Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
457/17.0PAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HORÁCIO CORREIA PINTO
Descritores: CONVERSA TELEFÓNICA
GRAVAÇÃO PELO RECETOR
PROVA VÁLIDA
Nº do Documento: RP20191106457/17.0PAVFR.P1
Data do Acordão: 11/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As provas obtidas mediante intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações sem o consentimento do titular constituem, em princípio, métodos proibidos de prova – art.º 126º n.º 3 do CPP.
II - O consentimento do visado é determinante e, numa breve interpretação, parece não poder ser utilizada a gravação de uma chamada telefónica feita pelo receptor, sem o consentimento do emissor.
III - Porém, quando a gravação, efectuada pelo particular/vítima contém, em si, um meio para perpetrar um crime, a prova recolhida é válida, mesmo que sem consentimento do agente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 457/17.0PAVFR.P1
Acordam em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
Relatório.
Os presentes autos tiveram início com a denúncia/queixa-crime apresentada por B… contra C…, devidamente identificado nos autos, de factos configurados pelo Ministério Público como subsumíveis ao crime de coacção, previsto e punido pelo artº 154 nº 1, do CP.
Denunciou … que o seu ex-marido, C…, a chantageou exigindo-lhe €20.000 para não usar a seu favor uma letra assinada em branco por ela, e que teria na sua posse, mostrando-lhe uma fotografia desse documento no seu telemóvel.
Findo o inquérito, ouvido o arguido que negou a prática dos factos, entendeu o MP proferir despacho de arquivamento por não ter sido possível reunir indícios suficientes da prática dos factos denunciados.
Veio nessa sequência a denunciante constituir-se assistente e nessa qualidade requerer abertura de instrução contra o arguido C… imputando-lhe a prática do crime de coacção previsto e punido pelo disposto no artº 154 nº 1 do CP.
Após debate instrutório o tribunal decidiu julgar procedente o requerimento de abertura de instrução e consequentemente, pronunciar para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido C…, nascido em 16 de Abril de 1981, filho de D… e de E…, natural de Espinho, residente na Av.º …, nº …, …, Santa Maria da Feira, com o cartão de cidadão nº …….., pela prática dos seguintes factos:
1) No dia 6 de Dezembro de 2017, pelas 12h e 30m, o arguido, logo após ter saído da Agência do E…, sita em …, juntamente com a assistente, dirigiu-se à mesma e disse em tom ameaçador: “tenho uma letra em branco assinada por ti e por mim e, ou me dás o valor de €20.000 (vinte mil euros) em dinheiro, ou, caso contrário, irei preencher a letra, pôr o valor que eu quiser e não digas nada à tua mãe senão ainda é pior para ti e até o teu ordenado posso ir buscar”.
2) Seguidamente, usando o seu telemóvel, exibiu à assistente a fotografia da letra a que se referia, ainda em branco.
3) A letra em causa havia sido entregue pelo arguido e pela assistente a F… para garantia de um empréstimo de €20.000,00 (vinte mil euros) efectuado pelo mesmo F… a ambos e há muito liquidado.
4) Após a liquidação do mencionado empréstimo, o mencionado F… devolveu tal letra ao arguido.
5) Alguns dias após os factos acima descritos, e, depois de a Assistente ter recebido diversas chamadas de número privado que não atendeu, o arguido telefonou-lhe, usando o seu telemóvel, com o número ………, perguntando-lhe “já pensaste bem na minha proposta, naquilo que eu te falei noutro dia?” e “Quando é que dizes alguma coisa?”, tendo a assistente mencionado o que se havia passado no dia 6 de Dezembro e afirmado que nada era devido ao arguido.
6) Ao actuar como se descreveu, o arguido fê-lo com a intenção de constranger a assistente a entregar-lhe €20.000 (vinte mil euros), que bem sabia que não lhe eram devidos, ameaçando mesmo com a penhora do seu salário caso não acedesse à sua exigência, desse modo visando alcançar para si enriquecimento ilegítimo.
7) O arguido agiu livre deliberada e conscientemente, não desconhecendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Incorreu assim na prática, em autoria material, na forma tentada, de um crime de extorsão, previsto e punido pelos artºs 22, 73 e 223 nº 1, do Código Penal.

Inconformado com o despacho de pronúncia, veio o arguido C… interpor recurso, nos termos de fls 117/128, cujo teor da motivação aqui damos por reproduzido, apresentando a final as seguintes conclusões:
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O recurso foi liminarmente admitido (fls 129).
O MP a quo respondeu:
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Resposta da assistente B….
A recorrida muito sucintamente defende que a gravação é legal e com outros elementos de prova afiguram-se indícios suficientes para os autos seguirem para julgamento.
Parecer:
De forma breve rebatem-se os fundamentos do recurso: nulidade da pronúncia por alteração substancial dos factos; ilicitude da gravação apresentada e falta de indícios suficientes.
O parecer é curto mas bastante assertivo, reiterando também as considerações tecidas pelo MP a quo.
Resposta do arguido.
Mantém tudo que alegou em sede de recurso.

Após exame preliminar, colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Mantém-se a regularidade da instância.
Cumpre decidir.
Fundamentação:
Do despacho a quo.
(…)
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Cumpre apreciar de facto e direito:
Das conclusões apresentadas pelo recorrente importa definir o objecto do recurso. Os fundamentos do recurso estão sumariados nas conclusões – artº 410 nº 1 do CPP.
a) Nulidade da pronúncia por alteração substancial dos factos;
b) Utilização de prova proibida – ilicitude da gravação apresentada;
c) Falta de indícios suficientes de prova.
Sucintamente impõe-se dizer que no âmbito destes autos o MP arquivou o inquérito por falta de prova. O arquivamento resultou da falta de indícios suficientes quanto à verificação do crime (artº 277 nº 2 do CPP). Como consequência deste despacho, a assistente veio requerer abertura da instrução e, após debate instrutório, o tribunal proferiu despacho e pronunciou o arguido, como autor material, na forma tentada, pela prática de um crime de extorsão, nos termos dos artºs 22, 73 e 223 nº 1 do CP.
1) Da nulidade da pronúncia por alteração substancial dos factos.
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b) Da prova proibida.
A questão coloca-se por força do telefonema recebido pela assistente, veículo para a tentativa de extorsão.
Assim, a assistente juntou nesta fase uma impressão da imagem do browser do seu telemóvel onde aparece uma chamada de 1 minuto datada de 27/12/2017 provinda do número de telemóvel que o arguido forneceu nos autos como sendo o seu, ……….. – cfr. auto de constituição de arguido e Termo de Identidade e Residência, de fls. 19 e 20.
O arguido não negou a existência desta chamada, nem deu para a mesma qualquer explicação.
Com o requerimento de abertura de instrução foi ainda junta uma vídeo-gravação desta mesma chamada, que a testemunha G… afirma ter testemunhado, juntamente com H…, gravação que teria sido realizada por aquela G… e cujo conteúdo se resume, no essencial, à seguinte indagação pelo arguido junto da assistente: “Então, tu já pensaste bem na minha proposta?” – cfr. fls. 16 e verso e 30.
Foi no decurso do debate instrutório suscitada a invalidade deste meio de prova.
Importa definir o valor probatório dessa gravação.
As provas obtidas mediante intromissão na vida privada, domicilio, correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do titular constituem métodos proibidos de prova – artº 126 nº 3 do CPP. Esta proibição dirige-se às instâncias formais de controlo, nomeadamente autoridades judiciárias, visando disciplinar a investigação e procedimento penal. Convém sim saber o valor das provas obtidas por particulares, fora do procedimento penal. O valor destas reproduções não poderá ser ilícito, nos termos da lei penal.
São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei – artº 125 do CPP – e as reproduções mecânicas só valem como prova dos factos reproduzidos se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
O valor da prova apresentada pelo particular vai depender da sua licitude perante a legislação penal. A obtenção desta prova tem que ser lícita: não pode ser produto de actividade criminosa.
As gravações ilícitas estão disciplinadas no artº 199 nº 1 do CP.
“Quem, sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias. (…).”
O consentimento do visado é determinante e, numa breve interpretação, parece não poder ser utilizada a gravação sem o consentimento da parte. Porém, interpretação diferente resulta quando a gravação efectuada pelo particular/vítima constitui um meio para perpetrar o crime. A prova recolhida por este meio é válida mesmo que sem o consentimento do agente, causa de justificação muito difícil conceber já que o autor, jamais prestaria um consentimento desfavorável. As declarações obtidas extrajudicialmente, fora do processo normal de investigação, são válidas como meio de prova e ficam sujeitas, como qualquer outro meio, à livre apreciação do tribunal.
Esta matéria tem suscitado muita controvérsia, levando a grandes debates doutrinais e jurisprudenciais. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, tratou bem cedo desta matéria seguindo de perto o debate suscitado na doutrina e jurisprudência alemãs. Vejam-se fls 242 e seguintes, desta monografia, editada pela Coimbra Editora em 1992, onde se aborda o tema das gravações ilícitas, não deixando de considerar o que ocorre nos crimes de extorsão, coacção, injúria, corrupção, fraude e outos tipos legais propensos à integração por esta via: como momento comum a estas situações sobressai um comportamento ilícito ou ao menos, eticamente censurável, por parte da pessoa cuja palavra é, sem o seu consentimento, gravada. Igualmente comum e consensual, entre a doutrina e jurisprudência, é o entendimento de que os autores destas gravações não devem ser criminalmente sancionados. Mas as divergências começam já a ganhar expressão em sede de enquadramento doutrinal da exclusão da responsabilidade penal. Enquanto uns privilegiam o efeito tipicidade, em nome da redução teleológica da área de tutela da norma incriminatória, outros consideram que só a doutrina da ilicitude e das causas de justificação detém as virtualidades para um ajustado enquadramento dos problemas.
A gravação das comunicações entre particulares como meio de prova em processo penal coloca questões delicadas no domínio dos direitos fundamentais: intimidade da vida privada e inviolabilidade das comunicações e, por outro lado, o direito do arguido a não se auto-incriminar (nemo tenetur se ipsum acusare) e de evitar que esta manifestação consubstancie uma forma dissimulada de confissão. O Tribunal Supremo espanhol, citado por José Perals Calleja, in Investigacion Tecnológica y Derechos Fundamentales, fls 247 e seguintes – Thompson Reuters Aranzadi – valida as declarações obtidas mediante gravação, entre particulares, desde que observados alguns requisitos. A inviolabilidade da gravação fica a coberto pela prática de um ilícito executado por esta via (ilicitude da conduta). O direito constitucional à intimidade privada não fica afectado pela gravação, excepto se a intimidade familiar ou pessoal dos interlocutores pudesse de alguma forma ficar comprometida. O valor das declarações não pode ser obtido por quem tem uma superioridade institucional que lhe permita, por esse meio, obter algo comparável a uma confissão. Este meio de prova não pode valorar-se como declaração incriminatória (declarar contra si próprio) ou como verdadeira confissão. A gravação não pode processar-se com argúcia, como meio premeditado (indução) de obter uma prova consistente. Este meio de prova deverá ser valorado pelo tribunal como os outros meios de prova, no fundo sujeito à livre apreciação da prova.
Terminamos com algumas referências insertas na sentença a quo que veiculam, entre nós, a posição hoje defendida pela doutrina e jurisprudência: (…) a assistente não cometeu qualquer crime mediante a gravação da comunicação telefónica que lhe foi dirigida pelo arguido, pelo que não subsiste razão para considerar inválida a prova conseguida por via de tal gravação, que deverá ser livremente valorada, nesta sede e na audiência de julgamento.
Neste sentido, é praticamente pacífica a jurisprudência, destacando por dizer respeito a caso muito semelhante ao dos autos, o Acórdão da Relação do Porto de 27/01/2016, no processo 1548/12.0TDPRT.P1, acessível em “(…)
II – Pode ser considerada válida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio.
III – Se a gravação documenta a comunicação telefónica do autor, daqueles ilícitos da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido (crimes de ameaça e injuria) é justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente sem o consentimento do autor daqueles ilícitos.”
Hoje em dia não há quaisquer dúvidas que as gravações de chamadas telefónicas, ou por outros meios electrónicos, entre particulares, são válidas como meio de prova, desde que esta matéria seja analisada casuisticamente, como meio de proteger um conjunto de direitos fundamentais que brigam com esta temática.
Entre outra prova, podemos consistentemente afirmar que a gravação, como meio adjuvante, serviu para demonstrar o iter criminis – tentativa de extorsão.
A gravação entre particulares é legal e por isso a prova não pode ser considerada proibida.
c) Falta de indícios suficientes.
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Acordam os juízes que integram esta Secção Criminal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido C…, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.
Registe e notifique.

Porto, 6 de Novembro de 2019
Horácio Correia Pinto
Moreira Ramos