deslocou-se em 24-04-2008 à 1.ª ré.
64. Em 18-09-2008, mais uma vez e perante a persistência e agravamento do problema, o veículo deu novamente entrada na oficina da 1.ª ré.
65. Com queixas de maus odores que causavam, pela sua toxidade, irritação das vias respiratórias e ao nível ocular, pressão encefálica e fortes dores de cabeça, nas pessoas que nele fossem transportadas – cfr. doc. 6.
66. Apesar das supostas intervenções pela 1.ª ré, e perante a persistência dos odores e cheiros, novamente em 13-10-2008, a autora voltou a reclamar dos odores e irritação dos olhos e das vias respiratórias.
67. Para o que desta, desta vez, se deslocou às instalações da F… (Porto).
68. Tendo o veículo lá ficado depositado 8 (oito) dias – cfr. doc. 7.
69. Em 20-10-2008, perante a persistência e agravamento dos odores e cheiros e, sobretudo, das suas consequências, dado que os filhos e esposa do sócio-gerente da autora, também ela sócia, se recusavam a fazer-se transportar no veículo.
70. Dado que sempre que o faziam sentiam-se indispostos, com sintomas de congestionamento nasal e a autora, por carta registada e com aviso de recepção, comunicou à 2.ª ré, todos os factos supra alegados – cfr. doc. 8, 9 e 10.
71. Decorrido (1) mês, em 03-11-2008, e novamente porque os maus odores e irritações persistiam, a demandante dirigiu-se novamente às oficinas da F… – cfr. doc. 11.
72. O veículo esteve nas oficinas da F… durante mais de (1) um mês.
73. Em 25-11-2008, privada do veículo, privada da disponibilidade e dos poderes de disposição sobre o veículo, da sua utilização, fruição e uso,
74. E porque os problemas se mantinham e vinham a agravar-se apesar da pouca circulação do veículo,
75. Tornando incomportável o transporte de pessoas
76. E porque as oficinas das rés, apesar da constatação da manifestação das anomalias, dos defeitos e/ou vícios,
77. Que impediam a sua, do veículo, utilização para o fim pretendido – de assegurar as deslocações do sócio-gerente da demandante e demais familiares que integram o respectivo agregado -
78. Apresentando os ocupantes sintomatologia supra alegada.
79. Tendo o veículo passado naquele 1.º ano, mais de 2 meses nas oficinas,
80. E ainda porque as rés não resolveram o problema, eliminando a causa dos odores e cheiros tóxicos.
81. Tendo o veículo estado nas oficinas da 1.ª ré largos períodos de tempo.
82. Tendo sido experimentado pelos Srs. Eng. G… e K…..
83. Os quais solicitaram à autora que aguardasse, dado que iriam solicitar junto da Renault uma solução para o problema, fosse a eliminação do problema, fosse a substituição do veículo, fosse a restituição do preço.
84. Em meados de Janeiro de 2009, dois representantes da 2.ª ré, os Srs. H… e o Sr. Eng. I… procederam à experimentação do veículo em circulação.
85. E que, em 15 dias, seria apresentada uma solução à demandante.
86. Desde então que o veículo, ainda que na disponibilidade da autora, esteve sempre parado.
87. Apresentando actualmente 12.723 Km.
88. A autora não obteve qualquer resposta relativamente à interpelação das rés para indicarem local, dia e hora para entrega do veículo.
89. A autora procedeu à resolução do contrato.
90. A coisa comprada, o veículo, não pode ser considerada adequada ao uso normal que lhe está adstrito, a sua circulação e permitir a quem nele circula, fazê-lo sem perigo para a sua saúde e para os demais utilizadores da via pública.
91. Nem para o uso específico para que a autora o destinava, para assegurar as deslocações do seu sócio e gerente a clientes, fornecedores, associados, parceiros, feiras e convenções,
92. Sendo de todo inadequada à circulação rodoviária e ao transporte de pessoas.
93. Não era adequado para o fim para que foi concebido e adquirido.
94. Com o conhecimento de tais factos não se celebraria qualquer negócio, a autora não adquiria o veículo.
95. O que era do conhecimento da vendedora.
96. A autora está a pagar, a título de prestação, a quantia mensal de €: 607,73, tendo já procedido ao pagamento de 20 delas, já vencidas.
97. Tendo pago ainda uma 1.ª prestação de €: 1.640,45.
98. Este veículo é o único veículo com estas características, ligeiro de passageiros de gama alta, que a autora possui.
99. Sendo proprietária de 2 veículos ligeiros de mercadorias, todos da marca Citroen, com as matrículas ..-FN-.. e ..-..-UH – cfr. doc. 29 e 30.
100. Tal veículo, para além do transporte dos representantes legais da autora destina-se ainda às deslocações pessoais, aos passeios familiares de fim-de-semana e férias, com o agregado familiar.
101. Dado que o sócio-gerente e agregado não têm outro veículo.
102. A autora é accionista da “J…, S.A.” – cfr. doc. 31
103. Deslocando-se, duas vezes por semana, a reuniões com os restantes accionistas em ….
104. Conforme referido, nestes 13 meses que mediaram entre a aquisição do veículo e a resolução do contrato, a autora esteve privada do veículo semanas seguidas.
105. Num total de pelo menos 60 dias.
106. E ainda por não ter possibilidades financeiras para o fazer.
107. A custos de mercado de aluguer, um veículo de características semelhantes tem um valor diário de pelo menos €: 30,00.
108. Foi a autora quem negociou o preço com a vendedora.
109. Sendo que, celebrou com a E…, S.A., um contrato de ALD, apenas com o intuito de financiar a aquisição do veículo, o pagamento do preço.
110. Verifica-se ainda que as partes quiseram realmente outorgar um contrato de compra e venda ainda que a prestações, com reserva de propriedade – querido indirectamente pelas partes.
111. Se a autora tivesse sido informada daquelas anomalias do veículo, nunca optaria por adquirir um produto ou serviço que, de qualquer forma, pudesse representar um risco para a saúde – ou até mesmo para a vida -, quer sua, quer de terceiros, pelo que, conhecendo os riscos, com o que nunca teria aceite contratar.
112. Porque o mesmo se encontrava dentro do período legal e contratual, de garantia, de 2 anos (art. 15º da p.i., não impugnado).

2. De direito

Os factos acabados de transcrever não foram impugnados em sede de recurso e não há fundamento para os alterar nos termos do art.º 712.º do CPC, pelo que se consideram definitivamente assentes. Além de terem sido aceites expressamente pela recorrente, esta não os impugnou com observância dos ónus impostos pelo art.º 685.º-B, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código. E as recorridas não requereram a ampliação do âmbito do recurso nos termos do n.º 2 do art.º 684.º-A, nem, muito menos, observaram os mesmos ónus, a que também estariam sujeitas, caso pretendessem obter qualquer alteração da matéria de facto. A referência que a esta fizeram nas contra-alegações tem apenas a ver com o pretenso reconhecimento do direito invocado pela recorrente, baseado nos factos provados e na presunção judicial que deles entende decorrer, a qual será apreciada infra, por se pensar ser o momento mais oportuno, pelo que, com o devido respeito por melhor e superior opinião, entendemos ser para aqui irrelevante.
Resta, pois, aplicar o direito aos factos provados, tendo em vista a resolução da supramencionada questão.
É pacífico que estamos perante uma venda de coisa defeituosa.
Da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, n.º 1, e 914.º, ambos do Código Civil, com os art.ºs 908.º a 910.º e 915.º e segs., do mesmo diploma, resulta que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela, de anulação do contrato e do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.
Atento o disposto no art.º 916.º do Código Civil, para que haja responsabilidade pela venda de coisa defeituosa é necessário que o comprador, previamente, denuncie ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este tiver actuado com dolo (n.º 1), devendo a denúncia ser feita até 30 dias, depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa (n.º 2), sendo que estes prazos são, respectivamente, de um e cinco anos, quando a coisa vendida é um imóvel (n.º 3, introduzido pelo art.º 3.º do DL n.º 267/94, de 25/10, que não tem aqui aplicação por a coisa vendida ser um automóvel).
Este artigo estabelece, claramente, um prazo de caducidade.
Parece existir consenso, tanto ao nível da doutrina como da jurisprudência, quanto ao dever de denúncia a que o comprador está legalmente obrigado, previamente ao exercício de qualquer dos direitos que a lei lhe confere, excepto se o vendedor tiver usado de dolo, tal como resulta do citado art.º 916.º, n.º 1, sob pena de caducidade dos mesmos direitos nos termos referidos (v.g. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., pág. 191; Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso, em especial na compra e venda e na empreitada, Almedina, 2001, pág. 331; João Calvão da Silva, in Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, 2002, págs. 73 e 74; Luís de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III (Contratos em Especial), 6.ª edição, Almedina, 2009, pág. 129; e os acórdãos do STJ de 29/1/2008 e de 21/5/2009, processos n.ºs 07B4540 e 08B1356 e desta Relação de 8/2/2010, processo n.º 3958/06.2TBGDM.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Denunciado o defeito, inicia-se o prazo para a propositura da respectiva acção, que é de seis meses, sob pena de caducidade, nos termos do art.º 917.º do Código Civil que dispõe:
“A acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º”.
Apesar do normativo acabado de transcrever só prever a acção de anulação com base no erro, é de o aplicar, por interpretação extensiva, a todas as outras acções que visem a tutela do adquirente de coisa defeituosa, como tem vindo a entender a melhor doutrina e a maioria da jurisprudência (cfr., entre outros, Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 5.ª ed., Almedina, 2008, pág. 80; Pedro Romano Martinez, obra citada, pág. 413; Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 193; e Acórdãos da RC, de 31.05.94, CJ, 1994, III, pág. 22, desta Relação de 11/4/2011, processo n.º 887/09.1TBVNG.P e do STJ de 18/03/2003, processo n.º 03B45 e de 96.11.2007, processo n.º 07A3440, todos em www.dgsi.pt.).
Não vem posta em causa a aplicabilidade do citado art.º 917.º nesta acção aos direitos invocados pela autora/recorrente.
No recurso, vem apenas questionado o funcionamento da caducidade da acção interposta, reconhecida na sentença, mas que aquela não aceita, defendendo que houve reconhecimento do direito à reparação dos defeitos pelas recorridas e abuso de direito por parte das mesmas, o que impede a verificação de tal excepção.
Vejamos:
Sob a epígrafe “causas impeditivas da caducidade”, o art.º 331.º do Código Civil preceitua:
“1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido”.
Tratando-se de prazo fixado por disposição legal relativa a direito disponível, como é o caso, o n.º 2 do artigo acabado de transcrever admite que a caducidade seja detida pelo reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido (cfr. Vaz Serra, RLJ, 107, pág. 25, citado por António Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, vol. V, parte geral, nota 646, pág. 225).
Porém, como é referido nesta mesma página, a jurisprudência exige que o reconhecimento tenha o mesmo efeito do que a prática do acto sujeito a caducidade, ou, tratando-se de um prazo de propositura de uma acção judicial, como neste caso sucede, que tenha o efeito de uma sentença judicial; que o reconhecimento tenha lugar antes de o próprio direito em jogo ter caducado; e que o reconhecimento seja “concreto, preciso, sem ambiguidades ou de natureza vaga ou genérica” (cfr., para além dos acórdãos ali citados, que nos dispensamos de repetir aqui, entre outros, os acórdãos do STJ de 19/1/2012, processo n.º 1754/06.6TBCBR.C1.S1 e de 7/2/2013, processo n.º 756/10.2TBFLG.G1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt, sendo este último apenas o sumário que aqui reproduzimos na parte que interessa nos seguintes termos: “O reconhecimento do direito, por banda daquele contra quem o mesmo deve ser exercido, para ter eficácia impeditiva da caducidade (art.º 331.º n.º 2 do C.C.), tem de ser concreto, preciso, sem margem de vaguidade ou ambiguidade, antes de findo o prazo de caducidade.”).
Nas mesmas águas navega a melhor doutrina.
Assim:
Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao citado art.º 331.º, no seu Código Civil anotado, vol. I, 3.ª ed., págs. 293 e 294, escreveram:
“O simples reconhecimento do direito, antes do termo da caducidade, por aquele contra quem deve ser exercido, não tem relevância se, através desse reconhecimento, se não produzir o mesmo resultado que se alcançaria com a prática tempestiva do acto a que a lei ou uma convenção atribuam efeito impeditivo. Só nos casos em que o reconhecimento assuma o mesmo valor do acto normalmente impeditivo é que deixará de verificar-se a caducidade.
Conforme sublinha Vaz Serra (na R.L.J., ano 107.º, pág. 24), «a caducidade é estabelecida com o fim de, dentro de certo prazo, se tornar certa, se consolidar, se esclarecer determinada situação jurídica; por isso, o reconhecimento impeditivo da caducidade tem de ter o mesmo efeito de tornar certa a situação».”
E, citando novamente Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, n.º 118, in B.M.J., n.º 107, acrescentam: “Se se trata do prazo de proposição de uma acção judicial o reconhecimento «deve ser tal que torne o direito certo e faça as vezes da sentença, porque tem o mesmo efeito que a sentença pela qual o direito fosse reconhecido»”.
Ainda que não se tenha um entendimento tão rigoroso como o que acaba de se referenciar e se sigam os ensinamentos de Pedro Romano Martinez (Cumprimento Defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, págs. 427 e segs.), quanto ao citado art.º 331.º, n.º 2, entendendo que, falando só em reconhecimento do direito, e não obstante as diferenças entre a caducidade e a prescrição, não exige interpretação tão restritiva, muitas vezes conducente a situações de manifesto abuso de direito, violadoras do princípio da boa fé, a verdade é que é sempre de exigir que o reconhecimento do direito perante o respectivo titular seja inequívoco e preciso, no sentido de aceitar que o cumprimento se apresenta como defeituoso, não podendo subsistir quaisquer dúvidas sobre a aceitação pelo devedor do direito do credor (cfr. acórdãos do STJ de 25/1/98, BMJ n.º 481.º, pág. 430 e de 13/12/07, processo n.º 07A4160, in www.dgsi.pt.) e que o reconhecimento do direito seja tal que, em boa fé, torne efectivamente desnecessário o recurso à via judicial (cfr. acórdãos do STJ de 4/7/2002, processo n.º 02B1932 e de 3/4/2008, processo n.º 08B245, em www.dgsi.pt.).
Deste modo, o reconhecimento terá que ser sempre claro e inequívoco, não oferecendo quaisquer dúvidas sobre a atitude de quem reconhece.
Ora, no caso em apreço, essas dúvidas subsistem, pelo que, a nosso ver, não existiu reconhecimento, não obstante as várias tentativas fracassadas de eliminação do defeito.
A recorrente extrai o reconhecimento do seu direito da factualidade dada como provada nos n.ºs 29, 30, 31, 83, 84 e 85 da fundamentação de facto, acima transcrita, e da presunção judicial dela decorrente.
É sabido, e di-lo o art.º 349.º do Código Civil, que “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
Ainda que se possa lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, na apreciação global para decisão da matéria de facto, não podemos olvidar os termos em que elas são permitidas, que são os previstos nos art.ºs 349.º e 351.º do diploma acabado de referir.
Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/3/2004, processo n.º 03B4354, acessível em www.dgsi.pt:
“Sendo as presunções judiciais, na tipificação do artigo 349.º do Código Civil, «ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», integram a sua estrutura jurídica: a denominada base da presunção, constituída pelo facto ou factos conhecidos, isto é, provados através de outros meios de prova; os elementos de racionalidade lógica e técnico-experiencial actuando por indução sobre os mesmos factos; e o facto ou factos presumidos mediante estas operações intelectuais.
É, pois, imperativo do artigo 349.º que a base da presunção esteja provada, que os respectivos factos integradores – revestidos dos atributos de seriedade, precisão e concordância – sejam conhecidos, possuindo o julgador acerca deles o grau de ciência que as provas podem proporcionar, uma exigência garantística elementar contra o risco de arbítrio no exercício da actividade jurisdicional”.
Recordemos os factos em que a recorrente estriba o seu entendimento, quer do reconhecimento expresso, quer do presumido:
“Todavia e apesar da resolução do contrato pela autora e da posição tomada pelas rés, a 1.ª ré pretendeu ainda tentar apurar a causa dos odores e cheiros e a sua eliminação, para o que convenceu a autora a permitir esses trabalhos” (factos 29 a 31).
“Os quais (o Eng.º H… e o K…) solicitaram à autora que aguardasse, dado que iriam solicitar junto da Renault uma solução para o problema, fosse a eliminação do problema, fosse a substituição do veículo, fosse a restituição do preço” (facto 83).
“Em meados de Janeiro de 2009, dois representantes da 2.ª ré, os Srs. H… e o Sr. Eng. I… procederam à experimentação do veículo em circulação e (disseram) que, em 15 dias, seria apresentada uma solução à demandante” (factos 84 e 85).
Os factos ocorreram após a última denúncia dos defeitos, ocorrida em 10/11/2008 (facto 15), a resolução do contrato pela autora por carta de 21/11/2008 (facto 18), o envio de carta à autora pela 2.ª ré, em 25/11/2008, onde “preconizava a conformidade do veículo com os requisitos do construtor” (facto 24), a interpelação da autora pela mesma ré, por carta de 18/12/2008, para que procedesse ao levantamento do veículo que se encontrava nas instalações F… (facto 26) e depois de ter estado nas oficinas da 1.ª ré e de ter sido experimentado pelos referidos G… e K… (factos 81 e 82).
Em parte alguma existe o tal reconhecimento expresso, concreto, inequívoco, claro, no sentido de as rés aceitarem o cumprimento como defeituoso. Bem pelo contrário, a 2.ª ré declinou qualquer cumprimento defeituoso, afirmando que o veículo se encontrava em conformidade com os requisitos do construtor, o que faz presumir que não teria defeitos. As tentativas de reparação, só por si, não implicam reconhecimento dos direitos invocados pela autora/recorrente. A promessa de apresentação de uma “solução para o problema” também não implica aquele reconhecimento, pois, não estando ainda identificada a causa do problema, não poderia haver reconhecimento do respectivo defeito e dos correspondentes direitos da ora recorrente.
E, se não está identificado o defeito, ou melhor, a sua causa, não pode falar-se em reconhecimento relevante por forma a que, em boa fé, tornasse efectivamente desnecessário o recurso à via judicial.
Os factos provados, nomeadamente os invocados pela recorrente não permitem concluir pelo reconhecimento expresso, muito menos tácito ou presumido.
Aliás, exigindo-se um reconhecimento concreto, preciso, sem ambiguidades ou de natureza vaga ou genérica, temos muitas dificuldades em conceber um reconhecimento com base em presunções judiciais, pois não vislumbramos como ele pudesse ter os efeitos de uma sentença e dispensar a respectiva acção judicial. Cremos até não ser permitido, na medida em que não existe, para a caducidade, uma norma semelhante à do art.º 325.º, n.º 2, do Código Civil, prevista apenas para a prescrição, nos termos da qual “o reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam”. Além de se tratar de regimes diferentes, são também diversos os seus fundamentos. Enquanto que na caducidade prevalecem considerações de certeza e de ordem pública, no sentido de ser necessário que, ao fim de certo tempo, as situações jurídicas se tornem certas e inatacáveis, estando em causa prazos peremptórios de exercício do direito; na prescrição avulta a ideia de negligência do titular do direito ao não exercê-lo durante certo lapso de tempo tido como razoável pelo legislador.
De qualquer modo, importa aqui afirmar que os factos indicados como base da pretensa presunção não permitem concluir pelo reconhecimento com as necessárias características impeditivas do funcionamento da caducidade.
É que, e citando mais uma vez o mencionado acórdão do STJ de 25/3/2004, “os factos base de presunção judicial, como todos os factos, são susceptíveis de uma certa elaboração, em que podem intervir elementos de racionalidade lógica, regras técnicas e conhecimentos radicados na experiência comum, que podem por indução revelar outros aspectos de facto desconhecidos.
Mas por isso mesmo exige a lei, imperativamente, que a base da presunção esteja provada, que os factos dela integradores sejam conhecidos, possuindo o julgador acerca deles o grau de ciência que as provas podem proporcionar.
Trata-se, evidentemente, de uma exigência garantística elementar, sem a qual a actividade jurisdicional correria o risco de se volver em puro arbítrio.
Daí que também a doutrina revista a base da presunção dos atributos da seriedade, precisão e concordância.”
E, no presente caso, nada está provado que permita afirmar o reconhecimento com as aludidas características, único que poderia ser tido como impeditivo da caducidade.
Apesar da amálgama dos factos alegados e provados, é muito pouca a matéria de facto provada, com relevância para a solução desta questão.
Com base nela, não podemos concluir, de forma segura, que as rés aceitaram reparar, à sua custa, o defeito reclamado pela autora, assim reconhecendo o direito desta à reparação do veículo, à sua substituição ou à restituição do preço, muito menos os direitos por ela reclamados nesta acção – de resolução ou anulação do contrato de compra e venda!
Desconhece-se, desde logo, a causa da anomalia que era objecto das queixas da autora; os termos em que as rés se disponibilizavam solucionar o problema do veículo, que, elas próprias, ignoravam; quais os concretos problemas que estariam abrangidos por tal disponibilidade e cuja solução se propuseram apresentar; e se tal solução abrangeria a resolução de todos os problemas que estiveram na base da presente acção.
Sendo muito estranho – e por isso pouco concludente – que, caso as rés pretendessem assegurar, à sua custa, a reparação ou substituição do veículo ou a restituição do preço, assim cumprindo as obrigações a que se obrigaram ou que garantiram, estivessem mais de um ano para o fazer.
Mal se compreendendo, por outro lado, que a autora, tendo em conta tal lapso de tempo e tratando-se de defeito que detectou logo após a venda e entrega do veículo, ocorridas em 28 de Setembro de 2007, e não obstante as denúncias efectuadas e as tentativas fracassadas de eliminação, ao que parece sempre do mesmo defeito, venha agora considerar impedida a caducidade dos direitos que invocou nesta acção, instaurada apenas em 22/5/2009.
Ainda que se considere que, naquelas tentativas frustradas de eliminação do defeito, houve novos cumprimentos defeituosos aos quais se devem aplicar as mesmas regras do primeiro, designadamente as respeitantes a prazos, não podemos deixar de considerar que a última reclamação efectuada ocorreu em 10/11/2008, sendo esse o início do prazo de caducidade, por ser esse o momento em que o direito podia legalmente ser exercido (art.º 329.º do Código Civil).
A partir daí, houve apenas uma manifestação de intenção genérica de resolução do problema, não se vislumbrando qualquer comportamento das rés que permitisse concluir, sem margem para dúvidas, que aceitavam os direitos que a autora se propõe exercer através da presente acção.
E não ocorreu qualquer outra denúncia, não podendo falar-se em renovação das anteriormente apresentadas.
Refira-se que, em Janeiro de 2009, não houve denúncia alguma dos defeitos, mas apenas uma “experimentação do veículo em circulação”, certamente na tentativa de descobrir a causa dos odores que exalava.
Não faz assim sentido afirmar-se que o prazo da caducidade só começou a contar-se em Janeiro de 2009, nem pode entender-se o comportamento das rés, acima descrito, como reconhecimento inequívoco dos direitos reclamados pela autora.
Inexiste, pois, esta causa impeditiva da caducidade.

O outro fundamento invocado para obstar à verificação da caducidade é o abuso de direito.
Como é sabido e temos vindo a repetir noutros acórdãos (cfr, por todos, o de 10/7/2013, processo n.º 821/10.6TVPRT.P1, in www.dgsi, que aqui reproduzimos nesta parte), o actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536).
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171).
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ – STJ - ano III 20/5/97, tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ – STJ -, ano VII, tomo III, pág. 124; da RL de 29/1/98, na CJ, ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278). Porque é de conhecimento oficioso, pode ser apreciado, ainda que não o tenha sido em 1.ª instância, dependendo a sua verificação da alegação e prova dos aludidos factos.
Esta orientação jurisprudencial mereceu o aplauso do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado” (in Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 2.ª edição, pág. 247).
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito (cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1).
Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado:
“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”
E ensina, lapidarmente, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“(...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.” (cfr., ainda, o mesmo autor, no Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão, pág. 292, onde menciona as mesmas quatro proposições para a concretização da confiança).
A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.
Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural” (citado acórdão de 15/1/2013).
Para que pudesse considerar-se abusivo o exercício do direito por parte das rés/recorridas, era necessário demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que excederam, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito por elas exercido ou que com a sua pretensão violavam expectativas incutidas na autora.
Ora, no presente caso, isso não se verifica.
Não só não foram provados factos que permitam concluir pelo excesso manifesto, clamoroso, do fim social ou económico do direito exercido pelas rés ao invocarem a caducidade, mas também que a sua pretensão viola expectativas por elas incutidas à autora.
Os factos, por esta, invocados em sede de recurso (provados sob os n.ºs 29, 30 e 83 a 85) traduzem-se em meras apreciações subjectivas e tentativas de descoberta e solução para o problema, genéricas e imprecisas, não permitindo equacionar uma eventual ofensa clamorosa a um sentimento de justiça socialmente dominante.
Nenhuma confiança há a tutelar, pois o comportamento das rés não permite, com razoabilidade, fazer acreditar que resolveriam o problema do veículo à autora.
Note-se que não houve por parte daquelas qualquer promessa de resolução, nem elas criaram uma expectativa fundada de que iriam reparar o veículo.
Limitaram-se a tentar descobrir a causa dos maus cheiros e propor uma eventual solução.
Isto já depois de a autora ter resolvido o contrato e de ter depositado o veículo nas instalações das rés/recorridas e de a 2.ª ré lhe ter comunicado a conformidade do veículo com os requisitos do construtor e de ter rejeitado a possibilidade de o mesmo permanecer nas instalações da 1.ª ré, exigindo o seu levantamento ou o pagamento do parqueamento, tendo aquela optado pelo levantamento (cfr. factos provados sob os n.ºs 24 a 28).
Este comportamento jamais permite criar expectativas de resolução do problema do veículo, tendo as rés/recorridas afirmado que nem sequer reconheciam a sua existência e que não pretendiam proceder a qualquer reparação, por não a considerarem necessária.
Faltando o primeiro pressuposto da situação de confiança, é manifesta a falta dos restantes, acima referidos, para que se possa considerar verificado o abuso de direito na modalidade indicada.
As rés limitaram-se a invocar a caducidade da acção em termos que não evidencia violação, muito menos clamorosa, do direito conferido pelos citados art.ºs 916.º, n.º 2 e 917.º, por não ter violado qualquer confiança que tivesse sido incutida à autora, pelo que, salvo melhor opinião, não abusaram desse direito.
Inexiste, por conseguinte, abuso de direito, impeditivo do direito de caducidade da acção.

Cremos ser inequívoco que decorreram mais de seis meses sobre a denúncia do defeito sem a respectiva acção ter sido proposta. Ainda que se entenda que houve renovação da denúncia, a última ocorreu em 10/11/2008. E não se verificando qualquer circunstância impeditiva, a caducidade verificou-se com o decurso daquele prazo, pelo que, quando a acção foi instaurada, em 22/5/2009, já tinha caducado o direito de acção fundada na compra de coisa defeituosa.
Tendo caducado o exercício do direito invocado pela autora, tornou-se impossível o seu exercício judicial, como foi decidido pela primeira instância.

Improcede, pois, a apelação, nenhuma censura merecendo a sentença impugnada, a qual deve ser mantida.

Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC:

I. O reconhecimento do direito, por parte daquele contra quem o mesmo deva ser exercido, para ter eficácia impeditiva da caducidade, nos termos do n.º 2 do art.º 331.º do Código Civil, tem de ser concreto, preciso, inequívoco, sem ambiguidades ou vaguidades, antes do termo do prazo de caducidade, por forma a que torne o direito certo e faça as vezes de uma sentença judicial.
II. O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, manifesta-se pela violação do princípio da confiança e a sua proibição reclama uma actuação pautada por regras éticas, de decência e respeito pelos direitos da contraparte.
III. Não existe reconhecimento eficaz, nem abuso do direito, por parte de quem invoca a caducidade duma acção fundada na venda de uma coisa com defeitos, que não aceita e cuja causa se propõe averiguar.

III. Decisão

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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Custas pela apelante.
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Porto, 19 de Novembro de 2013
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] Neste sentido, Conselheiro Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 15.