Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
918/10.2TAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: CRIME DE BURLA
DECISÃO INSTRUTÓRIA
VÍCIOS DA DECISÃO
Nº do Documento: RP20120215918/10.2TAPVZ.P1
Data do Acordão: 02/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os vícios do artigo 410.º n.º 2 do CPP são vícios relativos à sentença, não à decisão instrutória.
II – Não havendo, nos autos, indício probatório algum de que o assistente tenha sido induzido, pelos arguidos, em erro sobre os factos não pode o JIC pronunciá-los pela comissão desse crime.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso penal n.º 918/10.2TAPVZ.P1
do Juiz de Instrução Criminal da Póvoa de Varzim

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório.
1. B…, Assistente no processo em epígrafe, notificado que foi do despacho de não pronúncia dos Arguidos C…, D… e E…, que já não haviam sido acusados pelo Ministério Público da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla e outro de falsificação de documento, previstos e puníveis, respectivamente, pelos art.os 218.º e 256.º do Código Penal, um de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previstos e puníveis, respectivamente, pelos art.os 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias e com ele discordando, interpôs o presente recurso, pedindo que se proferida acórdão pronunciando os arguidos, para o que formulou as seguintes conclusões:
1.º Sendo as exigências da verdade indiciária, para os respectivos crimes, menos rigorosas na fase instrutória do que a sua comprovação em julgamento, deve daqui conclui-se pela submissão a julgamento de todos os arguidos, logo que esses indícios suficientes se nos evidenciem.
2.º No caso presente, abundam esses indícios e, porventura mais que suficientes, para levar os arguidos a julgamento.
3.º E nem sequer há aqui necessidade de referenciar esses suficientes indícios, descobertos pelo M.P., e já que a Decisão Instrutória se encontra, também ela, pejada de tais suficientes indícios.
Assim
4.º A págs. 9 do D.I. é referido que: O arguido C… admite a possibilidade de tal ter acontecido apenas ocasionalmente, só não aceitando, pois, o número em que tais horas extra ocorreram!...
5.º E a págs. 10 da mesma D.I. ao ficar fundamentado, pela testemunha F…, que o assistente fazia muitas horas extraordinárias, ficaram confirmadas, para efeitos indiciários, as declarações do assistente, produzidas neste referenciado sentido!...
6.º A págs. 24 da D.I. e a respeito da existência dos indícios conducentes ao crime de burla, o Sr. Juiz a quo deixa-nos as seguintes asserções:
- “Salvo o devido respeito por opinião contrária, ainda que tal possa ter ocorrido e que os sócios da empresa se tenham aproveitado das fragilidades decorrentes de uma relação laboral, tal não é por si só suficiente para integrar o conceito de burla...”
7.º A págs. 25 do D.I., é-nos reforçada a convicção pelo Mtmo Juiz a quo, da existência desses suficientes indícios, ao fundamentar:
- “Em síntese, da matéria de facto alegada e daquela tida por suficientemente indiciada, não resulta que o assistente tenha actuado…”
8.º Para reforço da convicção sobre a existência dos indícios suficientes, da ocorrência dos crimes imputados aos arguidos, acrescem as presunções resultantes das máximas populares, traduzidas na ordem natural das coisas e na experiência comum.
9.º Porque depondo em causa própria, e porque libertos do dever de falar verdade, os depoimentos dos três arguidos no debate instrutório, assemelharam-se a uma peça teatral, e prenhe de puro farisaísmo!...
10.º A respeito da entrega das gratificações sub judice ao assistente, depondo o arguido, E…, a págs. 3 das transcrições, que as mesmas:
- “...não eram (feitas) de uma vez só, eram em várias vezes. Se eram mensais ou não, não sei. Mas eram várias vezes no ano;”
Depondo o arguido, C…, a págs. 12 das mesmas transcrições:
- “C1… - Portanto, como é lógico, é mais fácil pagar faseado do que pagar tudo de uma vez...” e;
Depondo o arguido D…, a págs. 15 das transcrições:
- “D1…- Quando é, nós é um lema gratificar as pessoas.”
- “D1…- De mês a mês, consoante as possibilidades.;“
Daqui se há-de concluir destinarem-se tais gratificações ao pagamento, em singelo, daquelas horas suplementares!...
11.º A ocultação dos caracteres dos recibos das gratificações entregues ao assistente, por parte dos arguidos, constitui-se na presunção de que tais gratificações se destinavam ao pagamento das horas extra em referenciação.
12.º Da acareação ocorrida no debate instrutório, e referenciada a págs. 11 da D.I., pese embora as posições antagónicas em que a partes se mantiveram, quando conjugada com os demais factos que vimos expondo, leva ao reforço da convicção da ocorrência dos suficientes indícios sub judice.
13.º Do grotesco episódio relatado a págs. 17 das transcrições e referente ao horário de trabalho do assistente, mais se nos reforça a convicção de que o recorrente trabalhou todo aquele incomensurável número de horas extraordinárias!...
14.º Nas fugas aos pagamentos dos normais vencimentos salariais do recorrente, na correspondente não entrega das prestações à S.S., bem como na não entrega à entidade seguradora para os acidentes de vida e de trabalho, das prestações correspondentes à totalidade das horas extra trabalhadas, está patente o visível e ilegítimo enriquecimento dos arguidos.
15.º Uma vez que os arguidos admitem a possibilidade de o assistente ter trabalhado as horas extra em referenciação, mal fica ao Sr. Juiz a quo vir a págs. 12 da sua Decisão Instrutória, como que envergonhadamente, referir:
- “Sucede porém que desta mesma prova já não resulta claro ou suficientemente indiciado que o assistente tenha efectivamente trabalhado para além do seu horário normal de trabalho.”
16.º Se o Sr. Juiz, para tal estranha fundamentação, se estribou no facto de os arguidos negarem a ocorrência desse trabalho suplementar, é caso para se perguntar, desde quando é que a negação do arguido tem o selo da infabilidade e da verdade?!
17.º Mas se os arguidos não negam essa realidade e até admitem expressamente o contrário, é caso para se perguntar qual o fundamento legal para tanta generosidade e paternalismo atribuído aos arguidos!...
18.º Com as artimanhas de que resultou a entrega das gratificações ao assistente, fazendo-o acreditar que estava a ser remunerado de acordo com os valores a que tinha direito, maxime os resultantes do trabalho extraordinário, os arguidos induziram o assistente em erro e causaram-lhe um enorme prejuízo patrimonial.
19.º Sendo estes os factos que subjazem à questão a dirimir, ninguém de boa-fé, e mais ainda esse Venerando Tribunal poderá pô-los em causa.
20.º Tais factos, correspondendo na nossa Lei penal substantiva a certas incriminações, daqui resulta poder afirmar encontrarem-se preenchidos os pressupostos para se poder concluir pelos indícios suficientes da prática dos correspondentes crimes.
21.º Nestes termos, indicia-se claramente o preenchimento dos crimes de burla previsto no art.º 217.º do C. Penal, de falsificação de documentos, previsto no art.º 256.º do C. Penal, e de fraude contra a S. S., previsto no art.º 106.º do RGIT.
22.º As consequências da ocorrência dos suficientes indícios de tais crimes, correspondem a uma ruinosa afectação patrimonial do assistente, traduzida quer no não recebimento do trabalho suplementar como horas extra, quer na drástica afectação da pensão de reforma do assistente, agora reduzida a menos de metade do seu real valor.
23.º Não sendo considerados os suficientes indícios para levar os arguidos a julgamento, não os pronunciando, haveria o Sr. juiz a quo, de violar o art.º 308.º, n.º 1 do C. P. Penal.
24.º Apontando claramente as premissas fundamentantes da factualidade típica para a ocorrência dos indícios mais que suficientes para que os arguidos sejam pronunciados e, não o sendo, cometeu o Sr. Juiz a quo uma insanável contradição entre essas premissas fundamentantes e a Decisão instrutória, por que optou.
25.º Do mesmo procedimento do Juiz do TIC, haveria de ocorrer um notório erro na apreciação da prova.
26.º De entre esses erros notórios na apreciação da prova e insanáveis contradições dispersas na Decisão Instrutória, destaca-se o seguinte:
- Os arguidos admitem expressamente, a págs. 9 da D.I, que o assistente tenha trabalhado horas extraordinárias e o Sr. Juiz, a págs. 12 da D.I. declara:
- “Sucede porém que desta mesma prova já não resulta claro ou suficientemente indiciado que o assistente tenha efectivamente trabalhado para além do seu horário normal de trabalho.”
27.º Transpondo e adoptando os ensinamentos do Ac. do STJ de 19 de Julho de 2006, publicado in http://www.dgsi, para a fase jurisdicional da presente instrução, podemos anotar que o vício do erro notório na apreciação da prova há-de traduzir-se na incorrecção evidente, na valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, de onde resultam as ilógicas ou arbitrárias conclusões sobre a factualidade típica a subsumir aos comandos legais aplicáveis.
28.º Se o Sr. Juiz do TIC, não ouvindo as testemunhas do assistente se haveria de fundamentar na Decisão do Ministério Público, para proferir a Decisão Instrutória, deveria, então, em obediência aos imperativos da lógica formal, ter optado pela ocorrência dos indícios suficientes, para pronunciar os arguidos, tal como considerados foram pelo M.P.!...
29.º A recorrência ao Direito Penal, no caso presente, constitui-se, numa ultima ratio, para a realização do direito e da Justiça.

2. Por seu lado, a Exm.ª Sr.ª Procuradora Adjunta junto do Tribunal recorrido pronunciou-se pela manutenção do douto despacho recorrido, expressando, em resumo, concordância com os seus fundamentos, os quais, de resto, explanara no seu despacho de arquivamento do inquérito.

3. O recurso foi admitido pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal.

4. O Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, tendo vista do recurso foi de parecer que o mesmo não merece provimento.

4. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte do Assistente / Recorrente.

5. Efectuado o exame preliminar, por despacho já transitado em julgado considerámos que, uma vez que para tal o Assistente carecia de legitimidade, não admitimos o recurso da não pronúncia dos Arguidos relativamente aos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social, previstos e puníveis, respectivamente, pelos art.os, previsto e punido pelo artigo 105.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

5. Colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir do mérito do recurso.
***
II - Fundamentação.
1. A decisão recorrida.
Nos presentes autos, finda que foi a fase do inquérito e na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a fls. 206 e seguintes, veio o assistente B… requerer a abertura da instrução, no sentido de a final serem os arguidos C…, D… e E… pronunciados pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º do Código Penal, um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, e um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º do Código Penal.
Alega, para tanto e em síntese, que os arguidos emitiram um recibo para pagamento ao assistente por um montante claramente inferior ao que este teria direito, obrigando o assistente a assinar tal documento.
Termina, concluindo pela procedência do requerimento de abertura da instrução.
*
Com utilidade para a decisão a proferir nesta fase entendeu o Tribunal proceder à inquirição das testemunhas arroladas no requerimento de abertura da instrução, cujo depoimento foi reduzido a auto nos termos constantes de fls. 202 e seguintes.
*
Não se tendo vislumbrado qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, nem tendo sido requerida a realização de mais algum, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do Código de Processo Penal.
Cumpre agora, nos termos do artigo 308.º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
*
Fundamentação de facto.
A Instrução visa, segundo o que nos diz o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Configura-se assim como fase processual sempre facultativa – cfr. n.º 2 do mesmo dispositivo – destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como deixamos dito, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Depois, no n.º 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o n.º 2 do artigo 283.º, nos termos do qual “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Neste sentido, veja-se Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, págs. 38 e 39, onde aquele professor perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida “a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final” apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados “os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
Vejamos, então, o caso dos autos.
Refere-se no requerimento de abertura da instrução que:
“No decurso dos anos de 2001 a 2005 ou, melhor dizendo, desde Junho de 2001 afinais de Dezembro de 2005, vinha o assistente procedendo à elaboração de horas extras para a sua Entidade Patronal supra referida;
E em número substancialmente superior àquele que preenchia o seu horário normal de trabalho.
Realmente, durante os meses de Junho e Dezembro de 2001, o assistente trabalhava, como horas extra, de 2.ª a 5.ª feira 1 hora diária, à 6.ª feira 5 horas, ao sábado 5 horas e aos feriados, a todos os feriados, 10 horas por dia.
Desde Janeiro de 2002 a Dezembro de 2004, o assistente, de 2.ª feria a 5.ª feira, trabalhava 5 horas extra diárias, às 6ª feiras 10 horas, aos sábados 5 horas e aos feriados 10 horas.
Desde finais de Dezembro de 2004 a finais de Dezembro de 2005, o assistente trabalhava um número de horas extra precisamente igual àquele trabalhado no item 3.º deste requerimento, ou seja, 1 hora extra diária, de 2ª a 5ª feia, às 6ª feiras 5 horas, aos sábados 5 horas, e aos feriados 10 horas.
Ora, acontece que a denunciada, em vez de proceder de forma legal ao pagamento de todas estas horas extra, que o assistente para si trabalhava, e que eram, muitas, pagava-lhe sob a forma de gratificação!...
Para tal, a sua empresa, Sociedade Comercial por Quotas, G…, Lda., reúne extraordinariamente em Assembleia-Geral Ordinária.
E, sem mais quaisquer formalismos, esta instância, fixa na acta (desta referenciada Assembleia):
-“Os sócio acordam ente si nos ternos do n.º 1 do art. 54.º do CSC reunirem-se em Assembleia Geral ordinária sem observância de formalidades prévias, uma vez verificada a presença de todos os quais manifestaram vontade de que a mesma se constitua e delibere sobre a aprovação de contas.
Presidiu ao acto o sócio-gerente E…, secretariado pelo sócio D…, tendo como ordem do dia a apreciação, discussão, votação e aprovação das contas respeitantes ao exercício findo.” E acrescenta na referida acta:
-“A Assembleia avaliou o volume de negócios que considerou muito positivo verificando-se um acréscimo relativamente ao exercício anterior.” E continua em acta:
-“Apreciadas as contas do exercício findo, passou esta assembleia à votação, tendo deliberado por unanimidade, dar ao resultado do exercício no montante de 38.529,95 (trinta e, oito mil quinhentos e noventa e dois euros e noventa e cinco cêntimos), a seguinte aplicação:
a)Gratificação ao pessoal: 12.890,00
b) Reservas legais: 20.000,00
c) Reservas livres: 5.702,95
Total: 38.592,95
Ora, desta forma, ao pagar ao assistente por um preço substancialmente inferior ao devido, a denunciada nem sequer paga o efectivo e legal número de horas trabalhadas!...
Assim
A denunciada não pagou tais horas extra aos preços legalmente acrescidos, como sejam, 50% na 1.ª hora trabalhada e 70% sobre as subsequentes, e aos sábados e feriados a 100%.
Para assim proceder, a denunciada apresentara ao assistente um recibo no qual se constata que o assistente recebia da denunciada a quantia ali titulada, como sendo a resultante do exercício findo conforme deliberação da assembleia-geral!...
A denunciada, no acto de apresentação ao assistente de tal recibo, procedia de tal forma que nem sequer permitia que o assistente pudesse ler este mesmo recibo.
Depois, no dia e hora dos pagamentos, fazendo passar em fila indiana todos os seus trabalhadores frente ao seu escritório, ordenava a cada um deles que ali entrasse, fazendo-o de forma isolada (um de cada vez), e de tal sorte que um não visse aquilo que o outro recebia.
Efectivamente, chegado o trabalhador ao escritório da denunciada - no caso presente o ora assistente - logo a denunciada, encobrindo os caracteres do respectivo recibo que apresentava ao trabalhador e, desta forma, impedindo-o de o ler, extorquia destes a respectiva assinatura!...
E, a denunciada, de tal forma levava ao excesso este seu comportamento que, chegava mesmo a ameaçar, com o respectivo despedimento, o trabalhador que, no seu entender, falasse demais.
Assim, criou a denunciada nestes seus trabalhadores, maxime no ora assistente, um estado de stress, de medo e de inquietação, factos estes que haveriam de afectar na pessoa do assistente a sua plena capacidade de compreender e de agir.
E, a denunciada, agindo dolosamente e desta temerária forma, assim coage, física e moralmente, o assistente a receber a gratificação que assim lhe era apresentada!...
Ao assim proceder, haveria a denunciada, e pelas pessoas dos seus sócios gerentes, de cometer um crime de burla na pessoa do assistente, bem como na dos demais trabalhadores, e um crime de abuso de confiança fiscal e perante a Segurança Social”.
Tal como referido pelo Ministério Público no despacho de encerramento do inquérito, durante a investigação foram realizadas todas as diligências tidas por pertinentes à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Assim, com a participação criminal foi junta cópia da acta n.º 55 da sociedade gerida pelos arguidos, datada de 21/02/2005, da qual consta a deliberação de destinar uma parte do resultado do exercício de 2004 à gratificação do pessoal. Foram ainda juntos dois recibos datados de 23/02/2005 e 21/03/2005, referentes às quantias recebidas pelo assistente relativas à mencionada deliberação.
Juntou-se a certidão de matrícula da sociedade comercial “G…, Lda.”, onde consta que a gerência é exercida por C…, D… e E…, localizando-se a sede social na Rua …, n.º …., na Póvoa de Varzim.
Foi inquirido o assistente e as testemunhas por ele indicadas, a saber: H…, F… e I….
Foi também inquirido C…, um dos gerentes da referida sociedade comercial.
Esclareceu que o seu sócio, e também gerente, E… é que fazia a gestão diária da sociedade, tendo uma procuração passada a seu favor pelos demais sócios para esse efeito.
Negou que o assistente tivesse feito o número de horas extraordinárias referidas na denúncia criminal, admitindo a possibilidade de tal ter acontecido apenas ocasionalmente. Esclareceu que a gratificação ao pessoal, aprovada em Fevereiro de 2005, nada tinha que ver com a retribuição de horas extraordinárias, sendo apenas uma gratificação pelo resultado muito positivo do exercício do ano anterior e que foi atribuída apenas a alguns trabalhadores, considerando a antiguidade, assiduidade e cargos desempenhados.
O assistente B… foi inquirido e clarificou que quando se encontrava a trabalhar nas obras de montagem de estufas trabalhava uma média de 14 horas diárias, sendo que nos anos de 2002, 2003 e 2004 trabalhou sempre em obras longe da sua residência, sendo o transporte de e para as obras considerado como horas extra.
Inquirido complementarmente reiterou o teor da denúncia, esclarecendo que o seu horário normal de trabalho era 08:30h - 12:30h e 13:30h - 18:30h, mas que quando se encontrava na montagem das estufas o horário era bastante mais alargado, oscilando entre as 07:30 como hora de entrada e as 22:30 como hora de saída, chegando a casa à 6ª feira por volta das 24:00 horas, contando as deslocações como horas extraordinárias.
As horas extraordinárias não vinham indicadas no recibo de vencimento e o seu pagamento foi efectuado em dinheiro até 2004, e através de cheque a partir de então (sendo o cheque sacado sobre conta e banco diversos daquele através do qual era pago o salário normal). Questionado, esclareceu ainda que as suas declarações de IRS eram preenchidas por um contabilista e que a entidade patronal nunca lhe entregou nenhum documento referente a horas extraordinárias para efeitos de tal declaração, pelo que também nunca declarou à Administração Fiscal os rendimentos que recebia de pagamento de tais horas extraordinárias.
Clarificou que só em 26/05/2010 resolveu denunciar a situação por até lá temer ser despedido.
As declarações do assistente foram em grande medida confirmadas pela testemunha F…, que também trabalhou para a sociedade denunciada, confirmando que o assistente fazia muitas horas extraordinárias e que o pagamento das mesmas era efectuado uma semana depois de ser pago o salário, tendo de assinar um comprovativo referente ao tal pagamento de que não ficavam com cópia e cujo valor não viam no acto de assinar. Como não recebiam documentos comprovativos desses pagamentos, cada um apontava todas as horas extra que fazia para no fim do mês confirmar se coincidia com o dinheiro que recebiam. Confirmou que aos sábados e aos feriados trabalhavam das 08:00 horas até às 13:00 horas.
A testemunha I…, irmão do assistente, declarou que o seu irmão lhe confidenciou que nos anos de 2002 a 2004, de segunda a quinta-feira fazia cerca de cinco horas extraordinárias por dia, sendo que à sexta-feira fazia dez horas e que trabalhava ainda todos os sábados de manhã, cinco horas. Acrescentou que, o mesmo lhe confidenciou que recebia tanto ou mais em horas extras como em ordenado.
Tem conhecimento, por intermédio do irmão, que este não ficava na posse do recibo referente às horas extra e nem era autorizado a conferir ou visualizar o conteúdo do mesmo.
Foi junto o conteúdo das declarações de IRS apresentadas pelo assistente nos anos de 2001 a 2005, de onde resulta, com interesse para a apreciação da causa, que o mesmo declarou ter auferido rendimentos de €3809,14, €6066,49, €5740,00, €6903,94 e €6619,54, respectivamente nos anos fiscais de 2001, 2002, 2003, 2004 e 2005.
A solicitação, o assistente juntou também os recibos mensais de vencimento que auferiu entre os meses de Novembro de 2001 e Dezembro de 2003, dos quais não consta qualquer menção a trabalho suplementar.
Juntou-se aos autos certidão da petição inicial, da contestação apresentada pela Ré entidade patronal, e da douta decisão proferida no processo de acidente de trabalho n.º 369/06.3TTMTS, que corre termos no 2.º juízo do Tribunal do Trabalho de Matosinhos, ainda não transitada em julgado.
Tal acção foi intentada no dia 17/04/2009 pelo ora assistente contra a Companhia de seguros J… e a sociedade comercial G…, Lda., peticionando aquele a condenação destas a pagar-lhe vários danos, que discrimina, assim como a atribuição de um subsídio de elevada incapacidade, por causa de um acidente de trabalho ocorrido em 07/07/2005. Em primeira instância, a ré G…, Lda. foi absolvida de todos os pedidos contra si formulados, decisão de que o ali autor (ora assistente) terá interposto recurso.
Já aquando da propositura da acção o ali Autor (ora assistente) alegou que auferia mensalmente, além do salário, a quantia de €600,00 correspondente a remuneração de trabalho suplementar que realizava por determinação da aí Ré e subsídio de alimentação.
A ali ré, G…, Lda., contestou dizendo ser absolutamente falso que tais horas de trabalho extraordinário tivessem sido prestadas.
Tal facto não resultou ali provado, apenas se provando que à data ao acidente a retribuição mensal ilíquida do trabalhador era de €504,00, e que entre os meses de Fevereiro e Agosto de 2005 a Ré lhe pagou determinadas quantias por conta de uma gratificação que foi deliberada em 21/02/2005.
Para além de tudo isto, nesta fase da instrução procedeu-se ao interrogatório dos arguidos, seguido da realização de prova por acareação entre estes e o assistente.
Dos interrogatórios dos arguidos resulta que estes negam, no essencial, os factos denunciados pelo assistente. E da acareação resultou a manutenção das versões apresentadas por cada uma das partes em litígio, isto é, os arguidos continuaram a afirmar que a existência de horas extra não era comum na empresa e que sempre pagaram ao assistente aquilo que era devido; este, por seu lado, continuou a afirmar os factos descritos no requerimento de abertura da instrução.
Sendo esta a prova produzida nos autos, importa agora verificar o que dela resulta em relação à (in)suficiente indiciação dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução.
Dúvidas não existem que o assistente trabalhou para a sociedade representada pelos arguidos no período temporal em questão, nem tão pouco que aquele sofreu um acidente de trabalho e, por via disso, intentou no Tribunal de Trabalho de Matosinhos uma acção judicial tendo em vista o ressarcimento pelos danos sofridos nesse acidente.
Tudo isto resulta claro quer dos documentos juntos aos autos, quer dos próprios depoimentos dos sujeitos processuais.
Sucede, porém, que desta mesma prova já não resulta claro ou suficientemente indiciado que o assistente tenha efectivamente trabalhado para além do seu horário normal de trabalho (apesar desta realidade ser mais ou menos comum nas empresas, pelo menos em determinados períodos temporais) e, se o fez, em que condições e quantidades.
Por outro lado, dos autos também não resulta suficientemente indiciado que os arguidos apresentavam (ou mandavam apresentar) ao assistente recibos de quitação, não permitindo que este pudesse sequer ler o conteúdo de tais recibos.
Na verdade, apesar de tal circunstancialismo ter sido expressamente referido pelo assistente e genericamente confirmado por uma das testemunhas inquiridas na fase do inquérito, o certo é que os arguidos negam tal realidade (sendo certo que apenas um deles - o arguido E… - era directamente responsável pela gerências da empresa).
Por outro lado, tal realidade também não faz qualquer sentido, tanto mais que o arguido poderia perfeitamente controlar o seu tempo de serviço e confrontá-lo com o valor efectivamente pago pela empresa. Na posse desses dados facilmente perceberia se lhe era pago ou não o que era realmente devido pela empresa.
Por outro lado, em momento algum a empresa ou os seus representantes legais apresentaram nos autos documentos comprovativos do pagamento das horas extraordinárias peticionadas pelo assistente. Aquilo que os arguidos afirmaram é que por regra não eram feitas horas extraordinárias na empresa e, se tal acontecesse, eram feitas compensações ao nível do horário de trabalho.
Assim, e tendo por pressuposto a matéria de facto alegada no requerimento de abertura da instrução, podemos afirmar que a prova produzida nos autos apenas permite ter por suficientemente indiciada a seguinte matéria de facto:
“(…) Para tal, a sua empresa, Sociedade Comercial por Quotas, G…, Lda., reúne extraordinariamente em Assembleia-Geral Ordinária.
E fixa na acta (desta referenciada Assembleia):
-“Os sócio acordam ente si nos ternos do n.º 1 do art. 54.º do CSC reunirem-se em Assembleia Geral ordinária sem observância de formalidades prévias, uma vez verificada a presença de todos os quais manifestaram vontade de que a mesma se constitua e delibere sobre a aprovação de contas.
Presidiu ao acto o sócio-gerente E…, secretariado pelo sócio D…, tendo como ordem do dia a apreciação, discussão, votação e aprovação das contas respeitantes ao exercício findo.” E acrescenta na referida acta:
-“A Assembleia avaliou o volume de negócios que considerou muito positivo verificando-se um acréscimo relativamente ao exercício anterior.” E continua em acta:
-“Apreciadas as contas do exercício findo, passou esta assembleia à votação, tendo deliberado por unanimidade, dar ao resultado do exercício no montante de 38.529,95 (trinta e, oito mil quinhentos e noventa e dois euros e noventa e cinco cêntimos), a seguinte aplicação:
a)Gratificação ao pessoal: 12.890,00
b) Reservas legais: 20.000,00
c) Reservas livres: 5.702,95
Total: 38.592,95
A denunciada apresentava ao assistente um recibo no qual se constata que o assistente recebia da denunciada a quantia ali titulada, como sendo a resultante do exercício findo conforme deliberação da assembleia-geral”.
A demais matéria de facto não encontra sustentação suficiente na prova produzida nos autos, sendo certo que as declarações do assistente, sem mais (ainda que genericamente corroboradas pelo depoimento de uma testemunha), são claramente insuficientes para se concluir em sentido contrario.
Repare-se que não é despiciendo o facto de o assistente ter trabalhado na empresa gerida pelos arguidos durante pelo menos quatro anos sem qualquer tipo de reclamação, ao que se saiba, e só cinco anos depois dos factos terem ocorrido é que decidiu apresentar a queixa que deu origem aos presentes autos (já numa altura em que o processo no Tribunal de Trabalho se encontrava perto de obter sentença em primeira instância).
*
Fundamentação de direito.
Com base na transcrita matéria de facto, o assistente imputa aos arguidos a prática de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 218.º do Código Penal, um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, e um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º do Código Penal.
Antes de efectuarmos uma análise individual a cada um dos tipos legais de crime imputados, importa referir que o requerimento de abertura da instrução em apreço é um exemplo claro daquilo que não deve ser uma tal peça processual.
A alegação factual é demasiado superficial e pouco cuidada, impondo ao Tribunal um enorme esforço na percepção do cumprimento das exigidas formais resultantes do disposto no artigo 287.º do Código Penal.
Repare-se que apesar do assistente pretender o julgamento dos arguidos, o certo é que na narração dos factos constantes do requerimento de abertura da instrução refere-se em exclusivo à “denunciada”, presumindo o Tribunal que o assistente se queira referir à sociedade gerida pelos arguidos.
Sucede, porém, que, com excepção dos crimes fiscais imputados, nenhum dos outros tem prevista na lei penal a possibilidade de punição, pela sua prática, de entes colectivos. E, como se presume ser sabido, a punição das pessoas colectivas é excepcional, apenas podendo ocorrer quando expressamente previsto na lei penal.
Por outro lado, o assistente imputa aos arguidos ou à sociedade comercial, que nem sequer é arguida, a prática dos aludidos crimes fiscais.
Porém, a admissão do requerente a intervir nos autos como assistente não visou abranger, nem podia visar, tais crimes fiscais.
Como efeito, o princípio geral nesta matéria é o de que podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código Processo Penal.
Tal como referido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 10/2010[1], da alínea a) do artigo 68.º supra referido resulta a restrição do «estatuto de ofendido ao titular do interesse especialmente protegido pelo tipo legal de crime.
É certo que a alínea e) admite, nos crimes aí referidos, a constituição como assistente de “qualquer pessoa”, independentemente da averiguação do “interesse” que ela possa ter na perseguição da infracção. Trata-se, obviamente, de uma ampliação, mas não do conceito de ofendido, antes do âmbito da legitimidade, que é alargada a não ofendidos, o que tem a ver com opções político-legislativas de outra natureza, concretamente com a preocupação de incentivar a participação e a “vigilância” cívicas na perseguição daquelas infracções.
A definição de “ofendido” mantém-se a da alínea a), estando assim circunscrito ao titular do bem juridicamente protegido. Esta a conclusão inexorável imposta pela lei.
O conceito legal de ofendido é pois restrito ou, mais rigorosamente, estrito.
Não é de somenos importância esta conclusão, pois a aceitação de um conceito amplo de ofendido poderia envolver consequências desastrosas para o processo, pois abriria eventualmente as portas à manipulação ou instrumentalização da figura do assistente, pondo-a ao serviço de outros interesses que não o da colaboração com o Ministério Público na prossecução da acção penal.
A aceitação de um conceito estrito de ofendido não desprezará, porém, os interesses da “vítima”, quando forem efectivamente relevantes, melhor, quando ela for portadora de um interesse protegido pelo tipo legal.
Tudo dependerá do entendimento em torno do conceito de “bem jurídico”».
A propósito deste conceito de bem jurídico escreveu-se no mesmo Acórdão que «O conceito teleológico-normativo, tradicionalmente seguido, conduz à fixação do bem jurídico a partir da identificação dos “valores” ínsitos ou promovidos pela norma penal. O interesse público ou comunitário apresenta-se sempre como prioritário ou prevalecente. Daí que os interesses corporizados nas pessoas apareçam normalmente subalternizados, a não ser nos crimes contra os bens eminentemente pessoais. Consequentemente, “ofendido”, em bom rigor, só poderia haver nesses crimes, ou, quando muito, nos crimes contra a propriedade. Mas já não nos crimes contra o Estado e contra a sociedade, em que o carácter público ou supra-individual dos valores consubstanciados nas respectivas normas relegaria os interesses particulares ou privados abrangidos pela tutela da incriminação para a categoria de meramente reflexos ou derivados, e, como tal, indignos de protecção penal directa, não tendo, pois, os seus titulares direito a arrogar-se um interesse especialmente protegido.
Esta concepção idealista, formal e “monolítica” de bem jurídico mostra-se porém incapaz de compreender a complexidade de uma grande parte das incriminações e a pluralidade de interesses que elas podem abranger no seu âmbito de protecção. Estes não podem ser “deduzidos” por uma interpretação teleológica dos tipos legais, sem referência com a realidade dos interesses concretos, corporizados nas pessoas efectivamente ofendidas pela prática do crime.
Tal não significa que todos os interesses lesados devem ser promovidos a bens jurídicos. Mas apenas que as incriminações podem eventualmente proteger vários interesses, todos eles se revelando suficientemente dignos da tutela da lei, ainda que algum dele se mostre mais “cintilante”. É esta complexidade ou pluralidade de bens jurídicos que aquela concepção idealista é incapaz de apreender, no seu conceptualismo desligado da realidade.
Assim, a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou do seu “nome”, elementos que deverão também ser considerados, mas não são decisivos.
Mesmo os crimes contra o Estado ou contra a sociedade podem “esconder” algum ou alguns interesses particulares suficientemente valiosos para a lei lhe reconhecer protecção directa. A defesa do interesse público ou social constitui naturalmente o objectivo primeiro deste tipo de crimes. Mas, a par dele, outros valores, de natureza privada, podem coexistir, amparando-se na tutela pública, mas com suficiente autonomia para se afirmarem como interessados específica e autonomamente, não apenas reflexamente, na punição da conduta típica.
A própria oposição público/privado se apresenta por vezes incapaz de caracterizar com precisão a natureza de interesses complexos que recebem a tutela penal.
Em síntese: sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as chamadas “expectativas comunitárias”), estaremos perante um bem jurídico protegido.
Assim, só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares».
Resulta do exposto, aliás tal como referido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência que temos vindo a aludir, que “só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares”.
No caso dos autos, o requerente da instrução pretende com a realização da fase processual da instrução, e para além do mais, a submissão dos arguidos a julgamento, por no seu entender estar suficientemente indiciada a prática dos aludidos crimes fiscais.
Ora, sem necessidade de grande considerações teóricas quanto à natureza e ao bem jurídico protegido nos aludidos crimes, podemos dizer com clareza que eles não protegem qualquer bem jurídico cujo titular seja o assistente.
Tratam-se de crimes fiscais ou similares, com interesses eminentemente públicos ou estatais. Protege-se, nuns, o regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado; e noutros, o património (lato sensu) da Segurança Social, ou seja, a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular.
Concluímos, desta forma, que o assistente não tinha, como não tem, legitimidade para requerer a abertura da instrução relativamente a estes concretos crimes, porquanto se tratam de crimes não incluídos no âmbito do seu direito à constituição como assistente, isto é, não se tratam de crimes em que o requerente ocupe a posição de ofendido.
Mas ainda que se entendesse de forma diferente, sempre a conclusão teria que ser a mesma, pela simples razão de que o Ministério Público no final do inquérito entendeu mandar extrair certidão e abrir inquérito autónomo para apreciar eventual responsabilidade penal quanto a esta matéria.
Dito isto, analisemos agora os demais crimes imputados, continuando a ter como pressuposto a matéria de facto supra tida por suficientemente indiciada.
*
Quanto ao crime de falsificação de documento.
Estatui o artigo 256.º, do Código Penal, sob a epígrafe “Falsificação de documento” que “(n.º 1) Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo; b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram; c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento; d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(n.º 2) A tentativa é punível.”.
O crime em apreço visa acautelar “a segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente do tráfico probatório”, ou seja, “a verdade intrínseca do documento enquanto tal” e não a protecção do património, nem sequer a confiança na verdade do conteúdo do documento, não obstante, as mais das vezes, andar associado com tipos que visam aquela protecção – burla e furto. [2]
Este crime utiliza, na sua constituição, um elemento normativo – documento. Em face do uso desta expressão, tornou-se necessário que a lei definisse o que entendia por documento. Daí, o artigo 255.º, alínea a), do Código Penal.
A noção de documento para efeitos penais parte, pois, da exigência de que para existir tem de haver uma declaração compreendida num escrito ou registada em outro meio técnico, ou seja, corporizada num certo objecto material[3] e com as seguintes características: a) - Inteligibilidade para todos ou para um certo círculo de pessoas, isto é, o seu conteúdo deve estar expresso por forma que seja geralmente compreendido ou apreendido; b) - Possibilidade de se saber quem a emitiu, seja ele emitente verdadeiro ou não, o que significa que o autor do documento deve ser identificável através do próprio documento (exclusão, portanto, dos documentos anónimos); c) - Idoneidade para provar um facto juridicamente relevante, ainda que a finalidade probatória só lhe seja conferida em momento posterior ao da emissão, portanto o documento só vale para efeitos penais quando possa fazer prova dos factos juridicamente relevantes.
O crime de falsificação de documento constitui um crime de perigo abstracto, uma vez que o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador. Basta pois que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido, independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico.
Por isso mesmo é também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado.
Sucede, porém, que o crime de falsificação de documentos exige uma certa actividade por parte do agente, no sentido de fabricar, modificar ou alterar o documento, pelo que podemos assim considerar que se trata de um crime material de resultado, isto é, “um crime formal considerado o resultado final que se pretende evitar (violação da segurança no tráfico jurídico em virtude da colocação neste do documento falso), mas um crime material considerado o facto (modificação exterior) que o põe em perigo”.
O crime de falsificação de documentos é ainda um crime intencional, isto é, o agente necessita de actuar com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo.
Da matéria de facto descrita no requerimento de abertura da instrução não conseguimos vislumbrar qualquer sustentação fáctica para a imputação aos arguidos do tipo legal de crime em apreço.
Na verdade, afirmar-se que os arguidos emitiram um documento que se reportava a uma suposta quantificação, quando a verdade é que aquele documento valia nas relações entre as partes como quitação dos salários, é, a este propósito, dizer nada.
Por outro lado, a ter sido feita constar realidade desconforme à verdade nos recibos de vencimento, tal circunstancialismo terá eventuais repercussões mas na investigação determinada pelo Ministério Público e respeitante à prática pelos arguidos de eventuais crimes fiscais.
Não há, pois, nos autos qualquer fundamento, sequer factual (atento o resultado da prova produzida nos autos) para sujeitar os arguidos a julgamento pela prática do crime em apreço.
*
Quanto ao crime de burla.
Pratica o crime de burla “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial” – artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
Conforme resulta desta disposição normativa, a burla recobre situações em que o agente, com intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causem a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial (sublinhado nosso, por se este o facto essencial à decisão dos presentes autos). Ao invés do que sucede nos delitos contra a propriedade, que apenas tutelam a propriedade em si, o bem jurídico aqui protegido consiste no património, globalmente considerado.
A burla constitui, assim, um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro.
Acresce que, embora não directamente relacionado com o critério do bem jurídico, a burla consubstancia, também, um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do sujeito passivo ou da vítima e, assim, quando se dá um “evento” que, embora integre uma consequência da conduta do agente, se apresenta autónomo em relação a ela. No contexto em apreço, a questão adquire, inclusive, contornos especiais: uma vez que se está perante algo que já se apelidou de “crime com participação da vítima”, isto é, de um delito onde a saída dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo, a referida autonomização do evento reporta-se tanto à conduta do agente como à acção do próprio burlado. O que se afirma reflecte-se na particular estrutura que o nexo de imputação objectiva reveste na órbita da infracção em análise.
O crime em apreço representa um crime de resultado parcial ou cortado, caracterizando-se por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo. Embora se exija, no âmbito do primeiro, que o agente actue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (dano) da vítima.
A consumação deste tipo legal de crime não deriva, apenas, do resultado consistente na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular, exigindo-se, para além disso, a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro.
A determinação do que deve entender-se por “prejuízo patrimonial” encontra-se condicionada pelo conteúdo que se atribua ao património enquanto bem jurídico subjacente ao tipo legal da burla.
Debatem-se, na Doutrina, três teses fundamentais: as concepções jurídicas, económicas e económico-jurídica.
Não entrando, por despiciendo, em tal discussão, sempre se dirá, porém, que seja qual for a concepção de património adoptada, qualquer delas só releva desde que envolva um prejuízo de natureza económica para o sujeito passivo ou para terceiro.
Quanto à conduta, a burla constitui, como se disse, um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção.
Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.
A consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.
No quadro do que se acaba de deixar dito, a qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objectiva subjazem os pressupostos da chamada teoria da adequação (artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal), encontrando-se, por isso mesmo, dependente das concretas circunstâncias do caso, aí se incluindo as características do burlado.
A questão prende-se, assim e no essencial, com o valor ou conteúdo comunicacional que a conduta do agente reveste na situação controvertida.
A colocação da tónica no aludido “conteúdo comunicacional” da conduta implica relevantes consequências ao nível das soluções concretas. Assim, a afirmação da verdade pelo agente não exclui a punição a título de burla se, atento o contexto em que foi proferida, assumir o prevalente sentido de uma declaração não séria e, nessa medida, se mostrar insusceptível de colocar termo ao estado de erro em que se encontra o sujeito passivo. Por outro lado, tendo em atenção a particular ingenuidade ou falta de resistência do burlado (por exemplo, mercê de fragilidade intelectual) admite-se a possibilidade de concluir pela idoneidade de um meio enganador via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas.
Importa, ainda referir nesta sede, que o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.
No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Por outro lado, a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de “economia de esforço”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. Numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos – radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereótipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à “fattispecie” do n.º 1 do artigo 217.º.
Refira-se, por último, que só esta perspectiva se harmoniza com o entendimento pacífico de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado.
De harmonia com o exposto, e na medida em que se exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, o domínio-do-erro por parte do agente esgota o conteúdo útil da inclusão do advérbio “astuciosamente” no n.º 1 do artigo 217.º, do Código Penal, enquanto nota caracterizadora do “modus operandi” da burla: por referência ao disposto no n.º 1 do artigo 10.º, do Código Penal. Ele exprime, no contexto de um “iter criminis” que comporta, de permeio, a intervenção de outra pessoa (sujeito passivo), a exigência de um rigor intensificado – o mesmo que se coloca na esfera da autoria mediata fundada no domínio-do-erro – ao nível da aplicação dos critérios gerais da imputação objectiva.
A burla integra um crime doloso, não tendo lugar o seu sancionamento na forma negligente (artigos 217.º, n.º 1, e 13.º, do Código Penal).
Para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo não basta, porém, o dolo de causar prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, exigindo-se, de outra parte, que o agente tenha a “intenção” de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio.
No caso em apreço, e tal como referiu o Ministério Público no despacho de encerramento do inquérito, não se antevê que actos é que o assistente B… praticou por se encontrar numa situação de erro ou engano astuciosamente criada ou aproveitada pelos arguidos.
Do teor da denúncia e do requerimento de abertura da instrução, e ainda das declarações prestadas, estamos em crer que o assistente considera que tal situação se verificou quando desenvolveu horas de trabalho extraordinário sem ter sido pago de acordo com o legalmente estipulado e quando foi colocado na situação de assinar os documentos no acto de pagamento de tais horas sem ter oportunidade de ler o conteúdo dos mesmos e sem que lhe fossem entregues cópias.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, ainda que tal possa ter ocorrido e que os sócios da empresa se tenham desse modo aproveitado das “fragilidades” decorrentes de uma relação laboral, tal não é por si só suficiente para integrar o conceito de burla, nos termos em que criminalmente este se encontra definido.
Na verdade, mesmo que o assistente desconhecesse o conteúdo do documento que assinava, ao receber o dinheiro correspondente ao pagamento das horas de trabalho suplementar prestadas em cada mês tinha sempre a possibilidade de o contar e de, considerando o número de horas prestadas, apurar se estava ou não a ser pago de acordo com a lei.
De resto, não se antevê qual o comportamento dos arguidos que tenha sido idóneo a, durante mais de quatro anos consecutivos, provocar erro ou engano no assistente, levando-o a prestar sucessivas horas de trabalho suplementar sempre no convencimento de que iria ser correctamente remunerado.
Em síntese, da matéria de facto alegada e daquela tida por suficientemente indiciada, não resulta que o assistente tenha actuado em erro, nem tão pouco que entre a denunciada conduta dos arguidos (supostamente ilegal e astuciosa, o que nem sequer ficou demonstrado) e os actos praticados pelo assistente que lhe causaram prejuízo patrimonial (o que também não ficou demonstrado) exista um nexo de causalidade.
O facto de alegadamente os arguidos não permitirem que o assistente tomasse conhecimento do conteúdo do documento que assinava aquando do pagamento das horas de trabalho suplementar ou mesmo de efectuar o pagamento de tais horas como se fossem horas normais de trabalho (e não de acordo com o legalmente estabelecido para pagamento de trabalho suplementar, de trabalho nocturno ou de trabalho aos fins-de-semana e feriados) não pode considerar-se causal dos actos do assistente quando aceitou desempenhar tais horas de trabalho ao longo dos mais de quatro anos (e que certamente continuaria a prestar não fosse a infelicidade de ter sofrido um acidente de trabalho).
Cremos que os presentes autos mais não são do que uma derradeira tentativa por parte do assistente em conseguir atingir o objectivo aparentemente não alcançado com o recurso ao processo laboral.[4] Mas não é essa, certamente, a função do direito penal e do direito processual penal.
*
Decisão.
Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido negar provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente B… e, em consequência, não pronuncio os arguidos C..., D… e E… pelos crimes que ali lhes vinham imputados.
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. A abrir diremos que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[5] Mas porque as conclusões são um resumo das motivações,[6] não pode conhecer-se de questões constantes daquelas que não tenham sido explanadas nestas. Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios da decisão recorrida e das suas nulidades que se não devam considerar sanadas, tudo de acordo com o disposto nos art.os 410.º, n.os 2, alíneas a), b) e c) e 3 e 119.º do Código de Processo Penal.[7] Daí que as questões a apreciar neste são as seguintes:[8]
1.ª Existem suficientes indícios no processo de que os Arguidos cometeram um crime de burla e um outro de falsificação de documento, previstos e puníveis pelos art.os 218.º e 256.º do Código Penal?
2.ª Pode invocar-se em recurso da decisão instrutória os vícios da decisão se refere o n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal?
3.ª Podendo, o despacho recorrido padece dos vícios da insanável contradição entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova a que alude o art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal?
***
2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas.
Pretende o Assistente que os Arguidos cometeram um crime de burla qualificada. A sua tipificação é feita nos seguintes termos:
«Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»[9]

«Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.»[10]

«Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se:
a) Valor elevado — aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto;
(…).»[11]

Destarte, conforme referido pelo Supremo Tribunal de Justiça, «o crime de burla desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos: intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.»[12]
Por erro entende-se «a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento da vítima.» [13] Sendo certo que «é usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, podendo o burlão utilizar expedientes constituídos ou integrados também por contratos civis.»[14]

Baixando ao caso sub iudicio, uma coisa ressalta imediatamente à vista: é que em lugar algum o Assistente diz que foi enganado pelos Arguidos, tanto na feitura de trabalho suplementar como no seu [não] pagamento por parte destes últimos. E seguramente por isso também não diz o Assistente de que meios de prova tal poderia resultar indiciado, o que bem se compreende pela circunstância de, tendo sido o próprio a prestar o trabalho e a receber os correspondentes salários, nunca poderia invocar um desconhecimento ou falsa representação desses factos e da prestação do alegado número de horas de trabalho suplementar e do seu concomitante não pagamento. É que tudo isso se resumiria a uma pura questão de aritmética. Como de resto o Mm.º Juiz de Instrução Criminal proficientemente explicou na fundamentação do despacho ora posto em crise e que ele, por distracção ou outra qualquer razão que se não descortina, não atendeu.
Ora, não havendo nos autos indício probatório algum de que o Assistente tenha sido induzido pelos Arguidos[15] em erro sobre esses factos, logicamente que não poderia ter sido vítima de um crime de burla por parte deles.[16] E por isso não poderia o Mm.º Juiz de Instrução Criminal pronunciá-los pela comissão desse crime, como efectivamente não fez.

Atentemos agora se no processo existiam suficientes indícios de que os Arguidos cometeram um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo art.º 256.º do Código Penal. A norma reza assim:
1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
(…)
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(…).»

Das provas produzidas com relevo para a questão em apreço poderemos dividi-las em dois grupos: por um lado, as constituídas, compostas pelos documentos juntos ao processo (os recibos dos salários pagos pela sociedade ao Assistente, uma acta desta em que, além do mais que para o caso não releva, foi estabelecida uma gratificação ao pessoal no valor de € 12.890,00 e partes do processo laboral por ele instaurado contra a sociedade) e as constituendas (as declarações dos Arguidos e do Assistente).
Os recibos dos salários apenas documentam o pagamento de trabalho prestado pelo Assistente em período normal e não também de trabalho suplementar. É certo que o Assistente sustenta que prestou trabalho suplementar, pois que, disse, o número de horas diárias que trabalhou foi de catorze quando o período de trabalho diário normal se ficava pelas nove horas e que a única testemunha que poderia saber alguma coisa sobre essa matéria disse que aquele trabalhou muitas horas suplementares, que não logrou especificar e cujo pagamento foi feito extra recibo. Porém, tal foi essencialmente negado pelos Arguidos[17] e também não apenas foi julgado como não provado na acção de acidente de trabalho n.º 369/06.3TTMTS em que tal foi discutido no Tribunal do trabalho de Matosinhos como se provou apenas o pagamento da retribuição normal e algumas gratificações. O que se acomoda no conteúdo dos documentos acima referidos.[18]

Pretende ainda o recorrente que o despacho recorrido padece dos vícios da insanável contradição entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova a que alude o art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal. E isso remete-nos para a questão subsequente que é a de saber se tal pode ser fundamento de recurso de decisão instrutória.
É certo que no sentido afirmativo já se pronunciou a Relação do Porto,[19] afirmando-se então que «sendo facto assente que a instrução configura um momento processual de comprovação que culmina na formulação de um juízo de probabilidade, para legitimar a sujeição do arguido a julgamento, assente nos indícios recolhidos nos autos, é inegável que, em tal fase processual, não tem cabimento fazer-se apelo ao conceito de “matéria de facto provada”. Todavia, afigura-se não repugnar a apreciação desses vícios quanto à decisão instrutória por referência à matéria indiciariamente assente.»
A questão, porém, está precisamente naquele ponto: os vícios do art.º 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal são vícios relativos à sentença pois que se reportam à matéria de facto provada, e não à decisão instrução, que a não supõe mas apenas matéria de facto indiciada.[20] Por outro lado, os vícios do art.º 410.º, n.º 2 do CPP têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência. Ora, como nota o Prof. Germano Marques da Silva:[21] «Esta é uma limitação muito importante. Desde logo fica vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos. E que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.» Também o Cons.º Maia Gonçalves evidencia que os vícios, como fundamento do recurso, apenas podem resultar da decisão recorrida e por isso excluem a possibilidade de consulta de outros elementos constantes do processo.[22] Ao contrário disso, a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os vindos no inquérito como os produzidos já na instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente.[23] O que aqui se impõe é que o juiz se pronuncie sobre a existência de indícios suficientes em ordem a submeter o arguido a julgamento; ao invés, na sentença ele tem que fazer a demonstração inequívoca que o arguido cometeu os factos que lhe eram imputados na acusação ou na pronúncia. Assim também entendia o Prof. Cavaleiro Ferreira[24] quando escreveu: «Demonstrar a realidade dos factos é alcançar um juízo de certeza sobre esses factos. Há, no entanto, duas espécies de juízos: juízo lógico e juízo histórico. O juízo lógico respeita à exactidão dum raciocínio, duma operação mental; conduz necessariamente a uma certeza absoluta. O juízo histórico respeita à verificação dum facto, e por isso mesmo pode não conduzir a um resultado seguro; não acarreta uma certeza absoluta, mas relativa, não uma certeza objectiva, mas uma opinião de certeza. Acresce que esta mesma certeza relativa ou opinião de certeza pode falhar; o juízo histórico pode ter por simples resultado a dúvida. Ora em sede de instrução, o juiz apenas tem de se pronunciar sobre a existência ou não de indícios, emitir uma opinião, a qual pode estar errada, por não ser uma certeza. Por tal razão, só pode ser atacada com fundamento na inexistência dos mesmos indícios. Diferentemente porque na sentença se impõe um juízo de certeza, com base em juízos lógicos, existe o art.º 410.º do CPP, no caso de o juízo lógico formulado se encontrar viciado.» A tudo isto acresce, por fim, o regime legal do reenvio do processo,[25] que inequivocamente está desenhado para os vícios referidos nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal[26] e é decretado para um novo julgamento. O que pressupõe que os vícios tenham sido fruto de um julgamento anterior e não de despacho decisório da instrução.
Diremos, por fim, que a mesma ordem de ideias também vale, de resto, para as nulidades da sentença, as quais também não podem ser invocadas a propósito da decisão instrutória.[27]

Por tudo isto compreendemos a surpresa manifestada pelo Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto em ver o Assistente pretender tratar aqui de uma questão de inequívoca e exclusiva relevância laboral, mas como ele também percebemos que a isso não será alheio o descarrilamento que a sua pretensão sofreu na sede própria.
Cumpre agora decidir em conformidade com o atrás referido.
***
III - Decisão.
Termos em que se nega provimento ao recurso e, em consequência, se confirma o douto despacho recorrido.
Custas pelo Assistente / Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s (art.os 513.º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).
*
Porto, 15-02-2012.
António José Alves Duarte
José Manuel da Silva Castela Rio
____________________
[1] Publicado no Diário da República n.º 242, Série I, de 16/12/2010, e que fixou jurisprudência no sentido de que “em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente”.
[2] Cfr. Figueiredo Dias e Costa Andrade, Parecer, in CJ, VIII, 3-20 e seguintes.
[3] Cfr. Helena Moniz in O Crime de Falsificação de Documentos, reimpressão pág. 179.
[4] Neste sentido releva o facto de o assistente só decorridos cinco anos após ter sofrido o acidente de trabalho e pouco antes de ter sido proferida a sentença no processo de acidente de trabalho, que lhe foi desfavorável e da qual interpôs recurso, ter apresentado a denúncia criminal que deu início aos presentes autos.
[5] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
[6] Idem. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou o Prof. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[7] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido propugnado, vd. o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049.
[8] E segundo esta ordem, pois que só depois de estabilizada a decisão em termos da existência ou não de indícios suficientes para a pronúncia se poderá avaliar se a mesma padece dos vícios, posto que estes hão-de resultar do texto da decisão.
[9] Art.º 217.º, n.º 1 do Código Penal.
[10] Art.º 218.º, n.º 1 do Código Penal.
[11] Art.º 202.º, alínea a) do Código Penal.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-02-2005, processo n.º 04P4745, visto em www.dgsi.pt.
[13] Cons.os Leal Henriques e Simas Santos, no Código Penal, Anotado, 2.º volume, 2.ª edição, 1.ª reimpressão, página 538.
[14] Aresto do Supremo Tribunal de Justiça atrás citado.
[15] Ou sequer estado, note-se bem.
[16] Claro que a questão se não esgota nesta perspectiva, como se alcança da circunstância do Assistente ter intentado uma acção de natureza laboral no materialmente competente Tribunal do Trabalho; mas essa como todas as demais perspectivas em que se poderiam abordar o litígio entre os sujeitos processuais (moral, sociológica, filosófica, etc.) extravasam a competência do Juiz de Instrução Criminal recorrido e por isso são aqui irrelevantes.
[17] Admitiram apenas que o Assistente prestou ocasionalmente algum trabalho suplementar, que foi compensado com horas não trabalhadas.
[18] Os recibos e a acta da reunião societária onde, inter alia, estabeleceram um valor global das ditas gratificações ao pessoal.
[19] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27-01-2010, processo n.º 321/07.1PSPRT.P1, visto em www.dgsi.pt.
[20] Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-06-2002, processo n.º 01P4250, visto em www.dgsi.pt.
[21] Curso de Processo Penal, volume III, 3.ª edição, página 334.
[22] no Código de Processo Penal, Anotado, 17.ª edição, página 948.
[23] Neste sentido, cfr. Vinício Ribeiro Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Coimbra Editora 2008, pág. 909.
[24] Curso de Processo Penal, volume II, Lisboa 1981, pág.280,28.
[25] Art.os 426.º e 426.º-A do Código de Processo Penal.
[26] E apenas para esses vícios. Assim, por exemplo, já não acontece com a ocorrência das nulidades previstas no n.º 3 do art.º 41.º do Código de Processo Penal, como lembrou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-05-1994, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano de 1994, Tomo II, página 236.
[27] Acórdão da Relação do Porto, de 06-07-2011, processo n.º 356/08.7PIPRT-A.P1, visto em www.dgsi.pt.