Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3185/20.6T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CLÁUDIA RODRIGUES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
LIVRO DE RECLAMAÇÕES
UTENTES DE ESTABELECIMENTO
Nº do Documento: RP202112153185/20.6T9AVR.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A recusa de acesso a um estabelecimento aberto ao público e em funcionamento a potencial cliente a quem foi recusada a entrada é motivo válido para pedir o livro de reclamações.
II - A disponibilização do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos da reclamação ou a legitimidade de quem a apresenta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1. RELATÓRIO

A sociedade B…, Lda., notificada das decisões administrativas da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica de fls. 35 e segs. dos presentes autos e de fls. 40 e segs. do apenso A, que a condenaram na coima de €3.750,00 cada uma, pela prática, cada uma delas, da contraordenação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, na redação atual, veio impugná-las judicialmente tendo os recursos sido admitidos no Juízo Local Criminal de Aveiro (J2) do tribunal da Comarca de Aveiro, e apensados no Processo de Contraordenação nº 3185/20.6T9AVR, no qual, por sentença datada de 13.09.2021 se proferiu o seguinte:

“V. DISPOSITIVO

Em face do exposto, julgo improcedentes as impugnações das decisões administrativas de fls. 35 e segs. dos presentes autos e de fls. 40 e segs. do apenso A, mantendo integralmente as condenações da arguida.
Cumulo juridicamente as duas coimas aplicada à arguida numa coima única, de €5.000,00 (cinco mil euros).
Custas a cargo da arguida, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 93.º do RGCO, fixando a taxa de justiça em 3 UCs, em conformidade com o disposto na Tabela III em anexo ao Regulamento das Custas Processuais.
Notifique e deposite.
Dê conhecimento à autoridade administrativa, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 70.º do Regime Geral das Contraordenações.”

Inconformada com tal decisão, recorreu a arguida para este Tribunal da Relação do Porto, apresentando na síntese das razões da sua discordância as seguintes conclusões:

“1ª O presente recurso jurisdicional foi interposto contra a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro em 13 de Setembro de 2021, que condenou a ora Recorrente no pagamento de coima única no valor de €5.000,00, pela prática de duas contraordenação previstas na alínea b) do n.° 1 do art.° 3.° do DL n.° 156/2005, em virtude da não ter disponibilizado o livro de reclamações a duas pessoas que se apresentarem à porta do mesmo pelas 4.50 e 5.10 horas da madrugada do dia 19 de Novembro de 2017.
2° A questão essencial em apreço nos presentes autos é apurar se as referidas pessoas se podem qualificar como consumidores ou utentes, uma vez que a alínea b) do n.° 1 do art.° 3o do DL n.° 156/2005 apenas estabelece a obrigatoriedade de fornecer o livro de reclamações a quem for consumidor ou utente do estabelecimento.
3ª A resposta a esta questão já foi dada em douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/10/2016, ao sustentar que utente "é a pessoa que utiliza, usa ou fruiu de alguma coisa, o que pressupõe que se chegue a estabelecer uma relação jurídica de consumo entre o "utente" e o estabelecimento que fornece bens e presta serviços, razão pela qual Um potencial cliente que não entra no estabelecimento não chega a ser cliente do mesmo" (v., Proc. n.° 2756/15.7T8VFR.P1, disponível em www.dgsi.pt).
4.ª Este acórdão procedeu à qualificação jurídica do conceito de utente ou consumidor, sendo irrelevante que, na situação ali em apreço, já estivesse fechado ou ainda aberto o estabelecimento, uma vez que o que releva para tal qualificação é a existência de uma relação jurídica de fornecimento de determinados bens ou serviços, uma vez que só com o estabelecimento de tal relação haverá a obrigação de fornecer o serviço e o direito de reclamar por parte do utente ou consumidor.
5° Deste modo, enquanto não se constituiu a relação jurídica e não ocorre a admissão no estabelecimento não há qualquer obrigação do prestador do serviço nem qualquer direito de reclamação por parte do cidadão, sob pena de, se assim não for, ter um qualquer estabelecimento de fornecer o livro de reclamações a quem nele não queira entrar e consumir, mas apenas queira reclamar por não gostar da pintura do estabelecimento ou dos acessos ao mesmo, só para dar alguns exemplos de possíveis reclamações.
6° Por isso mesmo, a tese sufragada pelo aresto em recurso impõe uma obrigação sem existir uma qualquer relação jurídica e quer converter em utente e consumidor quem ainda não foi admitido, quem não aceitou as regras do estabelecimento e quem nem sequer se comprometeu a pagar os respectivos serviços, o que é o mesmo que dizer que a obrigação do prestador existiria mesmo quando não houvesse ainda uma qualquer relação jurídica que impusesse tal obrigação.
7.° Assim sendo, não tendo as duas pessoas em causa sido admitidas no estabelecimento, não tendo aceite as condições de admissão nem usufruído dos serviços, muito naturalmente não há qualquer relação jurídica que legitime a obrigação do prestador lhe fornecer o livro de reclamações, justamente por tal obrigação apenas existir relativamente a quem seja consumidor ou utente.
8.a Em qualquer dos casos, mesmo que se queira considerar que qualquer pessoa tem o direito de exigir o livro de reclamações e que é utente ou consumidor do estabelecimento, a verdade é que tal obrigação não existirá sempre que o horário e as regras de funcionamento do estabelecimento já não permitam admitir mais pessoas no seu interior, uma vez que se tal suceder o cidadão apenas estará a protestar contra o horário e não contra qualquer serviço ou deficiência de funcionamento por parte do prestador.
9.A Ora, de acordo com o horário de funcionamento do estabelecimento da arguida, a partir das 4.30 da madrugada já não é possível admitir mais clientes (v. doc. n.° 1), pelo que, independentemente de se saber se os referidos cidadãos se poderiam ou não considerar como consumidores ou utentes, a verdade é que não sendo possível admitir-se a partir de determinada hora mais pessoas não há obrigação de se fornecer o livro de reclamações, sob pena de se obrigar um estabelecimento a fornecer o livro a quem já não pode admitir e com quem, portanto, mesmo que queira já não poderá estabelecer qualquer relação jurídica.
10.a Face ao exposto, não assumindo os dois cidadãos que apresentaram queixa a qualidade de consumidor ou utente, é por demais manifesto que não incorreu a arguida em qualquer contra-ordenação ao ter recusado o livro de reclamações a quem apenas queria entrar no estabelecimento já depois das 4.30 horas, justamente por os elementos do tipo só obrigarem a entrega do livro a quem seja utente ou consumidor do estabelecimento.
Nestes termos,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, revogado o aresto em recurso e absolvida a Recorrente da coima que lhe foi aplicada, com as legais consequências.
Assim será cumprido o Direito e feita JUSTIÇA!

A este recurso respondeu o Ministério Publico pugnando pelo seu não provimento, entendendo tal como decidido na sentença recorrida, que os participantes assumem a qualidade de utentes, e o facto de não terem sido efectivamente admitidos no estabelecimento por a tal terem sido impedidos pelo funcionário que se encontrava à porta, não afasta essa qualidade.

O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer, no qual adere ao respondido pelo M.P. na primeira instância.

Cumprido o preceituado no art. 417º nº 2 do Código Processo Penal nada ao processo veio a ser acrescentado de relevante.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
Cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Nos termos do art. 75º, nº 1, do Dec. Lei nº 433/82, de 27/10 (RGCO), com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 244/95, de 14/09, em processo de contra-ordenação, se o contrário não resultar do referido diploma, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo, como resulta do Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19/10, in DR 298/95, 1ª Série, de 28/12/1995, do conhecimento oficioso dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Perante as conclusões do recurso, a única questão a decidir consiste em apurar se as pessoas/participante ainda não admitidas no estabelecimento se podem qualificar como consumidores ou utentes, e da não obrigatoriedade de entrega do livro de reclamações a quem não possui a sobredita qualidade.

Importa conferir o teor da decisão recorrida:

I. RELATÓRIO

B…, LDA., pessoa coletiva com o n.º ………, com sede na …, …, Cantanhede, não se conformando com as decisões proferidas pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica de fls. 35 e segs. dos presentes autos e de fls. 40 e segs. do apenso A, que a condenaram na coima de €3.750,00 cada uma, pela prática, cada uma delas, da contraordenação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, na redação atual, veio impugná-las judicialmente através de recursos, os quais, sendo tempestivos e respeitando as exigências de forma, foram admitidos.

Os processos foram apensados.
A arguida invocou, em síntese, o seguinte:
1. Os denunciantes não eram “consumidores ou utentes” do estabelecimento da arguida (não aceitaram as regras do estabelecimento para poderem entrar no mesmo), pelo que esta não tinha o dever legal de lhes facultar o livro de reclamações.
2. A recusa de fornecimento do livro de reclamações foi feita por trabalhador da arguida, sem conhecimento de órgão ou legal representante desta.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido produzida toda a prova arrolada.

II. SANEAMENTO

O tribunal é competente em razão do território, da matéria e da hierarquia.
As partes são legítimas.
O processo é o próprio.
Não há nulidades nem questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A) Factos provados

Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:
3. Em 19.11.2017, pelas 04.50 horas, a participante C… quis entrar no estabelecimento de restauração e bebidas (discoteca) denominado comercialmente por “D…”, explorado pela sociedade arguida, localizado no …, n.º .., Aveiro.
4. E…, funcionário da arguida e porteiro do estabelecimento, negou a entrada no estabelecimento à participante.
5. A participante solicitou o livro de reclamações, o qual lhe foi recusado pelo funcionário da arguida.
6. A pedido da participante, uma patrulha da PSP – Comando Distrital de Aveiro, deslocou-se ao local, continuando a ser negado o fornecimento do livro de reclamações por parte de F….
7. Em 19.11.2017, pelas 05.10 horas, o participante G… quis entrar no estabelecimento de restauração e bebidas (discoteca), denominado comercialmente por “D…”, explorado pela sociedade arguida, localizado no …, n.º .., Aveiro.
8. E…, funcionário da arguida e porteiro do estabelecimento, negou a entrada no estabelecimento ao participante.
9. O participante solicitou o livro de reclamações, o qual lhe foi recusado pelo funcionário da arguida.
10. A pedido do participante, uma patrulha da PSP – Comando Distrital de Aveiro, deslocou-se ao local, continuando a ser negado o fornecimento do livro de reclamações por parte de F….
11. Ao recusar o livro de reclamações nas duas situações acima descritas, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
12. O estabelecimento da arguida estava, na data e horas acima referidas, aberto ao público e em funcionamento.
13. F… era, à data, gerente da arguida.
14. A arguida não tem antecedentes criminais.
15. A arguida foi condenada, em 18.08.2020, no processo n.º 1253/18.3EACBR, na coima de €650,00, pela prática da contraordenação prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 113/2006, de 12 de junho (relativo à higiene dos géneros alimentícios).

B) Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos alegados pela arguida:
16. O livro de reclamações foi recusado pelo trabalhador da arguida sem o conhecimento dos órgãos e legais representantes da arguida.
17. Os participantes não aceitaram as regras do estabelecimento, de forma a poderem entrar no mesmo.

C) Motivação da decisão sobre os factos

A convicção do Tribunal acerca dos factos acima elencados sob os n.ºs 1 a 13, 16 e 17 assentou nos autos de notícia de fls. 3 dos autos principais e do apenso A, da certidão do registo comercial de fls. 84, das declarações da gerente da arguida F… e do depoimento das testemunhas ouvidas, sendo de salientar o seguinte.
F… confirmou que é sócia e gerente da sociedade desde 1996 e que o estabelecimento “D…” é uma discoteca, explorada pela arguida.
Mais confirmou que esteve no estabelecimento D… aquando dos factos (tendo sido chamada pelo funcionário E…) e que não entregou o livro de reclamações, mesmo após a polícia ter comparecido no local.
Referiu ainda que o estabelecimento tem livro de reclamações desde o início do seu funcionamento e que as instruções da gerência são de entregar o livro de reclamações aos clientes quando já prestaram serviços (que já entraram no estabelecimento), e não a quem é vedada a entrada. Acrescentou que, nos casos em discussão nos autos, essas instruções foram dadas por si. Isso contribuiu decisivamente para dar como não provado o facto n.º 16.
Justificou que os participantes não tinham indumentária adequada (fato de treino), aparentavam estar embriagados e o participante já antes tinha causado distúrbios anteriormente – mas só esta última situação foi confirmada por outra prova (cf. o depoimento da testemunha I…) e respeita a uma data anterior á dos factos.
Por isso se entendeu não haver provas suficientes e seguras de que, aquando dos factos em causa nos autos, os participantes não aceitaram as regras do estabelecimento, de forma a poderem entrar no mesmo.
No que concerne ao depoimento de H… (agente principal da PSP, a exercer funções em Aveiro), também confirmou que foi ao local, de madrugada, a pedido do participante (G…), e falou com a legal representante da arguida (F… – que identificou na diligência), tendo-lhe esta transmitido que não facultava o livro de reclamações porque o participante não era cliente, uma vez não tinha ainda entrado no estabelecimento. Isso contribuiu decisivamente para dar como não provado o facto n.º 16.
C…, participante, confirmou ao Tribunal que lhe foi vedada a entrada pelo porteiro do estabelecimento da arguida e que o mesmo, após ser pedido, recusou disponibilizar o livro de reclamações, e isso foi-lhe reiterado por uma “senhora”, que deveria ser representante da arguida. Confirmou também que chamou as autoridades policiais. Tudo isso é consentâneo com o teor do auto de notícia de fls. 3.
E…, porteiro do estabelecimento à data dos factos, esclareceu que recebia ordens dos gerentes da sociedade, mormente F…, e que relativamente ao livro de reclamações, era guardado pela gerência, sendo disponibilizado quando esta assim o entendesse. Ou seja, os funcionários da arguida facultavam o livro de reclamações segundo as instruções da gerência daquela (ao contrário do alegado no recurso).
Esta testemunha não se recorda em concreto da situação em causa nos autos principais, mas recorda-se da dos autos apensos. Confirmou que o participante queria entrar no estabelecimento e lhe pediu o livro de reclamações numa ocasião; e que esse pedido foi “remetido ao responsável” da arguida (ao contrário do que é alegado no recurso). Confirmou que a PSP esteve no local e que o livro de reclamações não foi apresentado.
A testemunha I… trabalhou no estabelecimento da arguida, de 2017 a 2019, e referiu ao tribunal recordar-se de um cliente a quem foi vedado o acesso ao estabelecimento (o participante dos autos apensos) e recusado o livro de reclamações, mas acrescentou que não tem conhecimento concreto do que ocorreu nessa data.
O facto n.º 14 resulta provado do certificado do registo criminal de fls. 119.
O facto n.º 15 resulta provado do cadastro de fls. 96 verso e 97.

IV.FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. A arguida foi condenada pela prática de duas contraordenações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, na sua atual redação (dada pelo Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho). Esse diploma estabelece a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral (cf. o artigo 1.º).
O artigo 3.º desse diploma, com a epígrafe “Obrigações do fornecedor de bens ou prestador de serviços”, dispõe o seguinte, na parte que ora interessa:
1 - O fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a:
a) Possuir o livro de reclamações nos estabelecimentos a que respeita a atividade;
b) Facultar imediata e gratuitamente ao consumidor ou utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado, sem prejuízo de serem observadas as regras da ordem de atendimento previstas no estabelecimento comercial, com respeito pelo regime de atendimento prioritário;
(…)
3 - O fornecedor de bens ou o prestador de serviços não pode impor qualquer meio alternativo de formalização da reclamação antes de ter disponibilizado o livro de reclamações, nem condicionar a apresentação da reclamação, designadamente, à necessidade de identificação do consumidor ou utente.
4 - Quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao consumidor ou utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o setor em causa.
(…)

1.1 A arguida argumenta, no seu recurso, que os participantes não eram consumidores ou utentes do seu estabelecimento, não tendo usufruído dos bens e serviços aí prestados.
Acrescenta, em justificação, que os participantes não aceitaram as regras do estabelecimento para poderem entrar no mesmo e um deles já antes havia causado distúrbios no seu interior.
A arguida apoia-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 2756/15.7T8VFR.P1, em 26.10.2016, relativo a uma situação em que, à semelhança do que sucedeu nos presentes autos, foi negada a entrada num estabelecimento a um potencial cliente.
Sucede que esse caso é distinto do ora em apreço porque, aí, o estabelecimento estava fechado. Como se disse nesse aresto: “a regulamentação da disponibilização do livro de reclamações do Decreto-Lei 156/2005 (…) está concebida para as situações em que os estabelecimentos se encontram abertos ao público e em funcionamento e em que o consumidor está em condições de adquirir o bem ou serviço”; as normas desse regime “pressupõem que o estabelecimento se encontre aberto e em funcionamento, pois só nessas situações se estabelecem o que a lei designa por «relações de clientela». Um estabelecimento encerrado não tem contacto com o público, não faz atendimento nem estabelece essas relações”.
Esse aresto concluiu que no caso aí em análise não havia o dever de disponibilizar o livro de reclamações, mas teve o cuidado de referir o seguinte: “não estamos a tratar do caso de uma pessoa a quem tivesse sido vedada a entrada num estabelecimento aberto e em funcionamento”.
Ora, no caso em presença, o estabelecimento da arguida estava aberto ao público, a arguida estava a exercer a sua atividade e os participantes estavam em condições de adquirir os bens e serviços fornecidos pela arguida – só não o fizeram porque o porteiro do estabelecimento lhes negou o acesso.
Ou seja, o entendimento do acórdão acima referido não pode ser transposto para o caso dos autos, por serem distintas as suas circunstâncias fácticas.
Além disso, o Tribunal não concorda com o entendimento de utente ou consumidor defendido pela arguida.
Da conjugação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei 156/2005, resulta que utente e consumidor, para efeitos desse diploma, é todo aquele que pretende que lhe seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem; e que a apresentação do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta – cf., no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo 3960/16.1T8BRG.G1, em 03.04.2017 (disponível para consulta no sítio de Internet www.dgsi.pt).
Ora, se a disponibilização do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta, a circunstância invocada pela arguida, de os participantes não terem “aceitado as regras do estabelecimento” (a provar-se, o que não sucedeu), não constitui justificação válida para a arguida se recusar a facultar aos participantes o dito livro.
Essa divergência entre a arguida e os participantes (potenciais clientes), quanto a haver ou não motivo válido para vedar o acesso ao estabelecimento, constitui questão a decidir exatamente através do procedimento de reclamação que tem início com o preenchimento do livro de reclamações.
Em síntese, a recusa de acesso ao estabelecimento aberto ao público e em funcionamento, a potencial cliente, é motivo válido para pedir o livro de reclamações, devendo a arguida facultá-lo prontamente.

1.2 A arguida também argumenta no seu recurso que quem recusou o livro de reclamações foi um seu trabalhador, sem o conhecimento dos seus órgãos ou legais representantes.
Conclui, por isso, que não lhe pode ser imputada a contraordenação em análise.
O n.º 1 do artigo 7.º do RGCO prescreve que as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.
Por sua vez, o n.º 2 deste artigo dispõe que as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
A responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas ou equiparadas não tem carácter objetivo, já que pressupõe a prática do facto típico pelos seus «órgãos» no exercício das suas funções. Órgãos serão as pessoas físicas que têm a seu cargo decidir e atuar pelas pessoas coletivas, distinguindo-se dos meros agentes ou auxiliares.
Todavia, importa ter em conta que nos autos está em causa a prática de um ilícito contraordenacional previsto no Decreto-Lei n.º 156/2005, sendo necessário atentar nas seguintes normas:
Artigo 1.º Objeto
1 - O presente decreto-lei visa reforçar os procedimentos de defesa dos direitos dos consumidores e utentes no âmbito do fornecimento de bens e prestação de serviços.
2 - O presente decreto-lei institui a obrigatoriedade de existência e disponibilização do livro de reclamações, nos formatos físico e eletrónico.
(…)
Artigo 3.º
Obrigações do fornecedor de bens ou prestador de serviços
1 - O fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a:
a) Possuir o livro de reclamações nos estabelecimentos a que respeita a atividade;
b) Facultar imediata e gratuitamente ao consumidor ou utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado, sem prejuízo de serem observadas as regras da ordem de atendimento previstas no estabelecimento comercial, com respeito pelo regime de atendimento prioritário;
O fornecedor de bens e serviços, para os efeitos previstos nesse regime legal, é a pessoa coletiva, cuja conduta (de recusa do livro de reclamações) se materializa na atuação de um indivíduo concreto, agindo no exercício das suas funções.
Essa pessoa não tem que ser um órgão social da pessoa coletiva ou um seu representante legal ou voluntário, basta ser um seu funcionário.
Como refere o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo n.º 402/10.4TAPDL.L1-5, em 26.10.2010 (disponível para consulta no sítio de Internet www.dgsi.pt): “a resolução da questão não poderá passar pela aplicação impositiva do artigo 7.º, n.º 2, do RGCC”; “é-lhe completamente, in casu, indiferente”; “a responsabilidade do fornecedor de serviços, como tal, decorre diretamente da imposição normativa da disponibilização do livro de reclamações e não da previsão, alcance ou abrangência que se contenha no artigo 7.º, n,º 2, do RGCO”.
No caso aí em decisão, o acórdão entendeu que o diretor comercial da sociedade arguida (considerado agente ou funcionário da empresa), que tinha à sua guarda e na sua disponibilidade o livro de reclamações, tinha o dever de o facultar aos clientes que o solicitassem. Ao omitir esse dever “não deixou de agir senão no exercício das suas funções, em nome e no interesse daquela pessoa coletiva, como se estivesse de facto a «representá-la» para o efeito, pelo que agiu, na ficção legal, como que em verdadeira substituição do órgão da pessoa coletiva.
Como também refere esse aresto, como é óbvio, os órgãos de uma pessoa coletiva, sendo a maioria de natureza colegial e acontecendo que quando aquela tenha vários estabelecimentos espalhados pelo país, nunca estarão obviamente presentes para negar ou facultar os livros de reclamações, sendo os seus funcionários quem pratica tais atos.
Por isso, uma interpretação que não permita imputar à pessoa coletiva a contraordenação em análise, quando é um seu funcionário e não a gerência que nega o acesso ao livro de reclamações, “levaria inelutavelmente à irresponsabilidade de todas as pessoas coletivas neste tipo de infrações, anulando o objetivo enunciado na lei”.
A pessoa coletiva só não será responsável pela contraordenação se se provar que o agente físico da conduta agiu contra a vontade da pessoa coletiva.
No caso concreto, não foi alegado nem se provou que o trabalhador da arguida agiu contra a vontade desta, e foi alegado mas não se provou que o dito trabalhador agiu com desconhecimento dos órgãos e legais representantes da arguida.
Apurou-se sim, que o trabalhador estava no exercício das suas funções quando recusou disponibilizar o livro de reclamações aos participantes e que a própria gerente da arguida recusou essa disponibilização.
Consequentemente, é de imputar a infração à arguida.

2. A violação do disposto alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005 constitui contraordenação, que à data dos factos, era (quanto às pessoas coletivas) punível com coima de €1.500,00 a €15.000,00 - cf. a alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º, na redação vigente em 19.11.2017.
A negligência é punível, sendo os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis reduzidos a metade – cf. o n.º 2 do mesmo artigo, nessa redação.
A atual redação do artigo 9.º remete para o Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, comina a infração em análise com coima de €1.700,00 a €24.000,00, não sendo de aplicar este novo regime, por ser desfavorável à arguida – cf. a alínea b) do artigo 18.º do anexo a esse diploma.
Já vimos que a conduta da arguida preencheu, no plano objetivo, a previsão normativa em análise.
Resta apreciar se tal conduta é, em termos subjetivos, suscetível de ser qualificada como um ilícito contraordenacional.
A decisão administrativa impugnada imputou os factos acima referidos à arguida a título de negligência.
Age com negligência o agente que pratica um facto ilícito por não proceder com o cuidado a que está obrigado, representando ou não como possível que a sua conduta é proibida (cf. o artigo 15.º do Código Penal, aplicável no domínio das contraordenações, ex vi do artigo 32.º do Regime Geral das Contraordenações).
A violação do dever de cuidado determina-se por critérios objetivos, nomeadamente pelas exigências postas a uma pessoa avisada e prudente, na concreta situação do agente (por referência ao concreto círculo de responsabilidades em que este se move).
Esse dever de cuidado concretiza-se, em numerosos setores da vida, através de regras de conduta impostas a determinadas profissões (de que são exemplo as leges artis dos médicos e o código deontológico dos advogados) e dos requisitos impostos ao exercício de certas atividades económicas, como o comércio e a indústria. Daí que constitua omissão do dever de cuidado a falta de diligência do agente, em não se informar e preparar convenientemente para o exercício da atividade que vai desenvolver, adequando-a às exigências impostas, designadamente, pela lei e pela administração pública.
Ora, no caso dos autos, a arguida deveria saber, face à atividade económica que desenvolvia (de exploração de estabelecimentos de restauração e afins) que não podia recusar o livro de reclamações aos clientes (com o sentido e abrangência acima referidos) que lho solicitassem. Não o tendo feito, omitiu a arguida um ato que lhe era exigível e violou um dever objetivo de cuidado.
No plano subjetivo, a negligência pressupõe que o agente tenha capacidade pessoal para cumprir o dever de cuidado e prever o resultado típico, de forma a poder evitá-lo. No caso dos autos, é de concluir que tal capacidade existia, atenta a circunstância de a arguida ser uma sociedade comercial (uma estrutura organizada, portanto), que exerce uma atividade económica no ramo da restauração e afins, e atento o facto de as contraordenações terem sido praticadas em novembro de 2017 (data em que já tinham decorrido cerca de 11 anos desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 156/2005, que estabeleceu a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral).
A imputação dos factos à arguida deve, pois, ser feita a título negligente, como o fez a autoridade administrativa que condenou a arguida. Essa imputação é suficiente para o preenchimento do tipo de ilícito, atenta a circunstância de o n.º 2 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 156/2005 (na redação vigente em 19.11.2017) prever que a negligência é punível – cf. o n.º 1 do artigo 8.º do Regime Geral das Contraordenações.
3. Como já acima se explicou, cada uma das contraordenações praticadas pela arguida é punível com coima de €1.500,00 a €15.000,00. Esses limites devem, contudo, ser reduzidos a metade, isto é €750,00 e €7.500,00, respetivamente, atenta a circunstância de se tratar de uma infração negligente.
A autoridade administrativa fixou o montante exato da coima de acordo com os critérios consagrados no n.º 1 do artigo 18.º do RGCO: a gravidade da contraordenação, a culpa do agente e o benefício que este retirou da prática da contraordenação (não tendo sido considerada a situação económica da arguida porque esta não lhe forneceu quaisquer documentos sobre a mesma).
No recurso não é posto é causa o valor concreto das coimas.
Ponderando toda a matéria de facto provada nos autos, considera-se adequado o valor das coimas fixado nas decisões administrativas (€3.750,00 cada uma), nada havendo a censurar a este respeito.
4. Cúmulo jurídico das coimas
Uma vez que a arguida praticou duas contraordenações, há que dar cumprimento ao regime do concurso previsto no artigo 19.º do RGCO. Dispõe este preceito legal que “quem tiver praticado várias contraordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infrações em concurso” (n.º 1), não podendo “exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso” (n.º 2), nem “ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações” (n.º 3).
Nos termos dos preceitos legais acima referidos, o limite máximo da coima a aplicar é de €7.500,00 e o limite mínimo de €3.750,00.
Tendo em consideração os factos provados nos autos, mormente a reiteração da conduta da arguida no mesmo dia e a persistência em recusar o livro de contraordenações, mesmo na presença da PSP, entendo que é adequada a coima única de €5.000,00.

V.DISPOSITIVO

Em face do exposto, julgo improcedentes as impugnações das decisões administrativas de fls. 35 e segs. dos presentes autos e de fls. 40 e segs. do apenso A, mantendo integralmente as condenações da arguida.
Cumulo juridicamente as duas coimas aplicada à arguida numa coima única, de €5.000,00 (cinco mil euros).
Custas a cargo da arguida, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 93.º do RGCO, fixando a taxa de justiça em 3 UCs, em conformidade com o disposto na Tabela III em anexo ao Regulamento das Custas Processuais.
Notifique e deposite.
Dê conhecimento à autoridade administrativa, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 70.º do Regime Geral das Contraordenações.”

Apreciando:

O Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito em sede de recurso que incida sobre a sentença ou despacho judicial que aprecie a impugnação de decisão da autoridade administrativa, nos termos previstos no art. 75º, nº 1, do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO) Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro.
Significa isto, que os poderes cognitivos deste Tribunal ad quem estão, em regra, restringidos à matéria de direito, e a matéria de facto só poderá ser alterada se a sentença padecer de um dos vícios elencados nas diversas alíneas do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, diploma cuja subsidiária aplicação está expressamente prevista no art. 41º, nº 1, do RGCO.
Na verdade, o citado normativo constitui uma válvula de escape do sistema, instituindo uma revista alargada, na medida em que permite aos tribunais superiores, mesmo nos casos em que deveriam conhecer apenas da matéria de direito (seja porque a matéria de facto não foi impugnada ou o não foi validamente, seja por limitação decorrente da própria lei, como sucede no RGCO) alargar o âmbito da sua intervenção ao conhecimento de questões de facto.
Porém, não foi expressamente invocado qualquer desses vícios no recurso interposto e este Tribunal, no uso dos seus poderes de conhecimento oficioso, não os detecta. Assim sendo, a matéria de facto fixada na decisão agora submetida ao crivo desta Relação considera-se definitivamente fixada.
Feito este necessário enquadramento e regressando ao caso que nos ocupa, no recurso em apreciação está em causa a não disponibilização por parte da recorrente do livro de reclamações a duas pessoas que pretendiam entrar no seu estabelecimento às 4h50 e 5hl0 da madrugada do dia 19 de novembro de 2017 e cuja entrada lhes foi vedada.
Importa por isso apurar, face à pretensão da recorrente se as sobreditas pessoas se podem qualificar como consumidores ou utentes na situação dos autos, entendendo aquela que não, já que as mesmas não chegaram a ser admitidas no estabelecimento. Escuda-se ainda a recorrente no facto do horário de funcionamento do estabelecimento não permitir admitir mais clientes a partir das 4h30m, pelo que uma vez que as pessoas se apresentaram a hora em que já não era possível admiti-los no estabelecimento, não há obrigação de fornecer o livro de reclamações, sob pena de se obrigar um estabelecimento a fornecer o livro a quem já não pode admitir e com quem já não poderá estabelecer qualquer relação jurídica.
Está por isso em causa a recusa de apresentação do livro de reclamações a pessoa que no uso dos seus direitos de consumidor solicitou que este lhe fosse facultado, o que constitui infração ao disposto no art. 3º, nº 1, al. b), do Decreto-Lei nº 156/2005, de 15 de setembro.
E a primeira objeção levantada pela recorrente – sobre se as sobreditas pessoas se podem qualificar como consumidores ou utentes na presente situação – foi analisada na sentença em escrutínio, na qual, o tribunal a quo, após ponderação das razões que justificavam, a manutenção da decisão da autoridade administrativa, valorando todas as circunstâncias factuais do caso, conclui, com acerto, refira-se desde já, que os participantes à porta do estabelecimento, pretendendo entrar no mesmo, assumem a qualidade de utentes, e o facto de não terem sido efetivamente admitidos no estabelecimento por a tal terem sido impedidos pelo funcionário que se encontrava à porta, não afasta essa qualidade.
Já no que se refere ao segundo fundamento aduzido pela recorrente, só agora introduzido à discussão nesta sede de recurso, e ostensivamente com o objectivo de contrariar o entendimento preconizado na decisão recorrida de que se está perante um estabelecimento aberto e em funcionamento, de antemão sabendo que o aresto deste Tribunal da Relação do Porto com que pretendia reforçar a sua posição não se aplica à situação retratada nos autos, pois tal como se escreveu na sentença “A arguida apoia-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 2756/15.7T8VFR.P1, em 26.10.2016, relativo a uma situação em que, à semelhança do que sucedeu nos presentes autos, foi negada a entrada num estabelecimento a um potencial cliente. Sucede que esse caso é distinto do ora em apreço porque, aí, o estabelecimento estava fechado.(…) Esse aresto concluiu que no caso aí em análise não havia o dever de disponibilizar o livro de reclamações, mas teve o cuidado de referir o seguinte: “não estamos a tratar do caso de uma pessoa a quem tivesse sido vedada a entrada num estabelecimento aberto e em funcionamento”.
E nesta decorrência, vem alegar um novo facto e junta um documento com vista à sua prova (Doc. 1), no qual consta o horário de funcionamento do estabelecimento em apreço– 10h30m-6h00 - e ainda a menção de que não é permitida a admissão de clientes depois das 04.30m, alegadamente assinado pela gerência.
E assim argumenta que, “de acordo com o horário de funcionamento do estabelecimento da arguida, a partir das 4h30 da madrugada já não é possível admitir mais clientes (v. doc. n.º 1), justamente para assegurar que à hora limite - 06.00 horas - já não haja qualquer cliente no interior desse mesmo estabelecimento.”, para logo concluir “que para que alguém possa assumir a qualidade de consumidor ou de utente de um qualquer estabelecimento é necessário, no mínimo, que à hora em que se apresenta para dar entrada em tal estabelecimento o mesmo possa admitir quaisquer potenciais consumidores ou utentes. Aliás, o próprio aresto em recurso reconhece que se o estabelecimento não estiver aberto ou em condições de admitir mais potenciais clientes ou utentes não há qualquer obrigação de fornecer o livro de reclamações, pois esse é até o entendimento perfilhado pelo douto Tribunal da Relação do Porto de 26 de Outubro de 2016.”
Todavia, esta circunstância factual do horário de funcionamento do estabelecimento não permitir admitir mais clientes a partir das 4h30m, foi como se salientou, levantada pela primeira vez em sede de recurso, pois quer na fase administrativa, quer na impugnação judicial a recorrente não a considerou, e sequer encontra respaldo na factualidade tida como provada na sentença recorrida.
Com efeito, está definitivamente assente e nada mais que “O estabelecimento da arguida estava, na data e horas acima referidas (19.11.2017, pelas 04.50 e 05.10 horas, quando os participantes C… e G… ali quiseram entrar), aberto ao público e em funcionamento” (ponto 12.).
É, pois, um dado incontroverso, que na matéria dada como provada na sentença recorrida não consta qualquer referência ao horário de funcionamento do estabelecimento, apenas se mencionando que o estabelecimento da arguida estava, na data e horas referidas, aberto ao público e em funcionamento, pelo que a questão ora levantada pela recorrente é inócua ou irrelevante no presente contexto, em que está vedado a este tribunal ad quem reexaminar a matéria de facto conforme, de resto, já se deu nota.
Nesta medida, uma vez que não está dado como provado que a partir de determinada hora – 04.30h - o estabelecimento não poderia admitir novos clientes, falta substracto factual para que a análise da questão assuma qualquer relevância para a decisão dos autos.
Em suma, a convocada factualidade trazida agora pela recorrente no recurso que cuidamos de apreciar é para todos os efeitos inexistente, e nesta medida sequer passível de ponderação, pelo que desmerece qualquer análise.
Quanto ao mais alegado, a verdadeira questão em que desde o inicio assentou a irresignação da recorrente, ou seja, saber se um simples cidadão que se apresenta à porta de um estabelecimento e a quem é vedada a entrada assume a qualidade de utente ou consumidor, já obteve resposta cabal na decisão recorrida, e desde já avançamos que acompanhamos a pertinente fundamentação vertida na decisão recorrida, subscrevendo-a no essencial.
Vejamos.
Na situação em apreço está em causa a prática de duas contraordenações previstas na alínea b) do nº 1 do art. 3º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21/06 (e que entrou em vigor em 01.07.2017), diploma que estabelece a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral (cfr. art. 1º).
O seu preâmbulo aponta para a ratio legis do diploma: “O livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu. A criação deste livro teve por base a preocupação com um melhor exercício da cidadania através da exigência do respeito dos direitos dos consumidores. A justificação da medida, inicialmente vocacionada para o sector do turismo e para os estabelecimentos hoteleiros, de restauração e bebidas em particular, prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (…)”.
E para além deste objectivo de alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho de 1996, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores, visa ainda obstar à resistência das entidades visadas pelo estabelecimento das obrigações em causa à organização dos respectivos serviços de forma a não condicionar por qualquer forma a imediata entrega do livro de reclamações aos utentes que o pretendam utilizar.
Avançando.
Dispõe então o art. 3º do referenciado diploma, com a epígrafe “Obrigações do fornecedor de bens ou prestador de serviços”:
“1 - O fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a:
a) Possuir o livro de reclamações nos estabelecimentos a que respeita a atividade;
b) Facultar imediata e gratuitamente ao consumidor ou utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado, sem prejuízo de serem observadas as regras da ordem de atendimento previstas no estabelecimento comercial, com respeito pelo regime de atendimento prioritário;
(…)
3 - O fornecedor de bens ou o prestador de serviços não pode impor qualquer meio alternativo de formalização da reclamação antes de ter disponibilizado o livro de reclamações, nem condicionar a apresentação da reclamação, designadamente, à necessidade de identificação do consumidor ou utente.
4 - Quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao consumidor ou utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o setor em causa.
(…)”
Donde, nos termos do normativo transcrito, o fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a facultar imediata e gratuitamente ao consumidor ou utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado, sem prejuízo de serem observadas as regras da ordem de atendimento previstas no estabelecimento comercial, com respeito pelo regime de atendimento prioritário.
In casu, deparamo-nos com potenciais clientes do estabelecimento D… sito em Aveiro que estava aberto ao público, e que nele pretendiam ingressar tendo-lhes sido negado o acesso, e que nessa sequência solicitaram o livro de reclamações, o qual lhes foi recusado pelo funcionário da arguida.
E realça a recorrente, em prol da sua defesa, que os participantes não eram consumidores ou utentes do seu estabelecimento, não tendo usufruído dos bens e serviços aí prestados, para logo concluir que “o direito de exigir o livro de reclamações é restrito a quem usufrua dos serviços do estabelecimento e não a quem apenas pretende vir a usufruir de tais serviços, justamente por a obrigação jurídica só existir quando já se estabeleceu uma relação jurídica de fornecimento de determinados bens ou serviços e, portanto, ao dever de fornecer tais bens corresponder o direito de os pagar, mas também de exigir qualidade na prestação do serviço.(...) Deste modo, enquanto não se constituiu a relação jurídica e não ocorre a admissão no estabelecimento não há qualquer obrigação do prestador do serviço nem qualquer direito de reclamação por parte do cidadão.(…) é utente e consumidor quem já foi admitido, aceitou as regras do estabelecimento e comprometeu-se a pagar os respectivos serviços e, como tal, a exigir qualidade nos mesmos.”
Para reforçar a sua argumentação convoca o citado aresto desta Relação proferido no processo n.º 2756/15.7T8VFR.P1, em 26.10.2016, relativo a uma situação em que, à semelhança do que sucedeu nos presentes autos, foi negada a entrada num estabelecimento a um potencial cliente.
Por sua vez, o tribunal recorrido em oposição a tal apreciação, conclui que utente e consumidor para efeitos do citado diploma legal é todo aquele que pretende que lhe seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem, entendimento que é de sufragar sem reserva.
É que, desde logo esquece a recorrente que, à luz do aludido enquadramento legal a apresentação do livro de reclamações deve ser imediata, de tal modo que a recusa confere ao utente a faculdade de requerer a presença da autoridade policial para a remover e tomar nota da ocorrência garantindo que a reclamação chega ao conhecimento da entidade competente para a fiscalização do sector económico em causa, não podendo pois ser condicionada, como de resto se enfatizou na decisão recorrida: “Ora, se a disponibilização do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta, a circunstância invocada pela arguida, de os participantes não terem “aceitado as regras do estabelecimento” (a provar-se, o que não sucedeu), não constitui justificação válida para a arguida se recusar a facultar aos participantes o dito livro. Essa divergência entre a arguida e os participantes (potenciais clientes), quanto a haver ou não motivo válido para vedar o acesso ao estabelecimento, constitui questão a decidir exatamente através do procedimento de reclamação que tem início com o preenchimento do livro de reclamações, na esteira da posição perfilhada no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo 3960/16.1T8BRG.G1, em 03.04.2017, acessível in www.dgsi.pt.
Neste mesmo sentido se pronuncia o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo 3530/20.4T8CBR, em 10.27.2021, acessível in www.dgsi.pt. de onde se extrai “que toda a recusa de apresentação do livro a quem tenha a qualidade de consumidor – pessoa que tenha adquirido ou pretenda adquirir bens ou serviços de um estabelecimento que se encontre no âmbito da previsão do art. 2º, nºs 1, 2 e 4, do DL nº 156/2005 de 15.09 – por parte do prestador de bens ou fornecedor de serviços é abusiva e ilegal, incorrendo o infractor em responsabilidade contraordenacional”.
Mas isto não significa, como se lê no aresto por último mencionado, que o consumidor tenha sempre razão – em muitos casos certamente não a terá – ou que mesmo tendo-a isso implique de forma automática uma qualquer consequência para o agente económico. A razão que originou a queixa poderá ter sido fortuita ou involuntária, não justificando censura, ou poderá haver uma actuação emotiva, menos racional ou menos séria por parte do consumidor. Ainda assim, o prestador de bens ou serviços não pode ser juiz de si próprio, estando-lhe absolutamente vedada a recusa de apresentação do livro seja com que fundamento for.
Destarte e diversamente do que é sustentado no presente recurso, consideramos, pois, que a recusa de acesso ao estabelecimento aberto ao público e em funcionamento, a potencial cliente, é motivo válido para pedir o livro de reclamações, e que deverá ser facultado prontamente.
E a circunstância de não estar em causa uma reclamação originada na relação de prestação do serviço ou de venda de produtos dentro do estabelecimento, pois isso pressupunha que a pessoa tivesse entrado e que se tivesse chegado a estabelecer essa relação de consumo, a tal não obsta. É que, como se lê no próprio acórdão desta Relação convocado pelo recorrente de 10/26/2016, “O que a potencial cliente queria era apenas reclamar contra o fecho inesperado do estabelecimento, o que vale por dizer que pretendia reclamar contra o facto de não lhe ser permitido entrar na relação contratual típica entre o fornecedor e o consumidor.”. E isso é precisamente o que ocorre na situação que cuidamos de analisar, pois aos aqui participantes não lhes foi permitido entrar na relação contratual entre fornecedor e consumidor, não obstante estar o estabelecimento aberto/em funcionamento.
Extrai-se ainda assim do mesmo aresto que “a regulamentação da disponibilização do livro de reclamações do Decreto-Lei 156/2005(…) está concebida para as situações em que os estabelecimentos se encontram abertos ao público e em funcionamento e em que o consumidor está em condições de adquirir o bem ou serviço”. Portanto, situação idêntica à tratada nestes autos, já que o estabelecimento estava aberto e inexistindo razão validamente comprovada para que os participantes não pudessem iniciar a relação contratual pelos mesmos pretendida.
Repare-se que, o consumidor não pode deixar de ser visto como toda e qualquer que pessoa com interesse em adquirir um produto ou serviço, e que com esse propósito se dirige a um estabelecimento de venda de bens ou prestação de serviços. Basta pensar-se na simples e frequente situação de se entrar numa qualquer loja para comprar um produto, acabando por não se realizar a compra, não chegando assim a efectivar-se a relação contratual, o que não pressupõe, naturalmente, que a pessoa em questão não assuma a qualidade de consumidor, e por qualquer motivo, caso pretenda apresentar uma reclamação, possa solicitar o livro em questão.
Em suma, a apreciação levada a cabo pelo tribunal recorrido não nos merece censura, aí se concluindo com acerto que existia a obrigação por parte da recorrente de facultar aos participantes o livro de reclamações.
Conclui-se, pois, pelo demérito dos argumentos aduzidos pela recorrente.
E porque se entende que não assiste razão à recorrente, improcede, assim, na totalidade o presente recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

3. DECISÃO.

Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (arts. 513º, nº 1, do CPP, ex vi do art. 74º, nº 4 do RGCO e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).

Notifique.

Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelo Meritíssimo Juiz Adjunto.

Porto, de 15 de dezembro de 2021
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso